As Religiões Afro-brasileiras enquanto Objeto de Resistência

African-Brazilian Religions whilst a Resistance Object

Dra. Caroline Izidoro Marim  

Professora Colaboradora e Pós-Doutoranda PNPD/CAPES no PPG em Filosofia da PUCRS.

Arthur da Silva Pinto 

Mestrando em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Contato: silva.p.arthur@gmail.com


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Resumo

O presente artigo visa abordar a resistência afro- -brasileira diante do cenário democrático atual, a partir de sua cultura religiosa. Por razões de não existir uma única religião afro-brasileira, senão uma pluralidade de religiões afro-brasileiras, o artigo não visará contemplar cada uma, mas sim, tomar aspectos dessas religiosidades já sintetizados por pesquisas anteriores a fim de entrever a luta por reconhecimento de sua importância na sociedade brasileira. Para tanto, esta análise será feita em duas partes. Em um primeiro momento, buscar-se-á tomar elementos capitais de sua perspectiva de mundo e traçar um itinerário, começando com um pequeno estudo em forma de introdução acerca da história dos africanos e seus descendentes no Brasil, como também, seus grupos étnicos e estrutura social, enfocando em suas bases teóricas – ou seja, mitos e simbologia – acerca das quais se tem cada vez mais buscado sua relação direta com as concepções próprias da África. Depois, em um segundo momento, fundamentado na metodologia de pesquisa do artigo, descrever-se-á os dados atuais do censo, a fim de apresentar as perspectivas e as tendências sobre as práticas afro-brasileiras no cenário político do Brasil.

Palavras-chave: Resistência; Afro-brasileiro(a); Cultura; Religião. 

Abstract

This present article aims to address the Afro-Brazilian resistance to the current democratic scenario, from its religious culture. For reasons of not having a single AfroBrazilian religion, but a plurality of Afro-Brazilian religions, the article will not aim to contemplate each one, but to take aspects of these religiosities already synthesized by previous research in order to glimpse the struggle for recognition of its importance in Brazilian society. Therefore, this analysis will be done in two parts. At first, it will seek to take capital elements of its world perspective and draw an itinerary, starting with a small introduction study about the history of Africans and their descendants in Brazil, as well as their ethnic groups and social structure, focusing on its theoretical bases – that is, myths and symbology – about which its direct relation with the own conceptions of Africa has been increasingly sought. Then, secondly, based on the research methodology of the article, the current census data will be described, in order to present the perspectives and trends on Afro-Brazilian practices in the Brazilian political scenario.

Keywords: Resistance; African-Brazilian; Culture; Religion 


Introdução 

O artigo a seguir visa tratar sobre a resistência da cultura afro-brasileira no cenário democrático atual, tomando a sua religiosidade como base de luta. Sabe-se que ainda nos dias de hoje, em meio a uma sociedade supostamente “tolerante”, o eixo de participação político-social brasileira ainda carece de membros provenientes da comunidade afro-brasileira, posto que, persistem muitos preconceitos em relação a estes grupos e suas tradições. Talvez a fonte da “tolerância” advinda do norte do globo ainda não tenha se conectado profundamente com as não menos dignas periferias existenciais remanescentes ao sul – topos em que se encontra a comunidade afro-brasileira – tenha sido a mesma causa da dificuldade da participação negra no centro político da nação. Igualmente, como Amy Allen busca fazer-se entender: na mesma medida em que o progresso teórico europeu fora se desenvolvendo pelas reflexões da modernidade iluminista – Enlightenment modernity – e, por conseguinte, sendo evidenciada sua “superioridade” sobre tradições não modernas, aquilo que foge do escopo eurocêntrico se torna inevitavelmente marginal. Marginalidade de onde nascem os motes de preconceito (cf. ALLEN, 2016, p. 20). 

Estes motes de preconceito, por sua vez, têm se mostrado os principais responsáveis pela frivolidade com que são tratados estes grupos religiosos, os quais, exatamente por possuírem concepções distintas acerca de Deus, do homem e do mundo, têm possivelmente condições de vir a enriquecer o “homem ocidental”. Dentro deste cenário, cada vez mais reduzido por categorias limitantes que, na maioria das vezes, não proporcionam a compreensão das perspectivas a respeito da realidade fenomênica das culturas afro-brasileiras, o que, inevitavelmente, termina por gerar abusos de diferentes tipos: o controle social pautado pela discriminação que culmina na segregação dessas minorias. 

Por conseguinte, buscar-se-á um itinerário que perpasse – a partir de uma abordagem filosófico-teológica – as características mais elementares a respeito das religiões afro-brasileiras e sua importância para a identidade de seus adeptos na participação do cenário democrático brasileiro atual. 

Sendo assim, o artigo começará o seu percurso tratando a respeito da história dos povos africanos no Brasil, dando enfoque aos grupos étnicos e às estruturas sociais próprias dos africanos trazidos às terras do Novo Mundo, a partir da síntese analítica de V. J. Berkenbrock. Este primeiro levantamento servirá de base para poder tratar da matriz das religiões afro-brasileiras, cujas diferenças e semelhanças com os africanos, serão postas em contato com o seu composto teórico. Por fim, na metodologia do artigo, englobar-se-ão os números e a análise do Censo 2010, bem como, suas perspectivas e tendências relativas aos adeptos das religiões afro-brasileiras no Brasil. 

2. Pressupostos teóricos

2.1. Africanos no Brasil

O advento dos africanos ao Brasil deu-se pela comercialização de escravos durante o processo de colonização. Todavia, a repercussão que se vem registrando acerca do método tomado pelos iberos, nessa época, demonstra um tratamento abusivo e extremamente desumano com aqueles advindos da África. 

A resposta dos escravos africanos que sofriam, entretanto, não ficou apenas em uma passividade mórbida. Houve resistência! Os escravos africanos perceberam que deveriam montar uma barreira obstinada para manter sua dignidade, cujos principais fundamentos foram não permitir o óbito de suas raízes, fundamentando, portanto, os ideais de seus antepassados presentes tanto em suas culturas quanto em suas religiões, elementos que parecem ser primordiais no diálogo intercultural, cuja ausência pode representar parte das causas da fragilidade do cenário democrático atual. 

2.1.1. Breve história dos povos africanos no Brasil 

Os europeus, por ocasião da queda do Império do Oriente e da presença turca no Mediterrâneo, por meados de 1453 (cf. FALCON, 2006, p. 7), são obrigados a encontrar meios alternativos para seu desenvolvimento político e econômico. Por sua vez, Portugal, ao passo que vai formando um Estado Moderno Unificado, consegue adquirir os meios para se lançar na nova oportunidade que passava a ser oferecida à Europa: o Atlântico. Ora, situados no extremo leste da Europa, os lusos começaram suas expedições em torno da África, armando ali praças fortes comerciais e, concomitantemente, fazendo de seu itinerário como que uma elipse no perímetro africano que desaguaria na Índia, seu principal ponto de comercialização. 

Grande parte dos historiadores contemporâneos considera que o surgimento do Estado moderno ocorreu em meados do século XVI, a partir de Portugal. O que divide a opinião da minoria restante entre os que retardam a sua origem para o XVII e os que a antecipam para o século XV, atribuindo aos Estados italianos dos quattrocento o mérito da primazia. Embora seja uma discussão importantíssima para a história, o artigo não visa entrar nesta problemática, tomando a posição mais aceita pelos especialistas. Para maiores esclarecimentos (para mais aprofundamentos, cf. FLORENZANO, 2007, p. 16). 

Dito isso, lembra-se que o caminho circunflexo traçado na costa da África promoveu o contato dos portugueses com os africanos. Isso fomentou nos lusos a edificação de colônias nesses locais. Esta proximidade, por sua vez, foi somada ao pacto colonial, o qual se tratava de um sistema de leis que as metrópoles empunham às suas colônias durante o período colonial; esta metodologia previa que as metrópoles se beneficiariam dos produtos e atividades econômicas das colônias. Assim, o pacto colonial influiu os portugueses a buscarem mão-de-obra escrava em suas colônias africanas para levarem-nas às terras descobertas no Novo Mundo (cf. FALCON, 2006, p. 31). 

A presença dos africanos na Terra do Pau-Brasil é datada a partir do século XVI, por ocasião do processo de escravidão abancado, por suposto, na necessidade de corveia, por parte dos lusos, para trabalhos pesados nos engenhos de açúcar, situados no nordeste do Brasil. Posteriormente, no final do século XVII, nas minas de ouro no sudeste brasileiro, os colonizadores portugueses se empenharam em buscar, novamente, nas suas colônias situadas na África, escravos para essa labuta. Não por menos, o contato dos portugueses com o continente africano é anterior a todo esse processo, visto que, aqueles já perambulavam pelo Oeste dessas terras em busca de ouro. Todavia, em 1470, o comércio de escravos é datado como o maior produto de exploração vindo do continente. A necessidade maior desse trabalho no Novo Mudo aumentou a escala do mercado de escravos. 

Contudo, quando se fala em África, é errônea a sentença que a define como uniforme. Como os outros continentes, ela abriga em si realidades distintas tanto em geografia, em história, em cultura, em ethos, quanto em religião. Segundo V. J. Berkenbrock (1997, p. 62): “Somente na África negra são mais de 1.000 grupos étnicos com suas respectivas religiões”. Ao que se diz referente à geografia, dados os pontos elementares de diferenças, de acordo com o Dicionário Básico das Religiões (SANTIDRIÁN, 1996, p. 16) é comum dividir a África a partir dos pontos cardeais: 

África do norte: desde o Atlântico e Mediterrâneo até o Saara, incluindo o Egito e a Etiópia. Zona dominada pelo Islã e pelo cristianismo principalmente. África do Sul: A linha divisória seria o Congo até o Cabo. É povoada, fundamentalmente, por tribos aborígenes com religiões primitivas. As culturas e crenças mais representativas seriam os bantos e bosquímanos. África ocidental: desde o Senegal até o Congo, com uma multidão de tribos, como os iorubas, ewes, dogones, konos, mendes, nupes, ibos, etc. África oriental: numerosas tribos situadas no Quênia, Uganda, Tanzânia, Moçambique. Um total de 150 com os seus traços característicos. [Destaca-se] entre elas, os dorobos, acholis, luos, somalis, falas, masais, marquetas, madis, lugbaras, jandas e zulus. 

Por conseguinte, os africanos trazidos para o Brasil eram extraídos, primeiramente, da costa oeste da África e eram destinados à Bahia. Posteriormente, haveriam os africanos advindos ao Brasil também da região do sul da África, os quais eram enviados ao Maranhão, Pará, Pernambuco, Alagoas e ao sudeste brasileiro. Ademais, é interessante aqui demarcar que na costa oeste da África estão hoje em dia a Nigéria, Benin e Gana. Na região sul hoje estão Angola, Zaire e Moçambique. Há grande diversidade de povos nos diversos territórios de onde os mesmos eram extraídos, exatamente porque a divisão territorial exercida pelos dominadores era alheia às divisões tribais existentes. 

A divisão traçada é uma tentativa de sistematização de algo que fora extremamente complexo. As etnias acentuadas e seus destinos atribuídos foram elencados a partir da constatação de maior quantidade de indivíduos pertencentes aos grupos respectivos. Na realidade, os africanos foram trazidos ao Brasil de modo mais ou menos estocástico e misturados; em primeiro lugar, no nordeste, e depois nas outras regiões brasileiras.  

2.1.2. Grupos étnicos e estruturas sociais 

Viu-se até agora que a África é composta por muitas faces e tem, por conseguinte, em seu solo, diversas religiões. O cristianismo e o islamismo africanos, embora existentes, não conferem contatos substanciais ao assunto, posto que, não entraram em contato direto no processo de colonização da América, por consequência, não participarão da análise das estruturas religiosas e sociais da África, encerrando esta, por consequência, naquilo que se entende por “África negra”. 

Antes de qualquer análise, vale fixar a origem dos ancestrais africanos no Brasil. Todavia, como afirma V. J. Berkenbrock (1997, p. 62), determinar “quais destas religiões [e povos] e em que medida tiveram alguma influência na formação das religiões afro-brasileiras, isto não se consegue mais detectar com precisão”. Mesmo assim, há traços que apontam para características próprias de alguns povos; dentre esses, os que supostamente pisaram por primeiro em solo brasileiro estão entre os que fazem parte da história da região da África Atlântica, que vai do Senegal a Angola, a qual revela a presença de povos, desde há muito, conhecedores da agricultura e do ferro, cujos embasamentos advêm dos bantos (cf. DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2004, p. 2). Faz-se lícito também ressaltar aqui que, segundo Bittencourt (cf. In: CAMPOS; DA SILVA (Org.), 2004, p. 3) este grupo engloba diversas línguas que utilizam o termo nto ou munto para designar homem – indivíduo – cujo plural é indicado pelo prefixo ba; por conseguinte, o termo banto que dizer homens, cujo conjunto, mais do que uma coletividade justaposta, designa “povo”. 

Os bantos formam um conjunto de tribos muito diversas, com um denominador comum: “a língua, traços físicos próprios, tradições sociais e religiosas comuns” (SANTIDRIÁN, 1996, p. 64) – o que não significa iguais. Dentre estas tribos, as mais conhecidas são: os ndembu, os sothoswana, os zulus, os shona e os kikuyu (cf. Ibidem, p..64). Algumas dessas tribos milenares parecem ter sido as responsáveis por ter humanizado a terra e lutado contra o clima árduo do Saara, cuja desertificação obrigou-as a estabelecerem-se ao sul do deserto, de modo disperso, sobre planícies inundáveis e em pequenas colinas, as quais deviam apresentar facilidade de defesa contra supostos ataques de predadores ou inimigos. (cf. DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2004, p. 2). 

Todavia, por dotar de irregularidades e desigualdades, as populações dos diversos grupos aumentavam ou diminuíam suas fronteiras de acordo com as mais variadas situações, das quais, apontam-se principalmente: a guerra, o crescimento populacional, as secas e a falta de recursos alimentares. 

Estas circunstâncias desaguaram em uma situação heterogênea, na qual se por um lado há a criação de uma sociedade altamente móvel, disposta a se deslocar sempre que os recursos se mostrassem ameaçados ou limitados (cf. Ibidem, p. 4), por outro lado, existem tribos sedentárias as quais se embasavam na importância da grande quantidade de filhos, para o trabalho na terra, e na figura patriarcal, a qual garantia a unidade do clã e a responsabilidade pela posse do solo com suas fronteiras determinadas. 

Os fatores, porém, de caracterização das diversidades individuais de cada tribo são muito difíceis de serem analisados, visto que se trata de uma pluralidade de grupos, entre os quais há nômades e sedentários. Nesses dois modos de ser, a maioria era de ágrafos, cujos registros históricos são parvamente localizados em obras historiográficas remanescentes de fontes africanas. Contudo, as conjunturas próprias desses grupos não impossibilita o levantamento de aspectos comuns entre os mesmos. Desse modo, o que diz respeito às feições religiosas dos bantos, fica viável tornar exposto a predominância do triângulo dos espíritos: os antepassados, a magia e a bruxaria

Espíritos e antepassados são procurados e temidos, e para torná-los favoráveis recorre-se a um quarto elemento: a adivinhação. Esta religiosidade exprime-se por uma série muito variada de ritos: há os individuais e os coletivos, sempre destinados a conjurar uma situação difícil – doenças, colheitas, trabalhos agrícolas, sementeiras, etc. A sua riqueza expressiva sobressai cheia de simbolismo (SANTIDRIÁN, 1996, p. 64). 

As tradições religiosas, porém, variam de povo para povo. Não são uniformes, mesmo dentro de um único povo, embora tenham pontos comuns. Além disso, algo que também pode ser apontado aos bantos, dentro de suas concepções é a existência de um Deus criador; ante as diversas divindades, os bantos aceitam um ser divino que tenha criado deuses para criar e governar o cosmo. Entretanto, não lhe prestam culto, pois a sua intervenção na vida quotidiana da tribo não é crida. Além do mais, este Deus é tão transcendente e tão perfeito que nenhum culto seria capaz de alcançá-lo, logo, não há sentido algum em cultuá-lo. 

Além dos bantos, há outro povo que merece destaque: o povo yoruba – visto que, parece ser esta raiz religiosa africana que formou, no Brasil, o Candomblé e influenciou com suas divindades a nomenclatura das divindades procedentes das religiões de raiz banto como, por exemplo, a Umbanda e a Macumba. 

É difícil dizer ao certo quando os yoruba passaram a ser trazidos para o Brasil. Sabe-se, pelo menos, que os portugueses, já na década de 50 do séc. XVI tinham contato com a região central da África (local onde se concentrava o povo yoruba) e já comercializavam seus escravos africanos; porém, a escravização dos yoruba se ampliou, precisamente, no final do séc. XVIII e princípio do séc. XIX (cf. BERKENBROCK, 1997, p. 176). Este atraso da vinda massiva dos escravos yoruba ao Brasil parece ter-se dado pela preferência que os lusos tiveram para os trabalhos no engenho de açúcar – iniciados no século XVI –, considerando o porte físico mais apurado dos bantos o qual lhes tornaria mais aptos para tal finalidade. Todavia, faz-se importante deixar claro que estes povos são tirados de suas terras de modo não sistemático – quase aleatório – e amalgamados nas terras do Novo Mundo. 

Na África, os yoruba, frequentemente, se organizavam em reino ou cidade- -estado. O crescimento populacional era identificado pela concentração humana que exigia frequentemente a ocupação da floresta até a formação das suas primeiras construções urbanas. Estas construções urbanas acabariam por ser interpretadas pelos mitos a respeito da origem dos reinos, as quais serviam para concretizar as premissas ideológicas da estruturação fundamental da vida social, política e econômica desses grupos. 

No Brasil, porém, os yoruba passaram a ser conhecidos como nagôs. Esta mudança terminológica se dá pela suspeita do modo como os habitantes do reino Queto chamavam seus escravos de ascendência yoruba. 

Esta breve exposição a respeito dos bantos e yoruba seve para orientar aqueles que seriam os povos que teriam protagonizado a formação dos afro-brasileiros, com suas culturas, histórias e religiões. Estes dois povos guardavam consigo diversas religiões, as quais são dificílimas de serem estipulados os números das mesmas ao chegarem ao Brasil. Contudo, de acordo com Berkenbrock (cf. 1997, p. 63-65), de um modo simplificado é possível sistematizar características comuns a partir dos seguintes aspectos: 

1) A religião diz respeito mais à sociedade que ao indivíduo. Cada esfera da vida pertence e se orienta à religião e nela tem sentido, sendo impossível separação de parte sagrada e de parte profana. 

2) O ser supremo – Deus – é caracterizado de formas muito diversas. Há povos – tidos como a minoria – em que se entende que ele esteja próximo do humano e interfira na vida das pessoas, bem como, há outros – a maioria – em que este ser supremo a quem é atribuída a criação – é apresentado como distante, ou ainda, transcendente, das pessoas e da sociedade; sua existência e importância não são negadas, mas a ele não se apresenta culto, já que em nada interfere. Ademais, vale aqui ressaltar que tratar de criação nas religiões afro- -brasileiras é sumamente complexo. Ao mesmo tempo em que determinadas denominações acabam fazendo uso da concepção cristã de universo criado ex nihilo, isto é, a partir do nada, as matrizes africanas carregam consigo uma forma de pensamento muito concreta. Por consequência, ausência do pensamento abstrato não tornaria o nada em algo evidente, visto que, tratam-se de civilizações cujas raízes se encontram demasiadamente distantes do pensamento ocidental. Sendo assim, a criação e o ato de criar parece ter o significado mais próximo de ordenar o caos já existente, do que extrair a existência a partir do nada. Interpretação esta que também se tem adotado pela exegese bíblica contemporânea a respeito do Livro do Gênesis e sua fundamentação pós-exílica (cf. SICRE, 2000, p. 20-23; SKA, 2014, p. 199-202; UEHLINGER. In: ROEMER; MACCHI; NIHAN (Orgs.), 2015, p. 144-167). 

3) Crer na vida após a morte e o culto aos mortos também são patrimônio comum das religiões africanas, embora esta noção sobre a vida após a morte seja muito variada, isto é, o culto se dá a indivíduos antepassados ou a antepassados coletivos, não incluindo a esperança numa realização final. A vida após-morte não é entendida como uma recompensa ou castigo do tempo anterior, posto que tudo se dá no tempo vivido, mostrando-se, por conseguinte, como característica marcante a forte ligação com o aquém, concepção cara à contemporaneidade. 

4) A crença na existência de espíritos é entendida como forças intermediárias entre o ser superior e as pessoas. Sobre sua origem, são distinguidos os que foram criados já como espíritos e os que foram humanos e se tornaram espíritos (BERKENBROCK, 1997, p. 63-65.) 

Postos estes elementos, tem-se genericamente um esboço de como se organizariam os povos na África com suas religiões, quando no Brasil chegaram. Todos estes rudimentos apontaram para uma resistência em meio a toda opressão, desencadeando no sincretismo entre os seus elementos religiosos e o dos elementos religiosos vigentes dos europeus, gerando as religiões afro-brasileiras. 

2.2. Análise das religiões afro-brasileiras 

Feito o levantamento histórico dos principais povos africanos, com sua cultura, vindos ao Brasil por motivo da escravização, torna-se importante estabelecer as diferenças entre as religiões africanas, de fato, e a religião desses povos que habitando as terras do Pau-Brasil, passaram, ao longo da história a ser chamados de afro-brasileiros

2.2.1. Diferenças e semelhanças entre religiões africanas e afro-brasileiras

As religiões afro-brasileiras se diferenciam das puramente africanas, em primeiro lugar pela perda de contato com o seu próprio ethos, com exceção de algumas religiões as quais, de modo especial, em contextos hodiernos, fomentada por classes intelectuais – como, por exemplo, o Candomblé –, têm enviado indivíduos seus para a África a fim de reatualizar os ritos que se engessaram e se sincretizaram no Novo Mundo (cf. Ibidem, p..119). O Batuque, por sua vez, é um exemplo de religião afro-brasileira que, sem importar-se aparentemente com o sincretismo, acredita conservar seus ritos como eram desde a chegada dos africanos no Brasil, mesmo que o “conservar” signifique permitir atitudes sincréticas com as religiões de povos nativos e das nações dominantes, desde que isso signifique sobrevivência. 

Os elementos essenciais das religiões africanas possuem alguns traços comuns. Primeiramente, pode-se designar que as religiões africanas conservam um sistema chamado de “união vital”. Neste, há relações entre a ordem visível e a ordem invisível, as quais são governadas por um Criador – o qual pode ou não ser um Deus distante que não deixa nenhuma manifestação de si – e algumas forças espirituais, cujos nomes são especializados em diversas funções para garantir o andamento resoluto de cada coisa. (cf. SANTIDRIÁN, 1996, p. 16) 

Depois, há os antepassados, os quais desempenham uma atividade importante e privilegiada nessa relação do mundo visível com o mundo invisível, isto é, a relação dos mortos com os vivos. Esta relação, por sua vez, é uma união necessária, visto que ela estabelece a intervenção dos antepassados nas circunstâncias das vidas dos fiéis, como também garante a sobrevivência dos próprios antepassados, por meio da invocação de seus nomes. Entretanto, o fato de eles trazerem um protagonismo nessas atividades, há outras forças que desempenham semelhantes funções, entra as quais se encaixam os deuses secundários, os gênios e os espíritos; estes últimos são senhores do transe e da possessão. Referente à possessão, há espíritos que são beneficentes, outros são nocivos aos homens; suas características normalmente se apresentam postas a partir dos seguintes componentes: “ligados à terra, à chuva, ao trovão, ao raio, ao vento, à caça, à pesca, às artes e ofícios” (Ibidem, p. 17). Ademais, têm formato humano com pouca altura e crânio amplo, possuem os pés voltados para trás e sua voz é aguda, algo que de alguma forma caracteriza folclore brasileiro. 

De modo panorâmico, esta estrutura das matrizes africanas permaneceu. Contudo, muito das terminologias se perdeu ou se renomeou, tanto pela falta de escrita de muitos povos, quanto pela amálgama étnica dos povos que se obrigaram a conviver, além da mistura paradigmática com o cristianismo, as religiões próprias dos indígenas e com o espiritismo. Isto em linhas gerais! Todavia, há traços em diversos pontos que lembram as fontes africanas. Sendo assim, a maior influência é apresentada pelos yoruba, visto que, eles aparentavam possuir uma estrutura religiosa altamente influente na sua vida política (cf. capítulo anterior: grupos étnicos e estruturas sociais), orientada pelo cimento ideológico de seus mitos, força motora para resistência diante dos povos opressores. Daí percebe- -se a importância dos yoruba zelarem pelos seus deuses e os conservarem, ainda que por nomes de outros deuses nativos ou, até mesmo, dos santos católicos. De acordo com Berkenbrock (cf. 1997, p. 132), este sincretismo entre cristianismo e religiões afro-brasileiras não é uma exclusividade do Brasil; nos países do Caribe também foram encontrados sincretismos de modo muito similar. Além disso, o sincretismo entre religiões africanas e o cristianismo já começara na África, visto que, a conquista da América iniciou quando as tentativas de missionar a África já tinham um século de andamento. 

Àquilo que é equivalente aos bantos, entretanto, deve-se dizer que eles não se ocuparam em conservar as suas divindades por meio da amálgama sincrética – tendo tomado, em realidade afro-brasileira, em alguns casos, a nomenclatura dos Orixás do Candomblé (cuja procedência é dos yoruba) –, visto que sua atividade de resistência estava mais voltada para o contato com os antepassados, a adivinhação e a magia. Este último elemento demonstra maior contato do afrobrasileiro àquilo que se entende pelos breves ou longos rituais de bênçãos – como a Macumba –, nos quais, como que uma fórmula deve ser repetida e impelida pelas forças das palavras. 

Sendo assim, é patente a influência que determinadas concepções de povos africanos tenham tido importância elementar para a conservação de suas riquezas e expressões culturais, as quais têm deixado seus traços de humanismo. 

2.2.2. Mitologia e Simbologia 

Neste próximo momento, tomar-se-á o termo “mito” enquanto um relato transmitido de modo oral, geralmente protagonizado por seres que agem tomando aspectos da natureza ou da própria condição humana e carregam consigo um fundo de verdade. Dentro deste escopo, o entendimento dos mitos nas religiões afro-brasileiras, como em diversas outras religiões, parece depender da concepção do ser humano da mesma religião. Sendo assim, antes de adentrar propriamente nos mitos, far-se-á uma aproximação da ideia da antropologia afro- -brasileira. 

Dentro desta ótica, o ser humano não é apenas mais um animal. É um ser composto por um princípio vital que transcende o mundo material, ou seja, o espírito. Com feito, é interessante perceber que a compreensão contemporaneamente dada pelo ocidente de que o ser humano é parte do universo parece ser posterior a superação da dicotomia corpo-alma, ao passo que a dicotomia corpo-alma é o fundamento do ser humano como parte do cosmo. Neste sentido, o composto de transcendentalidade entre a religião dos conquistadores é visivelmente distinta da compreensão de matriz africana. Embora este assunto seja muito excitante, o artigo não se deterá nesta discussão. Contudo, cabe aqui falar que este é o principal responsável pelo seu ímpeto de vontade e perseverança, a qual cresce primordialmente pelo seu aprimoramento, cujos ensinamentos se focam nas forças que possui em si mesmo (cf. DO OXUMARÊ; DO OXOSSI, 1997, p. 21.). 

Entretanto, há várias linhas distintas entre as quais se destacam duas que necessitam maior explicação: a primeira baseia a força do homem em Orixás, isto é, cada homem é criado a partir de uma divindade – Orixá – e tem sua vida voltada para a mesma; esta entidade se manifesta a partir de ritos e – como pode ser visto nos rituais da Umbanda – da invocação. Por outro lado, há outros que compreendem a força humana advinda de espíritos, sejam de pessoas próximas falecidas ou não, concepção que influencia e é influenciada pelo espiritismo kardecista em sua prática fortemente contemplada no Brasil (cf. BERKENBROCK, 1997, p. 144). 

Por sua vez, a matriz africana reserva a crença nas mitologias da gênesis do universo a partir de um deus criador, tendo espaço para a concepção da existência de outras divindades que regem e sustentam o cosmo. Dentro desta hierarquia de espíritos há os espíritos dos antepassados. O culto, sustentado pelas narrações míticas é meio de estabelecer contato entre o mundo material e o que se encontra além da física. A capacidade, porém, que as religiões afro-brasileiras têm de se adaptarem é surpreendente; elas assumem em si com facilidade outras ideias religiosas e compõem-nas rapidamente ao seu corpo mitológico, principalmente por considerarem a dimensão aberta do ser humano às infinitas possibilidades, não fechando definitivamente a sua doutrina. Embora, elas se estruturem sob as concepções fundamentais de origem cósmica e composições elementares antropológicas, têm seus pés postos nas muitas outras religiões cultuadas no Brasil, tanto as praticadas pela baixa quanto pela alta classe; por conseguinte, o resultado de tudo isso é inexistência de uma identidade definida (Ibidem, p. 160) e, portanto, uma mitologia em constante atualização. 

Nestas religiões, o símbolo – visto enquanto objeto emblemático –, percebem-se muitas figuras do catolicismo, pela ocasião do hibridismo – enquanto compilações sincréticas de vocabulários (cf. PIEDADE FILHO, 2009, p. 67) – nelas ocorrido, bem como, advindos do espiritismo e das religiões nativas. Entretanto, tratando-se de símbolos de fundamento africano, parece que a maioria deles é da matriz geradora do Candomblé, exatamente pelo fato da estrutura religiosa yoruba ter tido maior predominância; nela, o Olorum, que é a origem das três forças do universo: Iwá, Axé e Abá, representando respectivamente o princípio de existência, a força dinâmica que faz com que a existência não seja estática e a concepção da ideia de um objetivo concreto para a existência. Não obstante, compreende-se aí uma ideologia pré-disposta a amalgamar com grande naturalidade a concepção trinitária do deus cristão (cf. BERKENBROCK, 1997, p. 187). 

Contudo, há maior importância prática nos símbolos reconhecidos em objetos e lugares, entre os quais, podem-se destacar o Terreiro. Este é, por sua vez, o local de culto do Candomblé. Este nome também é utilizado para designar o local de culto das demais religiões afro-brasileiras. Designa igualmente a comunidade do Candomblé (cf. Ibidem, p. 446). Para Berkenbrock (Ibidem, p. 192), Terreiro é uma parcela da África. Não a geográfica, senão a mítica. África não se apresenta mais como “uma realidade evidente, não é mais um lugar onde se mora e se vive, onde se encontra a pátria da cultura, da família e da religião”. Assim sendo, este deve ser contemplado enquanto o lugar de culto ou comunidade afro- -brasileira. 

Dentro desta dinâmica, no Brasil, África é a terra dos antepassados humanos e divinos. A busca da harmonia cósmica no Novo Mundo não pode prescindir a reconstrução da África e da sua ordem. Porém, esta reconstrução da África não se dá – é evidente – como se daria na África. O sincretismo, por exemplo, contribuiu para que o culto a um único Orixá por Terreiro – tal como é feito na África – fosse, no Brasil, o culto a vários Orixás em cada Terreiro. 

Inserido no mesmo escopo, são diferenciados dois espaços: o urbano e o mato. O primeiro é destinado às pessoas, é onde reina a civilização e a ordem; o segundo é o espaço não humano, aquele que relembra as matas da terra africana, de onde advém as plantas, consideradas sagradas e próprias para os ritos; estas representam a força dinâmica, normalmente verificada pelo transe que preservará o equilíbrio entre a pessoa e o Orixá cultuado e consolará os que não estão nas terras da sua África. O culto, assim, possibilita, por sua vez, uma união profunda entre o Orixá e o fiel, no qual, dando o corpo à disposição do espírito, o Orixá se torna participante do Aije, isto é, da existência física. Assim, há uma dinâmica de mútua entrega: o fiel confere o Aije, enquanto o Orixá dá o Axé. Desse modo, unido ao seu Orixá, o fiel é revestido com as insígnias próprias do mesmo (cf. BERKENBROCK, 1997, p. 199-202).

Não se pode esquecer também de outro local que foi fundamental para a compreensão de seu caráter de resistência: o Quilombo. Este se tornou, dentro da história dos africanos no Brasil, a topografia dos refugiados, “unidade básica de resistência do escravo” (MOURA, 1987, p. 14), que foi primordial para salvaguardar suas identidades (cf. BERKENBROCK, 1997, p. 439-446). 

Por fim, é importante ressaltar que estas culturas estabelecem uma íntima relação simbológica e mítica com a natureza, podendo-se desatacar a acuidade que essas religiões afro-brasileiras dão ao espaço “mato”. A natureza selvagem é um mistério, tanto é que raízes mais ortodoxas – como o Candomblé que é a religião mais tradicional – defendem que o contato com a terra e a natureza deveria ser reservado a Babalossaim, ou seja, o sacerdote responsável por cultuar Ossaim: o Orixá do mato. 

Dito isso, é justo também destacar que o contato com a flora remete, de modo especial, ao povo banto que, segundo sua linguagem primitiva, “possui um radical para a palavra remédio, ti, que é o mesmo que árvore” (DEL PRIORE; VENÂNCIO, 2004, p..8), assinalando que os métodos de cura conservavam uma relação rigorosa com o conhecimento de plantas.

 Ainda sobre o prisma da mata, segundo algumas tribos, a mesma poderia ser lugar bem visto, enquanto para outras, porém, era linha de demarcação entre os dois mundos; esta última concepção concorda com muitos elementos dos cultos afro-brasileiros referentes ao “espaço mato”. Havia grupos africanos ulteriores que apenas ofereciam seus sacrifícios aos deuses na mata, a fim de pacificá-los e impedi-los de vir importunar as pessoas da aldeia (cf. Ibidem, p. 21). A aldeia, por sua vez, é concebida, por analogia, nas religiões afro-brasileiras, como “espaço urbano”, isto é, aquele no qual acontece todo ordinário da vida quotidiana. 

Ademais, abrir e cultivar a terra, para os ancestrais africanos significava criar o mundo e transmitir vida, visto que a fertilidade da terra estava intimamente associada à fecundidade feminina. Entre os yoruba, por exemplo, as atividades humanas essenciais eram reservadas às áreas cultivadas. Segundo M. del Priore e R. P. Venâncio (Ibidem, p..22). “Era nelas que se fazia sexo e enterravam-se os mortos [...] Só as vítimas de varíola, afogamentos suicidas e condenados à morte eram enterrados na má savana.” É evidente que estas práticas não são mantidas pelas religiões afro-brasileiras; todavia, é injusto afirmar que elas não tenham deixado suas raízes, de modo especial no que diz respeito à sacralidade da natureza, concepção por vezes descartada pela “ordem e progresso” do sistema econômico contemporâneo. 

Sendo assim, é importante ressaltar que o fundamento religioso das comunidades afro-brasileiras é de suma importância para composição de seu ethos. A sua base ético-moral, consequente à sua fundamentação de crenças, estipula ordem, princípios e fins. Por consequência, faz-se necessário olhar pera estes espaços de diálogo democrático, no qual a civilização não precisa ser dependente da assimilação gradual da cultura europeia (cf. Cf. ALLEN, 2016, p. 29.). 

3. Metodologia 

Os pressupostos teóricos apresentados acima são resultado de pesquisas científicas realizadas pelo próprio autor do texto, as quais foram feitas no Programa de Pós Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 

O trabalho escrito em questão, de cunho exploratório, tem o seu propósito embasado na importância de trazer à tona o cenário histórico abusivo que fundamenta a segregação étnico-racial que infelizmente ainda é, em esfera relativamente global, existente nos mais diversos contextos sociais, mas que tem tomado proporções maiores na atualidade brasileira. 

Embora o aspecto quantitativo se faça presente na pesquisa, o caráter qualitativo permeia maior parte da abordagem tomada, a qual se deu em razão da tentativa de compreender os fenômenos próprios das práticas e teorias religiosas afro-brasileiras, para então trazer as fundamentações dos seus direitos no cenário político atual, no qual, ataques – seja em viés físico ou psicológico – constantemente são feitos às mesmas, por preconceito, dado pela insciência basilar de suas crenças. 

No que condiz aos procedimentos, buscou-se na análise de revistas, livros e relatórios, bem como, na revisão bibliográfica, boa parte do material referencial teórico que fundamentou a argumentação do escrito, com o auxílio, enfim, da análise crítica textual discursiva apresentada. 

4. Resultados 

Apresentados os elementos mais significativos das religiões afro-brasileiras, prossegue-se a pesquisa com uma pequena exposição sobre as estatísticas do Censo 2010, acerca das mesmas, bem como, suas perspectivas e tendências dentro do contexto brasileiro hodierno. 4.1. As religiões afro-brasileiras no cenário atual. 

De imediato, frisa-se que ao serem tratadas, neste capítulo, as religiões serão tidas enquanto sua definição remetida ao popular, isto é, sendo vistas a partir da ótica de A. Carvalho (2006, p. 184), “[...] como manifestação da mentalidade coletiva sujeita às influências de um processo de modernização capitalista e de suas manifestações na urbanização, na industrialização, na escolarização e nas mudanças nas estruturas produtivas e culturais”. 

Dentro desta lógica, foi em 1980 – por decorrência do Censo que neste ano ocorrera – que Umbanda, Candomblé e outras similares deixaram de ser religião étnica, cuja existência se limitava à preservação do patrimônio histórico da humanidade, a partir dos descendentes de escravos, e se tornaram religião universal, com o nome de “religiões afro-brasileiras” (cf. TEIXEIRA; MENESES, 2013, p. 204.). 

O reconhecimento, todavia, não eliminou o preconceito. As máscaras do catolicismo e do espiritismo, usadas pelos os afrodescendentes a fim dos mesmos poderem encontrar diante da sociedade uma vivência tolerada, têm continuado a cobrir as muitas das faces daqueles que durante todos esses anos foram postos diante dos diversos censos corridos na República – supostamente – Democrática Brasileira. 

4.1.1. Estatísticas do Censo 2010 

Segundo o Censo de 2010, as estatísticas das religiões afro-brasileiras são de 0,3%; o mais baixo diante dos espíritas, com 2%; das diversas denominações evangélicas, 22,2%; e dos católicos 64,6%. Isso, acrescentando as outras religiões, trazendo 2,9% e os sem religião, com 8% (cf. Ibidem, p. 206.). Cenário que aos poucos vai mudando com o empoderamento evangélico nas novas perspectivas ideológico-políticas. 

O número pequeno de adeptos, por sua vez, apresentou decréscimo desde 1980 até 2010 em 9,2%. É curioso, entretanto, perceber que durante esse período, a população brasileira cresceu 29,9%; concomitantemente, houve uma ascensão dos participantes das religiões afro-brasileiras nas religiões mais tradicionais – Candomblé; Xangô; Tambor de Mina; Batuque – em 69,7% (cresceram em uma taxa duas vezes maior que a população brasileira), enquanto as menos tradicionais – Umbanda; Quimbanda – tiveram uma baixa de 24,8%. Isso leva a concluir um índice grande de migração para as religiões com maior matriz africana (cf. Ibidem, p. 209). 

O aumento dos integrantes das religiões afro-brasileiras mais tradicionais parece estar mais de acordo com o momento histórico no qual o Brasil se encontra. As menos tradicionais continuam alicerçadas no sincretismo católico, enquanto as mais tradicionais estão em busca dos elementos de base africana – como ritos e língua – e da “dessincretização” dos elementos católicos, visto que “a âncora sincrética católica pode estar pesando desfavoravelmente para os afro-brasileiros” (Ibidem, p. 216), o que colabora para o seu possível naufrágio em um país, no qual tem crescido o maior número de adeptos no cristianismo pentecostal, ou seja, que rejeita muitos elementos do catolicismo, de modo especial ao que diz respeito à dulia e à hiperdulia aos santos e à Santa Maria, respectivamente. Lembra-se aqui que “Dulia” é termo grego da teologia católica – δουλεία – que significa honra destinada a um santo, enquanto “Hiperdulia” designa honra especial – ‘υπερδουλεία – à Santa Maria, os quais são consequência do espiritualismo grego, sincretizado nas bases judaicas do cristianismo. 

4.2. Perspectivas e tendências

Os dados do Censo 2010, dentro desses trinta anos de pesquisa, desde 1980, expõem o crescimento de religiões afro-brasileiras mais tradicionais, como o Candomblé. Um crescimento que se demonstra considerável pela quantidade de indivíduos jovens incluídos, denotando, por conseguinte, um rejuvenescimento que antes não era patente. Além disso, os dados também ratificam um aumento considerável no nível de instrução, ficando ao lado de grandes grupos de outras denominações religiosas. 

O crescimento dessas religiões se apresenta, entretanto, curioso. O efeito de mais destaque é o grande número de afrodescendentes aumentado. A explicação exposta para tal crescimento se dá a partir de uma análise mais focada no Candomblé, religião afro-brasileira possuinte de uma tradição mais adjacente. Dentre os elementos que promoveram sua ascensão se enquadra, em primeiro lugar, o contato frequente que a camadas populares brasileiras possuem com esta religião, tanto por sua maior participação em projetos sociais quanto pelo seu esforço em sistematizar e difundir sua crença. Em segundo lugar, têm-se as pesquisas de maioria pertencente à classe média, ou seja, pessoas as quais encontram como que respostas a questionamentos existenciais de si próprios. Além disso, há, na ordem interna de pensamento afro-brasileiro, a não necessidade de adesão à religião por aqueles que nela são iniciados. Isto dá maior liberdade aos que à mesma são apresentados. Depois, existem aqueles que são postos como “curiosos” ou apreciadores da beleza afro-brasileira, bem como dos trabalhos nos terreiros oferecidos. Há ainda o fator de que o Candomblé tem cada vez mais apresentado sua identidade e produção cultural na música e no turismo, de modo especial na festa brasileira de maior influência: o carnaval. 

Os aderentes das religiões afro-brasileiras têm crescido. Todavia, como foi suposto anteriormente, no início do capítulo, há muitos adeptos das religiões afro-brasileiras que ainda escondem sua crença religiosa frente a uma sociedade que ainda conserva traços preconceituosos. Isto leva, portanto, à falta de perspectiva real que os números dos Censos demonstram dos participantes das mesmas religiões. Entretanto, distante de fixar em precisões matemáticas, as pesquisas são de grande valia no quesito referente à reflexão, não apenas de uma parte quantitativa da religiosidade brasileira, mas principalmente à história, à memória, à construção e afirmação da identidade que necessita cada vez mais constar no diálogo democrático brasileiro. 

5. Considerações finais

Feito o levantamento histórico, analítico e perspectivo das religiões afro- -brasileiras, parece que o mais evidente do efeito de toda opressão desumana sofrida por parte dos africanos lhes fez buscar em suas raízes étnicas culturais e religiosas elementos que lhes permitiram resistir e dar sentido aos momentos passados nas terras do Novo Mundo.

O sincretismo com as religiões nativas, com o catolicismo e o espiritismo, assumido em um primeiro momento como caráter transitório para a sobrevivência em determinado espaço, constituiu, com o passar do tempo, a própria identidade das religiões afro-brasileiras. Atualmente, busca-se um processo para desfazer tal sincretismo e encontrar as bases reais de tais religiões; esta procura tem sido a causa do aumento popular destas religiões. 

O empenho de deixar longe de preconceitos e chegar o mais próximo do que seriam as religiões dos afrodescendentes têm colaborado muito para os estudos sérios dentro desta temática. Todavia, a imensidade da cultura e das religiões afro-brasileiras que incorporam as mais diversas áreas das ciências humanas evidencia a insuficiência científica, pelo fato de serem limitados os materiais pesquisados que contemplem tais culturas e religiões. 

Portanto, fica obvio a importância de mais pesquisas que englobem os instrumentais das variadas ciências humanas a fim de encontrar mais elementos que apontem à base do que significa pertencer às religiões afro-brasileiras e ajude a responder as diversas questões geradas pelas culturas e religião e sua repercussão no cenário democrático brasileiro.   

Referências

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