Caos, teorias da conspiração e pandemia

5. Paixões e humores futuros

Em seu estudo sobre a semiose hermética, Eco discute ainda sobre o “excesso de maravilha” decorrente da superinterpretação dos indícios fornecidos por um determinado texto ou discurso55. Eco enfrenta essa questão no quadro das coordenadas definidas por seu problema de pesquisa : os limites e os excessos da intepretação. A maravilha não o interessa enquanto sentir e/ou paixão, mas como faísca capaz de engendrar leituras suspeitosas e paranoicas do mundo. Um assunto, portanto, de natureza lógico-cognitiva. No entanto, as páginas sobre o excesso de maravilha convidam a enquadrar o problema do discurso hermético a partir de uma outra perspectiva, que leve em consideração as suas qualidades estético-passionais, também fundamentais no discurso político contemporâneo56.

55 Ibid., p. 87.

56 Vejam-se, a este propósito, os dossiês organizados por E. Landowski, Populisme et esthésie, Actes Sémiotiques, 121, 2018 e Dimensions sémiotiques du populisme, Actes Sémiotiques, 123, 2020 ; G. Marrone, Languages of politics / Politics of languages, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 2, 2019 ; D. Bertrand et al., Forme semiotiche dell’espressione politica, Carte Semiotiche Annali, 6, 2018 ; A. Bueno e O. Fulaneti, Discursos políticos na contemporaneidade, Estudos Semióticos, 1, 15, 2019.

Ora, na ideia de catástrofe caótica e conspiratória promovida por Bolsonaro, humores, afetos e paixões com nome e sem nome jogam um papel de primeiro plano. Como já observamos, o futuro próximo que se prospecta no horizonte é sempre “desastroso”, “trágico”, “tremendo”. Cabe então se perguntar : quais são as consequências desta articulação temático-figurativo-aspectual no plano estésico-passional ?

Uma primeira resposta : o medo. O medo é uma típica paixão do futuro57. Teme-se sempre algo que está por vir, as consequências de ações e passadas e presentes nos dias que virão. Contundo, como observa Marrone retomando Delumeau, o medo é também uma paixão que oscila entre determinação e indeterminação, entre o vago e o preciso58. Pode-se temer algo específico (Lula, João Doria, os chineses, o Supremo Tribunal Federal) e, ao mesmo tempo, algo indefinido (a catástrofe, o fim, a morte, sem saber exatamente do que se trata). Mas o medo desemboca aqui na angústia, paixão incerta por excelência, sem uma causa precisa, responsável pela caída do sujeito na espera perene de um mal impreciso, suscetível de se manifestar a qualquer momento59. A angústia é, portanto, sob o perfil aspectual, uma paixão durativa.

57 Cf. D. Barros, Margens, periferias, fronteiras, op. cit. ; R. Bodei, Geometria delle passioni. Paura, speranza e felicità : uso politico, op. cit. ; J.L. Fiorin, “Algumas considerações sobre o medo e a vergonha”, Cruzeiro Semiótico, 16, 1992 ; I. Pezzini, Le passioni del lettore, op. cit. ; D. Salerno, Terrorismo, sicurezza, post-conflitto. Studi semiotici sulla guerra al terrore, Padova, Libreria Universitaria, 2012 ; G. Marrone, “Fragmentos de um discurso político”, art. cit.

58 Cf. G. Marrone, “Fragmentos”, art. cit., p. 4. J. Delumeau, La peur en Occident, Paris, Fayard, 1978.

59 CF. G. Marrone, art. cit., p. 4.

É este o caso da catástrofe e do caos bolsonarista. Um futuro indeterminado e ameaçador envolvido em uma nuvem de angústia. A imprevisibilidade e a vagueza que caracterizam o futuro segundo Bolsoanro alimentam essa sensação. Dizer que algo terrível esta para acontecer sem revelar, no entanto, do que exatamente se trata, é uma estratégia eficiente para manter viva a tensão. Mais do que isso : o continuum da inquietude é atravessado pela insurgência de paixões pontuais como, por exemplo, o pavor e o terror. Há sempre, na maneira como Bolsonaro anuncia a catástrofe a vontade e a exigência de atordoar e desconcertar de modo hiperbolicamente negativo e disfôrico.

Como na análise de Greimas sobre o senhor Palamor de Calvino, estamos aqui diante de um guizzo, isto é, da emergência repentina de algo que perturba os sentidos e o sentido da vida60. Há, todavia, uma diferença entre esse caso e o que estamos analisando. Enquanto nos textos analisados por Greimas o acidente estésico emerge sobre um pano de fundo de monotonia, atonicidade e usura perceptiva, no caso de Bolsonaro o pavor e o terror surgem de um substrato emocional já fortemente excitado. É o constante estado de inquietude ao qual se refere Y. Fechine, que transforma os seguidores de Bolsonaro em um exército de soldados sempre alertas61, ou o estado de ânimo do sujeito paranoico que espera que uma profecia funesta se realize62.

60 Da Imperfeiçao, op. cit.

61 Y. Fechine, “Passions et présence...”, art. cit.

62 U. Eco, I limiti dell’interpretazione, op. cit. ; R. Bodei, op. cit.

Entramos aqui em um universo em que as paixões até agora descritas começam a se confundir, desembocando em uma esfera tímica cujos contornos são menos definidos. Para usarmos os termos de Landowski, passa-se das “paixões com nome” às “paixões sem nome”. O adepto do bolsonarismo vive em um constante estado de fibrilação. O que domina é uma estesia intensa e indecifrável a priori, um borbulhar contagioso, uma espécie de “massa tímica em movimento”63, cujas trajetórias não são inteiramente mapeáveis. Como foi recentemente observado, trata-se de uma caraterística fundamental do atual populismo de direita, no qual o sensível, os humores e as paixões sem nome jogam um papel de primeiro plano64.

63 E. Landowski, Présences de l’Autre, op. cit., p. 210.

64 E. Landowski (org.), Populisme et esthésie, op. cit., Dimensions sémiotiques du populisme, op. cit. G. Marrone (org.), Languages of politics / Politics of languages, op. cit.

Diante desse quadro, emerge um problema teórico sobre o qual, futuramente, será importante refletir : aquele da passagem da timia e da estesia às paixões socialmente reconhecidas e nomeadas. Por enquanto baste observar, no que concerne ao caso de Bolsonaro, duas coisas. A primeira é que existe uma relação de determinação recíproca entre estesia a indeterminação semântica. Quanto mais aumenta a primeira, mais aumenta a segunda. Quanto mais imprevisível será o efeito da catástrofe iminente, maior será a intensidade estésica de sua espera. A segunda é que o “susto” não define apenas o advento do desconhecido, como também do que já se sabia que ia acontecer. Segundo as leis que regem o discurso de Bolsonaro, o “espanto” circunda também o concretizar-se do fato previsível. Assusta-se não apenas diante do “não sei o que está-por vir”, como também perante ao “sabia”. Não por acaso, uma das estratégias preferidas de Bolsonaro diz respeito à urgência : “URGENTE ! ABSURDO !, escreve-se muitas vezes, em maiúsculo, quando se compartilha uma “notícia bomba” no Twitter ou no Whatsapp. E pouco importa se a notícia seja ou não, de fato, uma bomba. O que importa, conforme a lógica tensiva do “mais” e do “ainda mais” à qual nos referíamos nas seções anteriores, é aumentar a tensão e a carga estésica em circulação no corpo social, alimentar seu contínuo alastramento.

A pandemia de Covid cumpriu, aqui, um papel fundamental. Como vimos, foi graças a ela que o atual presidente do Brasil conseguiu fazer com que, ao longo de 2020, cargas estésicas e passionais se alastrassem com força no corpo social brasileiro, ressoando e revigorando a isotopia do catastrofismo que, há tempo, marca seu discurso político-escatológico.

Conclusão

Temos procurado entender melhor as tramas e as engrenagens nas quais se funda a articulação entre o caos, as teorias da conspiração e ameaça de um iminente futuro catastrófico no discurso de Jair Bolsonaro. Em particular, observamos como : (i) o futuro distópico de Bolsonaro oscila entre incoatividade e duratividade, configurando-se como uma dimensão atemporal que é, ao mesmo tempo, “passado”, “presente” e “futuro”. Para Bolsonaro, a catástrofe, seja ela causada pelo Foro de São Paulo, seja pela pandemia do novo coronavirus ou pela China, está sempre para começar embora esteja, simultaneamente, acontecendo há bastante tempo ; (ii) o futuro distópico de Bolsonaro é, em igual medida, previsível e imprevisível : imprevisível porque não se sabe exatamente ao que conduzirá, quando se realizará, quão violento será e quem será o responsável pelo desastre ; previsível por que, conforme as exigências do momento, pode ser atribuído a um complô antigo elaborados por atores específicos ; (iii) tanto o futuro, quanto o passado são, em Bolsonaro, altamente indeterminados : a verdade futura prometida pelo ex-capitão é um segredo vazio, que pode ser preenchido como convém ; (iv) o futuro distópico de Bolsonaro é atravessado por um estado de exitação constante, no qual convivem e se alternam paixões com nome e sem nome : angustia, ansiedade, inquietude, pavor e humores imprecisos, tensões indefinidas e picos extáticos. O bolsonarista convicto está sempre alerta, pronto, mas nunca completamente, para a catástrofe que está por vir, diante da qual pode sempre se maravilhar, mesmo quando, a posteriori, as coisas parecem ser mais obvias de quanto inicialmente pareciam.

A pandemia de Covid 19 inseriu-se nesse quadro intensificando o discurso catastrofista-conspiratório do ex-capitão do exército brasileiro. Aos poucos, tornou-se mais um recurso para reforçar à adesão à sua narrativa escatológica. Sendo descrita como uma outra possível causa de iminentes flagelos e desastres planejados pelos “sistemas” e pelos “establishments” que governam o Brasil, serviu para consolidar, inteligível e sensivelmente, a crença sobre o (constantemente) próximo “fim da nação”. Diante deste cenário, Bolsonaro cumpre um dúplice papel temático, agindo como um oráculo do caos ao mesmo tempo que como o providencial messias salvador da pátria. Um programador de acidentes – sociais, econômicos, sanitários, pouco importa – cuja duração, dimensões e intensidade ele mesmo afirma não saber, ainda que se diga preparado para vislumbrá-los e enfrentá-los.

 

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55 Ibid., p. 87.

56 Vejam-se, a este propósito, os dossiês organizados por E. Landowski, Populisme et esthésie, Actes Sémiotiques, 121, 2018 e Dimensions sémiotiques du populisme, Actes Sémiotiques, 123, 2020 ; G. Marrone, Languages of politics / Politics of languages, Rivista Italiana di Filosofia del Linguaggio, 13, 2, 2019 ; D. Bertrand et al., Forme semiotiche dell’espressione politica, Carte Semiotiche Annali, 6, 2018 ; A. Bueno e O. Fulaneti, Discursos políticos na contemporaneidade, Estudos Semióticos, 1, 15, 2019.

57 Cf. D. Barros, Margens, periferias, fronteiras, op. cit. ; R. Bodei, Geometria delle passioni. Paura, speranza e felicità : uso politico, op. cit. ; J.L. Fiorin, “Algumas considerações sobre o medo e a vergonha”, Cruzeiro Semiótico, 16, 1992 ; I. Pezzini, Le passioni del lettore, op. cit. ; D. Salerno, Terrorismo, sicurezza, post-conflitto. Studi semiotici sulla guerra al terrore, Padova, Libreria Universitaria, 2012 ; G. Marrone, “Fragmentos de um discurso político”, art. cit.

58 Cf. G. Marrone, “Fragmentos”, art. cit., p. 4. J. Delumeau, La peur en Occident, Paris, Fayard, 1978.

59 CF. G. Marrone, art. cit., p. 4.

60 Da Imperfeiçao, op. cit.

61 Y. Fechine, “Passions et présence...”, art. cit.

62 U. Eco, I limiti dell’interpretazione, op. cit. ; R. Bodei, op. cit.

63 E. Landowski, Présences de l’Autre, op. cit., p. 210.

64 E. Landowski (org.), Populisme et esthésie, op. cit., Dimensions sémiotiques du populisme, op. cit. G. Marrone (org.), Languages of politics / Politics of languages, op. cit.

 

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Palavras chave : acidente, actante joker, catástrofe, discurso político, estesia, explosão, indeterminação, paixão, populismo, previsibilidade vs imprevisibilidade.

Mots clefs : accident, actant joker, catastrophe, discours politique, esthésie, explosion, indétermination, passion, populisme, prévisibilité vs imprévisibilité.

Auteurs cités : Umberto Eco, Yvana Fechine, Algirdas J. Greimas, Eric Landowski, Juri Lotman, Gianfranco Marrone, Franciscu Sedda, Claude Zilberberg.


Plan

Introdução

1. Inimigos passados, presentes e futuros

2. À beira de uma eterna catástrofe

3. Entre previsibilidade e imprevisibilidade

4. Vazios e segredos : dentro a indeterminação

5. Paixões e humores futuros

Conclusão

 

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