A CRISTOLOGIA DE ANTONIO MANZATTO (revelação, antropologia e literatura)
CHRISTOLOGY OF ANTONIO MANZATTO (revelation, anthropology and literature)
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Atualmente é professora titular no Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. E-mail: maria.agape@gmail.com
Resumo
Este texto tenciona considerar a obra de Manzatto a partir de um ponto de vista: a cristologia. Área maior da teologia cristã, é algo que não pode não estar presente quando se trata de analisar e comentar a obra de alguém que é antes de mais nada teólogo e assumido como tal. Tal é Antonio Manzatto, pioneiro em nosso país em fazer dialogar com a Teologia com a Literatura. Primeiramente, em uma seção introdutória, veremos como as duas disciplinas - Teologia e Literatura - interagem fecundamente; em seguida procuraremos ver como na obra de Manzatto a literatura é não apenas nem principalmente tema, mas método para o trabalho teológico; tomaremos após dois artigos do autor onde se volta mais especificamente para a cristologia, mostrando a importância da antropologia e da textualidade para que aconteça a revelação de Jesus Cristo como messias do texto. Finalmente, buscaremos concluir com a afirmação que o cruzamento da teologia com a ética e a estética a partir da cristologia é essencial para a identidade da mesma teologia. Esperamos então haver demonstrado como a obra de Manzatto contribui para que isso aconteça.
Palavras chave: teologia; literatura; teopoética; cristologia; texto; Antonio Manzatto
Abstract
This text intends to consider Manzatto’s work from a point of view: Christology. Larger area of Christian theology, it is something that cannot be absent when it comes to analyzing and commenting on the work of someone who is first of all a theologian and assumed as such. Such is Antonio Manzatto, a pioneer in our country in making theology and dialogue with literature. First, in an introductory section, we will see how the two disciplines - Theology and Literature - interact fruitfully; then we will try to see how, in Manzatto’s work, literature is not only or mainly a theme, but a method for theological work; we will take after two articles by the author where he turns more specifically to Christology, showing the importance of anthropology and textuality for the revelation of Jesus Christ to happen as the text’s messiah. Finally, we will try to conclude with the statement that the crossing of theology with ethics and aesthetics based on Christology is essential for the identity of the same theology. We then hope to have demonstrated how Manzatto’s work contributes to this.
Keywords: theology; literature; theopoetic; christology; text; Antonio Manzatto
Antonio Manzatto é pioneiro em muitas coisas. Talvez uma das mais importantes seja a iniciação do leitor brasileiro no diálogo entre teologia e literatura. Sua tese doutoral sobre a obra de Jorge Amado lida a partir da teologia é um marco na caminhada teopoética e teoliterária do país e do continente.
Neste artigo tentaremos considerar a obra de Manzatto a partir de um ponto de vista: a cristologia. Área maior da teologia cristã, é algo que não pode não estar presente quando se trata de analisar e comentar a obra de alguém que é antes de mais nada teólogo e assumido como tal.
Primeiramente, em uma seção introdutória, veremos como as duas disciplinas interagem fecundamente; em seguida procuraremos ver como na obra de Manzatto a literatura é não apenas nem principalmente tema, mas método para o trabalho teológico; tomaremos após dois artigos do autor onde se volta mais especificamente para a cristologia, mostrando a importância da antropologia e da textualidade para que aconteça a revelação de Jesus Cristo como messias do texto. Finalmente, buscaremos concluir com a afirmação que o cruzamento da teologia com a ética e a estética a partir da cristologia é essencial para a identidade da mesma teologia. E como a obra de Manzatto contribui para que isso aconteça.
Lex orandi, lex credendi, lex vivendi
O poeta, pastor e teólogo estadunidense Amos Wilder diz que “Antes da mensagem deve haver a visão; antes do sermão, o hino; antes da prosa, o poema”. Essa afirmação fala da importância de recuperar o simbólico, o imaginativo, o afetivo, ou seja, tudo que não é estritamente racional para que a teologia hoje ainda possa dizer algo aos seres humanos em sua sede de Deus. Assim fazendo torna-se possível resgatar uma experiência do mistério divino que a todo instante se aproxima da existência humana propondo vida plena e amorosa comunhão1.
Não estará com isso a teologia inventando nada novo. Desde o início do Cristianismo, assim aconteceu. A liturgia sempre precedeu a formulação e a elaboração das verdades da fé. O que foi rezado, louvado, cantado, expressado nas celebrações cúlticas das catacumbas dos primeiros séculos foi o material com o qual os padres da igreja puderam elaborar seus escritos e lançar as bases de uma dogmática que consiste até os dias de hoje no conteúdo da fé professada. A liturgia é a primeira instancia da tradição, a que se segue imediatamente a escritura, ao mesmo tempo em que esta precede aquela (BENTUE, 1995).
O louvor, a celebração, o canto, os rituais não são acessórios na vida crista, mas a fundação mesma da identidade desta. A liturgia e o rito revelam aquilo em que realmente a fé crê e professa, e visibiliza para o mundo a relação do ser humano com Deus e com o mundo. O modo como a Igreja louva, celebra e canta deve ser um testemunho profético da verdade que professa. A estética, a beleza, as gratuidades atraem para a Beleza maior e infinita d’Aquele que é o centro da vida.
Portanto, retorna aqui a máxima Lex Orandi Lex Credendi, o “ leitmotiv” que significa que é a oração que leva à fé, ou melhor dito, é a liturgia que conduz à teologia. Este é um antigo princípio cristão que está no fundamento da elaboração dos primitivos “ Credos” ou “ Símbolos da fé” e é igualmente um antigo cânon da Escritura que contem em muitas de suas passagens extratos litúrgicos. Na Igreja Primitiva havia tradição litúrgica antes do credo e da doutrina. E estas tradições litúrgicas proveem o marco teológico para estabelecer os credos e o cânon2. A frase latina (Lex orandi, lex credendi) algumas vezes mesmo expandiu-se tornando-se Lex orandi, lex credendi, lex vivendi, aprofundando aí as implicações desta verdade: a maneira pela qual celebramos reflete aquilo que cremos e determina como vivemos (BECHAUSER, 2020).
Partindo portando daí aparece com clareza que a teologia está chamada, em nossos dias a rever radicalmente suas formas de expressão. O desafio posto é o de encontrar novas formas de expressão que carreguem dentro a verdade de uma das mais fundamentais expressões da antropologia teológica, aquela que Karl Rahner chamou de “contínua autotranscedência” referindo-se ao ser humano criatura de Deus (RAHNER, 1989, pp. 37-51). Essas novas formas de expressão seguramente carregarão consigo novas linguagens. Essas serão a da religião e da liturgia, mas também e não menos a da poesia, da arte, da literatura, da música e de todas as outras formas estéticas que a humanidade inventou em sua história de muitos milhares e mesmo milhões de anos.
Uma das características do ser humano, uma das “constantes” que aparece em sua identidade constitutiva é este dom de passar além do sensorial e aceder ao espiritual. Aqui entendemos por “espiritual” tudo aquilo que direta ou indiretamente se encontra conectado com o espirito, com aquela dimensão humana que passa além dos cinco sentidos. Está incluída aí a estética sob as suas diversas formas. E também a religião. O espirito informa e conforma a corporeidade e faz com que, ainda em palavras de Rahner, o ser humano seja o a priori transcendental da Revelação, significando isso o terreno fértil e propicio para que a Palavra que não tem origem manipulável e direta, mas vem de uma não origem, de mais longe do que um palpável começo encontre morada e acolhida.
A consequência disso é que a maneira concreta de falar da Transcendência que nos desafia e nos habita, nos encanta e nos eleva, nos carrega a profundidades insuspeitadas e batiza nossos sentidos aponta para uma linguagem que, tocando os limites do criado leva a perceber que o segredo escondido nele e para além dele, é um Mistério. Mistério esse que desde a fé chamamos “Deus”3.
Para falar deste mistério, há que passar pela linguagem conceitual, rigorosa e acadêmica, mas não necessariamente deter-se indefinidamente nela. Conceitos e enunciados são importantes e pertinentes, mas as tradições teológicas ocidentais e orientais, os místicos e profetas de todos os tempos nos dizem que há mais possibilidades, sempre abertas, de propor o discurso teológico. “Ha maneiras de falar de Deus mais poéticas, evocativas, empatizantes, performativas, implicantes, esperançadas...que movem mais o leitor que a simples “passividade” assimilativa...” (ALBA, 1994, p. 621).
Já o grande hermeneuta francês Paul Ricoeur dizia praticamente a mesma coisa ao afirmar que uma vez que o texto é algo vivo, ao sair do autor e do primeiro leitor percorre o mundo, sendo reescrito e reinventado. Chega Ricoeur aí à conclusão que o poético é a maneira mais adequada, ou pelo menos primigênia para falar de Deus (RICOEUR, 1976, pp. 489-508). Esse poético, no entanto, não faz a teologia alienar-se em uma beleza descomprometida com a realidade, mas se torna “teo-praxis”. Mais precisamente ainda, uma “teo-poietica”.4
Há momentos e situações em que para entrar em contato com o Mistério que o habita sob a forma de desejo e sede, o ser humano recorre à linguagem poética para fazê-lo. Se ainda restassem duvidas, bastaria voltar-se para a Bíblia. Ali podem ser encontrados diversos gêneros literários. Paul Ricoeur vai advertir que através de todos estes gêneros e estilos, que são como um bordado multicor e complexo, passa um fio mais espesso, que é como uma medula vertebral, carregando uma revelação misteriosa e próxima: a revelação do mistério divino, personagem central do texto, “coisa” do texto (RICOEUR, 1977). E por trás do texto e dos gêneros, - profético, narrativo, prescritivo, sapiencial ou hínico, - palpita a experiência de Alguém que se esconde e se mostra através da palavra, da música, do canto. Alguém que é mais que palavra, que é pessoa que se deixa experimentar como mistério de encontro e amor.
Assim sucede no Novo Testamento, por exemplo. As parábolas de Jesus são consideradas poéticas por mais de um autor e comentador.5 Ao serem analisadas, estão sujeitas à discussão sobre se a estética deve ser considerada independente do autor.6 Mas no caso de Jesus, essa dissociação não procede. Suas parábolas são reflexo de seu mundo interior, de sua compreensão do Reino de Deus. Segundo J.D. Crossan, “ a obra de arte e a objetivação final da intuição poética, o que a obra aspira, em última instancia, é transmitir a alma dos outros e essa intuição poética que estava na alma do poeta” (CROSSAN, 1973, p.22). Assim acontece com Jesus que toma elementos de seu contexto vital, com sua visão inspirada pelo Espirito Santo e transmite sua experiência de Deus aos discípulos e aos que o seguem. Dessa forma, sua sensibilidade e sua profunda ligação e compromisso com a experiência que faz ao lado de sua criatividade e observação da realidade o levam a compreender e transmitir o que considera como mais importante: seu amor ao Pai e seu projeto do Reino. Por isso, sua fantasia criadora, sua imaginação inspirada, as parábolas que narra são determinantes para o sentido que comunica (CROSSAM, 1973, p.22).
O diálogo entre teologia e literatura, no entanto, apesar de todo o crescimento que vem conhecendo, ainda não é algo tranquilo e isento de problemas para muitos. Mesmo depois de muitos anos de relacionamento entre teologia e literatura, ainda pairam questões sobre a utilidade ou necessidade, ao menos para a teologia, de tal tipo de aproximação. Não bastassem os problemas epistemológicos, surgem outros mais tipicamente funcionais. Afinal, se a literatura interessa para a teologia, será como um meio de comunicação de suas ideias e convicções, dizem alguns, reduzindo a literatura à condição de “serva da teologia”. Assim batiza-se a literatura, subordinando-a à teologia e o diálogo torna-se impossível.
Antonio Manzatto critica a estes mas também a outros que, na direção oposta, exatamente por se oporem à confessionalidade ou à autoridade da Teologia, preferem confrontar a literatura com a religião em geral, trazendo ao diálogo não conceitos e pensamentos elaborados, mas algo como “um passeio pelos arredores da estética...“servindo-se” da literatura como forma de divulgar suas asserções e convicções, já que esta tem caráter profundamente missionário, com facilidade muito maior de comunicação que os discursos por demais racionalizados da teologia.” (MANZATTO, 2011, pp. 5-6).
O autor também propõe o seu método, que ele chama de antropológico e que, parece-nos, é a via que abre para fazer sua cristologia.
Antonio Manzatto: a literatura como meta-odos - caminho
Antonio Manzatto é um pioneiro do diálogo entre teologia e literatura no Brasil e mesmo na América Latina como um todo. Sua tese de doutorado concluída em Lovaina e depois publicada sobre o diálogo da teologia com a obra de Jorge Amado (MANZATTO, 1994) introduziu a temática deste diálogo, usando como mediação entre ambas disciplinas a antropologia.
O autor trabalhou por algum tempo na aproximação entre teologia e literatura utilizando o que ficou conhecido como “método antropológico” (MANZATTO, 2011, pp. 5-6). Porém, em seu artigo “O messias do texto” deseja deixar claro o novo passo a enfrentar, ou seja, a questão epistemológica da teologia que se elabora em relação com a literatura.
A pergunta posta pelo autor é a presença da literatura e no exercício da mesma na elaboração da reflexão teológica em si própria. Compreende aqui Manzatto que a teologia é um trabalho intelectual que exige o rigor, ou seja, “é um trabalho de exercício de crítica de racionalidade a partir e sobre as afirmações próprias da fé, na famosa compreensão da teologia como “fides quaerens intellectum”,7 ou naquela mais recente de “intellectus amoris”,8 e que leva em consideração a prática dos cristãos.
Tal questão – ainda segundo Manzatto - aparece nos campos da exegese, haja vista o número grande de obras que se dedica à reflexão sobre os gêneros literários na Bíblia, ou na Bíblia como literatura, etc.9 O interesse mais direto de Manzatto, no entanto, em seu artigo é enfocar-se na Teologia Sistemática e, dentro do conjunto da sistemática, em termos de Cristologia. É nesta área que o autor desenvolve sua reflexão, concretamente em torno do problema que relaciona o Jesus da história e o Cristo da fé.
Neste sentido o autor põe em relevo por ser pertinente e atual, o método histórico-crítico, embora reafirmando que este não é único no estudo dos textos bíblicos. Há outros, dentre os quais se destaca a exegese literária.10 Esta – segundo o autor – faz com que a literatura, mais do que influenciar diretamente o método e seus procedimentos, vai mais profundamente, refazendo de certo modo a epistemologia mesma. Isso acontecendo, faz alcançar a elaboração da compreensão do texto bíblico, fundante da fé.
O que Manzatto procura dizer, parece-nos, é que a exegese literária pretende ler os textos bíblicos não de uma forma ingênua, linear e fundamentalista, porém como aquilo que são, qual seja, textos construídos a partir de procedimentos escriturísticos e códigos especificamente literários, próprios e adequados para a elaboração propriamente dita. Aqui Manzatto segue seu mestre e diretor de tese Adolphe Gesché quanto à compreensão do que seja exegese literária. O grande teólogo Gesché que escreveu uma obra valiosíssima em vários volumes sobre os temas básicos da teologia (GESCHÉ, 2004, pp. 112-113).
Trata-se de uma concepção de exegese que “não se preocupa com o que precede o texto em termos de história ou cultura, como faz a exegese-histórico- -crítica, nem se debruça sobre a história da transmissão do texto” (MANZATTO, 2011, pp. 5-6). Isto posto, não deixa de reconhecer que “tais métodos e procedimentos são necessários e, de certa forma, precedem a exegese literária na abordagem dos textos bíblicos. Esta, por sua vez, busca compreender o texto em sua imanência de texto literário. “Usa aqui nosso autor uma expressão utilizada pelo próprio Gesché, e desejando recalcar o fato de que o que se tem diante dos olhos, ao abordar o texto neotestamentário, é um “texto literário” e por isso seu estudo requer e exige técnicas de análise literária.
Cristologia e antropologia: dois polos inseparáveis
Começamos por concordar profundamente com Manzatto quando diz que diante da sempre presente questão cristológica sobre a diferença entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, há que elaborar uma cristologia que articule esses polos e não os separe nem os justaponha nem os dilua um no outro.
A reflexão cristológica hoje tende a não separar mais o Jesus Histórico do Cristo da fé, mas a articular o Jesus Histórico com o Senhor Exaltado, sendo esta síntese o Cristo da fé11. Os Evangelhos não seriam, portanto, simples biografias de Jesus, mas textos que expressam a fé da comunidade crente primitiva à luz do que se chama Ressurreição. Apesar disto, Manzatto reafirma também ser certo que” um núcleo histórico bastante antigo se encontra presente naqueles textos referindo-se à figura de Jesus de Nazaré“ (MANZATTO, 2011, pp. 5-6).
Nosso autor valoriza bastante a perspectiva histórica de Jesus, inclusive em sintonia com toda uma linha de pesquisa que se afirma mais e mais na teologia contemporânea, chamada “a volta ao Jesus Histórico”. Essa linha se faz presente sobretudo após o aparecimento do livro de John D. Crossan sobre o Jesus Histórico e a obra histórico-teológica de José Antonio Pagola (2011).
O que Manzatto pretende sublinhar aqui que há um viés antropológico que é necessário levar a sério para abordar a figura de Jesus, já que a mesma, embora seja objeto de fé e se situe dentro de uma confissão religiosa, possui muitos elementos históricos que são conhecidos e podem ser afirmados com precisão científica. Portanto, toda cristologia que minimize ou negligencie o aspecto visceralmente humano de Jesus de Nazaré em quem a comunidade eclesial reconhece e proclama o Cristo de Deus tem que estar plantado fortemente neste solo e vincular-se a esta raiz.
O autor põe em relevo então esta figura humana e histórica de Jesus situada em seu tempo e próxima dos grupos populares de então, lançando mão de seus códigos e sua linguagem para comunicar-se. É a partir desse povo mais simples e mais pobre que Jesus vai construir sua comunicação que posteriormente será apropriada por seus seguidores e posta por escrito pelos autores neo testamentários.
Por isso e por causa da seriedade que toma para a fé cristã e para a teologia cristã a historicidade de Jesus, constitutiva de sua humanidade, a teologia – e dentro dela a cristologia - tende a ser cada vez mais narrativa e não apenas especulativa. Sempre apoiado na obra de Adolphe Gesché, Manzatto aponta que a identidade narrativa de Jesus.
Pode ajudar a articular “o que se sabe da história de Jesus e o que a fé dele proclama, mesmo porque a história de Jesus nos é narrada pelos textos evangélicos e não é senão na sequência de tal narração que a fé fará sua construção dogmática, exatamente, relendo a história de Jesus.” (MANZATTO, 2011, p. 18).
A narrativa de Jesus vai apontando o caminho de sua identidade. E essa identidade será messiânica. Mas juntamente com o título de glória atribuído a Jesus pela comunidade estará a constatação simples e pobremente histórica de que este Jesus é aquele que viveu entre os mais pobres e simples anunciando-lhes a boa nova do Reino de Deus. E o autor chama a atenção para que, “independente do fato de esse ter sido o meio escolhido pelo Jesus histórico para desenvolver sua vida, a insistência dos Evangelhos na afirmação da presença e da proximidade com os pobres de seu tempo que Jesus tem quer afirmar sua messianidade vinda dos pobres e em favor deles“ (PALACIO, 1982). A Páscoa de Jesus confirmará essa identidade e será a base do kerigma primitivo que vê uma unidade inseparável entre o Messias Crucificado e Gloriosamente Ressuscitado.
Jesus Cristo: narrativa de Deus na história
Uma das coisas centrais em Jesus é a coerência de sua ação e discurso, centrados em dois polos: Deus Pai, seu Abba e o Reino desse Deus, de justiça, paz e igualdade para todos. O Novo Testamento mostra que Jesus de Nazaré utilizava para apresentar a seus ouvintes esses dois polos de sua identidade e atuação o enraizamento histórico e ao mesmo tempo recursos literários e ficcionais com os quais ilustrava suas histórias e parábolas.
Já o grande hermeneuta Paul Ricoeur afirmava: “a constituição da identidade narrativa, seja de uma pessoa individual, seja de uma comunidade histórica, era o lugar procurado da fusão entre história e ficção”. E continua: “não se tornam as vidas humanas mais legíveis quando são interpretadas em função das histórias que as pessoas contam a seu respeito? E estas “histórias da vida” não se tornam elas, por sua vez, mais inteligíveis, quando lhes são aplicados modelos narrativos?” 12.
O autor cita também Gabriel Garcia Marquez, ao dizer que a vida não é o que se viveu, mas o que se recorda do que se viveu para contar e narrar (MARQUEZ, 2002). Tanto Ricoeur como Garcia Marquez, a quem Manzatto recorre em sua reflexão, defendem que a narrativa não é informativa, mas sim performativa. Convoca o ouvinte e o leitor a situar-se, a posicionar-se e a interpretar-se. Em suma, a comprometer-se. E nesse movimento acontece a descoberta da própria identidade e da identidade do narrador, mas também do ouvinte ou leitor e do personagem narrado.
Por isso mesmo, toda narrativa é auto implicativa e nenhuma é inócua. Traz em seu bojo um ponto de vista, um contexto, uma situação humana que envolve o personagem e o receptor. Assim Jesus se dirigia a seus ouvintes trazendo situações de seu cotidiano, como o alimento, o cultivo, o clima, o trabalho, os sentimentos, as paixões. Narrando vai desdobrando o ponto de vista das situações por ele e eles vividas.
O autor chama a atenção como na teopoética latino-americana houve todo um movimento de narrar histórias desde a perspectiva dos vencidos, que a história oficial não contempla nem narra. Recorre uma vez mais à teologia de Gesché para elaborar a construção da identidade narrativa de Jesus no sentido de ressaltar a intermediação realizada pelo texto evangélico entre a história de Jesus de Nazaré e a profissão de fé da Igreja, ou seja, entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, em uma síntese complexa e feliz. O texto então não seria “nem relato historiográfico, nem compêndio de doutrina teológica, mas uma obra de narração que realça uma intriga, um enredo, exatamente como o faz qualquer obra literária” (MANZATTO, 2016, p. 46).
No Novo Testamento, Jesus é ao mesmo tempo o narrador e o conteúdo da narrativa. Narrando, narra a si mesmo Como diz Manzatto no artigo que citamos, “Jesus foi um autor talentoso na criação destes pequenos relatos, verdadeiro poeta do cotidiano”. E nessa afirmação o autor é corroborado por vários outros autores, como José Antonio Pagola, John Meier, David Crossan etc.
Nosso autor considera que essas histórias narradas por Jesus são o que permite à teologia fazer suas afirmações centrais com respeito ao Deus que ele chamava de Pai, portanto ao Deus de Israel e ao Abba da revelação cristã. Embora fragmentado o conteúdo das histórias narradas por Jesus, sobretudo em suas parábolas permite perceber um conjunto que delineia finalmente um perfil: o perfil do Pai, com seu amor gratuito e seu projeto do Reino de Deus.
Jesus é o narrador, mas o texto da narrativa que a nós chega não é o de Jesus, mas aquilo que seus narradores nos narraram do conjunto de sua narrativa. É assim que, a partir desta fonte da narrativa de Jesus a fé cristã pode proclamar que seu Deus é amoroso, misericordioso sem medida, solidário com os pobres e excluídos como pai e mãe amorosos, não atuando por mérito, mas por graça.
Em todas as narrativas está presente, ao fundo, mas eloquente, o Reino do qual as parábolas são metáforas. Toda essa identidade dinâmica de Deus revelada na narrativa de Jesus vai revelando sua pessoa como Messias, aquele que é portador da graça e da misericórdia infinita de Deus em favor de seu povo. Sendo Messias de Deus, a comunidade de fé tem acesso a seu messianismo pelo texto. Eis porque Manzatto intitula um dos artigos que aqui comentamos como “O Messias do texto”.
O texto é a mediação privilegiada e necessária entre história e narrativa e essa mediação é narrada e interpretada incessantemente convocando, interpelando, e fazendo com que a identificação entre ouvinte e narrador aconteçam.
Conclusão: uma cristologia ética e estética
Quando se reflete sobre a Teologia e o ministério do teólogo, se traz sempre de volta a velha questão da possibilidade de colocar em diálogo fé e razão. Porém, quando se trata de fazer uma hermenêutica da fé, a razão não reina absoluta. Divide seu espaço com outras disciplinas, tais como a mística e a espiritualidade,13 a literatura 14, a arte,15 a poesia16. Sem esquecer a ética e a política17 que no caso da teologia latino americana é parte constitutiva desse dialogo livre e plural. Tal questão pode encontrar uma provocação inicial na pergunta evangélica que os contemporâneos de Jesus fizeram sobre sua pessoa, ao ouvirem-no falar com um conhecimento e um “saber” diferente do “saber” dos filósofos e teólogos da época: os escribas e fariseus: “ De onde lhe vem o saber? “ (Mt 13,54)
Ao ouvir Jesus que ensinava com autoridade e que, assim fazendo, dava mostras de ser possuidor de um “saber” até então desconhecido, os sábios e doutores da época, assim como todos os que o ouviam, se questionavam sobre a origem desse saber que não conseguiam identificar, mas com o qual se identificavam profundamente. A cristologia de Antonio Manzatto mostra com clareza essa vocação de hermenêutica. E o teólogo é então um intérprete da tradição de um texto que vem de muito longe, um texto aberto e polifônico, multicor e pluritêxtil. Texto este que está inserido na corrente de uma tradição interpretativa e que o teólogo tem como função ou finalidade, interpretar. Interpretar aqui é mais do que simplesmente fazer a exegese do texto. O que o teólogo visa, no texto utilizado como espelho, é nem tanto interpretar o texto, quanto a vida; a vida das pessoas que leem o texto, nesta comunidade de interpretação que se constitui como Igreja ou como comunidade de escuta e palavra. Texto que nessa comunidade, interpretado pelo teólogo, não é simplesmente um texto antigo, mesmo que o seja, mas um texto atual. Ou um texto que, no seu anacronismo, se torna, sempre que proclamado, contemporâneo.18
Neste sentido um texto não anacrônico, mas catacrônico; não contemporâneo, mas extemporâneo, que se situa fora do tempo entendido como kronos. E para o teólogo cristão, isto é ainda mais forte, mais singular - e, para quem vê de fora, também mais estranho - no sentido de que todas as palavras do texto que compõem o tecido do texto bíblico, em Jesus Cristo se tornam “palavra”: a Palavra de Deus feita carne no tecido humano. Este que se fez carne no ventre de Maria e que a comunidade proclamou Senhor e Filho de Deus é Messias do texto que irá se revelando nos limites e contradições da história.
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Notas
[1] Cf. o que diz o próprio Amos Wilder em outro livro seu: Theopoetic: Theology and the Religious Imagination. Fortress Press. 1976, p 2: “Meu clamor por uma teopoética significa fazer mais justice ao papel do simbólico e do pré-racional na forma com que lidamos com a experiência.
[2] Cf sobre isso o ótimo estudo de Francisco Taborda, Lex Orandi Lex Credendi. Origem, Sentido e implicações de um axioma teológico, Perspectiva Teológica, 35 (2003) 71-86.
[3] A exigência de uma “fórmula breve” da fé cristã. Concilium - Revista Internacional de Teologia, vol 3, fsc 23, p. 62-73, mar. 1967: “Nós o chamamos Deus”.
[4] Luis Lago Alba, Gracio das Neves, R.M., “ Utopia y resistência. Hacia una teopoetica de la liberacion”, op. cit, 622.V. tb https://es.wikipedia.org/wiki/Poiesis acessado em 2020: Poiesis es un término griego que significa ‘creación’ o ‘producción’, derivado de ποιέω, ‘hacer’ o ‘crear’. Platón define en El banquete el término poiesis como «la causa que convierte cualquier cosa que consideremos de noser a ser». Se entiende por poiesis todo proceso creativo. Es una forma de conocimiento y también una forma lúdica: la expresión no excluye el juego… De esta palabra deriva el término «poesía». A menudo se utiliza como un sufijo, como en los términos de la biología hematopoyesis y eritropoyesis (la formación de células sanguíneas y la formación de glóbulos rojos respectivamente).
[5] V. por exemplo Jose Luis Espinel, Teopoetica de las parábolas de Jesus, Ciencia Tomista 111 (1984) 429-462 com ampla bibliografia. Ver ainda o grande livro de Jose Antonio Pagola, Jesus: aproximação histórica, Petrópolis, Vozes, 2010, esp capitulo V: Jesus poeta da compaixão de Deus.
[6] Cf resumo dessa discussão no artigo de Jose Luis Espinel acima citado, p 461
[7] A definição é de Santo Anselmo (1033-1109).
[8] . A expressão é de Jon Sobrino e, de alguma forma, influenciou a maneira de se fazer teologia na América Latina, sobretudo em tempos de Teologia da Libertação. Cf sobre isso nossa reflexão em Teologia latino-americana: raízes e ramos, Petrópolis, Vozes, 2017.
[9] Cf. por ex, entre outros, Antonio Magalhães,. Deus no Espelho das Palavras. Teologia e Literatura em Diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000, 213p.; MILES, Jack. Deus. Uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras,1997, 497p; Antonio Carlos Magalhães, A Bíblia como obra literária. Hermeneutica literária dos textos bíblicos em diálogo com a teologia, in Salma Ferraz et al.,orgs. Deuses em poéticas: estudos de literatura e teologia [online]. Belém: UEPA;Campina Grande: EDUEPB, 2008. 364 p. ISBN 978-85-7879-010-3. Available from SciELO Books
[10] Cf Antonio Manzatto, art. Cit. V. tb. Veja-se, por exemplo: Jean-Noël.Aletti, L’Art de raconter Jésus-Christ. Paris: Seuil, 1989. Jean-Noël Aletti, André Wenin, Françoise Mies. Bible et littérature. Bruxelles: Lessius, 1999. André Wenin Actualité des mythes. Namur: Cefoc, 1993, citados pelo autor no artigo supra citado.
[11] Cf. sobre isso Carlos Palácio, Cristianismo e história (São Paulo: Loyola, 1982; V. tb. nosso livro Jesus Cristo. Servo de Deus e Messias glorioso, SP, Paulinas, 2008.
[12] Paul Ricoeur. Temps et récit III. Le temps raconté. Paris: Seuil, 1985. Depois, em 1986 Ricoeur fez uma conferência que está na base de dois artigos, ambos com o título de “Identidade Narrativa”, e ambos publicados em 1988: um na revista Esprit, 7/8 (1988) pp. 295-304, e outro foi publicado na obra coletiva La narration. Quand le récit devient communication. Genebra: Labor et Fides, 1988, pp. 287-300.citado por Antonio Manzatto, em Identidade narrativa de Deus nas parábolas de Jesus, in Atualidade Teológica v. 22, n. 58, p. 43-61, jan./abr.2018, p 45
[13] Cf. as numerosas obras que tratam desse tema, comecando pela classica de Hans Urs von Balthasar, Teologia y Santidad, Verbum Caro… Cf. tambem Peter Casarella e George P. Schmer, eds, Christian Spirituality and the Culture of Modernity: The Thought of Louis Dupré , Michigan, Grand Rapids, (1998). Cf. igualmente a tese de Rodrigo Condeixa, Teologia e Espiritualidade. Do divorcio ao romance, Sao Paulo, Reflexao, 2015. E ainda Maria Clara Bingemer, O misterio e o mundo, Rio de Janeiro, Rocco, 2013. Johann Baptist Metz, Mistica de olhos abertos, Sao Paulo, Paulus, 2014.
[14] Cf. entre outros Jose Carlos Barcellos Literatura e teologia: perspectivas teorico-metodologicas no pensamento catolico contemporaneo, Numen: revista de estudos e pesquisa da religiao, 3, n. 2, 9-30; Mariangela de Andrade Paraizo , Literatura e Religiao: tracos e lacos, Horizonte, 10 n 25, (janeiro-marco 2012) 8-11; Rubem Alves, Variações sobre a vida e a morte ou o feitiço erótico-herético da teologia. São Paulo: Loyola, 2005; Alexander Nava, Wonder and exile in the new world, University Park, The Pensylvania State University Press, 2013; Maria Clara Bingemer, Literatura e Teologia, Petropolis, Vozes, 2015.
[15] Alejandro Garcia-Rivera, Wounded Innocence. Sketches for a Theology of Art, Collegeville, Minnesota, Liturgical Press, 2003; The community of the beautiful. A theological Aesthetics, Collegeville, Minn, Liturgical Press, 1999
[16] Aquira Osakabe, Porque a rosa é mística. Uma leitura da poesia de Adelia Prado, Revista de Critica Literaria Latinoamericana 24, 47 (1998) pp 77-85; Cheryl Walker, God and Elizabeth Bishop. Meditations on religion and poetry, NY, Palgrave Macmillan, 2005.
[17] David Treece, Explaining the Crisis: poetry and politics in post-war Brazil, Bulletin of Hispanic Studies, 67, 1 (Jan 1990)pp 77-99.
[18] Ulpiano Vazquez, O misterio de Deus e os limites do conhecimento, in Cadernos MAGIS de fe e cultura, RJ, 2004.