O Espírito Santo nos sacramentos do batismo e da confirmação nas catequeses mistagógicas de Ambrósio de Milão

The Holy Spirit in the sacraments of baptism and confirmation in the mystagogical catecheses of Ambrose of Milan

André Luiz Benedito

Doutor em Teologia Sistemático-Pastoral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2019). Contato: katolous@yahoo.com.br 

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Resumo
Este breve estudo tem como objetivo apresentar a ação do Espírito Santo nos sacramentos do batismo e da confirmação nas catequeses mistagógicas de Ambrósio de Milão. Ambos serão trabalhados sob dois aspectos. Em primeiro lugar, será apresentada a dimensão ritual, em que se procura demonstrar como Ambrósio aborda a ação do Espírito na celebração do respectivo sacramento. Em um segundo momento, discorre-se sobre o Espírito Santo em seu aspecto tipológico, isto é, a relação entre o sacramento e os eventos da história da salvação que o Bispo de Milão expõe aos seus catequizandos. Em meio a essa abordagem, também se constata a preocupação de Ambrósio em defender a ortodoxia perante as heresias que refutavam a divindade do Espírito Santo.

Palavras chave: Ambrósio de Milão; Espírito Santo; batismo; confirmação; mistério.

Abstract
This brief study aims to present the action of the Holy Spirit in the sacraments of baptism and confirmation in the mystagogical catecheses of Ambrose of Milan. Both will be worked on in two aspects. First, the ritual dimension will be presented, in which it is sought to demonstrate how Ambrose approaches the action of the Spirit in the celebration of the respective sacrament. In a second step, the Holy Spirit is discussed in its typological aspect, that is, the relationship between the sacrament and the events of the history of salvation that the Bishop of Milan exposes to his catechists. Amid this approach, Ambrose’s concern to defend orthodoxy in the face of heresies that refuted the divinity of the Holy Spirit is also evident.

Keywords: Ambrose of Milan; Holy Spirit; baptism; confirmation; mystery

Introdução

As catequeses mistagógicas de Ambrósio de Milão,[1] isto é, os tratados “Sobre os sacramentos” e “Sobre os mistérios”, provavelmente, estão entre as suas obras mais conhecidas. Através delas, o renomado bispo milanês demonstra aos seus neófitos o significado dos ritos e a sua relação com as Escrituras. Uma vez que tais instruções eram ministradas após a celebração dos sacramentos da Iniciação Cristã na noite pascal, elas representavam a última etapa da formação dos catequizandos, que haviam se lançado em uma longa jornada de preparação, com o intuito de abraçar a vida nova em Cristo.

Os tratados “Sobre os sacramentos” e “Sobre os mistérios”, ainda, constituem testemunhos importantes da descrição e interpretação dos ritos da Iniciação Cristã no Ocidente cristão nos séculos IV e V. De fato, ao contrário das abundantes obras relativas a essa mesma temática no Oriente, a única testemunha dessa metodologia no lado ocidental do Império Romano encontra-se em Ambrósio de Milão. De modo geral, o conhecimento do processo de Iniciação Cristã no Ocidente é feito através de outros registros: cartas, cânones de concílios regionais, referências em tratados e documentos, e também fontes litúrgicas tardias, que nos permitem, de algum modo, fazer uma reconstituição de como era a celebração nos séculos IV e V (cf. JOHNSON, 1999, p. 125). Assim, ambas as instruções pós-batismais de Ambrósio se tornam ricos instrumentos para a compreensão da história e da teologia dos sacramentos da Iniciação Cristã durante esse período no Ocidente.

O tratado “Sobre os sacramentos” consiste em seis livros, correspondendo aos seis dias da semana catequética realizada após o domingo de Páscoa. De modo geral, os livros I-IV abordam os três sacramentos da Iniciação Cristã, enquanto os livros V e VI discorrem acerca da iniciação à vida de oração. A obra “Sobre os mistérios” é uma versão resumida do tratado “Sobre os sacramentos”. Aquela era destinada à publicação e, por isso, em respeito “à disciplina do arcano”, [2] eram omitidas algumas partes como as palavras do batismo, da oração eucarística e do Pai-nosso (cf. SATTERLEE, 2002, p. 13).

Em meio à sua riqueza descritiva e interpretativa dos ritos da Iniciação Cristã nas catequeses mistagógicas de Ambrósio, este estudo versará, mais especificamente, a respeito da ação do Espírito Santo nos sacramentos do batismo e da confirmação.[3] Em cada um deles, este artigo seguirá dois pontos. Em primeiro lugar, mostraremos o Espírito Santo na sua dimensão ritual, isto é, veremos como o Bispo de Milão aborda o seu agir na celebração de ambos os sacramentos. Num segundo momento, veremos o Espírito Santo na sua dimensão tipológica, isto é, a sua relação com mistério histórico-salvífico: o que ocorreu nos eventos do passado em figura acontece também no “hoje” litúrgico-celebrativo daquele que recebe os sacramentos do batismo e da confirmação.

1. O Espírito Santo no sacramento do batismo

1.1 Dimensão ritual

No Livro I do seu tratado “Sobre os sacramentos”, aparece a primeira menção acerca do Espírito Santo. Ambrósio fala da sua eficácia na transformação da fonte batismal, tornando-a diferente das outras águas que o neófito encontra: “O que significa isso? Viste a água, mas nem toda água cura; contudo, a água que contém a graça de Cristo cura. Uma coisa é o elemento, outra é a consagração; uma coisa é o ato, outra é a eficácia” (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 35). Por si mesma, a água não tem propriedade de curar, de modo que a água da fonte batismal não pode ser confundida como uma água que se vê e se usa no cotidiano. No “banho da regeneração”,[4] então, Ambrósio afirma que “o ato é da água, mas a eficácia é do Espírito Santo. A água não cura, a não ser que o Espírito Santo tenha descido e consagrado essa água” (ibidem, p. 35).

Na sua obra “Sobre os mistérios”, Ambrósio reforça que o mistério comunicado pelas águas escapa à simples e rotineira percepção sensorial, convidando o neófito a não ficar apenas nas aparências do gesto batismal: “Por isso, já te foi dito para creres não só naquilo que vias, a fim de que talvez tu também não digas: “Este é o grande mistério que ‘o olho não viu, nem o ouvido ouviu, nem tem acesso ao coração do homem’? (1Cor 2,9)” (ibidem, p. 85). Concluindo seu argumento, o Bispo de Milão mostra que a água batismal é superior a todas as outras águas nas quais o neófito se banhou, exatamente pelo fato de naquela ocorrer a ação do Espírito Santo: “Vejo a água que eu via diariamente: esta pode me purificar, se já desci nela muitas vezes e nunca fui purificado? Portanto, saiba que a água não purifica sem o Espírito” (ibidem, p. 85).

Nosso mistagogo, ainda, estabelece a união entre água, sangue e Espírito, que formam uma espécie de “tripé” quando se trata do banho da regeneração, “porque se tiras um deles, não existe sacramento do batismo” (ibidem, p. 86). À luz da 1ª Carta de São João, Ambrósio apresenta aos seus neófitos “os três testemunhos” – água, sangue e Espírito – do sacramento do batismo (1Jo 5,7-8). Para ele, a “água, sem a cruz de Cristo, é apenas um elemento comum sem nenhuma utilidade para o sacramento”. Ao mesmo tempo, “não há mistério da regeneração sem a água”, pois, “a não ser que tenha renascido da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus (Jo 3,5)” (ibidem, p. 86). Ao encerrar o tema, Ambrósio ressalta que “o catecúmeno também crê na cruz do Senhor Jesus pela qual ele foi marcado, mas a não ser que tenha sido batizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, não pode receber a remissão dos pecados nem haurir o dom da graça espiritual” (ibidem, p. 86).

Ao longo de sua catequese mistagógica, Ambrósio estabelece uma união entre cristologia e pneumatologia na consagração da fonte. O vínculo entre Cristo e o Espírito no rito é enfatizado quando, no Livro I “Sobre os sacramentos”, o Bispo de Milão traça um paralelo entre o batismo de Jesus e o ato de consagrar a fonte. Assim como Cristo desceu primeiro às águas, seguido pelo Espírito em forma da pomba, do mesmo modo, o sacerdote – figura de Cristo[5] – desce primeiro e depois invoca a presença do Espírito para santificar a água: “De fato, primeiro entra o sacerdote, faz o exorcismo sobre a criatura que é a água, depois faz a invocação e a prece para que a fonte fique santificada e aí esteja a presença da Trindade eterna” (ibidem, p. 35-36). Ambrósio conclui este raciocínio apontando para a presença da Trindade: “Cristo, portanto, desceu à água e o Espírito Santo desceu como uma pomba. Deus Pai, por sua vez, falou do céu (cf. Mt 3,16-17). Tens a presença da Trindade” (ibidem, p. 36).

Nosso mistagogo afirma, no Livro II do tratado “Sobre os sacramentos”, que as palavras usadas para a bênção da fonte batismal são “palavras celestes, porque são de Cristo” (ibidem, p. 42). Ambrósio lembra que o próprio Salvador ordenou que batizássemos “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,19). Com efeito, “se a Trindade se torna presente pela palavra dos homens, pela invocação de um santo, quanto mais estará ela presente se se trata da palavra eterna” (ibidem, p. 42), isto é, da Palavra do próprio Verbo encarnado. A Trindade, portanto, é invocada sobre a fonte para continuar a missão santificadora de Cristo, que confia à Igreja a missão de batizar.

Além da presença da Trindade na fonte, a mesma se torna o objeto da fé que o neófito professa ao passar pela água consagrada:


Foste interrogado: “Crês em Deus Pai onipotente?” Respondeste: “Creio”. E entraste na água, isto é, foste sepultado. De novo te perguntaram: “Crês em nosso Senhor Jesus Cristo e na sua cruz?” Respondeste: “Creio”. E entraste na água. Foste assim sepultado com Cristo (cf. Rm 6,4). Com efeito, aquele que é sepultado com Cristo, ressurge com Cristo. Pela terceira vez te perguntaram: “Crês no Espírito Santo?” Respondeste: “Creio”. E entraste na água pela terceira vez, a fim de que a tríplice confissão absolvesse as inúmeras faltas da vida passada (ibidem, p. 44-45).


A profissão da fé trinitária no momento do banho batismal se torna um fator para Ambrósio defender a ortodoxia no que tange à igual dignidade do Filho e do Espírito em relação ao Pai. No tratado “Sobre os mistérios”, nosso mistagogo mostra que o neófito disse que crê no Pai, crê no Filho e crê no Espírito Santo e não que “creio em um maior, em um menor e num último”, pois “pelo próprio aval de tua palavra, és obrigado a crer no Filho da mesma forma que crês no Pai, crer no Espírito da mesma forma que crês no Filho” (ibidem, p. 88-89). No Livro II “Sobre os sacramentos”, ainda, Ambrósio reforça que o perdão dos pecados é um atributo das Três Pessoas: “o Pai perdoa o pecado, assim o Filho perdoa e assim também o Espírito Santo” (ibidem, p. 45). Dessa forma, “regenerado pela água e pelo Espírito”, o neófito se prepara para receber a vida eterna, preferindo esta à vida temporal (cf. ibidem, p. 46).

Além disso, no pensamento do Bispo de Milão, o Espírito Santo continua a obra da salvação, superando a ordem da natureza. De fato, se ele agiu na concepção virginal de Maria, possibilitando ao Verbo eterno o nascimento segundo a carne, o mesmo Espírito realiza o novo nascimento naqueles que passam pela fonte batismal. Então, “se o Espírito Santo, vindo sobre uma virgem, produziu a concepção e realizou a obra da geração, não deve haver dúvida que o Espírito Santo, vindo sobre a fonte ou sobre aqueles que se apresentam para o batismo, não realize a verdade da regeneração” (ibidem, p. 99). Com efeito, se o poder do Espírito muda o curso da natureza, também ele é capaz de mudar aqueles que recebem o novo nascimento: de uma velha criatura surge uma nova pessoa.

1.2 Dimensão tipológica

Além de ensinar aos seus neófitos acerca da importância do Espírito Santo para a eficácia da água batismal, Ambrósio também evoca a sua presença nos eventos da história da salvação. Para além da explicação dos ritos, nosso mistagogo ilumina seus catequizandos com uma sólida fundamentação bíblica, relacionando os textos da Escritura aos sacramentos que receberam. À luz do método tipológico, então, Ambrósio mostra que a experiência salvífica do passado, também acontece na vida daquele que celebra hoje o sacramento.

Na relação entre o rito e os eventos histórico-salvíficos, Ambrósio apresenta no tratado “Sobre os mistérios” a missão do Espírito partindo da criação (cf. Gn 1,2), ressaltando “quão antigo é esse mistério [do batismo] e como foi prefigurado na origem do próprio mundo” (ibidem, p. 83). Ambrósio lembra que “quando Deus fez o céu e a terra, o Espírito pairava sobre as águas. Aquele que pairava sobre as águas não agia sobre as águas? O que direi? Ele agia. Quanto ao que se refere à presença, ele pairava. Aquele que pairava não agia?” (ibidem, p. 83). Através desse trecho, nosso mistagogo demonstra que o Espírito não apenas estava presente: Ele também agia. A presença e a ação aqui retratadas são correlativas e simultâneas, pois o Espírito está presente exatamente para agir (BERNARDO, 1988, p. 251). Como outrora o Espírito agiu na criação, do mesmo modo, no “hoje” da ritualidade cristã, Ele age para dar a vida nova àquele que recebe o sacramento do batismo.

O segundo evento na ordem da economia salvífica está relacionado às águas do dilúvio. No que se refere ao Espírito Santo, Ambrósio chama atenção para a figura da pomba que Noé solta da arca e regressa trazendo um ramo de oliveira, conforme Gn 8,11. O mistagogo lhe dá o significado: “A pomba é o aspecto no qual desceu o Espírito Santo, como aprendeste no Novo Testamento, aquele que te inspira a paz da alma e a tranquilidade do espírito” (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 83). A experiência de paz recebida no sacramento foi lembrada por Agostinho: “Fomos batizados e desapareceu qualquer preocupação quanto à vida passada” (AGOSTINHO DE HIPONA, 2006, p. 243).

O terceiro testemunho da presença do Espírito na história salvífica é o da passagem no Mar Vermelho. Ambrósio relembra o cântico de Moisés: “Enviaste o teu Espírito e o mar os engoliu” (Ex 15,10). Em seguida, o mistagogo afirma que nesse evento, “já se encontra prefigurado o santo batismo nesta passagem dos hebreus, onde o egípcio perece e o hebreu escapa. O que mais aprendemos todo dia neste sacramento, senão que a culpa é engolida e o erro abolido, enquanto a piedade e a inocência atravessam intactas?” (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 84). O vento do Espírito, então, faz “afogar” as faltas passadas e preserva o neófito, que, a partir do batismo, abraça a vida nova em Cristo.

Além da ação purificadora do Espírito nos acontecimentos do Êxodo, Ambrósio evoca a imagem da nuvem (cf. Ex 13,21). Ele parte do ensinamento de 1Cor 10,1-2: “Nossos pais ficaram todos sob a nuvem, todos eles atravessaram o mar e todos eles foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar” (ibidem, p. 83-84). A nuvem é figura do Espírito Santo, que não se reduziu a uma simples função de “escolta” do povo libertado, mas contribuiu para o mistério de santificação. De fato, “nossos pais ficaram sob a nuvem e sob uma boa nuvem, que resfria o incêndio das paixões carnais. Sob uma boa nuvem: ela protege aqueles que o Espírito Santo visitou” (ibidem, p. 84).

Nos três primeiros grandes eventos da história salvífica que vimos na obra “Sobre os mistérios”, Ambrósio traçou o papel do Espírito, que se desdobra em múltiplos benefícios para os que recebem a água do batismo. Com efeito, à luz da criação, o Espírito traz a vida nova, isto é, torna o batizado partícipe da nova criação. No dilúvio, por sua vez, Ele concede a paz de espírito ao neófito. Por fim, à luz da passagem do mar, o Espírito Santo acompanha e protege aqueles que passam pelo banho da regeneração.

Em relação ao Novo Testamento, no Livro I “Sobre os sacramentos”, Ambrósio apresenta a tipologia do Espírito Santo no batismo de Jesus. No acontecido nas águas do rio Jordão, o Espírito “desceu do céu sob a aparência de pomba, não na realidade de uma pomba, mas na aparência de uma pomba” (ibidem, p. 35). Nosso mistagogo, ainda, no tratado “Sobre os mistérios”, faz um paralelo entre a pomba que desceu sobre Jesus[6] e a que Noé soltou da arca: “por que o Espírito desceu como pomba, a não ser para que tu vejas, a não ser para que também reconheças que essa pomba, que o justo Noé soltou da arca, tinha sido a imagem desta pomba, para que reconheças o símbolo do sacramento?” (ibidem, p. 87). A pomba saída da arca, ainda, não apenas remete ao Espírito Santo que desceu sobre Jesus em seu batismo, mas ela é também uma revelação inicial da presença do Espírito na vida daqueles que são incorporados à Igreja (cf. ELLEBRACHT, 1986, p. 359).

Ambrósio prossegue sua catequese partindo da simplicidade da pomba, da qual se fala no Evangelho (cf. Mt 10,16). Com efeito, “a simplicidade daqueles que são batizados não deve ser em imagem, mas real. [...] Portanto, não é sem razão que ele desceu como pomba: foi para nos advertir que devemos ter a simplicidade da pomba” (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 87-88). Desse modo, o Bispo de Milão adverte que a experiência de vida nova deve também resplandecer na existência do batizado, para além do momento celebrativo.

A imagem da pomba que desce no Jordão se torna a chave da interpretação tipológica da pomba que Noé soltou no dilúvio. Assim, o Espírito Santo é aquele que traz a simplicidade e a paz ao homem através do sacramento do batismo, no qual age a Trindade que Se revelou no batismo de Jesus (cf. BERNARDO, 1988, p. 329-330). Por isso, de acordo com o pensamento de Ambrósio, o neófito não pode duvidar da presença Trinitária no sacramento:


É ainda possível que tu duvides, quando o Pai, proclama a ti com toda clareza no Evangelho: “Este é o meu Filho, no qual pus a minha complacência” (Mt 3,17), quando proclama o Filho, sobre o qual o Espírito Santo mostrou-se como pomba, quando proclama também o Espírito Santo que desceu como pomba, quando proclama Davi: “A voz do Senhor sobre as águas, o Senhor de Majestade trovejou, o Senhor sobre muitas águas” (Sl 28,3)? (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 88).


Na cura do paralítico da piscina de Betesda (cf. Jo 5,1-18), ao falar da figura do anjo que descia às águas para agitá-las, Ambrósio o apresenta tanto como uma tipologia de Cristo como do Espírito. No Livro II do tratado “Sobre os sacramentos”, Ambrósio traça o paralelo entre o anjo e Cristo, mas é na obra “Sobre os mistérios” que ele o associa ao Espírito Santo: “O anjo descia e [...] a água se agitava. A água se agitava por causa dos incrédulos. Para eles existia um sinal, para ti a fé; para eles, descia um anjo, para ti, o Espírito Santo; para eles, agitava-se uma criatura; para ti, é o Cristo, Senhor da criatura, que age” (ibidem, p. 86).[7] Em suma, “a doença espiritual do homem só pode ser curada pela ação do Espírito Santo que, figurada na descida e ação do anjo da piscina, e invocado pelo bispo, consagra as águas da Fonte em que o catecúmeno doente mergulha” (BERNARDO, 1988, p. 341).

Ambrósio, ainda, no Livro V “Sobre os sacramentos”, apresenta a ação regeneradora do Espírito Santo no batismo à luz do Cântico dos Cânticos: “Quem são essas donzelas, senão todas as almas que depuseram a velhice deste corpo, renovadas pelo Espírito Santo?” (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 63). A purificação recebida mediante o Espírito, ainda, confere a beleza ao neófito, a ponto de receber o elogio do próprio Cristo. De fato, Ambrósio, no tratado “Sobre os mistérios”, afirma que o Salvador vendo “a alma pura e lavada pelo banho da regeneração, diz: “Como és bela, minha amiga, como és bela. Teus olhos são como os da pomba” (Ct 4,2), sob a aparência da qual o Espírito Santo desceu do céu. Olhos formosos, [...] porque ele desceu como pomba” (ibidem, p. 91).

Com os “olhos de pomba”, o neófito é capaz de compreender o significado moral e místico das Escrituras (cf. VOPRADA, 2016, p. 267). Destinado aos recém-batizados, o ensino mistagógico de Ambrósio transmite precisamente isso: uma moral à luz do mistério de Cristo.

Por meio das figuras mencionadas, observamos a força e a eficácia renovadora do Espírito Santo na vida do neófito. Os textos bíblicos eram a chave de compreensão para os catequizandos de Ambrósio aprofundarem o mistério da regeneração que lhes possibilitou uma existência nova em Cristo. De fato, através do método tipológico presente nas catequeses ambrosianas, “o drama da salvação está sendo representado com toda sua plenitude. Ao acreditar que o Espírito está ativo, os recém-batizados são mais abertos à ação do Espírito” (SATTERLEE, 2002, p. 279).

2.1. Dimensão ritual

Terminado o rito do batismo, o neófito recebe o sacramento da confirmação.[8] Ambrósio não explicita se o gesto é acompanhado por uma unção, o que descarta a hipótese de seu uso em Milão.[9] Pela invocação do bispo, o Espírito Santo é concedido.[10] O sacramento é denominado por Ambrósio “selo espiritual”, conforme observamos no Livro III do tratado “Sobre os sacramentos”:


Depois disso, vem o selo espiritual do qual ouviste hoje na leitura. Depois da fonte, resta ainda ser feita a perfeição, quando, pela invocação do sacerdote, infunde-se o Espírito, o Espírito da sabedoria e da inteligência, o Espírito do conselho e da força, o Espírito do conhecimento e da piedade e o Espírito do temor santo (Is 11,2-3), que são como que as sete virtudes do Espírito (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 50).


Para Ambrósio, as sete virtudes do Espírito recebidas na consignação[11] demonstram a multiformidade da sabedoria de Deus, da mesma forma como “a sabedoria de nosso Senhor tem muitas formas e a sabedoria de Deus tem muitas formas” (ibidem, p. 50). Partindo desse princípio, o Bispo de Milão, mais uma vez em defesa da ortodoxia, equipara o Espírito Santo em divindade igual à do Pai e do Filho, afirmando que “o Espírito Santo tem muitas formas, pois ele possui toda uma variedade de virtudes (Sl 79,5.8.15.20). Por isso, dizemos que é o Deus das virtudes, e isso pode ser aplicado ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo” (ibidem, p. 50).

Não só em relação à divindade, mas também o Espírito Santo possui a mesma autoridade do Pai e do Filho. Apoiando-se numa citação paulina, no Livro VI “Sobre os sacramentos”, Ambrósio afirma que o “mesmo Espírito reparte a cada um como quer” (1Cor 12,11). Em seguida, então, exorta: “o Espírito, vos repartiu a graça conforme quer e não como foi mandado, principalmente porque o Espírito de Deus é o Espírito de Cristo. Guardai bem isto: ele é o Espírito Santo, o Espírito de Deus, o Espírito de Deus e o Espírito Paráclito” (ibidem, p. 71).

Ambrósio faz uma crítica aos arianos. Para estes, chamar o Espírito Santo de Espírito Paráclito é rebaixá-Lo. O mistagogo, então, questiona: “O que é o Paráclito senão o Consolador? Como se não se lesse também que ele é o Deus de consolação. Vês que eles julgam rebaixar o Espírito Santo por aquilo que serve para proclamar o poder do Pai eterno com sentimento de afeto” (ibidem, p. 71).

No pensamento de Ambrósio, o mistério da Trindade apresenta uma unidade indissolúvel em relação aos sacramentos do batismo e da confirmação: “Foi Deus que te chamou, e no batismo foste crucificado com Cristo de maneira mais especial; depois, de modo especial, quando recebes o selo espiritual tu vês que existe distinção de pessoas, mas que todo o mistério da Trindade está conexo” (ibidem, p. 70).

Ao receber o selo espiritual, o batizado também é configurado a Cristo, “para se assemelhar a Ele, para ressuscitar à sua imagem, viver a exemplo dele, que foi crucificado para o pecado e vive para Deus” (ibidem, p. 70). De fato, “o selo é a imagem, o esplendor e a graça de Cristo, impressos no neófito pelo dom do Espírito” (BERNARDO, 1988, p. 227). Por isso, Ambrósio exorta seus neófitos no tratado “Sobre os mistérios” a conservarem a graça concedida pelo selo espiritual: “Lembra-te, portanto, que recebeste o selo espiritual, [...] e conserva o que recebeste. Deus Pai te marcou com seu selo; o Cristo Senhor te confirmou e infundiu o Espírito em teu coração como penhor” (AMBRÓSIO DE MILÃO, 2005, p. 92-93).

2.2 Dimensão tipológica

Partindo da perspectiva trinitária, no Livro VI “Sobre os sacramentos”, o Bispo de Milão chega à figura do Cântico dos Cânticos, aprofundando o sentido do selo espiritual:


É Deus que te ungiu e o Senhor que te marcou com um selo e pôs o Espírito Santo em teu coração. Recebeste, portanto, o Espírito Santo em teu coração. Escuta outra coisa. Assim como o Espírito Santo está no coração, também Cristo está no coração. Como? Encontras isso no Cântico dos cânticos, onde Cristo diz à Igreja: “Põe-me como um selo em teu coração, como um selo em teus braços” (Ct 8,6) (ibidem, p. 70).


Após receber a beleza da vida nova pelo batismo, o neófito recebe o selo em seu coração e em seus braços, significando, respectivamente, a fé e a prática das boas obras. O dom do Espírito, então, ilumina tanto a fé professada ao passar pelo banho da regeneração como as atitudes originadas pela vida nova concedida pelo batismo. De fato, Ambrósio afirma no tratado “Sobre os mistérios”: “Coloca-me como um selo em teu coração, para que tua fé resplandeça na plenitude do sacramento. Que tuas obras brilhem também, e mostrem a imagem de Deus, a cuja imagem tu foste feita” (ibidem, p. 92). Mesmo que sobrevenham as perseguições, o amor entre o neófito e Cristo não pode ser diminuído, pois o neófito está marcado pelo selo espiritual: “Que o teu amor não seja diminuído por nenhuma perseguição; esse amor que as grandes águas não podem excluir e que os rios não podem inundar” (ibidem, p. 92).

Desse modo, à luz da tipologia do Cântico dos Cânticos, Ambrósio demonstra aos neófitos os efeitos da presença do selo espiritual. Marcados pelo Espírito, os recém-batizados são configurados à imagem de Deus e, assim, tornam-se perseverantes na fé e incansáveis na prática das boas obras.

Conclusão

Em suas catequeses mistagógicas, Ambrósio buscava ajudar seus neófitos a compreenderem os ritos e a entrarem no universo das Escrituras. Neste artigo, mais especificamente, ocupamo-nos em trabalhar a dimensão pneumatológica dos sacramentos do batismo e da confirmação, seja na sua ritualidade, seja também em sua abordagem tipológica.

Em ambos os sacramentos, observamos que, no final das contas, os argumentos convergem para a presença da Trindade. Mesmo fazendo uma cristologia ou uma pneumatologia em algum aspecto ou outro do rito, Ambrósio, no fundo, traz aos seus neófitos a dimensão trinitária tanto do batismo como da confirmação. Para nosso mistagogo, essa convergência se faz importante, uma vez que, em sua época, grassavam heresias que questionavam a igualdade entre as Três Pessoas Divinas.

De fato, para além de sua abordagem trinitária, Ambrósio reforça a ortodoxia a partir da explicação do gesto ritual, como por exemplo, na profissão de fé ao passar pela água batismal. Embora as catequeses mistagógicas não tenham como objetivo debater assuntos dogmáticos, as breves considerações de Ambrósio despertavam em seus neófitos a necessidade de compreender a verdadeira doutrina. O próprio rito fornecia uma chave hermenêutica para o correto entendimento da fé. Dessa forma, o Bispo de Milão demonstra que a Igreja celebra aquilo que crê e crê a partir daquilo que celebra. Em outras palavras, no pensamento mistagógico de Ambrósio, é bem clara a mútua relação entre lex orandi e lex credendi.

À luz das catequeses mistagógicas, então, compreendemos que Ambrósio se preocupou em mostrar aos seus neófitos ação do Espírito Santo, cuja presença concede a eficácia aos gestos rituais. No batismo, Ele traz a vida nova e a paz. Por sua vez, no sacramento da confirmação, Ele infunde as virtudes do Espírito para o batizado se tornar testemunha de Cristo, inclusive nos momentos de provação. Mas o que salta aos olhos é a preocupação de Ambrósio em refutar as heresias que rebaixam o Espírito Santo. Para o nosso mistagogo, basta o testemunho de suas ações no rito e na história salvífica para mostrar que o Espírito é igual em divindade e autoridade em relação ao Pai e ao Filho.

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PAREDI, Angelo. La liturgia di Sant’Ambrogio. In: SORANZO, Giovanni et al. Sant’Ambrogio nel XVI centenario della nascita. Milano: Vita e Pensiero, 1940, p. 69-157.

SATTERLEE, Craig Alan. Ambrose of Milan´s method of mistagogical preaching. Collegeville: The Liturgical Press, 2002.

VOPRADA, David. La mistagogia del commento al Salmo 118 di Sant’Ambrogio. Roma: Istituto Patristicum Augustinianum, 2016.

Notas

[1] Ambrósio, bispo de Milão, nasceu por volta do ano 340, possivelmente em Tréveres, capital da província da Gália. Depois da morte do pai, Ambrósio parte com a mãe e seus irmãos, Marcelina e Sátiro, para Roma, onde recebe sólida formação filosófica, retórica e literária. No ano 370, Ambrósio é nomeado governador da província da Emília-Ligúria, cuja sede era Milão. Depois da morte do bispo Auxêncio, no ano 374, Ambrósio é eleito bispo de Milão, mesmo ainda sendo catecúmeno. Seu episcopado foi marcado por intensa atividade pastoral. Um dos seus grandes méritos foi o de acolher entre as fileiras dos iniciados à vida cristã o jovem e inquieto futuro bispo de Hipona, Agostinho, batizado solenemente pelo próprio Ambrósio em 387. Também deixou várias obras escritas, o que demostra a sua preocupação em ajudar seu povo a se instruir e se defender contra os erros doutrinais. Ambrósio faleceu a 04 de abril de 397 (cf. BENEDITO, 2014, p. 11-19).

[2] “Disciplina do arcano” é uma expressão que foi cunhada no século XVII. Ela tinha como objetivo expressar o segredo em torno de alguns elementos da liturgia cristã na Igreja Antiga, tais como o Símbolo da fé, o Pai-nosso e as fórmulas do Batismo e da Eucaristia, proibidos de serem divulgados a quem não fosse iniciado na fé cristã. Tal método surgiu aproximadamente no final do século II e perdurou até a metade do século V, desaparecendo juntamente com o paganismo (cf. PAREDI, 1940, p. 83).

[3] No que se refere à relação entre o Espírito Santo e a Eucaristia nas catequeses mistagógicas, os dados são escassos. A oração eucarística que Ambrósio menciona no Livro IV da obra “Sobre os sacramentos” não faz nenhuma referência ao Espírito Santo. A anáfora relatada por Ambrósio tem algumas correspondências com o atual Cânon Romano, que também não cita o Espírito Santo. Por outro lado, é curioso que no tratado “Sobre o Espírito Santo”, Ambrósio afirme que o Espírito “é nomeado junto ao Pai e ao Filho pelos sacerdotes no batismo e é invocado nas oferendas” (AMBROSIO DE MILÁN, 1998, p. 226-227).

[4] “Banho da regeneração” é outra forma de Ambrósio se referir ao sacramento do batismo (cf. idem, 2005, p. 90-91).

[5] “O sacerdote celebrante, bispo ou presbítero que sejam, são também eles figura dos mistérios que celebram” (ALEO, 2010, p. 37).

[6] “O Pai revelou a João quem era o Messias. O Pai que o tinha enviado a batizar, lhe havia dado também o sinal para reconhecer o Cristo: a descida do Espírito Santo sobre Ele. Desde aquela indicação do Pai, fica para sempre revelado que a função do Espírito é a de revelar o Messias. João não apenas reconhece Jesus, senão que, de imediato, se converte em sua testemunha, dando testemunho dele” (GRANADO, 1980, p. 339).

[7] Em seu tratado “Sobre o Espírito Santo”, Ambrósio aprofunda a relação entre o anjo da piscina de Betesda e o Espírito: “O que anunciava tipologicamente o anjo, senão a descida do Espírito Santo, que acontecendo em nossos dias, invocado pelas preces sacerdotais, consagraria as águas? Portanto, aquele anjo era mensageiro do Espírito Santo, dado que, pela graça espiritual, haveria de proporcionar o remédio às nossas enfermidades da alma e da mente” (AMBROSIO DE MILÁN, 1998, p.77).

[8] Apesar de Ambrósio usar o termo “confirmar” – como veremos mais adiante –, “ele não traduz ainda o nome próprio que ao sacramento do dom do Espírito será dado posteriormente. [...] É no Concílio de Riez, em 439, que Confirmatio aparece como termo técnico para designar o sacramento do dom do Espírito Santo” (BERNARDO, 1988, p. 105).

[9] “A ação da unção por parte do Espírito é frequentemente entendida no sentido simbólico, de unção espiritual” (BORELLA, 2013, p. 576).

[10] “Deus dá o Espírito Santo. Com efeito, não é esta uma obra humana nem é dado por um homem, senão que é invocado pelo sacerdote e o dá Deus, em que o dom é de Deus e o ministério do sacerdote” (AMBROSIO DE MILÁN, 1998, p. 78-79).

[11] “Consignação” é também um nome com que Ambrósio se refere ao ato de marcar o neófito com o selo do Espírito (idem, 2005, p. 50).