Futebol em tempos de ditadura: o Rio Grande contra o Brasil

Cesar Augusto Barcellos Guazzelli*,

Resumo:A ditadura militar que governava o Brasil comemorou em 1972 os 150 anos da Independência do país. Foi então realizada a Copa de Futebol Independência. Na formação da Seleção Brasileira pela Confederação Brasileira de Desportos, que organizava o futebol no país, não foi relacionado o jogador Everaldo, o único representante do estado do Rio Grande do Sul na Copa do Mundo de 1970, vencida pelo Brasil. Houve então uma grande reação na população deste estado contra a Confederação, a única manifestação pública na fase mais repressiva da ditadura. O texto discute a importância do futebol para a identidade nacional do Brasil, e também sua expressão no estado do Rio Grande do Sul.


Palavras-chave: Ditadura. Futebol brasileiro. Futebol gaúcho. Identidade nacional. Identidade regional.

Abstract:The military dictatorship that ruled Brazil celebrated in 1972 the 150 years of the Independence. Because of this date, was held the Soccer Independence Cup. In the squad of the National Team summoned by the Brazilian Sports Confederation , which organized soccer in the country, was not included Everaldo, the only player representative of the state of Rio Grande do Sul in the World Cup of 1970. There was, then, a large reaction by the population of this state against the Confederation, the only public riot occurred during the toughest repression phase of the dictatorship. The text also discuss the importance of soccer for the national identity in Brazil and its expression for the state of Rio Grande do Sul.

Key-words: Dictatorship. Brazilian soccer. “Gaucho” soccer. National identity. Regional Identity.

1. Introdução

O objetivo deste texto é discutir uma situação ímpar na história do futebol brasileiro. Hoje é indiscutível a identificação do futebol como o esporte mais popular do Brasil, e a Seleção Brasileira como a representação máxima da identidade nacional. Este presente foi resultado de um longo processo de construção, que envolveu clubes de elite e organizações populares, apropriação de seus usos por autoridades governamentais, e uma ampla divulgação/utilização pela imprensa.

No entanto, apesar de todos estes significados que foram herdados e amplificados quando a Seleção conquistou a Taça Jules Rimet, com o inédito Tricampeonato de 1970, a tentativa de apropriação desta vitória pela ditadura militar de Médici sofreu um importante percalço. Na programada comemoração do Sesquicentenário da Independência, a ausência de Everaldo, único representante gaúcho no time que ganhou a Copa de 1970, levou o Rio Grande do Sul futebolístico a fazer a maior demonstração de desagravo contra as instituições nacionais.

Para tanto, é necessário repassar algumas condições prévias a este incidente para que se possa medir sua importância, e isto exige que se trate do futebol e sua importância para a nação e para a província, e como serviu para a afirmação de ambas identidades.

2. Afirmava-se a identidade nacional!

O futebol brasileiro se constituiu num processo no qual a transição da sociedade excludente da República Velha para aquela que se seguiu à Revolução de 1930; assim, deixou de ser um hábito restrito aos sportmen dos clubes da elite para tornar-se um esporte de massas, tanto como prática lúdica, quanto como espetáculo. Neste sentido foi possível transformá-lo num produto cultural que se identificasse com a nacionalidade que se tentava afirmar.

Isto exige uma reflexão mais profunda sobre estes anos trintas: se a imposição da ditadura de Vargas se fez pela força, também houve uma elaborada construção de símbolos nacionais, que puderam ser propalados pelas ondas de rádio, fundamentais neste processo. A queima das bandeiras dos estados indicava que a partir de então desapareciam as unidades políticas quase autônomas que garantiam o Estado liberal-oligárquico que vigia na república Velha; tratava-se de afirmar o Brasil como Nação, e este foi um dos principais alvos do governo de Getúlio Vargas.

Da mesma forma que se elegia o samba como a música nacional retirando-o da marginalidade em que se encontrava também se atribuía uma nova conotação à mistura das raças que caracterizara o país desde suas origens mais remotas: cientistas sociais, Gilberto Freire (1984), sobretudo, valorizavam o Brasil mulato, capaz de afirmar-se pelas características próprias à miscigenação étnica e cultural. No entanto, a esperteza e picardia sempre identificadas ao brasileiro mestiço, precisavam ser descoladas e substituídas pela capacidade de trabalho e responsabilidade social. As leis trabalhistas caminharam paralelamente à construção da imagem nova, e convergi-la para o espaço do futebol foi um passo: o jogo dos brancos, ao dispor dos pobres, negros e mulatos, podia assim tornar-se um esporte nacional!

Neste sentido, a Copa de 1938 foi emblemática: o papel digno da Seleção nos campos franceses não deixava dúvidas quanto à capacidade dos jogadores brasileiros, onde os grandes destaques foram Domingos da Guia e Leônidas da Silva, goleador do certame. Na primeira oportunidade em que um quadro que representava o Brasil recebeu apoio governamental, a resposta fora positiva. É bem verdade que Argentina e Uruguai não compareceram ao Mundial da França, mas o momento de afirmação do futebol brasileiro teve um efeito significativo na auto-imagem nacional.

Durante a Segunda Guerra, o esquadrão brasileiro só podia medir-se com os vizinhos, onde houve uma nítida desvantagem nestes confrontos, especialmente contra a Argentina, que passava talvez pela sua melhor fase. De toda sorte, na Copa de 1950 que o Brasil se ofereceu para sediar, foi vivida a grande oportunidade de afirmação do país no cenário mundial. Vivendo agora tempos de democracia, a construção do Maracanã, o maior e melhor estádio do mundo, e a organização impecável de um torneio daquele porte, comprovava a vitória do brasileiro mestiço, capaz de ombrear-se com os melhores! Só faltava a vitória, e esta não veio... E não vindo, ressuscitou os fantasmas do passado: negros e mulatos foram responsabilizados pelo fracasso (FRAGA, 2009). Ao drama do Maracanazo, seguiu-se o fiasco de 1954, onde foram culpados os jogadores mestiços, julgados incapazes de levar adiante uma tamanha responsabilidade.

Entre tantos cuidados que cercaram a preparação para a estréia da Copa de 1958, estava a questão étnica: o Brasil começou sua caminhada com um time de brancos, à exceção de Didi ; foi só a partir da terceira partida que a presença de Pelé e Garrincha veio conformar a vitória dos negros e mulatos, aos quais se somaria Djalma Santos no último jogo. Em 1962 no Chile a história se repetiu, mas na Copa da Inglaterra em 1966, a eliminação do Brasil na fase classificatória foi novamente uma assombração! Mesmo conscientes da truculência que imperara no torneio mundial, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) tomou consciência das fragilidades do selecionado, decorrentes da desorganização e falta de profissionalismo na preparação do time.

Vivia-se a ditadura militar, que após o Ato Institucional nº. 5 (AI-5) rumava para seu período mais repressivo. Mas ao lado do uso indiscriminado da violência, havia preocupação do regime em afirmar-se positivamente, e o uso do futebol foi cuidadosamente pensado. Desde as eliminatórias para a Copa de 1970, os jogadores do Brasil tiveram um acompanhamento muito próximo pelo governo, seja pela presença do Presidente Médici nos estádios , ou pela presença de preparadores físicos ligados ao Exército Brasileiro. A vitória na Copa do México tornou-se quase uma questão de Estado, e seu uso político era inquestionável, tanto pela ditadura quanto pelos que a combatiam (VOGEL, 1982, p. 99).

A Seleção Campeã do Mundo tornou-se um dos “cartões postais” do regime, à qual se somaram outras tantas imagens: a chegada da televisão a cores, as propagandas governamentais de alta qualidade técnica, as grandes obras públicas, as canções e filmes ufanistas, entre tantos recursos de propaganda política, davam ao país que vivia um período de grande crescimento econômico – o chamado Milagre Brasileiro – uma face vitoriosa, afirmativa e ligada a um governo eficiente. O ano de 1972 era emblemático para estes propósitos, pois se comemorava o Sesquicentenário da Independência: simbolicamente, a ditadura era para o Brasil contemporâneo o que fora Dom Pedro I 150 anos antes. Foram resgatados os restos mortais do primeiro Imperador, que circularam por todos os estados antes de serem inumados no Brasil. Foi feito o filme Independência ou Morte, onde Dom Pedro foi interpretado pelo maior galã das novelas de televisão da época, Tarcísio Meira. E também foi feito um torneio de futebol!

A Copa Independência – também chamada Mini-copa – visava alcançar a imagem maior daqueles anos de ufanismo, ligando o sucesso alcançado pelo futebol ao governo ditatorial, e a Seleção era o símbolo máximo da unidade brasileira em torno dos objetivos de toda a nação. E era unânime o seu prestígio! Na esperada convocação pelo mesmo técnico de 1970, Zagallo não chamou o atleta Everaldo Marques da Silva, lateral esquerdo do Grêmio, único jogador do Rio Grande do Sul da Seleção Campeã do México! Isto deflagrou uma crise política inesperada, pois ao invés de consolidar o espírito de união nacional, fazia sangrar uma ferida não muito bem cicatrizada dos ressentimentos que a província do extremo sul historicamente construíra contra os centros de decisão do país. A Mini-copa que viera para unir o país em torno de seu governo revivera antigas lutas dos rio-grandenses: ao invés da Independência da nação, o Rio Grande lembraria a insurreição Farroupilha!

3. Afirmava-se a identidade da província!

Até os anos trintas, a elaboração do passado rio-grandense priorizava dois aspectos: a presença da fronteira como uma marca distintiva em relação às demais unidades da federação, dando uma condição mais “acastelhanada” ao estado; uma importante presença de imigrantes europeus – alemães e italianos, sobretudo – que faziam do Rio Grande era um estado mais “branco”, por tanto inconfundível com o Brasil mestiço e francamente português nas suas origens. De certa maneira, o futebol no Rio Grande do Sul foi muito influenciado por estas tentativas de explicação para as peculiaridades regionais. Assim, durante a República Velha o futebol foi um dos elementos usados para reforçar a autonomia e a identidade rio-grandenses, assumindo um papel de “integrador” do estado, com incentivo à criação de clubes de futebol, praticamente em todas as regiões (MASCARENHAS, 2001, p. 207). Resultado disto foi o primeiro campeonato estadual , realizado em 1919 com vitória do Brasil de Pelotas.

O futebol é antigo no Rio Grande do Sul: em 19 de julho de 1900, na cidade portuária de Rio Grande, foi fundado o Sport Club Rio Grande, que é o mais antigo do país em atividade; por esta razão, o aniversário do clube foi oficializado pela Confederação Brasileira de Futebol como o Dia Nacional do Futebol . O primeiro jogo de um time brasileiro contra um estrangeiro teria sido do Rio Grande contra Estudiantes, da Argentina (BITENCOURT, 1999, p.3). Há notícias, no entanto que em Livramento e Uruguaiana, cidades fronteiriças, já teriam ocorrido jogos de futebol por influência uruguaia, onde o esporte se implantou muito antes. Jogos “internacionais” de times rio-grandenses – da fronteira e do sul do estado – contra equipes uruguaias teriam sido freqüentes. A primeira Seleção Gaúcha foi formada em 1916, disputando duas partidas com a Seleção Uruguaia, em Porto Alegre e em Pelotas. O maior feito da época foi a vitória do Grêmio sobre a Seleção do Uruguai por 2 a 1, conquistando a Taça Rio Branco em 17 de setembro de 1916,

A precoce inserção do futebol em todos os recantos do estado, a repercussão destes enfrentamentos contra clubes e seleções dos países vizinhos, e a disseminação de uma cultura que privilegiava a identidade provincial, reproduzia simbolicamente as batalhas contra os “castelhanos” do século anterior, e o Rio Grande do Sul fazia às vezes de “pequena pátria” nos campos de futebol, como fizera no passado imaginário que era criado por folcloristas, escritores e historiadores.

Para o futebol do extremo sul também eram atribuídas as características daqueles que haviam sido escolhidos como representantes por excelência do Rio Grande: os gaúchos das estâncias de criação de gado. A recuperação da imagem do gaúcho, que no século XIX significara delinqüente e marginal, como o “monarca das coxilhas” ou “sentinela avançada do Brasil” nas guerras platinas, foi resultado de uma produção intelectual que percorreu algumas décadas (GOMES, 2009), mas que no primeiro quartel do século XX já se consolidara. A tradição criada, de homens criados numa natureza adversa que os tornara duros e bravos nos combates, era transplantada para o futebol. Assim, o esporte no Rio Grande do Sul vestia-se de características próprias que, se não eram necessariamente opostas àquelas pensadas para o “estilo brasileiro”, não se confundiam com estas. A identidade regional se fazia presente de forma marcante no futebol, que recebia o epíteto de “gaúcho” pelas características que lhe eram atribuídas do que pelo pertencimento geográfico ao estado.

A outra influência significativa que diferenciava o futebol sulino veio da cultura germânica presente no estado. Já com grande importância econômica na virada do século XIX, os descendentes de imigrantes alemães formavam suas associações que, se não eram tão elitistas como os clubes ingleses, eram refratárias aos que não tivessem ascendentes germânicos. Eles praticavam o turnen , uma variedade de ginástica, que os preparou precocemente para a prática de esportes no Brasil. Não por acaso, o Sport Club Rio Grande foi criado por teuto-brasileiros, que em 15 de setembro de 1903 também foram os fundadores do Grêmio de Foort-Ball Porto Alegrense e o Fussbal Club Porto Alegre. Estes clubes privilegiavam a condição atlética dos jogadores mais que a técnica.

Nesta construção de imagens, do futebol regional em relação ao nacional, esgrimem-se visões estereotipadas que remetem a um discurso que faz do Rio Grande do Sul – dentro e fora dele – um estado “diferente” dos demais a partir de alguns aspectos exteriores, elidindo-se outros que poderiam levar a interpretações opostas (DAMO, 1999, p. 95). Ao contrário do “futebol-arte” característico dos brasileiros, onde a técnica, a improvisação e a malícia se sobressaem (MURAD, 1996, p.100), os gaúchos seriam mais partidários do “futebol-força”, europeizado, mais tático do que técnico, mais esquematizado que improvisado etc.

Aqui também a influência “castelhana” recebeu, dentro e fora do estado, um tratamento estereotipado. É fato que o intercâmbio de jogadores entre equipes do Rio Grande do Sul com as argentinas ou uruguaias sempre foi, pela condição da fronteira, maior do que nos estados do centro do país. Por outro lado, houve um número maior de partidas entre equipes rio-grandenses contra uruguaias e argentinas. O futebol mais “platino” dos gaúchos explicaria a maior combatividade, garra e rispidez, se comparados ao típico futebol “brasileiro”.
É importante observar que os uruguaios, que foram pioneiros a ter negros e mulatos, nos clubes e nas seleções nacionais, também atribuíam ao seu futebol aquelas características, um jogo de toques curtos, improvisação e gambetas que encantou os europeus nas Olimpíadas de 1924 e 1928, além da primeira Copa em 1930 (GALEANO, 1995, p. 42). De forma análoga, também os argentinos reivindicam um passado de futebol técnico, malicioso e pícaro, o fútbol de potrero que também se colocava como antagônico ao “futebol-força”. (FERRARO, 1998, p. 21).

Assim, explicações a priori muito mais derivadas do senso comum do que de algum estudo mais aprofundado, criaram desde há muito tempo uma imagem própria ao futebol do Rio Grande do Sul, que seria diferente daquele praticado nos grandes centros futebolísticos do país, menos “brasileiro”. Isto seria uma razão para as poucas participações dos gaúchos nos principais eventos futebolísticos, particularmente na Seleção. Mas os ressentimentos em relação a isto no âmbito da província sulina ainda custariam a aflorar.

Pode-se pensar que durante a República Velha não tenham existido maiores problemas políticos do estado com o governo central, pois o Rio Grande do Sul sempre teve um papel auxiliar, em geral buscando congregar os estados do nordeste no apoio à política “café-com-leite” adotada no país. Isto também se refletia no futebol, onde não havia nenhuma divergência com os principais centros, Rio de Janeiro e São Paulo. Desde 1922 havia o Campeonato Brasileiro de Seleções Estaduais; nas suas 30 edições, o Rio de Janeiro venceu 15 e São Paulo 13, mostrando uma hegemonia indiscutível neste aspecto. Portanto, a participação do futebol gaúcho foi bastante periférica na história do futebol brasileiro até os anos cinqüentas, e deveu-se mais à aparição de poucos jogadores que, depois de terem algum destaque, eram transferidos para os grandes clubes do centro do país.

Em 1934, o zagueiro Luiz Luz, do Americano de Porto Alegre (clube já extinto) disputou os dois jogos que a Seleção realizou na Copa da Itália. Na década dos quarentas, Sílvio Pirilo, formado no Internacional, mas já no Flamengo, participou do Sul-Americano de 1942. Somente em 1944 foi convocado Tesourinha, talvez o maior ídolo da história do Internacional. Fazendo parte de uma grande equipe, o lendário Rolo Compressor, o ponteiro-direito jogou 23 vezes pela Seleção até 1950. Foi escolhido o melhor jogador do Sul-Americano de 1945, e em 1948 foi o “Melhoral dos Craques Brasileiros”, num concurso com participação das torcidas. Neste mesmo ano transferiu-se para o Vasco da Gama, integrando o famoso “Expresso da Vitória”, base da Seleção que jogaria a Copa de 1950. Uma lesão impediu seu chamamento para a Seleção, mas outros dois jogadores do Internacional, Nena e Adãozinho, atuaram em algumas partidas e ficaram na reserva durante o Mundial. Depois disto, apenas em 1958 o gaúcho Oreco, do Corinthians, foi convocado para a reserva de Nílton Santos.

Nas Copas do Mundo seguintes não foi melhor a participação de gaúchos na Seleção. No bicampeonato de 1962 foi levado no elenco apenas jogadores do Rio e de São Paulo. Na Copas da Inglaterra de 1966, os únicos jogadores de fora destes estados foram Tostão do Cruzeiro e Alcindo do Grêmio, que se confundiram no fracasso geral da Seleção. Assim, a participação de jogadores do sul era muito discreta (VOGEL, 1982, p. 99). Em contrapartida a esta condição – que os aficionados ao futebol gaúcho atribuíam ao desconhecimento da imprensa e dos dirigentes do centro do país – o Rio Grande do Sul apresentava um bom retrospecto no embate com os vizinhos platinos, proporcionalmente até maior que os clubes de Rio e São Paulo, ou mesmo da Seleção Brasileira. Foi considerada uma jornada “gloriosa” o empate do Internacional de 1 a 1 em 1951 com a Seleção Uruguaia Campeã de 1950 em pleno Estádio Centenário!

A maior conquista gaúcha, no entanto, viria no Campeonato Pan-Americano de 1956, realizado no México. Com base no elenco do Internacional, os gaúchos vestiram as cores da Seleção Brasileira e ganharam o campeonato com vitórias sobre Chile, Peru, México e Costa Rica, ganhando o título num empate com a Seleção Argentina. Na outra edição do Pan-Americano em 1960, agora na Costa Rica, o Brasil também foi representado por uma Seleção Gaúcha; mesmo não tendo uma campanha tão exitosa, trouxe o consolo de ter vencido a Argentina, uma Seleção que usualmente tinha vantagens dobre o Brasil em torneios continentais. Finalmente, em 1966, durante os preparativos da Seleção Brasileira para a Copa, uma Seleção Gaúcha ganhou a Taça O’ Higgins disputada com o Chile em Santiago. De alguma forma, o futebol da periferia se inscrevia numa trajetória de conquistas nacionais.

4. O futebol do Rio Grande antes e depois da Copa de 1970

Duas novidades marcaram o período entre as Copas da Inglaterra e do México. A primeira ocorreu ainda em1966, quando ocorreu uma quebra na hegemonia de Rio e São Paulo no futebol brasileiro: o poderoso Santos, Pentacampeão da Taça Brasil foi derrotado pelo Cruzeiro, que apresentou algumas novas estrelas – Tostão, Dirceu Lopes e Wilson Piazza – para o cenário nacional. A segunda foi a ampliação do torneio Roberto Gomes Pedrosa – também chamado Rio-São Paulo – incluindo Atlético e Cruzeiro de Minas, os gaúchos Grêmio e Internacional, mais o Ferroviário, campeão paranaense daquele ano.

Neste torneio, que foi chamado “Robertão”, que seria o embrião do futuro campeonato brasileiro, houve um ótimo desempenho dos clubes sulinos, com o Internacional em segundo e o Grêmio em quarto lugares. Somou-se a isto um fato novo: como o Estádio Olímpico de Grêmio foi o único usado no certame, e os dois clubes gaúchos fizeram um “caixa único” para administrar as receitas, pela primeira vez houve uma torcida “Gre-Nal”, que comparecia aos jogos dos dois clubes e os apoiavam sempre contra os times de fora; e eram grandes públicos, pois equipes importantes de Rio e São Paulo raramente jogavam em Porto Alegre, quase sempre partidas amistosas.

Além de ser uma forma de melhor equiparar as forças locais com os grandes clubes do centro, o campeonato permitiu uma exibição de jogadores de fora do eixo Rio-São Paulo, mudando muito as possibilidades de serem chamados; em contrapartida, também dava aos estados periféricos a oportunidade de criticar os critérios usados para as convocações para a Seleção Brasileira, e a eventual discussão da justiça ou não deles. Em 1968, o Internacional repetiria o vice-campeonato do “Robertão”, agora renomeado Taça de Prata, e assumido como o mais importante do país (havia incorporado os campeões da Bahia e Pernambuco).

A partir desta nova realidade, atletas de Minas e do Rio Grande passaram a ser chamados para jogos amistosos ou para torneios disputados com os países vizinhos: os gremistas Alberto, Alcindo, Everaldo e Volmir, e os colorados Sadi e Scala foram alguns destes nomes.

Em 1969 foi escolhido como técnico da Seleção o jornalista esportivo João Saldanha, um homem polêmico, de opiniões fortes, e que se dispôs a fazer do esquadrão nacional um time de “feras”, que não temesse nenhum adversário. Iniciava-se o período mais violento da ditadura militar; no entanto, era tão importante uma arrancada forte para a Copa de 1970, que mesmo o notório fato de Saldanha pertencer ao Partido Comunista Brasileiro impediu que ele tivesse o comando da Seleção, e que não tivesse qualquer censura às suas opiniões . Entre as Feras de Saldanha, como foram chamados os jogadores convocados para as Eliminatórias estavam como reservas o lateral-esquerdo Everaldo do Grêmio e o zagueiro-central Scala do Internacional. A província da estremadura estava em paz!

Ao sucesso da classificação brilhante para a Copa, seguiu-se no início de 1970 uma fase de baixo rendimento da Seleção, e as críticas foram rebatidas por Saldanha com explicações confusas, culminando com a informação de que os maiores astros do time, Pelé e Tostão, não poderiam disputar o Mundial . Pareceu oportuno livrar-se de um treinador tão personalista e polêmico, e ele foi substituído por Zagallo, que tinha sido um discreto, mas muito eficiente jogador das Copas de 1958 e 1962, e que iniciava uma carreira bem sucedida como técnico do Botafogo. Com algumas mudanças que seriam importantes para a conquista da Copa de 1970, seguiu no esquadrão convocado o atleta Everaldo, único representante gaúcho devido a uma lesão grave de Scala.

O lateral Everaldo foi titular em todos os jogos da Copa, escalado aparentemente porque Marco Antônio estaria muito ansioso na véspera da estréia. Sem ser um jogador notável, ele contribuiu para a conquista do Mundial sem comprometer em nenhuma partida. Tratado como “herói” pela conquista do Tri, Everaldo foi titular em nove jogos amistosos da Seleção e na conquista da Copa Roca, contra a Argentina, em 1971. Assim, sua não convocação para o Torneio da Independência de 1972, sequer para a reserva, foi sentida como uma humilhação para os rio-grandenses, gerando a grande crise que uniu o Rio Grande do Sul contra as decisões da CBD, revivendo dissidências do passado justamente quando a ditadura mais apregoava seu papel de condutora de um Brasil unido para o futuro!

5. A crise do Sesquicentenário

A crise da Taça Independência chegava num momento ímpar no futebol brasileiro. Pelé já fizera seu jogo de despedida da Seleção por vontade própria em 18 de julho de 1971 , saindo de cena o único atleta que era realmente uma unanimidade nacional. Outra novidade tinha sido a criação, a partir da Taça de Prata, do primeiro Campeonato Brasileiro, e o campeão foi o Atlético Mineiro. Era, pois, um momento de afirmação do futebol fora do eixo Rio-São Paulo. Ainda em 1971, o jogador Afonsinho do Botafogo foi suspenso pelo treinador Zagallo por recusar-se a cortar os cabelos longos e a barba; numa decisão inédita, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) concedeu-lhe passe livre (FLORENZANO, 1998). O futebol no Brasil já não podia negar algumas situações que tiravam seu caráter homogêneo e virtuoso.

Voltando ao caso Everaldo, dada a indignação geral e pouco disposto a um enfrentamento com o presidente da CBD Jean Havelange, Rubens Hoffmeister, presidente da Federação Gaúcha de Futebol (FGF), pensou em resolver a “desfeita” desafiando a Seleção Brasileira para enfrentar a Seleção Gaúcha num jogo amistoso no Estádio da Beira-Rio. Depois de muitas negociações, foi aceita a realização da partida, “para lavar a honra”, como alardeou a imprensa. Este repto de início não satisfez a imprensa, que considerou a solução um “beija-mão prudente” da FGF, que não tinha coragem para uma ruptura com a CBD. Considerando já a realização do jogo, nem por isso se encerrariam os protestos, pois o descaso com o Rio Grande não fora sanado: “Joguemos contra o time de Zagallo, ganhemos dele se possível. Mas continuemos, dignamente, altivamente, a exigir que sejamos representados na seleção”.

Um dado interessante, é que nunca foi negada a superioridade de Rio e São Paulo, mas a comparação se fazia necessariamente com Minas, que tivera quatro jogadores chamados – Darío e Vantuir do Atlético, Dirceu Lopes e Piazza do Cruzeiro – enquanto o Rio Grande sequer tivera seu ídolo de 1970 . Por outro lado, já repercutia mal a ironia com que jornalistas do centro do país tratavam o episódio, no mais das vezes atribuindo-o a uma gabolice dos gaúchos; isto era apenas o início de uma “guerra na imprensa” que acompanharia todo o restante da crise .

Por seu turno, entrou na “guerra” o técnico Zagallo, criticando a imprensa gaúcha, especialmente por apoiar um jornalista como treinador da Seleção Gaúcha, Aparício Viana e Silva, “um desprestígio para a classe dos treinadores de futebol”. No entanto Aparício tinha muito prestígio no mundo futebolístico gaúcho do estado e fora “olheiro” de João Saldanha, o que “provava” o rancor de Zagalo contra o Rio Grande. Cada vez mais cresciam as animosidades: desde o momento em que a CBD e Zagalo “nosso espírito de brasilidade, foi declarada a guerra”, e que a partida deveria ser encarada “com fúria”.

Seguia a “guerra de imprensa”: noticiava-se no centro do país que a Seleção seria objeto de hostilidades, dentro e fora do campo. A resposta viria com ironia, aludindo ao temor que teriam os jogadores ao “futebol-força” dos gaúchos; qualquer “arranhão mais profundo numa das canelas tão preciosas da moçada da CBD” seria vista como prova da “falta de brasilidade”. Acendiam-se as velhas questões sobre a identidade “acastelhanada” do Rio Grande, o “menos brasileiro” dos estados. Por outro lado, apesar de negarem ânimos revanchistas, os jogadores gaúchos negavam qualquer caráter amistoso para a partida, prometiam muito empenho: “Nós vamos dar tudo em matéria de futebol” disse Torino; “Não haverá jogo de compadres” afirmou Espinosa; “Vamos jogar para ganhar mesmo” repetia Claudiomiro; “Vamos é jogar e não treinar” finalizava Carbone. A imprensa também já via o jogo “esquentando”, tudo que a FGF e a CBD não queriam. Não haveria o “jogo de compadres”!

A provocação seguinte, tanto dos homens da CBD, como de setores da imprensa carioca e paulista, foi criticar a presença de estrangeiros na Seleção Gaúcha, que passou a ser tratada como “combinado sul-americano”. Esta seria mais uma confirmação da “falta de brasilidade” do Rio Grande, que foi respondida com ironia pelo treinador Aparício afirmando seu time era uma Seleção Gaúcha, visto que “o uruguaio Ancheta e o argentino Oberti são gaúchos dos pampas.” Tentando amenizar os ânimos, o supervisor Antônio dos Passos da CBD opinou que os gaúchos iriam também “aplaudir a Seleção Brasileira quando ela merecer”, mesmo que torcessem pela sua equipe.

Era muito tarde! Se as opiniões na imprensa sempre foram de respeito ao elenco da Seleção Brasileira, pois “os jogadores, que nada têm com os outros acontecimentos, estão a nos merecer o maior carinho e fraternidade”, em relação aos “cartolas” da FGF e da CBD, e à intromissão de políticos, a crônica esportiva gaúcha reiterava:

A pregação de guerra contra a CBD, especialmente à Comissão Técnica, pelo descaso ao futebol gaúcho, notadamente o tratamento indigno e mentiroso com que cercaram a desconvocação de Everaldo, foi um grito muito uníssono da Província.”.

As atitudes dos dirigentes eram atribuídas a interesses extra-futebol, e não eram perdoadas as desculpas pela “ofensa” ao futebol gaúcho, agora investido totalmente de representação do Rio Grande. Impossível recuperar o bordão: “Prá frente Brasil, salve a Seleção” da canção de Miguel Gustavo para a Copa de 1970! A emulação dada pela “guerra de imprensa” tirava qualquer possibilidade de considerar a partida apenas como um espetáculo; o que houve foi o “estado inteiro em torno de uma mesma equipe, os gaúchos magoados pela marginalização, a oportunidade de lavar a alma, o ressentimento, a raiva, o entusiasmo, a hora e a vez”.

6. PAREI AQUI

Caberia ressaltar algumas incidências da partida . O estádio Beira-Rio recebeu o maior público de sua história, ao redor de 110.000 pessoas, deixando para os cofres beneficentes uma renda de Cr$ 612.126,00. Quase todos eles – numa inédita união de colorados e gremistas – revelaram-se entusiasmados torcedores do selecionado “gaúcho”. Houve excessos cometidos contra catarinenses que tinham se deslocado para prestigiar a equipe nacional, incluindo a queima de algumas bandeiras do Brasil, notícias que obviamente a censura não permitiu que a imprensa divulgasse.

Na preliminar apresentou-se a seleção de amadores que se preparava para representar o Brasil nas Olimpíadas de Munich, em agosto do mesmo ano, enfrentando o mesmo Hamburg S.V., que tanto trabalho dera aos atletas principais em Belo Horizonte. Os jovens jogadores, que contavam no seu elenco com os “gaúchos” Falcão, Manoel e Pedrinho, do Internacional, mais Bolívar do Grêmio, foram muito aplaudidos na sua vitória de 4 x 1 sobre os alemães, não prenunciando a tensão que teria o jogo de fundo.

As equipes do Brasil e do Rio Grande do Sul entraram em campo formando duas alas, levando entre elas uma imensa bandeira brasileira. Vaias ensurdecedoras acompanharam a entrada dos jogadores e se sobrepuseram à execução do hino nacional. Depois de iniciada a partida, a cada vez que algum jogador da seleção brasileira estivesse de posse da bola, repetiam-se as vaias, e isto perdurou pelos noventa minutos de jogo. Atletas e membros da comissão técnica mostravam-se visivelmente tensos, como se realmente estivessem jogando no exterior.

E a seleção “gaúcha” havia prometido jogo para valer, não treino! Ainda no primeiro tempo o apoiador Tovar abria a contagem favoravelmente aos locais; o empate só viria no início do segundo tempo através de Jairzinho, que, ao invés da vibração tradicional, mostrou a camisa para as arquibancadas, provocando mais vaias. Desde então viu-se uma partida invulgar, do ponto de vista técnica e emocional: Carbone colocou mais uma vez o combinado Gre-Nal em vantagem, e o Brasil mais uma vez empatou através de Paulo César Lima; Claudiomiro marcaria o terceiro gol dos “gaúchos”, e Rivelino estabeleceria o placar definitivo de 3 x 3.

O Brasil formou com: Leão (Sérgio na segunda etapa); Zé Maria, Brito, Vantuir e Marco Antônio; Clodoaldo, Piazza e Rivelino; Jairzinho, Leivinha e Paulo César. O combinado local se apresentou com: Schneider; Espinosa, Figueroa, Ancheta e Everaldo; Carbone, Tovar e Torino; Valdomiro, Claudiomiro e Oberti (mais tarde Mazinho). O chileno Figueroa, o uruguaio Ancheta, o argentino Oberti, o paulista Carbone e o catarinense Valdomiro tiveram atuação destacada, foram valorosos e desassombrados, dignos das melhores tradições “gaúchas”.

Depois da catarse, a ressaca, de ambos os lados. O empate realmente mostrara aos visitantes a injustiça cometida contra os da terra e impediria novos desmandos? Ou apenas servira para liberar uma raiva contida, incapaz de manifestar-se em outros canais? Luiz Fernando Veríssimo, numa crônica intitulada Insensatez, assim analisou o dia seguinte da tão esperada desforra:

“(...) Mas a questão não é essa, dirá o leitor mais afrontado. Mostramos ao Zagalo que o futebol gaúcho não pode ser desprezado. E eu respondo que não mostramos ao Zagalo nada e que o futebol gaúcho tanto pode que continua desprezado. O próprio jogo foi um gesto de desprezo. Vieram aqui nos acalmar, mandaram o circo para distrair os nativos, nos trataram – merecidamente – com a paternal condescendência que todo o provinciano recebe da corte, e pronto. O que vamos fazer agora, pedir revanche? O mal do protesto passional é que suas razões se extinguem quando termina a paixão. E todas as legítimas perguntas que se poderia fazer sobre os critérios de convocação e as contradições do Zagalo serão, de agora em diante, anticlimáticas. O clímax foi o jogo de sábado. A província teve o seu dia de circo, agora que se acalme...” .

Por outro lado, as gentes da seleção brasileira não esconderam a perplexidade ante tamanha rejeição dentro do próprio Brasil. Além disto, o empate com um combinado de jogadores de dois clubes ainda não afirmados com títulos nacionais, se não punha em cheque a imagem superlativa que a seleção tinha de si mesma, era um sinal de alerta, não para a previsível Taça da Independência, mas para o Mundial da Alemanha que se avizinhava. Predominou, no entanto, o parecer de que, mais do que problemas de natureza futebolística, razões de ordem emocional tinham impedido o escrete de ministrar suas consagradas lições de futebol. Neste sentido, é expressiva a opinião de Luís Mendes, narrador para a Rede Brasileira de Televisão, logo após o encerramento do jogo:

“(...) Achei uma atitude antidesportiva e antibrasileira do povo do Rio Grande do Sul, vaiar o selecionado brasileiro que afinal, trouxe-nos o tricampeonato mundial. A atitude de Jairzinho mostrando a camisa para o público, depois do gol de empate, foi muito justa, pois ninguém teve consideração para com os nossos tricampeões que lutaram no México, em defesa das cores nacionais. Meus pêsames ao mundo esportivo gaúcho, pela atitude antipática em vaiar a Seleção. Não fosse os apupos dessa massa, o selecionado do Brasil teria ganho tranqüilamente desse combinado sulamericano, que digo e repito, é fraquinho.” .

O feitiço planejado por Hoffmeister virava-se contra ele mesmo: sem ter o reconhecimento que merecia seu futebol, o Rio Grande desafiara o poderoso Brasil para mostrar que seus jogadores eram dignos do escrete nacional; ao cumprir com empenho o repto que tinha feito, os rio-grandenses mais do que nunca mostravam-se estranhos aos demais brasileiros.

Ocorreram as esperadas queixas de maus tratos, que foram muito exageradas. Uma maçã atirada sobre o banco onde estavam os homens da CBD – um fato por demais corriqueiro em partidas de futebol – serviu para recrudescer aquela idéia estereotipada sobre o futebol “gaúcho”: agora, além de jogadores duros e violentos, havia uma torcida também violenta e antipatriótica. O comentarista Lauro Quadros assim comentou o que lhe parecia uma estratégia dos “cartolas” para justificar o empate:

“(...) Sentindo que iriam cair do cavalo, começaram a bolar uma saída. Qual? A hostilidade dos gaúchos. E começaram a torcer para serem apedrejados. Seria o pretexto, a salvação. A maçã (fruto do pecado), que acertou Antônio do Passo, ganhou outras formas e proporções: pedradas, garrafadas e não sei que mais. Foi o que disseram e escreveram os brasileiros do centro. Até – e principalmente – alguns cronistas de berço rio-grandense, puxa-sacos, fazedores de média(...)”

O desafio para resolver a “crise” não proporcionara, à primeira vista, qualquer melhora no reconhecimento pelos futebolistas do centro do país em relação aos rio-grandenses.


7.Conclusão

O futebol do Rio Grande do Sul se afirmaria com as conquistas dos seus clubes: o Grêmio com três Copas do Brasil, duas vezes Campeão Nacional, duas vezes Campeão da Libertadores das Américas e uma vez Campeão Mundial Interclubes; o Internacional com três campeonatos nacionais, uma Copa do Brasil e, representando o Brasil, trouxe a medalha de prata dos Jogos Olímpicos de Los Angeles; e até o Esporte Clube Juventude, de Caxias do Sul, ganhou sua Copa do Brasil. Isto, no entanto, não se refletiu num maior reconhecimento pelos especialistas em futebol do centro do país, ou num crescimento significativo da participação de “gaúchos” na Seleção.

No Mundial de 1974, dirigidos pelo mesmo Zagalo, estiveram Paulo César Carpegiani e Valdomiro, sem muito destaque numa campanha obscura da Seleção. Na Copa de 1978, o representante “gaúcho” foi Batista, do Internacional; Falcão, maior jogador do mesmo clube, não foi chamado. Em 1982, na Copa da Espanha, Edvaldo do Internacional e Paulo Isidoro do Grêmio foram convocados, mas como suplentes. O segundo Mundial realizado no México, em 1986, teve o tumultuado corte de Renato Portaluppi, do Grêmio, último atleta a ser convocado para um Mundial jogando em clube rio-grandense.

Em 1990, na Itália, no selecionado que contou com maior número de “gaúchos” – se bem que a maioria deles já afastados dos clubes de origem – o fracasso foi identificado com um deles, o apoiador Dunga, de estilo voluntarioso e pouca brilhatura técnica. Em 1994, o mesmo Dunga, mais Taffarel e Branco, seriam heróis do tetracampeonato, numa equipe cujo futebol objetivo e sério foi contestada por muitos esportistas como pouco representativa do “futebol-arte” brasileiro. Dunga, Taffarel e Emerson foram os “gaúchos” no Mundial perdido para a França em 1998, todos atuando fora do país.

As mágoas se referem a “injustiças” cometidas contra outros tantos jogadores, referidas a priori ao descaso com atletas e clubes do Rio Grande do Sul, mesmo nos momentos em que o futebol “gaúcho” se destacava. O caso de Falcão, em 1978, foi emblemático: não relacionado para a Seleção, havia sido bicampeão brasileiro pelo Internacional na grande equipe de 1975-76, que contribuía apenas com o esforçado Batista. Mais tarde, Falcão assombraria o país – no Campeonato Nacional mais uma vez vencido pelo Internacional em 1979 – e a Europa – conquistando o campeonato italiano para a Roma. Também o corte de Renato por discutíveis motivos disciplinares – que não afetaram outros atletas do centro do país – provocou reações inconformadas no estado.

Mais que isto, paira a idéia de que mesmo as grandes equipes que se formam no Rio Grande são contestadas, não se reconhecendo nelas o estilo brasileiro. Ao Internacional, tricampeão nos anos 70, atribuía-se um inegável preparo físico, disciplina tática e conjunto, mas eram discutidas as condições técnicas dos seus jogadores. O Grêmio, campeão da Libertadores e Mundial, nunca foi festejado como uma equipe excepcional. Em especial, o elenco gremista, ganhador de vários títulos nos anos 90 contra times tidos por imbatíveis em Rio e São Paulo, era tido como a antítese do futebol brasileiro, fato de alguma forma incorporado pelos gremistas e rio-grandenses em geral. E esta equipe “gaúcha” era formada principalmente por jogadores de fora do estado – Adilson, Dinho, Goiano, Jardel, Paulo Nunes – além dos paraguaio Arce e Rivarola.

Por que, então a “crise” deu-se especificamente em 1972, se as afrontas ao futebol “gaúcho” permanecem? Provavelmente pelo momento político que vivia o país, quando a ditadura militar impedia quaisquer manifestações políticas de desagrado com o regime, incluídas aqui as reivindicações de caráter regional. O Rio Grande tivera, onze anos antes, sua última grande demonstração política na campanha da Legalidade, liderada pelo então governador Leonel Brizola, para assegurar a posse do vice-presidente João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. Desde o golpe de 1964, sucederam-se no estado governadores nomeados pelo governo militar, obedientes e servis às determinações do Planalto, aceitando de bom grado os novos termos da política econômica que destinavam para o Rio Grande o papel de produtor de grãos para a exportação.

As manifestações de “identidade” rio-grandense tinham que ser construídas noutros espaços que não políticos. Não por acaso, simultaneamente à transformação das antigas propriedades pecuárias – gênese por excelência da mitologia do gaúcho – em imensas lavouras mecanizadas, houve a partir da década de 70 uma enorme revalorização do folclore, com festivais de música “nativa” brotando por todo o Rio Grande do Sul. O desaparecimento do gaúcho se acompanhava de uma incrível “nostalgia” deste gaúcho, dando “identidade” a uma população fundamentalmente urbana que tinha muito poucas semelhanças com o antigo modo de ser dos habitantes do campo.

O deslocamento dos eventuais antagonismos e descontentamentos para o futebol fazia sentido nesta conjuntura em que a noção de nacionalidade era transferida para uma Seleção campeã, símbolo de todos os sucessos do “milagre brasileiro”, síntese das palavras de ordem ufanistas que identificavam o futuro aqui e agora. O Rio Grande, ao qual se negara o pertencimento a esta pátria vencedora, ia uma vez mais para a guerra contra a Corte, ali no terreno em que melhor se consolidava a imagem da nação. Contra a “pátria de chuteiras” de Nelson Rodrigues, erguia-se a “província de chuteiras”!

Notas de Rodapé:

* cguazza@terra.com.br Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Associado 3 do Departamento de História e do PPG em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.


1. Havia uma razão para a excepcionalidade: seu reserva, Moacir, também era negro!

2. O famoso “bordão” de propaganda da ditadura “Ninguém segura este país!” teria sido uma criação do próprio Médici vibrando com uma vitória brasileira. Havia também controvérsias sobre intromissões do Presidente nos treinamentos que foram negadas sempre pelo então treinador João Saldanha, e que jamais foram confirmadas.

3. Simbolicamente a final da Copa Independência foi disputada por Brasil e Portugal! Venceu o Brasil...

4. São citados como mais antigos os campeonatos paulista, baiano e carioca; eles, no entanto, restringiam-se às capitais, enquanto o do Rio Grande do Sul envolvia todas as regiões.

5. A crônica esportiva menciona que a primeira partida de futebol no país foi disputada em 14 de abril de 1895 por ingleses da São Paulo Railway contra os da Companhia de Gás, promovida pelo introdutor do esporte no Brasil, Charles Miller, ele próprio descendente de ingleses. Clubes que atualmente se dedicam ao futebol, como o Flamengo e o Vasco da Gama, são anteriores ao Rio Grande, mas na época dedicavam-se apenas às regatas.


6. O turnen foi criado por Friedrich Jahn no início do século XIX, e já era praticado em escolas da região de colonização alemã no Rio Grande do Sul desde 1852.

7. Era o único torneio nacional de clubes: criado em 1959, era disputado pelos campeões estaduais, na forma de eliminatórias progressivas de dois a dois, até chegar-se aos finalistas.

8. Perguntado numa entrevista coletiva sobre o desejo do Presidente Médici de que o centroavante Darío, do Atlético Mineiro, fosse convocado, Saldanha respondeu de forma enérgica: “O Presidente escala o seu Ministério e eu escalo a Seleção!” (Há muitos documentários que mostram a gravação desta entrevista para as câmaras de televisão de diversas emissoras.)

9. Tostão recuperava-se lentamente de uma cirurgia para descolamento de retina, e Pelé teria, segundo Saldanha, dificuldades para enxergar bem em jogos noturnos.

10. Para o acompanhamento desta “crise” foi escolhido o extinto jornal Folha da Manhã, que na época reunia os principais jornalistas esportivos. Foram usados apenas textos colunas assinados; os colunistas usados foram Amaro Júnior, Antônio Carlos Porto, Lauro Quadros, Nilo Vaz e Luiz Fernando Veríssimo.

11. Pelé pararia de jogar no Santos em 20 de outubro de 1974. Mas no ano seguinte seria contratado pelo recém criado Cosmos de Nova Iorque, que se propunha a divulgar o Soccer nos Estados Unidos.

12. FOLHA DA MANHÃ. Folha Esportiva. Porto Alegre: Ano III, nº. 780, 13/6/72, p.23.

13. Id Ibid. p. 15.

14. Id nº. 782, 14/6/72, p.15.
15.Id ibid. p. 23.
16.Id, nº. 783, 15/6/72, p.14.
17.Id, nº. 783, 15/6/72, p.21.
18.Id, nº. 780, 13/6/72, p.23.
19.Id, nº. 782, 14/6/72, p.16-17.
20.Id, nº. 783, 15/6/72, p.14.
21.Jogariam o argentino Oberti e o uruguaio Ancheta, do Grêmio, e o chileno Figueroa, do Intenacional.
22.FOLHA DA MANHÃ. Folha Esportiva. Porto Alegre: Ano III n.º 784, 16/6/72, p.15
23.Id, nº. 785, 17/6/72, p.18
24.Id, ibid. p.23.
25.Id, ibid. p.15.
26.Id, n.º 786, 19/6/72, p.28. Alguns dados foram obtidos em PLACAR, 1986, op. cit., p.67.
27.Id., ibid., p.4.
28.Id., ibid., p.28.
29.Id., ibid., p.21.
30.DAMO, op. cit., p.107.

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