Resumo:O artigo tem por finalidade pontuar a relação memória-história, a partir de um conjunto de atores bem preciso do universo esportivo. O ponto de partida são entrevistas realizadas com fundadores e líderes de torcidas organizadas de futebol da cidade do Rio de Janeiro, atuantes nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Os dez depoimentos de lideranças torcedoras dos clubes do Rio foram colhidos como fonte primária para a minha tese de doutoramento, defendida no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, em 2008, com o título de O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-1988). Como se sabe, as torcidas organizadas são coletividades contemporâneas que emergiram com maior força na segunda metade do século XX. Nelas, o registro escrito é raro ou rarefeito. Em contrapartida, a lógica das rivalidades nesse campo tem por efeito um acentuado grau de coesão dos agrupamentos, reunidos em torno de uma memória coletiva transmitida oralmente, de geração a geração. O artigo se aterá à descrição dos elementos que estruturam o discurso dos chefes de torcida, os pontos fortes da memória no que respeita o surgimento e a formação de suas próprias agremiações. Procura-se mostrar de que maneira os relatos concernentes à biografia do responsável do grupo revelam novas perspectivas não apenas sobre as torcidas organizadas como sobre a história do futebol e história do país naquele período.
Abstract:This article aims at punctuating the relationship between memory and history from the point of view of a precise group of actors in the sports universe. Our starting point is the body of interviews with founders and leaders of torcidas organizadas that were active in the 1960s, 1970s and 1980s in Rio de Janeiro. The ten statements from leaders of torcidas of the clubs in Rio were registered as the primary source for my doctoral thesis, which was defended at the Post-Graduate Program in Social History of Culture at the PUC-Rio in 2008 under the title O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-1988). It is known that torcidas organizadas are contemporary collectives which emerged with greater strength at the second half of the 20th century. The written register on these groups is rare or unusual. In contrast, the logic of rivalry in this field has the effect of a marked degree of group cohesion, gathered around a collective memory transmitted orally from generation to generation. The article will focus on the description of the elements that structure the discourse of the chefes de torcida, the strengths of memory regarding the emergence and formation of their own associations. We intend to show in which way the reports concerning the biography of the group leader not only reveal new perspectives on torcidas organizadas but also on the history of football and the history of the country during that time.
1 Introdução/entretítulos
O presente artigo inscreve-se em uma área de investigação recém-constituída e em vias de afirmação no Brasil. Ele tem como dimensão fundamental o modo de constituição das fronteiras entre memória e história , em específico a aplicação de sua problemática no terreno dos Esportes. A motivação teórica articula-se a aspectos de ordem prática. A riqueza de um material ainda a ser organizado e explorado possibilita o alargamento de sua escala de pesquisa e a inovação de suas fontes, sobretudo a História Oral, uma das subáreas da historiografia contemporânea que teve uma particular acolhida no Brasil , desde a aparição de The voice of the past, do inglês Paul Thompson, no final da década de 1970.
Os problemas teóricos e práticos do artigo se relacionam ainda ao crescimento de importância da memória futebolística nacional na sociedade brasileira, efeito do investimento realizado no campo do jornalismo e do mercado editorial. A partir de interesses e pressupostos os mais diversos, jornalistas esportivos têm se dedicado a recontar a vida de grandes atletas e craques do passado, através da publicação de livros biográficos , além daqueles autobiográficos, assinados por técnicos e jogadores. A célebre biografia de Ruy Castro sobre o atacante Garrincha, intitulada A estrela solitária, foi uma das obras de maior repercussão, espécie de best-seller .
A abertura de filão para o gênero é compreensível, pois, ao longo do século XX, o desenvolvimento dos meios de comunicação e a disseminação da cultura de massas fizeram com que os atletas esportivos fossem associados, de maneira progressiva, a padrões de conduta massificados. Eles passaram a figurar ao lado de atores de cinema e televisão, de compositores de música, de estrelas da publicidade e de modelos típicos do star system. A sedução exercida por estes novos ícones permitiu a constituição de um universo de idolatria midiática, estudado de maneira precursora nas décadas de 1950 e 60 pelo sociólogo francês Edgar Morin e, em âmbito acadêmico nacional mais recente, pela antropóloga Maria Cláudia Coelho .
Sendo assim, as histórias de vida destes jogadores são hoje um ingrediente a mais no aparato do consumo de bens culturais, dentre livros, DVDs e filmes. Ídolos esportivos nacionais da história do século XX, do botafoguense Heleno de Freitas ou do são-paulino Leônidas da Silva até o atual atacante do Corinthians, Ronaldo , são alguns dos casos mais notórios da apropriação do gênero biográfico por parte da indústria cultural. Os produtos avolumam as prateleiras das livrarias e ocupam as salas de cinema das grandes cidades, lado a lado com personagens já biografados e filmados à exaustão. O destaque recai em personalidades da sociedade, da política e da cultura, tais como Carmen Miranda e Nelson Rodrigues, Assis Chateaubriand e Roberto Carlos, entre tantos nomes.
Em termos institucionais, a questão da memorialística esportiva é, do mesmo modo, alvo de atenção crescente. Ela pode ser comprovada na criação do Museu do Futebol, localizado no estádio do Pacaembu, em São Paulo, e no sucesso de público e interesse despertado junto à população da cidade, com o fomento do turismo nacional e estrangeiro. Em consonância com os modernos padrões de visitação museológica, nos quais a interatividade, os dispositivos computadorizados e os múltiplos apelos sensoriais são a todo o instante mobilizados, uma variada gama de fotos, vídeos e aparelhos multimídias compõe os novos suportes imagéticos que potencializam as fontes de acesso ao passado e despertam a curiosidade do grande público para a História lato sensu.
Na disseminação do conhecimento histórico, a remissão a experiências pretéritas vale-se assim dos recursos e dos dispositivos tecnológicos de ponta, mas não prescinde também de uma série de elementos materiais e simbólicos considerados tradicionais. Estes se manifestam pela reunião de vestimentas – camisas, chuteiras, calções – pela exposição de utensílios do jogo – bolas, redes, livros de regras – ou pelo agrupamento de documentos visuais – cartazes das Copas, dísticos dos clubes, flâmulas de entidades (FPF, CBD, CBF), cujos modelos variam no decorrer das décadas e que são guardados por colecionadores anônimos. Todos estes símbolos e artefatos causam, a um só tempo, estranhamento e fascínio com o passado. Homólogas à função das relíquias dos antiquaristas dos séculos XVIII e XIX, as peças contribuem para fazer do futebol um ícone contemporâneo, condizente com a tendência geral à “patrimonialização” da cultura (material e imaterial) e à “musealização” dos bens culturais.
Na história brasileira, em realidade, a conversão do futebol em objeto de interesse patrimonial não chega a ser uma inteira novidade. Convém lembrar aqui a experiência e o papel pioneiro de conservação levados a cabo pelo Museu da Imagem e do Som, do Rio de Janeiro (MIS-RJ). Este, inaugurado em 1965 e concebido pelo produtor cultural Ricardo Cravo Albin durante várias décadas, situado originalmente à Praça XV, em um antigo pavilhão da Exposição Internacional de 1922, foi à época um modelo ultramoderno de museu voltado para os registros sonoro e visual. Com apenas dois equivalentes no mundo, ele se tornaria modelo para outros similares no Brasil nos anos seguintes.
Graças à iniciativa de seu idealizador, Ricardo Cravo Albin, uma série de depoimentos sob a rubrica “Futebol” foi alinhada junto a outros eixos temáticos da cultura brasileira: Música, Literatura, Teatro, Cinema, Jornalismo, Rádio. Trata-se de uma experiência ímpar, na medida em que o homônimo e congênere paulistano – o Museu da Imagem e do Som de São Paulo, fundado em maio de 1970 – não chegou a criar uma série temática dedicada ao Esporte. A realização de entrevistas com jogadores, técnicos e dirigentes por parte do MIS-RJ, embora sem os critérios científicos que mais à frente seriam adotados pela metodologia da História Oral – a bem da verdade, tratava-se mais de um encontro de celebridades que reverenciavam personagens reconhecidas da sociedade –, permitiu a gravação de entrevistas com muitos profissionais do futebol. Os encontros se iniciaram em 1967 e se estenderam até a década de 1990, mas, com menor visibilidade, ficaram à sombra dos demais acervos da instituição carioca.
Em um espaço dilatado de tempo, e variando ao sabor das diferentes diretrizes políticas por que passou a instituição, conforme demonstrou a historiadora Cláudia Mesquita no livro Um museu para a Guanabara: Carlos Lacerda e a criação do Museu da Imagem e do Som (1960-1965) , o MIS-RJ foi assim realizando algumas dezenas de entrevistas com dirigentes, técnicos e grandes craques, no momento em que estes se encontravam no apogeu ou já haviam encerrado a carreira. Marcos Carneiro de Mendonça, goleiro da fase amadora do Fluminense Football Club nas primeiras décadas do século XX, foi um dos primeiros entrevistados em fins da década de 1960, na mesma ocasião em que compositores populares como Cartola, Donga e João da Baiana prestavam seus depoimentos para a série Musical, sob a direção de Almirante, pseudônimo do compositor Henrique Foréis Domingues.
Depois de anos sem receber a devida atenção, a iniciativa do MIS-RJ se materializou sob a forma de livro durante a gestão de Marília Trindade Barbosa, na década de 1990, com a publicação do volume duplo intitulado Futebol é Arte: depoimentos . A obra, no entanto, teve distribuição limitada e foi organizada pelo veterano jornalista Mário de Moraes, que redigiu o primeiro volume. No segundo tomo são transcritas, na íntegra, três entrevistas com grandes craques da seleção brasileira – Domingos da Guia, Pelé e Zizinho – com uma mostra do valor dos testemunhos colhidos.
No tocante a um específico ator em foco – o torcedor de futebol – e a um objeto de pesquisa em particular – as torcidas organizadas –, informações dispersas e fragmentárias podem ser encontradas nos periódicos esportivos especializados. Em 1968, o jurista e jornalista João Antero de Carvalho lançou o livro Torcedores de ontem e de hoje onde perfila, em flashes biográficos, cerca de cinqüenta torcedores emblemáticos de clubes tradicionais do Rio de Janeiro. Em período recente, o jornalista Hilton Mattos lançou o livro Heróis do cimento, em que seleciona vinte e quatro torcedores-símbolos dos grandes clubes do Rio. Com ligeiros apontamentos biográficos, o jornalista estrutura sua obra na descrição de um “jogo inesquecível”, espécie de mote inicial para a tessitura da memória de seus entrevistados.
Dada a heterogeneidade estrutural e hierárquica das torcidas organizadas, a opção escolhida para o presente artigo, que se desdobra de entrevistas feitas originalmente para uma tese de doutorado, foi a de concentrar o enfoque no indivíduo que ocupa a posição mais representativa na morfologia do grupo – o líder –, por meio da obtenção de depoimentos. A concentração nas antigas lideranças de torcida viabilizou ainda um trabalho de análise do processo de construção social da memória nos moldes propostos no Brasil por Ecléa Bosi em fins dos anos 1970. À luz da filosofia de Henri Bergson e da sociologia durkheimiana de Maurice Halbwachs, “as lembranças de velhos” examinadas pela autora mostravam como as transformações da cidade de São Paulo e da sociedade paulistana vinham inscritas na percepção individual do tempo por parte das suas depoentes.
A adoção de semelhante procedimento, com a obtenção de relatos junto a dez chefes de torcidas organizadas do Rio de Janeiro respalda-se e inspira-se em nível nacional também no exemplo do trabalho coletivo e institucional, empreendido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, o CPDOC/FGV, núcleo iniciado em 1973 com a doação de arquivos privados de políticos como o ex-ministro Gustavo Capanema e que se desdobrou até a recente série sobre a Memória militar. Em esforço individual, e na outra ponta dos atores sociais focalizados, procurou dar-se acesso a um conjunto de informações sobre torcidas organizadas não registradas nos periódicos e que costumam ficar adstritas ao domínio oral das relações intergrupais.
A aplicação de um método qualitativo de investigação, com a metodologia da História Oral inaugurada por Paul Thompson, possibilitou a observação do percurso trilhado por esses torcedores que ficaram à frente de tais agrupamentos, avaliando três questões principais: 1) quais as motivações para aquele que adere a um grupo; 2) quais as implicações pessoais e sociais de “ser líder” de uma torcida organizada; e 3) quais os pontos fortes da memória individual e coletiva presentes na “carreira” destas lideranças.
A descrição do perfil das primeiras gerações de chefes de torcida no Rio de Janeiro, entre as décadas de 1940 e 1980, visa propor um quadro mais complexo daquele forjado pela imprensa. Para isto, elaborou-se uma série de entrevistas junto aos fundadores e aos ex-lideres de torcidas organizadas: Sérgio Aiub, da Torcida Organizada do Fluminense e da Organizada Jovem-Flu; Banha, da Torcida Jovem do Flamengo; Tia Aida, da Torcida Organizada do Vasco; Armando Márcio Zucareli, do Poder Jovem do Flamengo; João Venâncio Cysne, da Força-Flu; Ricardo Muci, da Flamante; Seu Armando, da Young-Flu; Cláudio Cruz, da Raça Rubro-Negra; Roberto Monteiro, da Força Jovem do Vasco; e Capitão Leo, da Torcida Jovem do Flamengo.
Em virtude da extensão do relato, apresenta-se no texto a seguir um perfil biográfico do primeiro entrevistado, Sérgio Aiub, seguindo para isto a seqüência do depoimento por ele prestado. A entrevista, de duas horas de gravação, foi por mim conduzida em sua residência, no bairro de Cascadura, subúrbio do Rio de Janeiro, no dia 28 de dezembro de 2005. Com a apresentação desta biografia sumária, o artigo pretende oferecer uma base de dados iniciais e um ponto de partida para a reflexão em torno da construção da memória futebolística e de narrativas de vida no Brasil, em particular em um domínio com personagens ainda muito pouco conhecidos, do ponto de vista científico.
Dessa forma, visa-se discutir o emprego da História Oral como fonte e método indispensáveis na constituição de uma História Social do futebol brasileiro. No caso específico das torcidas organizadas, esta área da historiografia contribui para a relativização da idéia estereotipada acerca do perfil social dos chefes e lideranças torcedores, marcados pelo estigma da violência, mostrando diferentes aspectos e múltiplas facetas de sua complexa identidade social.
2. O relato: Sérgio Aiub, fundador da Organizada Jovem-Flu
Sérgio Aiub nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1941, no bairro de Cascadura, em uma casa onde habitou durante toda a vida. É filho de imigrantes árabes vindos da capital do Líbano, Beirute, que se conheceram no Brasil como trabalhadores do comércio de tecidos. Cursou o ensino fundamental e em seguida ingressou na Aeronáutica, onde iniciou em fins dos anos de 1950 uma carreira militar que se estendeu até 1967, quando foi dispensado da corporação. Seu emprego principal foi o de feirante, na venda de roupas, o mesmo ofício de seus pais. Especializou-se durante a década de 1980 na confecção de fantasias para o desfile das Escolas de Samba, o que se tornou desde então a sua principal fonte de renda. Participou de maneira ativa da Portela, da fundação da Tradição e da Beija-Flor, onde criou uma ala para a sua torcida. No momento em que concedeu o depoimento, estava aposentado, contava sessenta e quatro anos e enfrentava problemas de saúde recorrentes.
Em seu relato, a aproximação com o futebol e com o Fluminense deu-se por intermédio familiar, graças à sua única irmã. Na década de 1950, ela tinha um namorado que torcia pelo clube tricolor e a mãe apenas autorizava a ida da moça ao Maracanã na presença do irmão. Costumava freqüentar as arquibancadas no setor esquerdo das tribunas do estádio, à exceção dos jogos contra o Flamengo, quando a torcida tricolor se posicionava à direita. Sentava próximo à torcida organizada oficial do clube, a única existente até então, e admirava o tremular das bandeiras brancas, vermelhas e verdes, sob o comando de Carlos Guilherme Krüger, o Paulista, à frente do grupo.
Certa feita, Aiub ouviu as instruções deste com o pedido para que os torcedores do Fluminense levassem papel picado para o estádio. Autodefinindo-se como uma pessoa obediente e dedicada, chegou no jogo seguinte com duas imensas sacolas, portando serpentina e o material solicitado, atitude que chamou a atenção de Paulista. À medida que se aproximou da TOF (Torcida Organizada do Fluminense), tornou-se conhecido no grupo e ficou responsável pela fabricação de bandeiras, sendo elevado à condição de auxiliar de Paulista. As camisas da torcida seguiam o padrão dos jogadores em campo, ao contrário de Jaime de Carvalho, do Flamengo, que fizera um uniforme com um símbolo próprio para a Charanga, bordando uma lira na altura do peito esquerdo, alçada acima do escudo do clube.
Sérgio produzia bandeiras grandes, de quatro a cinco metros de comprimento por três e meio de largura, com a inscrição: Torcida Organizada do Fluminense Football Club. Possuía cerca de trinta bandeiras, guardadas na casa de um amigo que morava da Favela do Esqueleto, nas imediações do Maracanã, um conjunto habitacional derrubado nos anos de 1960, onde hoje se situa a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a UERJ. Isto era necessário, pois ainda não havia sala para abrigar o material de sua torcida nas dependências do estádio, o que veio a ocorrer apenas nas décadas de 1970 e 1980. Ao seu lado recebia a colaboração de Bolinha, outro antigo torcedor, que levava para os jogos um sino pesado e barulhento. Junto a Ramalho e Dulce Rosalina do Vasco, Tarzã do Botafogo, Juarez do Bangu e Jaime do Flamengo, os tricolores Paulista e Bolinha constituíam os dois primeiros de chefes oficiais da torcida do Fluminense nas lembranças de Sérgio, que dizia pertencer à segunda geração.
Nos decênios de 1950 e 1960, os chefes de torcida eram importantes e possuíam força no futebol, uma vez que o grupo era unido e não havia facções internas. Em razão disto, contudo, o progressivo crescimento das torcidas proporcionou a circulação de uma série de boatos onde se dizia que eles eram mercenários e recebiam dinheiro do clube. A sanha pelo poder se exacerbou entre 1965 e 1970 e o primeiro clube onde se instaurou uma dissidência de torcedores foi o Flamengo, com o surgimento da Torcida Jovem, liderada por tio Guima e tia Helena. O movimento juvenil dissidente configurou-se um sucesso, em suas palavras uma “revolução”, e as torcidas de outros clubes seguiram o exemplo. Com isto, houve um esvaziamento repentino da Charanga, conhecida a partir de então como “torcida de velhos”, o que causou o descontentamento de Jaime, melindrado com o acontecimento, embora sua figura continuasse respeitada e prestigiada pela maioria.
No Fluminense, com o adoecimento de Paulista, houve uma tentativa de tirá-lo da liderança, mas Sérgio impediu e aos poucos ascendeu no comando da torcida. A pressão interna por espaço na torcida resultou no aparecimento da Força-Flu e da Young-Flu, meses após a Copa do Mundo de 1970. Estas se posicionavam atrás do gol, local de pior visibilidade no estádio, para se contrapor à torcida oficial do clube e para concorrer com a Torcida Jovem do Flamengo, que ficava do lado diametralmente oposto. A Força-Flu tinha seu nome inspirado em um lema de incentivo da torcida italiana inscrito na semelhante bandeira tricolor – “Forza, Itália” – observada durante a Copa do México nas transmissões exibidas a cores e ao vivo pela primeira vez no Brasil.
Por consideração a Paulista, uma pessoa calma que durante trinta anos colocou a faixa de sua torcida na arquibancada − diz-se que havia inclusive participado da construção do Maracanã, como funcionário da Prolar, empresa de Benício Ferreira Filho, vice-presidente de futebol do Fluminense, vencedora da licitação da obra – e por consideração à família daquele torcedor, com quem continuou tendo boas relações, Sérgio não aderiu às dissidências e continuou na liderança da TOF. No entanto, foi membro fundador da Força-Flu e manteve um relacionamento de camaradagem com Gebê, Valter e os demais líderes de tal facção, a quem chegava a emprestar suas bandeiras.
A novidade da criação de torcidas desatou um processo em cadeia que se estendeu aos outros clubes e, desde então, ante qualquer discordância, um novo grupo era formado. Tal fato sucedeu no Vasco, com a tentativa de destituição de Dulce Rosalina da liderança da TOV e a fundação logo em seguida da Força Jovem do Vasco, assumida pelo dissidente Eli Mendes. A Young-Flu não chegou a configurar uma dissidência, tendo surgido de maneira autônoma e independente por iniciativa de um grupo de amigos que costumava sentar junto na arquibancada. Como a Força-Flu ficava situada atrás do gol, de início a Young agrupou-se na altura do córner e somente depois o posicionamento entre elas foi invertido.
A Young despontou com um fenômeno inusitado, o patrocínio de uma agência de carros, a Flucar, que pertencia ao Luisinho, um integrante da torcida. Desde o início seus fundadores – Armandão, Marcelo, Rato, Zezé e Paulo César Pedruco – despontaram com tais inovações e rivalizaram na disputa pela hegemonia da torcida tricolor com a Força-Flu.
Assim, a participação de Sérgio na torcida abrangeu várias etapas. Ela começou com a freqüência aos jogos a partir de 1959, quando ia na companhia de sua irmã; em seguida, por volta de 1963, quando ascendeu de maneira espontânea à condição de auxiliar de Paulista, sendo incumbido da confecção e do transporte de bandeiras; e de 1967 em diante, quando impediu a retirada de Paulista da liderança por parte de outros componentes e passou a se colocar à frente da torcida de modo mais direto. Este período coincidiu, no entanto, com seu ingresso na vida militar. Aos dezoito anos, desejava não somente prestar serviço, mas desenvolver uma carreira na hierarquia da Aeronáutica.
Segundo seu depoimento, foi uma conciliação tensa e difícil, pois tinha às vezes de fugir do quartel para poder assistir aos jogos. Na época já ocupava uma posição de destaque na torcida e não perdia os jogos, sendo sua prioridade o acompanhamento do Fluminense, embora não deixasse de cumprir as suas obrigações no quartel. A projeção na torcida fez com que recebesse em sua casa emissoras de televisão, como a TV Continental, além de revistas e jornais, sendo sua residência conhecida como o QG dos torcedores. No intuito de promover a partida, reportagens e filmagens eram feitas durante a semana que antecedia aos jogos clássicos e, em dias de decisão, mobilizava a vizinhança para pintar os muros e enfeitar as ruas da localidade.
A participação na torcida era vista com reserva e encontrava muita resistência na Aeronáutica. Ao entrar para aquela instituição em 1960, cumpriu tempo de serviço obrigatório e deu início a um curso para sargento, que o obrigava a ir para Guaratinguetá, no estado de São Paulo. Tinha de dormir no quartel na noite anterior para embarcar no Galeão, no avião que levaria a sua unidade para o litoral paulista na manhã posterior. Certa vez perdeu o vôo em uma quinta-feira, no dia seguinte a uma partida do Fluminense, e por causa disto foi desclassificado do curso de sargento. Mesmo assim, continuou a vida militar até 1967, período no qual Castelo Branco ainda estava na presidência da República e iniciou uma reestruturação na corporação, com uma portaria que resultou em uma dispensa maciça. Embora a instauração da ditadura tivesse ocorrido em 1964, ressalta que sua baixa não teve qualquer motivação de ordem ideológica.
A dificuldade na conciliação das duas atividades resulta em sua visão do chefe de torcida como a de um trabalhador. Ainda que não haja remuneração nem patrocínio, este faz tudo com grande empenho e dedicação. Recorda-se as vezes em que dormiu dentro do próprio Maracanã, escondido sob as marquises, na véspera dos jogos importantes, a fim de poder preparar a festa da torcida, com talco e papel picado. No período em que a ADEG (Associação de Desportos do Estado da Guanabara), – nome da antiga SUDERJ, órgão gestor do Maracanã –, era dirigida por Abelard França, passou a receber três credenciais para entrar no estádio e arrumar seu material.
Às vezes, precisava de mais componentes da torcida e tinha de tirar dinheiro do próprio bolso para que eles entrassem pelo portão 18. Tinha de subornar “os caras”, mas tudo era feito sob a justificativa do trabalho: picar papel, tirar as bandeiras, os bambus, o talco, o estandarte. O talco era comprado em uma fábrica em Bonsucesso, em sacos de 50 quilos. Quando começou a freqüentar a torcida do Fluminense, a tradição do pó-de-arroz, agora proibida, já existia. Nos fins de semana, quando os jogos começavam às 17:00hs, desde a manhã já estava mobilizado para o evento. Levava pão com mortadela para o estádio.
O hábito de chegar cedo não era apenas de sua torcida, todas funcionavam assim. Seu trabalho, no entanto, não se confundia com uma profissão, como as rádios e a imprensa acusam atualmente, em uma associação dos chefes de torcida a malandros, espertos e marginais. Para ele, envolvia tão-somente paixão. Considera que era uma atividade muito mais difícil, pois ele pagava para sofrer, ao passo que hoje tudo é ganho. Diz que não é possível fazer julgamento, mas as torcidas na atualidade recebem ingressos gratuitamente, às vezes em número de até mil e quinhentos ingressos, enquanto no seu tempo o próprio clube renegava os chefes de torcida.
A imagem da violência, da mesma forma, contrasta o passado com o presente. Havia brigas, por certo, mas elas eram momentâneas, restritas ao calor da hora, não passavam de xingamentos. Ao contrário, sua lembrança remete ao período das confraternizações, promovidas por Jaime de Carvalho, quando as torcidas organizadas visitavam-se mutuamente nas arquibancadas antes do começo da partida. Ainda que um ou outro torcedor isolado vaiasse ou hostilizasse, tinha-se por hábito nos jogos entre Flamengo e Fluminense ir ao encontro da torcida adversária em seu próprio território.
Na década de 1970, com a ebulição de torcidas organizadas, surgiram diversas agremiações de pequeno porte, dentre elas a Casca-Flu, a Chachaça Flu, a Influente, a Fiel Tricolor, a Flunitor de Niterói e uma de Campo Grande, de cujo nome não se lembra. Todas se davam bem e guardavam seus apetrechos em um mesmo local no Maracanã, na sala 323. Descreve sua sala como muito organizada, com tudo separado, compartimentado, com locais exclusivos para a bandeira para não ficar no chão. O mesmo ocorria depois com a sala da Tia Helena, que era muito bonita.
Com tamanha ramificação de subgrupos, sua torcida, que chegara a contar mais de dois mil sócios com carteirinha, composta inclusive por moças, senhoras e casais, decaiu muito. A impressão que tinha era a de que ela havia estagnado no tempo, o que o fez pensar em uma estratégia para revitalizá-la e voltar a atrair jovens, de modo a competir com as grandes torcidas, como a Young. O nome de sua torcida foi então modificado e passou a se chamar Organizada Jovem Flu, uma homenagem a um famoso movimento de torcedores do final dos anos de 1960, protagonizado por tricolores ilustres, como Hugo Carvana, Chico Buarque, Nelson Mota, entre outras personalidades. O histórico Jovem Flu foi um grupo que chegou a durar alguns anos, constituído por artistas e notórios torcedores do Fluminense.
Estes costumavam assistir aos jogos nas cadeiras do Maracanã e, sem pertencer aos quadros do clube, faziam oposição à diretoria, considerada muito tradicional por aqueles jovens aficionados. Quando Sérgio decidiu batizar sua torcida com o mesmo nome nos anos de 1970, muitos daqueles componentes originais prestigiaram o acontecimento, o Hugo Carvana inclusive, e adentraram com ele no gramado do Maracanã, desfraldando e exibindo a faixa da nova torcida. Nessa época foi procurado pelo bicheiro Natal da Portela, em um jogo do Fluminense contra o Madureira em Conselheiro Galvão. Natal era um polêmico personagem do mundo do samba carioca que acompanhava com afinco os jogos do time tricolor.
Naquela ocasião, Sérgio Aiub foi convidado a ir à sede da Portelinha, em Oswaldo Cruz, para uma conversa em que Natal propôs-lhe a montagem de uma ala da torcida do Fluminense na Portela. Aiub hesitou, ponderou sua inexperiência, mas foi convencido por Natal, que o levou ao carnavalesco da agremiação. Mesmo julgando sua atuação um fracasso à frente da ala no primeiro ano em que participou, a Portela sagrou-se campeã do carnaval com o samba-enredo “Lendas e mistérios do Amazonas” e Natal decidiu mantê-lo no desfile do ano seguinte.
Com a passagem dos anos ele se acostumou à atividade, adquiriu confiança e chegou a registrar em cartório, com um ofício, o nome da ala Jovem Flu naquela escola. Sua ala permanece até hoje integrada ao universo do samba, o que constitui para ele um feito inovador, pois foi a primeira torcida organizada a se integrar ao carnaval do Rio de Janeiro, com a entrada oficializada em 1974, ano de “O mundo melhor de Pixinguinha”, um samba-enredo antológico composto por Jair Amorim e Evaldo Gouveia. Na década de 1990, a torcida do Flamengo tentou criar a escola de samba Nação Rubro-Negra, idealizada por Cláudio Cruz, da Raça e pela Toninha, da Flamante, mas o projeto não prosperou.
Pouco tempo depois de conhecer Natal, por volta de 1974 e 1975, o bicheiro veio a falecer, mas mesmo assim Sérgio continuou na Portela até 1983. Foi quando ocorreu um movimento na escola de dissidência interna em oposição à direção de Carlinhos Maracanã, que não ganhava títulos havia anos, em favor de uma renovação. O resultado foi a expulsão dos oponentes, ele inclusive, que se empenhou então na criação da Tradição, para onde levou amigos de arquibancada, como o vascaíno Eli Mendes. Logo em seguida, em 1986, ano da Copa do Mundo do México, houve o samba-enredo de Joãozinho Trinta, “O mundo é uma bola”, e ele foi chamado para a Beija-Flor. Viriato, ex-carnavalesco da Portela, conhecia o trabalho de Sérgio, sabia da ligação dele com o futebol e chamou-o para uma conversa.
O carnavalesco por sua vez levou-o para falar com Anísio Abraão Davi e com Joãozinho Trinta, que o incumbiu de organizar o setor do Fluminense naquele desfile. Com o aval da diretoria, Sérgio chamou Cláudio Cruz, da Raça Rubro-Negra, para coordenar o setor do Flamengo; Acir, uma senhora botafoguense de Copacabana, responsável pela organização dos alvinegros; e Eli Mendes, da Força Jovem do Vasco, que vinha com ele da Tradição.
O ano do desfile da Beija-Flor foi o momento em que decidiu deixar o comando da torcida. Em 1984, o Fluminense sagrara-se Campeão Brasileiro e ele já queria encerrar sua participação. Cansado, acreditava que já tinha dado todas as suas energias e achava-se em idade avançada, queria ir ao Maracanã na condição de um torcedor comum, como um local apenas para o lazer, sem maiores obrigações ou estresses, embora seus companheiros resistissem à idéia e pedissem para que não abandonasse o comando da torcida. A despeito dos pedidos, delegou a liderança pouco tempo depois para os demais membros da Jovem Flu, mas nenhum de seus três sucessores teve êxito e o agrupamento desapareceu na década de 1980.
Há cerca de três anos, um grupo de dissidentes da Young-Flu procurou-o com a intenção de obter uma autorização para a recriação da torcida. Ponderou sua amizade com os antigos integrantes da Young, considerou que o ato poderia ser visto como uma traição e resolveu não conceder a permissão. Mais tarde, porém, voltou a ser procurado por outros rapazes que lhe solicitaram a retomada da torcida, pois achavam Jovem Flu um nome forte, e ele resolveu enfim atender o pedido.
Em 1991, Sérgio sofreu uma grande decepção, com a perda de parte significativa da memória de sua vivência futebolística. O aposento da casa onde guardava as lembranças do futebol foi incendiado, com a destruição dos troféus ganhos nos torneios promovidos pelo Jornal dos Sports, além das capas de revistas em que aparecia fotografado. Mais de 40 taças, das quais duas ou três obtidas no “Duelo de Torcidas”. Era o depósito de suas recordações, com capas, fitas e a parede do quarto coberta de fotos, onde ficavam as carteirinhas de sócio do início da torcida, inclusive a de número 1.
Possuía ainda um valioso registro áudio-visual, cerca de dez documentários, com filmagens das festas de comemoração dos títulos e da época em que Pinheiro jogava no juvenil e no infanto-juvenil do Fluminense, sendo sempre campeão. Sérgio mostra as fotos, dentre as poucas que se salvaram. Exibe uma de 1975, em que aparece com cabelo longo, no período em que curtia rock. Diz que era ele cabeludo, ainda que não pareça, e afirma que “deu trabalho”, embora hoje em dia “dê trabalho” apenas para os médicos. Guarda fotografia do Pacaembu, em São Paulo, de um jogo em que ele entrega a faixa para Rivelino, este no gramado e ele dependurado na grade da arquibancada, até cair para o lado de dentro de campo.
Aponta para a Tia Helena, da Fiel Tricolor, que costumava entrar com ele em campo. Na foto seguinte, refere-se à entrega de uma placa a Nélson Rodrigues, na noite de lançamento de seu livro, no Salão Nobre do Fluminense, prêmio oferecido por ele e pela mesma Tia Helena. Em outra imagem, mostra uma homenagem que fizeram ao Telê Santana, no Mineirão, quando o jogador deixou o Fluminense e se transferiu para o Atlético-MG. Há fotos também referentes às caravanas que fazia pelo Fluminense, onde aparecem os ônibus nas paradas da estrada para São Paulo.
As fotografias o fazem rememorar as viagens e assegura ter conhecido o Brasil todo graças ao Fluminense. Uma das imagens mostra-o no estádio do Coritiba, o Couto Pereira, onde entrou em campo com uma imensa bandeira tricolor. Diz que não havia problemas com a torcida do “coxa-branca”, pois seus integrantes eram legais. Em geral não tinha problemas nas viagens, somente às vezes ocorriam pequenos incidentes, sem maiores gravidades. Estima as viagens de antigamente muito melhores do que as de hoje, pois tudo era feito com muito sacrifício. Ele vendia as passagens, que eram bilhetes padronizados, em uma banca de jornal que se tornou um ponto de referência dos tricolores na Avenida Rio Branco.
Tudo era pretexto para as caravanas, qualquer partida, até mesmo um jogo no estádio do Caio Martins, em Niterói, ele mobilizava 10, 15, 20 ônibus. O jogo mais marcante foi contra o Cruzeiro no Mineirão lotado, durante a disputa da Taça de Prata de 1970, com um gol olímpico de Paulo César Caju, quase no final. Eles ganharam lá de 1 a 0 e sua torcida, que tinha ido com 16 ônibus, teve de esperar até as 7 horas da manhã para sair do estádio, tendo inclusive de esconder as mulheres para protegê-las das pedras. No retorno para o Rio, todos os ônibus se concentraram na Rodoviária e dali partiram para a Avenida Rio Branco, onde foram recebidos com papéis picados pela população, um lindo acontecimento.
A maior parte das viagens era agradável, mas, para manter o comando do grupo, tinha de delegar um responsável por cada ônibus, preestabelecendo as paradas na estrada e subdividindo os torcedores a fim de evitar a concentração e os furtos, que já existiam na época, com o costume freqüente de pegar os produtos e não pagá-los nas lanchonetes de beira de estrada. A maioria que viajava nos ônibus pagava passagem e pertencia à classe média, de modo que para ele os pequenos furtos nas paradas de estrada não eram uma necessidade financeira, mas um hábito muito comum entre a garotada. A conseqüência era a intervenção da polícia, que era acionada e interceptava o ônibus na estrada, prendia ou fazia-os devolver as mercadorias. Seu recorde em termos de caravana foram quarenta e cinco ônibus que conduziu para São Paulo, em uma partida contra o Palmeiras, ganha por 3 a 0 no Morumbi. Algumas torcidas de outros estados os recebiam e os levavam para a sede deles.
Naquele tempo os Gaviões da Fiel ainda não possuíam a imensa quadra da escola de samba que têm hoje, mas eles tinham uma sede menor no Brás e Sérgio ficava hospedado lá com sua torcida. Não havia problema e o mesmo ocorria com os palmeirenses, com que mantinha correspondência de cartas. As revistas dos clubes, que circulavam nas bancas, possibilitavam o intercâmbio e através delas se fazia amizade e se estabelecia contato. Sua torcida tinha representantes em São Paulo e em Belo Horizonte. Lembra-se da tia Elisa do Corinthians, uma “negona bonitona”. No fim da vida ela não tinha mais liderança entre os corintianos, pois a predominância era da Camisa 12 e da Gaviões, mas era respeitada e possuía um nome.
Recorda-se também de Danilo, da Torcida Independente do São Paulo, de Ramalho, da Torcida Uniformizada do Palmeiras, e de Júlio, da Charanga do Atlético-MG. O que mais temia nas viagens a São Paulo era o policiamento, o pior de todos, pois a polícia paulista “baixava o cacete”. Às vezes as próprias torcidas de lá saiam em defesa deles. A viagem mais longa e distante que fez durou uma semana e passou por Salvador, Recife e Maceió. Foi um jogo no domingo, outro na quarta e um terceiro no domingo da semana seguinte, mas não se lembra de maneira exata quando foi e por qual campeonato valia.
Ele viajou para o sul do Brasil também, Curitiba, Florianópolis e Rio de Grande do Sul, aonde foi várias vezes, e chegou a organizar uma caravana de avião a Porto Alegre. Graças a uma agência de turismo, de cujo nome não se lembra, que lhe deu três passagens em troca de propaganda, fez ainda viagens internacionais, indo à Argentina e ao Paraguai. Lá assistiu às partidas eliminatórias para a Copa do Mundo, quando a Seleção Brasileira venceu os paraguaios em 1969, por 3 a 0 do Paraguai. Ele ia também com sua torcida nos jogos do Brasil no Maracanã, onde tinham um local já tradicionalmente delimitado, mas hoje em dia as faixas não são mais permitidas pela administração do estádio.
Sua avaliação é a de que tudo era muito gostoso e não se arrepende de nada do que fez, embora sua família não gostasse da atividade. Ela era contra a sua dedicação exagerada, seus pais e sua irmã achavam que ele tinha de ter um cargo. Sérgio contra-argumenta dizendo que nunca dependeu da torcida nem do clube, pois sempre trabalhou, serviu ao quartel e hoje tem uma vida razoável, em que não está nem muito bem nem muito mal. Seguiu também a tradição familiar na venda de roupa, como feirante, e hoje vive com a sua aposentadoria. É conhecido por todos em Cascadura como “Sérgio Tricolor”, como “Sérgio Fluminense”. Até hoje é chamado para enfeitar as ruas durante as Copas do Mundo, mas não tem mais interesse, já fez muito. No tempo das reportagens televisivas na sua casa, colocava 10, 15 pessoas para ajudá-lo e sua mãe, que é Flamengo, fazia a comida para a filmagem da televisão.
A relação com a imprensa era muito boa, pois ela dava apoio às torcidas nas cobranças e nos protestos contra a diretoria. A imprensa chegava a ligar para sua casa para avisar o que estava acontecendo e pedia para que levasse seu grupo e fizesse reportagens. Naquele tempo o Jornal dos Sports dava-lhes muita abertura, noticiava qualquer pequeno incidente e, por isto, ele apareceu diversas vezes na primeira página do jornal. Evoca a “invasão” que seu grupo fez à sede do Jornal dos Sports, quando ganharam o prêmio do concurso de melhor torcida. Os programas de rádio também davam cobertura e divulgavam as caravanas em dias de clássico ou em partidas fora do estado. Antigamente, a referência em termos radiofônicos era a estação Mauá, que possuía força no futebol. O locutor Orlando Batista, e depois seu filho Luis Orlando, ajudava muito as torcidas com a divulgação de suas reuniões no local onde ficava o antigo Ministério do Trabalho.
Outra emissora de rádio que escutava e freqüentava era a Guanabara, uma espécie de rádio Globo da época. Ficava no Centro do Rio, na Rua Buenos Aires, e depois se instalou na Avenida Passos. Foi várias vezes também ao programa “Conversa de Arquibancada”, da TV Bandeirantes, onde dava entrevistas e participava de gincanas. Tinha, por exemplo, de conseguir a foto do filho do radialista Washington Rodrigues, vestido com a camisa do Flamengo. Ele ia lá e conseguia. Costumava aparecer também no Canal 100, o programa de Carlos Niemayer que exibia imagens do Maracanã em trailers nas salas de cinema. Várias pessoas lhe diziam que o haviam visto no cinema, ele ainda cabeludão. O relacionamento com o clube não foi bom.
O presidente do Fluminense que abriu a porta para ele chamava-se Francisco Laport, antecessor do Francisco Horta na direção, durante os anos de 1970. Em razão disto, foi feita uma festa para o Laport no salão nobre do clube e hoje no Fluminense há uma placa da torcida onde ele é homenageado. Antes, a diretoria era hostil ao seu grupo e vetou a entrada de Sérgio como sócio. Os diretores mais antigos chegavam a se opor à prática do futebol, que não era vista com bons olhos. O pessoal da Força-Flu foi mais esperto do que o seu grupo e conseguiu desenvolver um trabalho na política interna do clube. Hoje possui mais membros no Conselho Deliberativo do clube do que a Young e exerce influência ativa nas decisões.
Sua torcida promoveu muitos protestos e muitas cobranças, com enterros simbólicos, passeatas e pichações na sede. Reuniam-se no Largo do Machado, em número de 200, 300 pessoas e de lá partiam para o Fluminense com um caixão e uma coroa. Mas não eram recebidos pela presidência do clube. Rafael de Almeida Magalhães, por exemplo, que foi vice-presidente de futebol no início da década de 1980, não os recebeu. Em compensação, como forma de manifestar a insatisfação e a revolta, uma vez eles chegaram a tumultuar um baile de aniversário no clube. Todos os convidados que entravam eram vaiados e recebiam um lenço preto. Em outra ocasião, chegaram a ponto de tirar a bandeira do Fluminense do mastro e hastear uma outra, toda preta, em sinal de protesto.
O incidente ocorreu na época de Dílson Guedes, que considera a pior administração do Fluminense, quando Otávio Pinto Guimarães ocupava a presidência da federação estadual de futebol. Sérgio não tem boas recordações também da administração de Sílvio Kelly, mas guarda impressões positivas de Francisco Horta, que colocava a camisa da torcida, subia às arquibancadas e empunhava a bandeira do clube ao lado deles. Diz que o dirigente teve erros e acertos, mais acertos do que erros em seu modo de entender.
Em termos de torcida sua maior falha foi o envio de 50 mil ingressos para São Paulo, na tal invasão corintiana de 1976. Não havia aquela necessidade, pois esses ingressos nem chegaram a ser todos vendidos lá, não ultrapassaram a marca dos 18 mil. A torcida do Vasco e do Flamengo é que foi ao jogo e deu apoio para os corintianos. Como a torcida do Fluminense é muito acomodada e chega tarde ao estádio, eles se aproveitaram disso, chegaram antes, ocuparam os espaços, o que deu aquela impressão de estar tudo lotado no lado alvinegro. Houve também um esquema para recebê-los mais cedo no estádio, pois já tinha tido briga em Copacabana e em outros lugares entre tricolores e corintianos. A discriminação do Horta hoje no clube deriva disto: ele montou a Máquina e a desfez também.
Ele a princípio foi contra a criação da ASTORJ, a Associação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro, concebida por seu amigo Armando Giesta, e admite que participou muito pouco da entidade. A sede funcionava no Maracanãzinho, com reuniões às segundas-feiras à noite. A associação não decidia nada, apenas deliberava quem teria direito às credenciais. Foi centralizadora e, a seu ver, tirou força das pessoas efetivamente ligadas às torcidas organizadas. As greves da torcidas contra o aumento dos ingressos ocorreram, foi um movimento geral de união, mas não passaram de maneira exclusiva pela ASTORJ.
Quando tinha jogo do Fluminense, as facções tricolores se reuniam e decidiam pela greve. Botavam as faixas de cabeça para baixo no alambrado, uma tradição que começou nessa época em sinal de protesto e que hoje todas as torcidas repetem. Eles avisavam nos jornais que não compareceriam ao jogo e a afluência de público de fato caía muito. Às vezes eles iam de Geral e, na maioria das ocasiões, atingiam o objetivo, com a redução do preço do ingresso. As torcidas não promoviam apenas brigas e protestos, elas faziam festividades no Maracanãzinho, onde tem um pequeno ginásio, no espaço do colégio Arthur Friedenreich. Em outros lugares, havia também confraternizações, com festas e churrascos. Depois isto acabou, mas várias torcidas fizeram.
Às vezes os jogadores eram convidados e compareciam. Lembra que levou o time do Fluminense todo na quadra da Portela. No entanto, de um modo geral, a relação dos atletas com a torcida era de distanciamento, como é até hoje, apenas um ou outro era mais ligado à torcida, pois eles sabem que da mesma maneira que são aplaudidos, podem ser vaiados, cobrados. A passagem do Rivelino foi curta no Fluminense, mas um jogador que se dava bem com a torcida era o Samarone. O Assis e o Washington foram ídolos, não tiveram um contato próximo. Ele recorda-se que fez uma foto com o goleiro Félix no gramado do Maracanã para uma revista ilustrada.
Já o relacionamento com o policiamento no estádio era bom, pois eles eram sempre os mesmos. Sente saudades do sargento Maia. Os chefes de torcida ficavam com os policiais no próprio batalhão, quando era dia de clássico e ajudavam na organização do esquema. Não eram muitas facções, duas ou três, e não dava muito trabalho coordenar todas as torcidas. Não havia ainda esse fenômeno de mortes, prisões, matanças. Sua rixa foi com a torcida do Botafogo. Com o Tarzan, chefe de torcida, ele se dava bem, mas não gostava dos botafoguenses, não. O Tarzan era fortão, foi motorista de táxi uma época e depois ele foi morar em Belo Horizonte. Não sabe se ele morreu, uns dizem que sim, outros que não.
Ele teve algumas brigas no final com a Torcida Jovem do Botafogo, uma torcida problemática, como o são todas as que ficam atrás do gol. Lembra de Fernando Mesquita, líder da TJB, um sujeito calmo. As brigas com o pessoal da TJB começaram por causa da divisão do Maracanã, em um dia de rodada dupla. O Fluminense jogava na preliminar e eles queriam ficar no canto, mas os botafoguenses não quiseram deixar. Conta que teve amigos no Flamengo, o Banha, o Germano, a Verinha, a Toninha, de quem é amicíssimo, e o falecido Niltinho, da Torcida Jovem do Flamengo. Ele se dá até hoje com o pessoal antigo, o Homero da Charanga, por exemplo. No Vasco, com o Eli e o Amâncio; no Botafogo, com o Russão. A relação com as entidades representativas do futebol carioca é considerada boa. Com a Associação de Desportos do Estado da Guanabara, eles pediram cartão com autorização para a entrada no estádio e foi dada permissão.
A sala também foi concedida pela ADEG. Mas, da mesma forma que eles deram, eles tomaram, quando se perdeu o controle da situação. No início, eram poucas salas, uma para cada clube. Depois, todas as torcidas receberam sala e virou uma bagunça, com invasão e arrombamento, além do consumo de tóxico, que existia nas viagens também. Tentava-se controlar, mas não se conseguia. Em relação à Federação do Estado do Rio de Janeiro, diz que Eduardo Viana, o Caixa d’Água, tirou todos os benefícios dados pelo Otávio Pinto Guimarães, quando este presidiu a federação. No período do Otávio, todos os chefes de torcida eram beneméritos da FERJ e tinham uma excelente relação com ele. O primeiro grito de guerra de torcida no Maracanã foi dado pelos rubronegros: “Mengo!”. Em resposta, eles passaram a cantar: “Nense!”. Houve quem dissesse que era feio, mas eles acabaram assumindo. Antes era: “– Iu, rá, ré, Flu-mi-nen-se, tudo ou nada ?”, quando a equipe entrava em campo. Ele usava o megafone, aquele de pilha grandão, e pronunciava este grito. Além disso, havia as marchinhas e as paródias, brincando com o time adversário.
Notas de Rodapé:
* (Recém-Doutor/ CPDOC-FGV-RJ) bernardobuarque@gmail.comReferências:
BOSI, Ecléa. Memória & sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
CALDEIRA, Jorge. Ronaldo: glória e drama no futebol globalizado. São Paulo: Editora 34, 2002.
CARVALHO, João Antero de (Org.). Torcedores de ontem e de hoje. Prefácio de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968.
CASTRO, Ruy. Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha. São Paulo Companhia das Letras, 1994.
COELHO, Maria Cláudia. A experiência da fama: individualismo e comunicação de massa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
COSTA, Alexandre da. Arthur Friedenreich: o tigre do futebol. São Paulo: DBA, 1999.
D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ary Dillon (Orgs.). Visões do golpe: a memória militar sobre 1964. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
GOFF, Jacques Le. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
MATTOS, Hilton. Heróis de cimento: o torcedor e suas emoções. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
MESQUISTA, Cláudia. Um museu para a Guanabara: Carlos Lacerda e a criação do Museu da Imagem e do Som (1960-1965). Rio de Janeiro: Folha Seca; FAPERJ, 2010.
MORAES, Mário de. Futebol é arte: Domingos da Guia, Pelé, Zizinho. Rio de Janeiro: MIS Editorial; Faperj, 2003, 2 vols.
MORIN, Edgar. As estrelas: mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989.
RIBEIRO, André. O diamante eterno: biografia de Leônidas da Silva. São Paulo: Editora Gryphus, 2000.