Dossier : Règles, régularités et création

Em defesa do espírito de criação*

Eric Landowski
Paris, C.N.R.S. — São Paulo, C.P.S.

 

Publié en ligne le 26 décembre 2022
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2022n4.60281
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Introdução

Na esperança de compreender melhor o que permite às pessoas se entenderem umas as outras e concordar (mais ou menos) a respeito do que significa o mundo no qual vivem, nós, linguistas, antropólogos, semioticistas nos tornaramos por assim dizer os gramáticos do pensamento, continuamente à procura dos princípios de organização sintáxica e semântica sem os quais, acreditamos, nada poderia fazer sentido. Claro, se algo que se assemelha a uma gramática rege a articulação do pensamento, é sem saber que aplicamos seus princípios, da mesma maneira que, falando, os nativos de uma língua respeitam regras gramaticais sutis sem, na maioria dos casos, se dar conta. Apenas em alguns campos específicos como a reflexão científica ou o raciocínio jurídico, aplicam-se conscientemente certas regras, em particular de método, mas trata-se apenas de pequenas ilhas no oceano da produção intelectual global. Tornar explícitos os princípios reguladores do pensar ordinário, o de todo o mundo e de todos os dias, e descrever a maneira com eles formam sistema, eis a difícil tarefa que nos cabe.

Na medida em que conseguimos, justificamos nosso trabalho de colecionadores de regras, ou mais exatamente de buscadores de regularidades. Se estamos interessados, por exemplo, nas estranhezas do pensamento mítico, é para mostrar que essas elucubrações de aparência abracadabrante nada têm de gratuito. Fazemos a hipótese de que elas “obedecem”, não necessariamente a regras formais que os contadores teriam aprendido e aplicariam conscienciosamente, mas ao menos a certas constantes profundas e regulares do entendimento, graças às quais elas têm sentido. O que poderia ser mais instigante e belo do que explorar, deste modo, o tipo de regularidades que Lévi-Strauss postulava ao falar de “leis” do espírito humano ? Ademais, nos últimos anos, dedicar-se a um tal trabalho ganhou o valor de uma missão de saúde mental pública diante do obscurantismo massivamente difundido pelas redes chamadas de “sociais”, onde se espalha um pensamento tão desregulado em profundidade quanto desregrado em superfície, terreno ideal para a proliferação do vírus populista.

Mas, ao mesmo tempo, toda coisa tendo o seu revés, pode-se perguntar se a busca das regras que estão na base de todo pensamento articulado não tende às vezes a se transformar em um viés ideológico. A intenção de partida é clara : se nós queremos explorar esses princípios reguladores, é com a ideia de que um melhor conhecimento deles poderia favorizar o desenvolvimento de uma vida intelectual mais livre e criativa. Está, pelo menos, aí o que funda a semiótica como tomada de consciência emancipadora — como “gai savoir” dizia Greimas. Contudo, à força de enfatizar os constrangimentos sistemáticos que condicionam a produção de sentido, não estamos, de certo modo, nos transformando em guardiões da ordem obcecados por regras em detrimento do espírito de livre criação ?

* Versão en grande parte reesccrita do artigo “Plaidoyer pour l’esprit de création”, Semiotika (Vilnius), 16, 2021. Tradução de Ana Claudia de Oliveira e o autor.

1. Regras e regularidades

1.1. O culto da regra

Esse risco — frear o pensamento inventivo no lugar de o liberar — deve-se antes de tudo ao fato de que basta confundir os níveis de generalidade para passar sem perceber do gesto heurístico fundamental que consiste em postular a regularidade dos processos significantes, isto é, uma forma de gramaticalidade sem a qual nenhum tipo de compreensão, nenhum raciocínio, nenhum conhecimento seria concebível, a uma exigência dogmática de regras pontuais e detalhadas em todos os domínios — o que é evidentemente uma outra coisa. Isso se traduz, em muitas pessoas, por uma inquietante obstinação em buscar, esperar, exigir ou antecipar, por todas as partes, no plano empírico, regulamentos, instruções imperativas, marcos constrangedores, supostos requisitos ou normas subjacentes que fixariam não somente o que é permitido, obrigatório ou interdito, “correto” ou “inapropriado”, mas também o que é possível e o que não é. E isso especialmente lá onde não aparece nenhum esquema de regulação explícito. A tal ponto que nas nossas disciplinas de ciências sociais, a obsessão da regra tende a se espalhar como uma espécie de doença profissional.

Talvez isso seja, em parte, apenas uma questão de temperamentos pessoais. Esse aspecto psicológico certamente não é o mais interessante, mas é aquele que envolve as consequências imediatas mais prejudiciais no que diz respeito à inventividade da pesquisa. De fato, é frequente que o gosto pela ordem no plano cotidiano — uma ordem garantida graças ao respeito de determinadas regras na sociedade, na família, para a arrumação da casa — se transponha no plano do trabalho intelectual do pesquisador. Pode então induzir o mesmo desejo de regras, às vezes de regras tão tirânicas que elas reduzem o desenrolar da investigação a uma sequência de dever-fazer sucessivos, programados como se fossem algoritmos procedimentais fixados por uma instância superior e anônima. É verdade que mais e mais instituições acadêmicas sustentam essa aberração ao exigir todas as espécies de cronogramas, programas, plannings e planejamentos que pressupõem a possibilidade de determinar burocraticamente o desenvolvimento e até mesmo os resultados de uma pesquisa antes que ela tenha somente começado. Finda a imaginação, banida a intuição, a sensibilidade ao objeto, o sentido da descoberta, o espírito de aventura ! Excluídas as frutuosas surpresas da serendipidade.

E geralmente, dado que num mundo da ordem a todo custo, tudo deve obedecer a alguma coisa, a mesma exigência de delimitações rigorosas extende-se também no que refere aos objetos de estudo. Daí a procura urgente, desde o inicio de uma pesquisa, de algum princípio gramatical qualquer, de um modelo teórico ou de alguma doutrina “canônica” capaz de fixar tão categórica e indiscutivelmente quanto possível o dever-ser dos objetos a serem analisados. No entanto, tudo se complica quando várias gramáticas competem a título de dispositivos reguladores teoricamente possíveis, como é o caso na semiótica com, principalmente, um modelo standard, uma semiótica “subjetal”, uma sintaxe “interacional”, uma problemática “modular”, uma mecânica “tensiva” etc. (além das perspectivas lotmaniana, peircienna e outras). Entre estas orientações, deve-se escolher por si mesmo o próprio caminho : decisão arriscada, momento delicado. Mas, depois disso, tudo ficará, por assim dizer, regrado uma vez por todas : tanto o que deverá ser considerado pertinente, quanto o que terá que ser ignorado se quiser permanecer “em regra” com a corrente teórica que se escolheu. Nestas condições, tudo o que o modelo preferido contém (inclusive o que ele pode incluir de puramente hipotético) assumirá o valor de verdade estabelecida, enquanto que possíveis opções alternativas, pistas complementares ou ideias inovadoras tenderão a ser rechaçadas com essa objeção categórica : “Olá ! isso que você diz não é possível : não está em nosso Dicionário”.

Em tais condições, a pesquisa não pode ter como objetivo construir algo inédito. Na sua forma extrema, o amor à regra o exclui. Isso tem um nome : chama-se dogmatismo. Não deixa muito espaço para a sensibilidade face às singularidades dos objetos dos quais se pretende dar conta. O trabalho então serve apenas para confirmar um jà-dito que regulamenta o pensável e o impensável.

1.2. “A espera do inesperado”

No entanto, por mais comum e poderosa que seja a propensão ao respeito e, se necessitar, a uma defesa feroz da ordem estabelecida, constata-se que nada excita mais a curiosidade, mesmo dos mais conservadores, do que o imprevisível e o singular, que o irregular, o que “faz desordem”, inclusive no plano puramente cognitivo. Isto, embora se saiba que não há ciência fora do geral, fora do que constitui “a regra” para todos os casos.

No fundo, tudo se passa como se por trás do espírito de seriedade, voltado para a busca das regularidades, houvesse em nós também seu contrário, um demônio escondido que só se interessa às exceções e às singularidades. Aliás, é provavelmente o mesmo mau gênio que inspira, nas pessoas mais “normais” — aquelas mais ávidas de regulamentos e de segurança, as com a vida mais rotineira — sua paixão pelo espetáculo aterrorizante do caos, do monstruoso, do chocante e do perturbador, do obsceno e do sangue que corre, do cataclisma e do “anormal” em geral, visto à boa distância, é claro, de preferência na tela (pequena ou grande). Parece paradoxal, mas sabemos (é mesmo uma das regularidades estruturais sobre as quais mais podemos contar) que, sobretudo na esfera das paixões, os opostos se atraem tanto quanto se repelem. Na realidade, somos portanto seres somente semi-obcecados pela regra, fascinados que permanecemos, por outro lado, pelo que escapa à ordem regular, pelo que Yuri Lotman chamava a “explosão”, e que, na perspetiva de Greimas, se pode ver como “acidentes” — acidentes às vezes felizes porque criadores de sentido1.

1 Cf. A.J. Greimas, “Dos acidentes nas ciências ditas humanas”, in Introdução à análise do discurso em ciências sociais. Trad. Cidmar Teodoro Paes. São Paulo, Global editora,1986 ; id., “A fratura”, Da Imperfeição, op. cit., pp. 27-73. Ver também K. Nastopka, “Le risque du sens dans la sémiotique de Lotman et celle de l’école de Greimas”, in N. Kersyte (org.), Actes Sémiotiques, 112, 2009.

Ao conceder assim, na teoria, um espaço para o que fica fora do previsto, fora da norma, fora da Lei, é o proprio Greimas que nos dá o bom exemplo. Em particular quando, em Da imperfeição, ele opta pela “espera do inesperado”2. Foi como se um dia ele tivesse decidido ignorar a gramática, embora ela aparecia em seus trabalhos anteriores como a garantia da inteligibilidade no plano narrativo (e, ademais, como a guardiã da boa ordem no plano linguístico para esse francófono de adoção). Como explicar um tal deslocamento de seus centros de interesse — da generalidade reguladora e anônima à singularidade de acidentes do sentido vividos por um “eu” subitamente tornado “sensível” ? Será que devemos considerar que para aí chegar ele teve que, num dado momento, se metamorfosear em uma espécie de “pós-estruturalista” avant la lettre ?

Certamente não. Pois no interior mesmo da problemática estrutural, é indispensável que haja um lugar previsto para o que se pode chamar, segundo o ângulo que se adota, o “inesperado”, o indeterminado, a liberdade, a iniciativa ou ainda a criatividade (e inclusive a fantasia gratuita). Admitir essa possibilidade é necessário se quisermos tratar da produção do sentido no seu conjunto, sob todos seus regimes. Caso contrário, expulsa-se do horizonte teórico uma parte essencial, sua parcela de incerteza, e logo a reflexão se tranca em uma perspectiva determinista que contraria a variedade da experiência. De fato, sustentar que em um determinado campo de atividades tudo depende inteiramente dos princípios reguladores reconhecidos como imanentes a esse campo, é se impedir de ver ou de prever outra coisa que a repetição indefinida das mesmas figuras, como os trinados do melro ou o gesto do semeador. É considerar apenas a reprodução regulada da estrutura do campo considerado e excluir o surgimento de configurações significativas “fora da norma”. Ou, em todo caso, é privar-se dos meios de abordá-las.

2 Cf. A.J. Greimas, “A espera do inesperado”, Da Imperfeição, São Paulo, Estação das Letras e Cores - Editora do CPS, 2017, pp. 83-90.

Devemos, portanto, admitir que, ao contrário, tudo nunca é definitivamente decidido de antemão, que nenhum sistema é inteiramente fechado em si mesmo, que a unidade do sentido não exclui a pluralidade dos regimes semióticos, e que, por conseguinte, não é necessário abjurar a semiótica para se interessar aos “acidentes” que perturbam a regularidade dos sistemas e incomodam os obcecados pela regra3. No nível mais geral (em termos epistemológicos), a não regularidade é parte integrante do sistema estrutural de significância. Arquetipicamente figurada pelo aléa e traduzida pelo “acidente” (que tem por correlato a aparição seja do puro não sentido, seja de um excesso de sentido que confunde todas as esperas), a não regularidade corresponde ao pólo negativo da categoria continuidade versus descontinuidade que funda nosso modelo. Portanto, ela não pode ser excluída. A coerência e a eficácia da gramática interacional exigem seu reconhecimento e sua integração. E mais especificamente, para abordar a questão da “criação” (no dominio artístico, ou, por exemplo, científico, ou mesmo político), é uma condição primeira admitir que, na teoria como na vida, há estruturalmente um lugar para a produção de discursos, práticas ou artefatos que não se apresentem “como previsto” ou “como deveria”.

3 Cf. E. Landowski, “Unità del senso, pluralità di regimi”, in G. Marrone et al. (orgs.), Narrazione ed esperienza. Intorno a una semiotica della vita quotidiana, Roma, Meltemi, 2007.

2. As condições da invenção

2.1. A produção antes do produto

Em um primeiro plano, a possibilidade da irrupção do “não como previsto” ou do “não como deveria” nada tem de surpreendente em teoria. Efetivamente, a partir do momento em que, em qualquer domínio da vida, há uma regra, necessariamente também há (além das exceções acidentais) transgressores, eventualmente trapaceiros, fraudatários, delinquentes. Todavia, transgredir uma regra não é necessariamente criar algo novo. Ao contrário, na maioria dos casos, quem viola uma regra em vez de aplicá-la não inventa nada, mas sim aplica alguma outra regra existente, só que não é aquela vigente no contexto em que atua. Por exemplo, infringir os códigos indumentários ou linguísticos de um determinado meio social equivale, na generalidade dos casos, não a criar uma nova moda ou a renovar a linguagem, mas simplesmente a importar localmente usos vigentes em algum outro contexto.

Se, portanto, a transgressão não é a via adequada em termos de criação, a pura e simples aplicação do que é prescrito também não dá. A criação supõe um uso específico das regras, uma maneira de respeitá-las que vai além de sua simples aplicação, de modo tal que elas acabam gerando mais do que elas prescrevem, ou seja um excedente de sentido. Devemos por conseguinte distinguir dois tipos de usos das regras : por um lado, a sua utilização na forma de uma estrita aplicação que visa — e, em princípio, garante —a obtenção de resultados predeterminados, e, por outro lado, um uso dinâmico, uma prática da regra, cujo interesse é permitir que se realizem criativamente certas potencialidades, ainda desconhecidas, que ela pode abranger4.

4 Sobre a diferença entre a utilização repetitiva e uma prática criativa enquanto distintos modos de uso possível das regras metodológicas e dos modelos semióticos, cf. E. Landowski, Com Greimas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017, pp. 166-167.

Jacques Geninasca observava que no quadro de uma atividade com finalidade criativa, o “justo”, diferentemente do “correto” (localizado a igual distância de um “demais” e de um “não bastante” fixados antecipadamente), não é definido por referência a qualquer escala pré-estabelecida e não é regulamentada por nenhuma instância terceira5. Pelo contrário, de um comportamento que corresponda estritamente ao que é considerado de regra em tal circunstância, só pode decorrer um resultado que, por construção, não terá nada de criativo, e que, além disso, deixará provavelmente sentir o esforço que foi necessário para bem respeitar a regra aplicada. A tal ponto que muitas vezes, no que é perfeitamente correto, rigorosamente adequado, absolutamente “como se deve”, sente-se alguma coisa de demasiadamente previsível, de exageradamente convencional para não levantar suspeitas de insinceridade — quase algo falso, a antítese do “justo”6. Como se diz, “Muito educado para ser honesto”, sobretudo em comparação com a espontaneidade do gesto a propósito, por exemplo o “belo gesto” que, respeitando a regra a transcende e vai além dela, e por aí cria um sentido novo7. Em suma, quando um comportamento, uma proposição, uma obra impressionam, e, às vezes, maravilham pelo que têm, não de correto, mas de justo e de inovador, pode-se estar certo que não procedem de nenhuma regra que teria sido suficiente aplicar. — Como justificar isso, como explicá-lo em termos de modelização semiótica ?

5 Cf. J. Geninasca, “Pages inédites”, in A la mémoire de Jacques Geninasca, Actes Sémiotiques, 115, 2012.


6 Cf. E. Landowski, “Jacques-le-Juste”, in A la mémoire de Jacques Geninasca, op. cit.


7 Cf. A.J. Greimas, “Le beau geste”, Recherches sémiotiques / Semiotic Inquiry, 13,1-2, 1993.

Teria pouca chance de conseguir se (como comumente acontece) nos limitassemos a analisar o que são — como são feitos — os objetos (discursos literários, pictóricos etc.) ou os produtos de outras atividades igualmente geradoras de objetos de valor e de sentido (por exemplo os pratos de um grande cozinheiro ou os vestidos de um estilista), ou ainda os estados de coisas que resultam de uma interação social qualquer. Mais do que sobre esses vários tipos de “produtos acabados”, deve-se concentrar sobre o que seus autores tiveram que fazer para que os elementos resultantes de sua atividade existam tais como são. Com efeito, concentrar-se sobre os produtos e não seus processos de produção quase inevitavelmente leva a supervalorizar senão hipostasiar a regularidade. A este respeito, como não nos interrogar sobre o fato de que a maioria de nossas análises chegam, em última instância, a uma só e mesma conclusão, a saber que as obras estudadas, por inovadoras, “geniais” (ou abracadabrantes) que sejam, “obedecem” no final das contas às regras de outras tantas gramáticas implícitas e às regularidades do sistema cultural ao qual pertencem ?

Uma tal conclusão, além de seu caráter pouco surpreendente — pois, em geral, ela só confirma precisamente o que se supunha —, implica que o que chamamos “analisar” equivale a trazer o objeto de estudo de volta a uma normalidade modelizável de um gênero ou de um outro. “Dar conta” de um objeto seria, em suma, mostrar (de modo circular) que ele está na ordem das coisas possíveis, ou seja, que ele se conforma ao tipo de necessidade imanente — de regularidade — que a análise permite justamente fazer aparecer. Segundo esta ótica, a única questão que se põe é, no fundo, saber de qual sistema de regras pré-estabelecido (por exemplo, de qual “gênero”) uma obra determinada constitui uma amostra. É como se, diante de uma partida de xadrez ou de tênis sensacional, um jornalista comentador se limitasse a destacar todas as regras que os jogadores implementaram ao longo da partida, com o único objetivo de estabelecer que sim, o que acabamos de presenciar foi de fato uma partida de xadrez ou de tênis e não de damas ou de tênis de mesa. Isso seria estranhamente deixar de lado o ponto essencial !

Em vez de se colocar uma pergunta assim puramente acadêmica, não importa qual espectador um pouco sensível, ou sensato, procuraria entender o que produziu a qualidade excepcional, o caráter único, o milagre de uma peça tão bela. E como o sabe todo amador um pouco avizado, isso não pode ser devido apenas a este fato básico que as regras do jogo foram respeitadas. Saber se elas foram bem observadas é, sem dúvida, o que focaliza a atenção do árbitro assim como dos espectadores mais novatos (do mesmo modo que a preocupação de seguir ao pé da letra as instruções do manual... ou do Dicionário, obceca o iniciante). Mas para um conhecedor como para um jogador confirmado (sem falar de um virtuoso), é num outro plano, aquém ou além do respeito dos usos e do ordinário das regras, que o essencial se passa e que o extraordinário pode advir. Todo o interesse do jogo, diante do tabuleiro de xadrez ou no campo de tênis, está obviamente na maneira inventiva, em parte ou totalmente inédita pela qual os jogadores — ao mesmo tempo que respeitam as regras e se mantêm no quadro de certas regularidades mais gerais — modulam sua aplicação, tirando delas partido e, se se pode dizer, com elas brincando.

Não se trata, portanto, de minimizar a importância de identificar os constrangimentos inerentes a todo dispositivo de produção de sentido, mas é preciso matizar e complexificar. As regularidades, e mesmo as regras, são fundamentais e, está óbvio, devem ocupar-nos, mas nosso trabalho não pode se limitar a fazê-las aparecer. Entretanto, muito frequente, depois de tê-las identificado reduzindo o objeto à sua exemplificação, opera-se a mesma redução no que diz respeito ao papel do autor considerando que ele apenas se “curvou” deliberada ou involuntariamente aos mesmos princípios reguladores. Sem dúvida alguma, ele, à sua maneira, os respeitou, mas não é lhes respeitando que fez uma obra de gênio. Se a invenção, o “gênio”, a criação pode surgir, é somente no encontro mesmo com a resistência de uma matéria a trabalhar ou de um parceiro-adversário a enfrentar mediante o exercício de uma competência interacional de ordem sensível, em ato. Embora esta competência se exerça num quadro normativo que, pelo essencial, antecede o confronto, ela transcende a pura aplicação das regras —, ela as “ultrapassa”.

 

2.2. A ideia de ultrapassagem

Para precisar a ideia de “ultrapassagem”, é preciso olhar mais de perto o que fazem, em suas atividades de produção, aqueles que se pode chamar de “criadores”, por oposição a uma vasta e mais modesta classe de “fabricantes”.

Afim de produzir a obra de sua arte ou o objeto de sua invenção, ou de instaurar algum tipo inédito de relação com outrem, todo criador potencial interage com uma matéria determinada que sua ação tem o efeito de transformar em algum aspecto de ordem física ou moral. Pode se tratar de uma matéria no sentido próprio, como a pedra do escultor, ou em um sentido figurado, como a língua que trabalha o escritor, ou de um parceiro-adversário, como em muitos esportes, ou ainda de algum interactante pertencendo ao “mundo natural”, como as plantas das quais cuida o jardineiro, ou ainda, no plano mais global, como o “meio ambiente” em relação com a atividade humana8. É o modo como se interage com esta “matéria” para dela obter um “produto” de tal ou outra natureza que faz a diferença entre procedimentos de fabricação baseados na aplicação de regras e processos de criação que, precisamente, as ultrapassam.

8 Cf. G. Grignaffini, “Appunti per una sociosemiotica del giardinaggio”, Acta Semiotica, I, 1, 2021. C. Calame, “L’homme en société et ses relations techniques avec l’environnement : ni nature ni Gaïa”, Les Possibles, 26, 2020.

A “fabricação”, tal como a definimos, repousa sobre programas de ação. Ela consiste em pôr em funcionamento algoritmos encadeando operações transformadoras rigorosamente especificadas em função dos tipos de objetos a obter. A atividade culinária, quando ela é concebida como a execução de receitas a seguir literalmente, dá um bom exemplo. Também é o caso de muitas atividades de prestação de serviços (da inspeção do carro pelo mecânico à auscultação médica), que, para serem efetuadas em boa e devida forma — “de acordo com as regras” —, implicam a execução pontual de um conjunto de operações ordenadas e predefinidas. Esse gênero de ordenamento programado, que regulamenta tanto o resultado do processo quanto seu desenrolar, favoriza evidentemente a reprodução de modelos pré-estabelecidos e, portanto, exclui, salvo acidente, a aparição do que quer que seja de propriamente inovador. Aqui, tudo é efetivamente atribuído a protocolos de ação cuja execução poderia em muitos casos ser confiada a máquinas. Da mesma forma, em um campo como o do direito (hoje, em larga medida em vias de mecanização), o procedimento programado requerido pela constituição, por exemplo, de uma “sociedade comercial” pertence ao domínio da fabricação9. A regulamentação jurídica dos procedimentos a respeitar aí joga o papel das prescrições do livro de receitas de cozinha.

9 Cf. A.J. Greimas, “Analyse sémiotique d’un discours juridique”, Sémiotique et sciences sociales, Paris, Seuil, 1976 ; trad. Semiótica e ciências sociais, São Paulo, Cultrix, 1981.

Todavia, enquanto o cumprimento das regras legais por si só garante a obtenção do resultado esperado (a formação de uma sociedade do tipo jurídico desejado), a observação das instruções de um livro de receitas apenas garante formalmente que o resultado seja obtido — mesmo se a aplicação delas for meticulosa, ou, mais exato, sobretudo se for meticulosa. Seguindo passo a passo a receita da “sopa ao pistou” (analizada por Greimas10), pode-se ter a certeza de obter um caldo que terá a composição de uma sopa com este nome. Mas tem grande risco de que não tenha o gosto dela. Enquanto a inteligência artificial de um robô poderia ter feito o mesmo, apenas a inteligência sensível de um verdadeiro cozinheiro teria sido capaz de adicionar o não-sei-quê que lhe teria dado o bom gosto esperado. Esse suplemento qualitativo indispensável infelizmente falta na abordagem de Greimas. De fato, limitada ao texto normativo da receita, a sua análise reduz a preparação do “objeto de valor” a uma programação reconhecidamente complexa, mas mesmo assim de natureza puramente algorítmica — dito de outra maneira, anti-estésica.

Se, na época, Greimas (embora ele fosse um sábio provador) fingia ao longo de sua análise de ignorar esse suplemento qualitativo que, no entanto, constitui o ingrediente mais essencial de todo sucesso gastronômico, é, sem dúvida, porque se trata de um aspecto da prática culinária que não depende apenas da aplicação de regras de composição e de procedimento. Depende, precisamente, da sua superação, ou seja, de uma forma de ultrapassagem que não é mais da ordem da fabricação, mas da criação. Somente a partir de Da Imperfeição, a componente estésica em que consta esse suplemento qualitativo tornou-se familiar entre os semioticistas e foi, pouco a pouco, conceitualmente definido com maior precisão. Ora, essa componente se articula segundo uma sintaxe inteiramente diferente daquela da programação, talvez mais complexa, mas não menos claramente definível : trata-se da sintaxe do regime interacional do ajustamento.

10 Cf. A.J. Greimas, “La soupe au pistou ou la construction d’un objet de valeur”, Actes Sémiotiques-Documents, I, 5, 1979 ; reed. in Du sens II, Paris, Seuil, 1983 ; trad. Do sentido II, São Paulo, EDUSP-Nanquim, 2014.

Talvez sejam necessárias algumas precisões neste ponto. Tomemos como exemplo o domínio literário. A distinção entre fabricação e criação lembra aquela feita por Roland Barthes entre “escritor” e “escrevente”**. O escrevente é um fabricante que recombina entre si semas, esquemas actanciais ou modais, temas e figuras que já estão em circulação. Tudo se passa como se ele se servisse das regularidades da gramática narrativa e discursiva à maneira de um livro de receita. É um pouco disso que devia fazer Greimas para passar o tempo no trem de Poitiers, construindo um romance policial (jamais tirado de sua gaveta). Ou o que fazia Umberto Eco agenciando metodicamente — semiologicamente — O nome da Rosa, livro que pode de fato ser julgado mais “fabricado” do que “escrito”, no sentido barthesiano. De modo mais geral, aos elementos de gramática narrativa e discursiva elaborados por esses dois pioneiros (elementos agora popularmente difundidos sob a forma açucarada do “storytelling”), seria quase suficiente adicionar os antigos recursos do código retórico e algumas convenções estilísticas ao gosto do dia para obter produtos literários mais ou menos comercializáveis.

** NT. Cf. R. Barthes no ensaio “Écrivains et écrivants” (Escritores e escreventes), de 1960, republicado in Essais critiques, Paris, Seuil, 1964.

O escritor, por outro lado, é um criador capaz de fazer a linguagem devolver mais do que ela contem no ponto de partida do trabalho de escrita. A matéria específica que lhe cabe confrontar é efetivamente a linguagem. Mas, no lugar de se contentar em utilizar elementos pontuais que a língua lhe oferece enquanto recursos já prontos, ele se engaja numa espécie de combate corpo a corpo com ela, com as potencialidades de sentido inédito que ela contém, como se fosse um co-sujeito autônomo e resistente, ao mesmo tempo adversário e parceiro com o qual é preciso se medir para chegar a se entender e, a partir daí, produzir juntos algo que se sustente. Isso é o que chamamos praticar a linguagem.

Aqui emerge uma outra característica estrutural que diferencia a fabricação da criação. A fabricação (literária ou outra) supõe um dispositivo que mobiliza três termos : uma matéria a transformar, um produtor-fabricante, e, mediatizando sua relação, certas regras programáticas (a receita gastronômica, os procedimentos jurídicos, a gramática do discurso) utilizáveis para realizar a transformação do primeiro pelo segundo. Ao contrário, o trabalho criativo (do “escritor”, entre outros) exige uma relação direta, de ordem sensível, entre o produtor, tornado criador, e a matéria que ele trabalha, tornada potencial de sentido e de valor. Em outras palavras, a mediação por um terceiro, a saber a regra, tende a desaparecer.

Claro que não completamente. Ser escritor não é ignorar por princípio os truques do ofício e não saber utilizar os recursos básicos da língua. E no sentido inverso, não é proibido ao escrevente ter gosto e algumas ideias, além de uma grande familiaridade com os procedimentos e as leis do gênero literário do qual ele explora as convenções. Como Lévi-Strauss observou a propósito do trabalho de um pintor criativo, “para fazer um pintor é preciso muita ciência e muita frescura”11. A “ciência” é o conhecimento das regularidades e das regras, dos usos e dos procedimentos em vigor. Mas, para um criador, em vez de serem tomados como prescrições constritivas ou como recursos fáceis, eles tornam-se a base elementar de um saber-fazer incorporado que se exerce sem sequer nele prestar atenção12. Quanto à “frescura”, é antes de tudo a ousadia, a ingenuidade, talvez a temeridade que impulsiona a aceitar uma interação direta, corpo a corpo, com essa coisa terrivelmente resistente que é uma matéria bruta a ser trabalhada, “praticada”. Confronto arriscado, mas que, só ele, oferece uma chance de ir além da ordem do “fabricado”.

11 Cl. Lévi-Strauss, “A un jeune peintre », Le regard éloigné, Paris, Plon, 1983, p. 333 ; trad. port., Lisboa, Edições 70, 1986, p. 347. E. Landowski, ”Voiture et peinture : de l’utilisation à la pratique”, Galáxia, 12, 2, 2012.


12 Cf. E. Landowski, “Aprendizagem, maestria, virtuosidade”, Antes da interação, a ligação, São Paulo, CPS, 2019, p. 34-38.

Em uma prática interacional desse gênero, os esboços de atualização tentados pelo potencial criador esbarram na resistência de uma forma por vir, inicialmente vislumbrada como simples potencialidade. Apenas à força de “tentativas e erros”, como dizia também Geninasca a respeito do método tanto do pintor quanto o do semioticista13, uma configuração a princípio intuitivamente pressentida como possibilidade vai se configurando gradualmente por meio do ajustamento entre o criador e aquilo mesmo que a operação de escritura ou o gesto do pintor está criando ao buscar sua forma. Uma tal “escritura” (no sentido forte desse termo) produz um objeto, um Texto ou uma Imagem que, ao reconfigurar o mundo, recria em parte a própria linguagem — verbal, pictural, musical, ou mesmo política — de nossa relação ao mundo14.

13 Cf. “Jacques-le-Juste”, art. cit.


14 A propósito da “Imagem”, cf. F. Marsciani, “La fiamma della candela in Bachelard”, in G. Marrone (éd.), Sensi e discorso, Bolonha, Esculapio, 1995.

2.3. Sem mediação

Que isso seja um paradoxo ou uma banal oscilação entre os contrários, constata-se que é na hora em que se desenvolvem mundialmente os mais graves desregramentos (climáticos, sociais, políticos, morais, culturais, educativos) acompanhados por uma desregulação econômica acelerada, que difunde-se mais e mais, nos círculos acadêmicos, o culto da regra evocado aqui no início. “Fora da regra, não há salvação” ! É em reação contra esse slogan que é preciso devolver à ideia de regulamentação o papel que lhe cabe, mas não mais do que isso.

 

É trivial observar que lá onde uma regulamentação programa uma atividade de produção, por definição ela predetermina apenas uma classe limitada (apesar de imensamente vasta) de objetos : objetos estandardizados, conformes a um design predefinido, e geralmente fabricados em grandes séries com fins lucrativos15. Para tal, regras são evidentemente necessárias — e também suficientes. Pelo contrário, para que algo de criativo resulte em uma atividade produtiva, não basta nem respeitar determinadas regras nem as transgredir : deve-se, dissemos, as ultrapassar. Porque o que pode haver de inédito, de não previsível e por conseguinte de inovador em um produto não depende da relação, respeitosa ou transgressiva, entre o agente produtor e a instância reguladora que, na maioria das vezes, mediatiza as relações do produtor com a matéria com a qual ele interage para produzir. A emergência ou a não emergência dessa parte inovadora depende unicamente do regime interacional que articula o face à face direto entre o agente e a matéria trabalhada.

15 Cf. M. Scóz, ”Por uma abordagem sociossemiótica do design de interação”, Actes Sémiotiques, 121, 2018.

Se este regime é aquele de uma interatividade mediatizada por um sistema de regras de procedimento predefinidas, isto é, por uma programação, a ação conduzirá por construção a um produto estandardizado. Mas nao é uma necessidade absoluta que (por prudência, ou por uma espécie de preguiça, ou ainda porque o objetivo visado parece assim o exigir) o agente se deixe guiar por regulamentos, receitas ou qualquer outro tipo de algoritmo programático equivalente. Em princípio, ele pode também assumir os riscos de outro regime interacional, cuja sintaxe não seria fixada por nenhuma disposição prévia, mas onde a modalidade e a finalidade da relação entre si e a matéria a ser trabalhada se definiria somente à medida que a própria interação se desenvolve : nisso mesmo consiste o que chamamos de regime interacional do ajustamento. Neste caso, os parceiros inventando a cada instante as modalidades de sua relação, abre-se a possibilidade de criar, juntos, algum objeto portador de sentido e de valor inédito — uma sopa com gosto, um grande texto, uma relação justa entre sujeitos. Mas mesmo antes da aparição, sempre incerta, de um milagre desse gênero, pode ser que em certos contextos muito fortemente impregnados de normatização, a simples passagem de um regime a outro — da regularidade programada à busca de ajustamentos — em si mesmo já mereça o título de “criação”. As relações interactanciais e os regimes interacionais constituem de fato, eles também, uma “matéria” transformável que pode, como as outras, dar lugar seja à reinvenção, seja a uma monótona reprodução (às vezes desejada, às vezes sofrida, às vezes aceita porque vista como sendo “normal”).

Segundo essa ótica, um processo de criação pode afinal ser descrito como uma sequência de interações não programada, portanto não previsível (sem, por isso, ser aleatória), que se desenrola entre parceiros livres e autônomos. E é sua coordenação (seu ajustamento recíproco) que torna possível a atualização de um potencial inerente a sua relação mesma. Isso constitui, para um e outro, uma prova que só pode ser arriscada. Não sendo regida por nenhuma regulamentação instituída, essa prova se joga sempre no limiar do acidente eventual. Mas a aceitação desse risco é uma das condições de possibilidade do funcionamento do regime interacional em questão. Segue-se que qualquer que seja o campo em que se exerça (artístico, científico, interpessoal, sócio-político), duas possibilidades contrárias são previsíveis. Ou a atividade de criação se sustenta por si mesma enquanto relação direta com sua matéria — e nesse caso ela pode se desenvolver como uma dinâmica que recria constantemente seu próprio impulso, portanto como uma prática de vida que, salvo algum acidente, não tem fim. Ou, no oposto, ela se congela em um produto que, por sua vez, se torna uma norma, e assim exclui, inclusive para seu inventor, o desencadeamento de novos ciclos criativos.

Dando mais um passo adiante, pode-se dizer que o criador não somente se coloca de certa maneira “acima” das regras comuns ao jogar com elas, mas que também ele inventa aquelas que talvez um dia venham a prevalecer em torno dele. Contasta-se de fato que frequentemente as produções as mais “originais”, saídas da relação entre um espírito inventivo e sua matéria de predileção, são logo retomadas, imitadas ou mesmo reproduzidas tais quais por outros, admiradores ou epígonos. À força de repetições, elas adquirem então o estatuto de fórmulas estéticas, morais ou intelectuais “na moda”, ou mesmo de rigor dentro de círculos mais ou menos extensos. Esse processo de difusão que transforma um fora da norma inicial em seu contrário, em figura (ou fetiche) de uma nova normalidade, em princípio não tem nada a ver com a relação que o criador ele mesmo mantém com às suas próprias produções. Que para os que estão ao seu redor um dia elas se tornem a regra, no fundo pouco importa. O que conta muito mais é que elas não se tornem assim para ele. Porque se assim fosse, ele não faria mais, no futuro, do que se repetir, gesto pesado para os que o rodeiam. E sobretudo, face a si mesmo, isso significaria que a sua relação com o mundo — até então criativa porque direta (sem mediação) — seria a partir deste momento mediatizada e, consequentemente, regulada por uma determinada visão do mundo, doravante congelada, tornada o equivelante de uma regra, mesmo que fosse da sua invenção. Ele teria, em suma, perdido a própria mola de sua criatividade.

 

Conclusão

Segundo essa perspectiva, a criação, concebida como o fruto do ajustamento entre um sujeito e uma reserva de potencial, não se define no modo místico que, bastante comumente, a concebe como o produto de um demiurgo capaz de fazer sair o ser do nada. Se há algum misticismo, seria mais do lado do culto da regra ! Como outros cultos, ele reflete a necessidade (compreensível, devemos admitir) de uma instância transcendente à qual se remeter, de um “Destinador” cujos decretos, manifestos ou supostos, aliviam o peso da decisão, livram da incerteza da escolha, exoneram de eventuais responsabilidades, enfim, liberam da própria liberdade (vista hoje por muitos, último paradoxo, como a pior das escravidões). Em oposição, o espírito de criação, imerso na concretude das matérias das quais o mundo é feito e assumindo os riscos, supõe antes de tudo a aceitação — mais do que a aceitação, o desejo — de um face-à-face sem mediador entre si e “o outro”, de qualquer natureza que seja.

 

Referências bibliográficas

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*Versão en grande parte reesccrita do artigo “Plaidoyer pour l’esprit de création”, Semiotika (Vilnius), 16, 2021. Tradução de Ana Claudia de Oliveira e o autor.

** NT. Cf. R. Barthes no ensaio “Écrivains et écrivants” (Escritores e escreventes), de 1960, republicado in Essais critiques, Paris, Seuil, 1964.

1 Cf. A.J. Greimas, “Dos acidentes nas ciências ditas humanas”, in Introdução à análise do discurso em ciências sociais. Trad. Cidmar Teodoro Paes. São Paulo, Global editora,1986 ; id., “A fratura”, Da Imperfeição, op. cit., pp. 27-73. Ver também K. Nastopka, “Le risque du sens dans la sémiotique de Lotman et celle de l’école de Greimas”, in N. Kersyte (org.), Actes Sémiotiques, 112, 2009.

2 Cf. A.J. Greimas, “A espera do inesperado”, Da Imperfeição, São Paulo, Estação das Letras e Cores - Editora do CPS, 2017, pp. 83-90.

3 Cf. E. Landowski, “Unità del senso, pluralità di regimi”, in G. Marrone et al. (orgs.), Narrazione ed esperienza. Intorno a una semiotica della vita quotidiana, Roma, Meltemi, 2007.

4 Sobre a diferença entre a utilização repetitiva e uma prática criativa enquanto distintos modos de uso possível das regras metodológicas e dos modelos semióticos, cf. E. Landowski, Com Greimas, São Paulo, Estação das Letras e Cores, 2017, pp. 166-167.

5 Cf. J. Geninasca, “Pages inédites”, in A la mémoire de Jacques Geninasca, Actes Sémiotiques, 115, 2012.

6 Cf. E. Landowski, “Jacques-le-Juste”, in A la mémoire de Jacques Geninasca, op. cit.

7 Cf. A.J. Greimas, “Le beau geste”, Recherches sémiotiques / Semiotic Inquiry, 13,1-2, 1993.

8 Cf. G. Grignaffini, “Appunti per una sociosemiotica del giardinaggio”, Acta Semiotica, I, 1, 2021. C. Calame, “L’homme en société et ses relations techniques avec l’environnement : ni nature ni Gaïa”, Les Possibles, 26, 2020.

9 Cf. A.J. Greimas, “Analyse sémiotique d’un discours juridique”, Sémiotique et sciences sociales, Paris, Seuil, 1976 ; trad. Semiótica e ciências sociais, São Paulo, Cultrix, 1981.

10 Cf. A.J. Greimas, “La soupe au pistou ou la construction d’un objet de valeur”, Actes Sémiotiques-Documents, I, 5, 1979 ; reed. in Du sens II, Paris, Seuil, 1983 ; trad. Do sentido II, São Paulo, EDUSP-Nanquim, 2014.

11 Cl. Lévi-Strauss, “A un jeune peintre », Le regard éloigné, Paris, Plon, 1983, p. 333 ; trad. port., Lisboa, Edições 70, 1986, p. 347. E. Landowski, ”Voiture et peinture : de l’utilisation à la pratique”, Galáxia, 12, 2, 2012.

12 Cf. E. Landowski, “Aprendizagem, maestria, virtuosidade”, Antes da interação, a ligação, São Paulo, CPS, 2019, p. 34-38.

13 Cf. “Jacques-le-Juste”, art. cit.

14 A propósito da “Imagem”, cf. F. Marsciani, “La fiamma della candela in Bachelard”, in G. Marrone (éd.), Sensi e discorso, Bolonha, Esculapio, 1995.

15 Cf. M. Scóz, ”Por uma abordagem sociossemiótica do design de interação”, Actes Sémiotiques, 121, 2018..

 

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Résumé : L’article examine les rapports entre « fabrication » et « création » en tant que deux types de pratiques productives distinctes. L’une et l’autre supposent un matériau à transformer, un producteur-transformateur et, des règles de transformation (des recettes, des procédures, une grammaire). La fabrication consiste en la mise en œuvre d’algorithmes enchaînant des opérations rigoureusement réglementées en fonction des types d’objets à obtenir ; sauf accident, un tel dispositif exclut l’apparition de quoi que ce soit de proprement novateur. Le travail de création implique au contraire une forme de « dépassement » de la règle, une manière de l’observer (et non de la transgresser) qui en fait non plus une contrainte mais une réserve potentielle de sens et de valeur et permet de lui faire rendre davantage que ce qu’elle prescrit.


Resumo : O artigo elabora a distinção entre “fabricação” e “criação” entendidas como dois tipos de práticas produtivas. Ambas implicam um material a transformar, um produtor-transformador e certas regras de transformação (por exemplo receitas). Sob o regime da fabricação, o produtor atua unilateralmente sobre a matéria conforme algum programa transformador regulamentado em função do tipo de objeto a obter ; salvo acidente, isso exclui a aparição de elementos inovadores. A criação, ao contrário, supõe um “ultrapassar” das regras, o que significa observá-las (e não as transgredir), mas de um modo tal que elas acabem dando mais do que elas prescrevem. Para tal, é necessária uma relação direta e dinâmica, dita de “ajustamento”, entre o produtor e a matéria a transformar. O próprio curso da interação entre eles — ao longo do qual a regra aparece não mais como constrangedora mas como fonte de formas potenciais novas — determina a modalidade da sua confrontação assim como seus resultados possivelmente criativos.


Abstract : The article distinguishes two modes of production. Manufacturing (“fabrication”) consists in the application upon some material of predetermined algorithms functioning as rules of transformation ; these fixed programs ensure the production of predefined (standardised) objects. Creation, on the contrary, may be achieved neither by just respecting a rule or a set of rules, nor by just trangressing them. It does require to observe some existing rules (for instance of language), but in such a way that it lets them grant more than what they literally prescribe. This is what we call surpassing (“dépasser”) the rule. Instead of having a predefined mode of unilateral action (programmed by the rule) of the producer on the material at stake, it is the course of their interaction, along which the rule appears not anymore as a constraint but as a source of potential new forms, that determines the modality of their confrontation and its possibly “creative” result.


Mots clefs : création, fabrication, médiation, pratique (vs utilisation), production, règle, régularité.


Auteurs cités : Jacques Geninasca, Algirdas J. Greimas, Claude Lévi-Strauss.


Plan :

Introdução

1. Regras e regularidades

1. O culto da regra

2. “A espera do inesperado”

2. As condições da invenção

1. A produção antes do produto

2. A ideia de ultrapassagem

3. Sem mediação

Conclusão

 

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Recebido em 25/11/2021. / Aceito em 16/10/2022.