Dossier : Règles, régularités et création

Reinventar-se.
Anexo a um dossiê acabado

Ana Claudia de Oliveira
São Paulo, PUC-SP

Eric Landowski
Paris, C.N.R.S.

 

Publié en ligne le 26 décembre 2022
https://doi.org/10.23925/2763-700X.2022n4.60287
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Ao tomar conhecimento do presente dossiê, pode-se constatar que, entre os “Campos específicos” em referência aos quais os contribuidores discutem a questão das relações entre, por um lado, uma forma ou outra de “regra” e, por outro, as condições de possibilidade de um fazer “criador”, falta um tipo de casos — um tipo que, dada a sua grande generalidade, é essencial.

É o caso no qual o que se cria é o criador mesmo.

A isso corresponde uma expressão hoje muito em voga : reinventar-se. Na mídia, é usada constantemente e pode ser aplicada a praticamente qualquer sujeito, individual ou coletivo. Alguns exemplos : “O partido X soube se reinventar no bom momento”, “Os Corinthianos precisariam se reinventar”, “Para um artista, se reinventar a cada dia é uma necessidade vital”, “Após o fracasso, ele se reinventou de modo estupendo”.

Como sempre quando se fala em invenção, inovação ou criação, também tem-se basicamente, nos enunciados citados, alguém que atua (de modo inventivo, inovador ou criativo) e, como resultado esperado (ou já obtido) de sua ação, algo novo : no caso, um indivíduo ou um grupo “reinventado”. Contudo, entre invenção e reinvenção (de si) há uma diferença estrutural (sintática) importante. No primeiro caso, na invenção clássica, como na criação, o que é obtido no fim do processo é algo que possui sua própria identidade, distinta da identidade de quem o produziu. Por exemplo, embora se diga comumente “um Vermeer” em vez de “um quadro de Vermeer”, a pintura exposta no museu é obviamente outra coisa que o pintor. O mesmo com a solução inédita inventada pelo matemático para algum problema, ou o novo aparelho técnico inventado por um engenheiro.

Ao contrário, na configuração que nos interessa, o inventor e o inventado (ou reinventado) se confundem. Em termos semióticos, isso quer dizer que, em vez de transitivo, o processo, o fazer gerador de novidade, se tornou reflexivo. O mesmo ator é o produtor e o produto do processo. Ele é o performador da própria transformação. E enquanto tal, ele trabalha a partir de uma matéria prima que, ela também, é ele mesmo, considerado no estado anterior à própria “reinvenção”. Conforme a clássica esquematização semio-narrativa, aqui temos, portanto, o sincretismo de três actantes em um único ator : um sujeito de estado 1 (antes da reinvenção), um sujeito de estado 2 (após a reinvenção), e, entre eles, um sujeito do fazer transformador, ou re-formador, dir-se-ia mais especificamente no caso.


Ao analisar com a ajuda desse modelo elementar os discursos que evocam ou colocam em cena processos de “reinvenção de si”, um aspeto interessante, tanto semioticamente quanto na vida, são as relações entre S1 e S2. O segundo sendo uma transformação do primeiro, ou, mais exatamente, sendo ainda o primeiro, mas em parte, e só em parte transformado (pois ele fica a mesma pessoa, com o mesmo nome, o mesmo corpo), entende-se que eles necessariamente se assemelham, ao mesmo tempo que se distinguem. E curiosamente, nos contextos observados, o que diferencia o segundo do primeiro é sempre percebido, do ponto de vista axiológico, como positivo. Quem se reinventa se melhora. “Reinventar-se” seria por definição fazer um progresso. E, mais precisamente, esse progresso é geralmente descrito como uma liberação. Quem se reinventou é alguém que tomou a iniciativa de sair de um estado inicial visto como constrangedor, rotineiro e estéril, como a submissão a uma ordem pesada, e que, num belo dia, teve a coragem de escapar-se para adentrar um outro mundo, aberto, no qual ele enfim pode se sentir à vontade e no qual ele vai, sem dúvida, conseguir se realizar.

Está claro que toda essa visão pressupõe uma concepção bem definida do elemento complementar que ocupou os contribuidores do dossiê, isto é uma certa ideia do papel da regra em relação com as potencialidades criativas dos indivíduos. No discurso midiático sobre o “reinventar-se”, assim como numa grande parte (a parte hoje mais ao gosto do dia) de uma enorme quantidade de manuais do “saber viver”, a regra — todos os usos sociais e mais geralmente tudo o que enquadra o atuar das pessoas — cumpre o papel de um verdadeiro anti-actante (de um anti-destinador) que aprisiona o sujeito, o impede de realizar-se e sufoca escandalosamente as infinitas capacidades que possui.


A esse discurso fácil e um tanto demagógico, podemos opor outra visão, mais matizada e semioticamente talvez mais fundada.

Primeiramente, um olhar mesmo rápido sobre vários exemplos do reinvertar-se tal como apresentado na imprensa a respeito de personalidades públicas permite constatar que, frequentemente, a operação pretensamente transformadora da pessoa consiste, na realidade, em ela simplesmente mudar de universo de referência, em sair de um dado ambiente para adotar os mores, os modelos comportamentais, as estrategias sociais, a visão de mundo — numa palavra, as “regras de vida” — de algum outro microuniverso social. Neste caso, pode-se certamente falar de metamorfose, mas não de criação : muda-se de regras, sem por isso inventar nada novo.

Segundo, se se pensar em casos nos quais parece se tratar de mutações mais profundas da pessoa, é de se perguntar se, em vez de a redefinição de si mesmo passar pelo rechaço mais ou menos radical de um dado sistema de regras (o que arrisca se reduzir à simples substituição de um primeiro sistema por outro, como acabamos de ver), a mutação não passa, antes do mais, por um maior domínio da regra, começando por uma maior compreensão dela. Para tal, a pessoa precisa, como dizia Greimas, “olhar de mais acima”, necessita entender em que quadro mais geral as regras pontuais se inscrevem. Precisa perceber o sentido que elas têm. Só isso lhe permitirá ultrapassar a alternativa entre obedecer e transgredir. Então, sem ter que opor-se frontalmente às regras, torna-se possível para ele jogar com elas1, o que quer dizer aproveitá-las para desenvolver formas novas em tal ou outro domínio de atividade, redefinindo a própria relação, enquanto sujeito, em frente delas.

1 Sobre esse aspecto lúdico, o caso do policial descrito no dossiê por Massimo Leone é exemplar ao mesmo tempo que divertido.

Construir-se ressignificando as normalidades, talvez seja isso reinventar-se “de verdade”, reinventando o sentido.

 

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