Danilo Dourado Guerra
Doutorado e Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Emivaldo Silva Nogueira
Doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
Resumo
Neste artigo analisamos o personagem Onésimo na carta a Filêmon, que, embora fosse um “eu” que se encontrava na comunidade dos cristianismos nascentes, vivia uma situação de desigualdade. Para esta análise, nos pautaremos na Filosofia do Reconhecimento de Martin Buber, filósofo e teólogo judeu, que a partir de diferentes campos abordou a questão do diálogo e da comunidade com uma importância singular. Começaremos descrevendo o cenário de naturalização das desigualdades e da escravidão estruturada no império Romano do século I d.C., na sequência, faremos uma análise do personagem Onésimo e sua situação na comunidade cristã originária. Em seguida, apresentaremos os argumentos de Martin Buber por meio de sua Filosofia do Reconhecimento, e, finalmente, a Filosofia do Reconhecimento como modo de emancipação e vivência em comum.
Palavras-chave: Alteridade, comunidade, Filêmon, Martin Buber.
Abstract
In this article we analyze the character Onesimus in the letter to Philemon, who, although he was an "I" in the community of nascent Christianity, lived in a situation of inequality. For this analysis, we will base ourselves on the Philosophy of Recognition of Martin Buber, a Jewish philosopher and theologian who, from different fields, approached the question of dialogue and community with singular importance. We will begin by describing the scenario of naturalization of inequalities and structured slavery in the Roman Empire of the first century A.D., in the sequence we will make an analysis of the character Onesimus and his situation in the original Christian community. Next, we will present the arguments of Martin Buber through his Philosophy of Recognition, and finally, the Philosophy of Recognition as a way of emancipation and living together.
Keywords: Alterity, community, Philémon, Martin Buber.
O estudo da escravidão antiga, bem como de qualquer outro sistema escravocrata, vai para muito além de focar um certo ponto da história particular de um e outro povo, mas implica em lidar com um problema que afeta a dimensão universal do humano. A escravidão, seja a presente nas sociedades antigas, seja a colonial ou a que se verifica em nossos dias, foi sempre um fenômeno de degradação da pessoa humana, de redução do ser humano à condição de mera força de trabalho, alienada de seus laços familiares, de seu espaço, de sua autonomia, de sua liberdade e de sua dignidade enquanto ente humano (VASCONCELOS, 2012, p. 137).
Atualmente, a questão da comunidade (ser-em-comum) tem um significado importante para os antropólogos, filósofos, teólogos, sociólogos e cientistas das mais variadas áreas. Este não é um assunto esgotado; pelo contrário, é necessário analisá-lo a partir de diferentes perspectivas, de modo que possa contribuir para uma melhor compreensão em tempos contemporâneos. Há ainda algumas questões pendentes, como postula Buber (1977, p. 32), já que “o eu se torna Eu em virtude do Tu. Isto significa que devo a ele o meu lugar. Eu lhe devo minha relação a ele” com os quais pode iniciar o intercâmbio entre os laços da comunidade e participação.
Acontece que, o ser humano contemporâneo, tende a ser isolado dos outros e inter-refugiado em uma comunidade onde ele é o centro, a base e o fim último, sem construir ligações duráveis, promovendo uma atitude de indiferença à dimensão política, social e espiritual do outro enquanto fenômeno. Daí a importância de reconstruir e fortalecer esses valores que fazem a comunidade.
Neste artigo, analisamos o personagem Onésimo[1] na carta a Filêmon, que, embora fosse um “eu” que se encontrava na comunidade dos cristianismos nascentes, vivia uma situação de desigualdade e escravidão. Para esta análise, nos pautaremos na Filosofia do Reconhecimento de Martin Buber, filósofo e teólogo judeu, contida na obra Diálogo y Otros Escritos, (1997) que a partir de diferentes campos, abordou a questão do diálogo e da comunidade com uma importância singular. Buber é certamente um dos grandes defensores da comunidade; que é constituída por cidadãos que exercem a liberdade, ou seja, eles são livres para pensar por si mesmos e expressar suas opiniões no espaço público, que é plural e constitucional. Para Buber, justiça e igualdade são os pilares fundamentais da comunidade, pressupostos contrários à ideia pseudocristã que reduz a liberdade ao espaço privado. Buber quer transcender este elemento, tendo em vista que, tal desigualdade, não pode ser base para a fundação de uma comunidade.
A luz destes elementos, no roteiro desse artigo, começaremos descrevendo o cenário de naturalização das desigualdades e da escravidão estruturada no império Romano do século I d.C., na sequência, faremos uma análise do personagem Onésimo e sua situação na comunidade cristã originária. Em seguida, apresentaremos os argumentos de Martin Buber (1997) por meio de sua Filosofia do Reconhecimento, e, finalmente, a Filosofia do Reconhecimento como modo de emancipação e vivência em comum.
No cosmos-Império Romano, a igualdade social era uma questão de perspectiva[2]. sob uma ótica androcêntrica e patri-kyriarcal[3] (RICHTER REIMER, 2005), a cultura das naturalizações das desigualdades transitava de modo sólido entre as civilizações do mundo mediterrâneo do século I. Pois “é no contexto de formatação de ideologias greco-romanas que se elaborou a concepção de que a desigualdade socioeconômica é ‘natural’” (RICHTER REIMER e REIMER, 2011, p. 42). Esse viés ideológico se articulava em uma realidade inseparável entre política e religião. Isso porque, a unidade do sistema político romano “dependia não só de instituições aceitas por todos, impostos e defesas militares, mas também de símbolos compartilhados pelas mentes humanas” (CROSSAN, 2007, p. 218).
No prisma romano e em perspectiva da estruturação da simbologia religiosa, sua religiosidade se configura a partir do âmbito de sua pluralidade em conexão com sua realidade social. De acordo com Fougères (apud BORNECQUE, 1976, p. 67):
A religião nunca deixou de ser o laço mais forte da cidade romana; com esta identificou-se a tal ponto que foi uma forma de patriotismo. Os interesses de uma eram os da outra. Tanto para o cidadão quanto para o Estado, o temor dos deuses era o princípio da sabedoria e o ponto de partida para toda atividade política. Os serviços dos deuses e o da República eram uma só e mesma coisa.
Em um espaço onde as práticas de dominação eram instituídas e naturalizadas, e o argumento religioso atuava como estruturante sócio-político, “a clara desigualdade entre as pessoas [...] era considerada normal, útil e querida por Deus” (MALINA, 1995, p. 134). Sob esse prisma, o argumento teológico imperial formatava o não questionar dos necessitados e mantinha-se o status quo dominante. Dentro dessa configuração, a figura do imperador funcionava tanto como elemento de legitimação de poderes quanto como elo entre os deuses e os homens.
Na época do Principado, o príncipe era o primeiro, a personalidade que estava sobre o senado e sobre o povo. No mundo romano esta primazia implicava em uma diferença de natureza entre sua pessoa e o resto da humanidade. O imperador era a encarnação da lei e o depositário dos auspícios divinos, o ser humano mais próximo aos deuses, que foi enviado por eles e a eles deve voltar depois de sua morte através dos ritos de apoteose (GUERRA, 2018, p. 147-234), saindo de sua condição mortal e ascendendo ao mundo dos deuses (CARCOPINO, 2001). Nesse rito, que sob o viés político pode ser visto como uma manobra sacralizadora, tanto o César quanto a ideologia dominante eram transportados para uma esfera urânica e consequentemente incontestável. Instala-se o mecanismo da latreocracia, o poder cultual que gerencia, potencializa e legitima o devoto dobrar dos joelhos ao que é desigual (GUERRA, 2018, p. 142).
O discurso do ideólogo romano Cícero evidencia com que naturalidade eram justificadas as práticas de dominação naquele tempo. Segundo ele, é “natural [que os] espiritualmente melhores estão colocados sobre os desprivilegiados” (CÍCERO apud RICHTER REIMER e REIMER, 2011, p. 43). É nesse ambiente de ideologias sacralizadas e amparadas pela estruturação do sistema simbólico religioso, que se configura a cena estratigráfica do mundo mediterrâneo do século I.
De acordo com Alföldy (1986), se reparamos a existência de mais de mil cidades contidas no Império Romano, podemos dar conta de que com elas estavam fundadas as bases para uma assimilação das novas estruturas sociais. Dessa forma, a sociedade compreendia, de um lado, as camadas altas, representadas pela elite dirigente das cidades e ricos proprietários dos territórios urbanos, e cujos grupos mais ricos foram recebidos no estabelecimento equestre[4] e senatorial[5]. O outro lado englobava os estratos inferiores da população urbana e campesina, cujos integrantes viviam sob diversas formas de dependência social. Nesse nicho estava toda a força de trabalho do Império, incluindo os pobres, as mulheres e os escravos[6].
Esse cenário da Roma Antiga evoca, pois, a prática da escravidão como algo ideologicamente legitimado. Nesse ambiente, a principal escravização acontecia no ‘aprisionar das mentalidades’, lugar onde se interditam ou se iniciam as revoluções e as transformações sociais. Dentro da esfera da naturalização da escravidão, Aristóteles discursa que:
Por isso o amo não é do escravo outra coisa que amo, porém não lhe pertence, enquanto que o escravo não só é escravo do amo, como lhe pertence por completo. Daqui deduz-se claramente quais são a natureza e a função do escravo: aquele que por natureza não pertence a si mesmo, senão a outro, sendo homem, esse é naturalmente escravo (ARISTÓTELES apud REIMER; RICHTER REIMER, 2011, p. 42).
Sob essa mesma plataforma de plausibilidade, Plínio, o Moço (apud STEGEMANN; STEGEMANN, 2004, p. 84), recomendou a um procurador da província na Espanha “‘preservar as diferenças de ordem e as diferentes dignidades’ por ocasião da audiência perante o tribunal, ‘pois se misturarmos essas diferenças, nada é mais desigual do que a igualdade’”.
Essa realidade teopoliticamente legitimada (GUERRA, 2018, p. 149-160), remonta ao processo de coisificação do escravo na antiguidade. Em Roma, “como em outros lugares, o escravo é um ser privado de direito. Do ponto de vista jurídico é uma coisa ou, se se prefere, um animal”, (LÉVY-BRUHL apud VASCONCELOS, 2012, p.138). Acerca disso Vasconcelos (2012, p. 138-139) descreve que:
O Direito Romano Civil previa uma categoria comum na qual se podiam classificar tanto animais como escravos, a saber, a categoria das res mancipii ou mancipia, da qual faziam parte os objetos de propriedade passíveisde compra e venda. Res ou coisa está em oposição a persona ou pessoa jurídica. A própria coisa (res) não portava nenhum direito próprio ou subjetivo, mas era unicamente objeto do direito da pessoa que a possuía. Em outras palavras, enquanto res ou coisa, o escravo não era sujeito de direito, mas apenas objeto deste. Destituído assim de personalidade jurídica, o escravo-coisa era, ao menos do ponto de vista do direito civil, um ser nulo[7].
Junto ao processo de coisificação do escravo, se encontrava a concepção animalizante do mesmo. Para Aristóteles (apud VASCONCELOS, 2012, p. 145), “a utilidade do escravo seria similar à do animal doméstico: ambos forneceriam a força corporal necessária à satisfação das necessidades básicas da vida, enquanto ao homem livre ou cidadão caberiam as tarefas políticas”. Essa proximidade “do escravo com o animal advinha, nesse contexto filosófico, da ideia, encontrada já em Platão, de que há seres humanos débeis em racionalidade, entregues unicamente aos impulsos, para os quais a animalização/ escravidão seria uma condição natural” (VASCONCELOS, 2012, p. 145, p. 145).
Dentro dessa paisagem de naturalizações e aprisionamentos, teologicamente e culturalmente legitimados, se encontra a figura de Onésimo e os espaços alternativos de descoisificação e desanimalização do humano, oriundos de Jesus Cristo e seu legado libertatório. Isso será abordado a seguir.
Entre as cartas de Paulo, a Epístola a Filêmon se caracteriza no hall da singularidade. É a carta mais curta e mais pessoal escrita por Paulo (355 palavras no original grego). Em nível sociológico, este documento destaca o contexto escravagista romano e o nexo valorativo inverso proposto pela mensagem cristã (HALE, 1983, p. 222). O conteúdo da carta basicamente expressa à relação entre Paulo e Filêmon (um amigo de Paulo que vivera em Colossos), e Onésimo (um escravo fugitivo, do qual Filêmon era proprietário). Aqui, o valor do cristianismo é expresso no encontro de Paulo (e conversão de Paulo) diante do testemunho de Onésimo na prisão (FERREIRA, 2016). Nesta carta, Paulo assume inteira responsabilidade, propondo-se pagar, pessoalmente, o dano causado pela fuga de Onésimo. Mas, lembra também que Filêmon foi convertido por Paulo, a quem deve, por isso, a própria vida. Deste modo, o Apóstolo mostra que há valores muito mais importantes do que qualquer dívida material.
Trata-se de uma carta de recomendação em favor de Onésimo, um escravo que fugiu ao seu patrão, Filêmon. Onésimo procurou o apoio de Paulo, que estava na prisão, e acabou por se converter ao cristianismo (v.10). Paulo devolve-o a Filêmon, pedindo-lhe que o trate como irmão (v.16). É possível que Paulo não pensasse em criticar enfaticamente o estatuto da escravidão, comum no seu tempo, provocando assim uma revolução social. Os cristãos originários ainda não tinham força teopolítica[8] para exigir transformações estruturais da sociedade. Contudo, o Apóstolo, implicitamente, declara que a estrutura vigente não é legítima. De fato, mostrando que as relações dentro da comunidade cristã devem ser fraternas, Paulo esvazia completamente o estatuto da escravidão e a desigualdade entre as classes. Em Cristo, todos são irmãos, com os mesmos direitos e deveres.
De acordo com Arendt (1983), a primeira comunidade cristã não era uma estrutura política ou pública, pois é definida pelo conceito de corpus, ou seja, a cabeça é o único membro que controla o corpo, de acordo com a teologia do Apóstolo Paulo de Tarso. Esta comunidade consistia em um “corpo”, cujos membros são como irmãos, à imagem do Uno. Esta forma de comunidade reflete uma fé e um amor integral para Deus e o próximo. Ela é baseada em algo que, em princípio, não é do mundo (sistema axiológico espiritual de poderes malignos), porque a fé removeu o homem do mundo/sistema e, portanto, da comunidade humana engendrada pelos valores do cosmos, a uma realidade terrena gestada pelos valores celestes do reino de Deus (GUERRA, 2018). Nesta comunidade, cada membro sofre com os outros. No entanto, como veremos na Carta de Paulo a comunidade reunida na casa de Filêmon, essa concepção de comunidade cristã estava limitada, uma vez que as assimetrias ainda eram bem acentuadas.
Ora, com o Cristianismo começou a surgir uma das características principais da nossa civilização moderna: todos os homens são amados de Deus, em Cristo se fazem irmãos dos outros homens e concidadãos em uma única comunidade humana, na qual todos possuem os mesmos direitos e deveres mútuos. Portanto, reconhecer que um escravo é membro de uma comunidade humana e não um “estrangeiro”, é reconhecê-lo como sujeito de direitos, isto é, como pessoa e como irmão. Ficava assim, para trás, o princípio básico da escravatura antiga.
Dentro desta perspectiva, se as comunidades dos cristianismos das origens, tinham, como escopo basilar, a fraternidade e a igualdade, havia, na comunidade cristã, reunida na casa de Filêmon, uma questão emblemática: como explicar que Filêmon fosse senhor do escravo Onésimo, também cristão? Não haveria alguém que se encontrava fora do ideal do ser-em-comum? Ferreira (2016) suscita inúmeros questionamentos, tanto em relação à vida pessoa e familiar de Onésimo, quanto a sua relação com o seu senhor, Filêmon. É por esta razão que Ferreira (2016) assume o Modelo Conflitual/Contradição[9], procurando ouvir o clamor do escravo Onésimo, já que Deus sempre teve a sua opção preferencial pelos pobres, viúvas, órfãos e marginalizados da sociedade. A partir da condição social de Onésimo é que o Apóstolo Paulo reivindicará a justiça. Ser justo e fazer a justiça são os pressupostos básicos do Deus de Israel, e, portanto, de todos os cristãos. O que Paulo está fazendo não é algo sobrenatural, mas, cumprindo o princípio mais básico da Aliança de Deus com Israel, o seu povo: “É verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai abençoar-te na terra que Iahweh teu Deus te dará, para que a possuas como herança” (Dt 15,4).
Deus é o primeiro a não tolerar injustiça para com o seu povo, seja do lado de fora dos muros da cidade, seus inimigos, ou mesmo na própria sociedade israelita; “Iahweh é justo tendo levado o povo ao cativeiro” (Lm 1,18; Is 10,22; 28,17; 5,16; 11,3), “pelas aldeias de Israel se celebram os atos justos de Iahweh” (Jz 5,11), “Iahweh é justiça e retidão e faz justiça ao órfão, à viúva e ao estrangeiro” (Dt 32,4; 10,18; Ex 9,27). O sentido da justiça do Senhor se comunica assim a Israel, e não há que imaginar a justiça de Deus de acordo com os modelos humanos ou suas práticas judiciais (Dt 1,18; Jr 23,5).
O indivíduo deve ser justo em todas as suas relações assim como o seu Deus é justo com ele (Lv 19,18; 18,5; Dt 6,5). Esta é a lei da santidade (Lv 17-26) que insiste na santidade do Senhor e do seu povo, repetindo a fórmula: “Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). O filósofo Martim Buber se debruçou profundamente sobre a questão das relações interpessoais e transcendentais, e afirmou que, “o fato fundamental da existência humana é homem com homem” (BUBER, 1977, p. 244), ou seja, a questão fundamental de Buber está no que acontece entre um ser e outro e isso é tão peculiar que não se pode comparar a nada igual existente na natureza. O sinal e o meio para isso é a linguagem, pois suas raízes se acham num ser que se volta para o outro como outro e se comunica com ele numa esfera que é comum a eles, mas que vai além da esfera especial de cada um. Segundo Verkindère (2001, p. 17),
ser justo é mais que respeitar ao outro, é dar-lhe existência pessoalmente. A justiça (tsedaqah) se situa sempre em uma relação entre pessoas. Não pode ser pensada como um ideal que permite avaliar a partir do exterior as relações e as ações das pessoas. Modelada sobre as relações concretas, é mais uma ação que um estado. É sempre a justiça de alguém.
Bem, seja de Deus ou Israel, a justiça já não é mais simplesmente um sistema judicial que gere e regula os conflitos. A realidade da aliança (Ex 20,22-23) impõe seu próprio código de justiça a cada um dos interlocutores. A justiça se converte, então, na primeira modalidade de sua relação. Esta opção fica evidente em todo o Antigo e Novo Testamento:
O escravo era uma “coisa”, uma propriedade absoluta do dono, que dele se servia como queria. Por isso, não podia possuir qualquer bem, viesse donde viesse. Podia ser vendido, dado, emprestado ou herdado como qualquer objeto. Sobretudo encontrava-se indefeso contra os maus tratos e os castigos. Era equiparado a um animal: “Para o asno o penso, a vara e a carga; para o escravo o pão, a correção e o trabalho”. Se, por vezes, se aconselhava um tratamento humano, era unicamente para interesse do proprietário. No campo propriamente jurídico era considerado inapto para testemunhar e incapaz de contrair matrimônio válido. A criança nascida da união dum israelita com uma escrava era escravo e pertencia ao proprietário da mãe. Também na esfera religiosa estavam vedados aos escravos a maioria dos direitos: no templo, não podia, por exemplo, impor as mãos sobre a cabeça da vítima; na sinagoga, a sua presença não contava para o número das dez pessoas exigidas para a oração pública e não podia fazer a leitura. Em contrapartida, os deveres religiosos eram também muito reduzidos. Pelo menos, não estavam obrigados aos atos religiosos que deviam ser realizados num momento determinado, uma vez que o escravo não era senhor do seu tempo (KITTEL, 1933, p. 274).
Nesta relação, Filêmon ainda estava fora do ideal do ser-em-comum, já que, como o próprio Paulo asseverou aos Gálatas (vv. 26-28), “vós todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus, pios todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”. O ser-em-comum quebra o estilo piramidal no qual se baseava o mundo Greco-romano, porque, agora é preciso reconhecer o outro, pois o outro é entidade fenomênica.
Foi mencionado já que, desde o Antigo Testamento, as relações entre Deus e os súditos são apresentadas à maneira das relações entre um senhor e os seus escravos[10]. Isto acontece depois de, também no Antigo Testamento, os súditos do rei, especialmente os seus mercenários, oficiais e ministros serem declarados escravos do rei, devido ao caráter absoluto do poder real e a sujeição e serviço que ele exigia. Da mesma maneira, as relações dos fiéis com o seu Deus são apresentadas à imagem das relações com o soberano terrestre. Nessa altura, o termo acaba por constituir um título honorífico, aplicado, por exemplo, a Abraão, Moisés, Josué, Davi e ao misterioso servo de Javé do livro de Isaías[11]. Note-se, entretanto, que, mesmo nestas novas aplicações, o termo conserva a sua conotação originária de sujeição e serviço incondicional.
Por sua vez, Jesus em caráter revolucionário[12]- emancipatório introduz uma novidade na sua aplicação: exige aos seus discípulos que nas suas relações mútuas assumam o comportamento de sujeição e serviço, próprio dos escravos: “Sabeis como os governantes das nações fazem sentir o seu domínio sobre elas e os magnatas a sua autoridade. Não deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós faça-se vosso servo e quem quiser ser o primeiro entre vós faça-se escravo de todos” (Mc 10,42-44), exatamente aquilo que Paulo solicitava a Filêmon em relação a Onésimo. O ideal que deve animar os discípulos de Jesus contrasta, assim, com o princípio vigente nas relações humanas normais dentro do mundo romano. Os soberanos da terra atingem o seu prestígio e mantêm os seus lugares através do domínio e da opressão violenta dos seus súditos. A ambição dos discípulos de Jesus orienta-se no sentido contrário: para eles, a grandeza e a primazia consistem na renúncia a si próprios e no serviço incondicional aos outros.
Como se vê, também Paulo exige a abolição da escravatura, e, ao pedir que Onésimo fosse recebido como “um irmão”, fazia-o porquê certamente achava incompreensível que um cristão fosse proprietário de outro cristão, especialmente tendo em conta Gl 3,27-28 e Cl 3,11. Por isso a sua exigência era feita “em nome do amor” (v.8). O antídoto divino para descoisificação e desanimalização do humano. Nesse sentido se dá a conversão de Paulo ao testemunho de Onésimo. Uma conversão não no sentido salvífico, mas no sentido de compreender a partir do testemunho de Onésimo como a escravidão deveria ser tratada a partir do novo paradigma cristão. Nesse cenário, como bem postula Ferreira (2016, p. 400) “o orientador maior da comunidade, no cárcere, ao conviver e escutar um escravo conseguiu realizar a virtude da empatia e, convertido, lutou pela sua libertação”. Dessa forma “uma identidade transformadora foi se tornando uma das características dos cristianismos originários”. Paulo teria encontrado um Jesus Cristo concreto na carne do escravo Onésimo (FERREIRA, 2016, p. 400). Esse fenômeno constitui-se na reviravolta do processo, na recomendação feita a Filêmon acerca da nova realidade de Onésimo, não mais um escravo, mas, como um irmão em Cristo (v.15-16).
Refletindo sobre a importância do outro, Buber situa o encontro com o outro como o elemento de humanização e potencializador do sentido da existência. Viver significa, para ele, ser interpelado e isso implica essencialmente ter a capacidade de escuta[13]. Em Buber, o outro é totalmente outro e não um simples prolongamento de mim. Daí que só uma verdadeira alteridade mantém a relação humana. A diferença entre o eu e tu (outro) é fundamental enquanto fonte permanente de descoberta e admiração. Relacionar-se com o outro não é a anulação radical da diferença entre os interlocutores, mas a confirmação mútua na existência.
A irredutibilidade do outro a mim ou a sua reificação é fundamental para a afirmação e compreensão do sentido da alteridade[14] e reconhecimento de mim enquanto sujeito. Dialogar autenticamente com o outro, segundo Buber, não só mantém a alteridade, como se pressupõe, é também o procedimento básico para evitar a ingerência na alteridade do outro e que pode ser o princípio da sua objetivação[15]. A realidade do outro é inegável na nossa experiência existencial quotidiana, mas é uma presença que levanta questões, não sendo uma presença meramente passiva, mas de inter-relação (interação). Para Alfaro (1994, p. 32) “a presença do outro interpela incondicionalmente a minha liberdade a sair de si mesma até ele, pela razão desse valor seu de que estão privadas as realidades infrapessoais”.
A alteridade do outro não é subordinação ao meu eu, mas o caminho da comunhão. O outro, com a sua presença, interpela-me ou chama-me a tomar uma atitude face à sua pessoa. Esta atitude deve ser essencialmente humana, ou seja, de respeito pelo fato de, enquanto pessoa, possui um valor incondicional em si mesmo, pela inviolabilidade e sacralidade da sua existência única, que se irrompe no meu mundo. Aqui o respeito corresponde, sobretudo, à inviolabilidade do outro e é a atitude fundamental frente a ele que nunca deve ser um meio, porque é lugar de expressão do Mistério, Bendito Seja Ele. Bendito seja o outro.
O conhecimento do valor do outro, mesmo sendo importante, não é suficiente, há que reconhecê-lo e aceitá-lo na incondicionalidade da sua interpelação à minha liberdade. Para Buber (1997, p. 80)
o respeito é a única atitude que torna verdadeiras as relações interpessoais, porque é a única que corresponde à verdade e ao valor do outro. As relações interpessoais implicam a experiência comum em que o eu e o tu captam o valor incondicional do outro como pessoa.
A liberdade de cada um deve estar vinculada à liberdade do outro nas relações interpessoais, ou seja, as relações interpessoais devem ser relações entre liberdades que se afirmam mutuamente sem a objetivação do outro e, por isso, que não se anulam.
Numa relação autêntica o ser individual deixa de estar fechado em si mesmo e, quebrando os limites da individualidade, abre-se à alteridade pela interpelação. Daí que o ser quando atinge a plenitude, ou seja, a consciência de si mesmo, torna-se, ao mesmo tempo, solícito à causa do outro, embora esta não deva suplantar a relação fundamental eu-tu como a mais fundamental e portadora de sentido. A solicitude deve ser baseada numa relação viva que desperte para o sentido da responsabilidade mútua, do contrário, pode ser um meio de objetivação do outro, tornando-o uma coisa que se pode manejar.
No mundo contemporâneo não nos faltam os sinais diários da solidariedade entre os homens, mas nem sempre o motivo principal destas maratonas humanas seja o sinal do reconhecimento da dignidade do outro, vista a partir da sua alteridade, ou seja, não como o prolongamento de mim e, por isso, o campo da realização das minhas intenções desprovidas de sentido humano. O reconhecimento do outro, em toda a sua alteridade, comparado ao reconhecimento de si mesmo como homem, não só é portador do sentido da dignidade humana, como também é a força que quebra a “sua solidão e a garantia de um encontro rigoroso e transformador” (BUBER, 1997, p. 145). O respeito pela alteridade é fundamental para a construção de um mundo humano, sendo que a vida humana é essencialmente convivência, ou seja, viver é conviver.
Buber é um dos pensadores modernos que tem contribuído na questão do diálogo e da importância da comunidade. O conceito de relação buberiano, que se fundamenta numa viragem antropológica por ele proposta, visa não apenas uma crítica contra a objetivação do homem, criada pelos postulados científicos que partem do paradigma sujeito-objeto, e propõe novos caminhos para a Antropologia, ou seja, a proposta de um novo paradigma. Este paradigma sustenta, sobretudo, que o conhecimento acontece na relação sujeito-objeto, o que, transportado para o campo humano, o outro pode ser abordado como o objeto do nosso conhecimento. Na perspectiva de Meca (1997, p. 158), a reviravolta antropológica de Buber tem a preocupação de “adotar uma nova atitude metodológico-epistemológica no que diz respeito ao conhecimento do homem para resolver a confusão antropológica que é a característica do nosso tempo”.
O encontro com o outro (tu) é um momento de interpelação e de saída da comodidade para a resposta. “O tu lhe abre um novo modo de existência, por outras palavras, lhe incube uma missão” (BUBER, 1997, p. 26). Assim, para Buber, os limites da possibilidade do dialógico são os de compreender. O que significa que, dialogar com o outro é poder compreendê-lo, e esta, transforma-se numa experiência hermenêutica originária do conhecimento do outro, mas aqui fica a observação clara de que, Buber não se debruça sobre a experiência hermenêutica de forma direta como tradicionalmente se entende. O que é notório no seu pensamento é que “as características e os efeitos do diálogo eu-tu em Buber coincidem de maneira admirável com as particularidades da hermenêutica contemporânea” (URE, 2001, p. 80).
O encontro com o outro tem uma dimensão transformadora porque funda um novo modo de existência que se baseia na reciprocidade e na responsabilidade. A relação eu-tu é a relação do verdadeiro conhecimento porque preserva a integridade da alteridade do outro e tira-o do anonimato. A presença do outro é desafio e interpelação, ao mesmo tempo, pede resposta. A verdadeira existência acontece no encontro (diálogo) sustentado pela responsabilidade como o compromisso que tenho de velar pelo outro, sendo que a ele se pede a mesma ginástica para manter a reciprocidade como circularidade da relação.
O conhecimento do outro não só impede que seja objetivado, como também cria um mundo de interdependentes e tolerantes, que encontra na reciprocidade e responsabilidade, as bases de uma convivência humana, baseada na civilização da dignidade a que a existência humana aspira e merece naturalmente. Nesta lógica, a relação humana é o caminho da superação do anonimato como o sinal da degradação do sentido do humano no mundo contemporâneo, habitado pela aparência e não pela autenticidade do ser. Esse paradigma vital se encontra de forma (retro)interpretativa nas linhas do Novo Testamento e na proposta fenomênica e emancipatória de Onésimo em direção ao ‘eu’ que se encontra na comunidade.
Como acenamos a uma possível conclusão, é possível afirmar que, a partir da Filosofia do Reconhecimento do outro, Filêmon ainda estava fora da proposta dos cristianismos originários, que tinha como escopo basilar, o reconhecimento do outro enquanto fenômeno, não levando em consideração qualquer distinção entre ambos. Foi isto que Paulo compreendeu da palavra de Jesus e a colocou em prática.
Paulo, ao solicitar que Filêmon acolhesse fraternalmente o escravo Onésimo, estava praticando aquilo que Cristo expunha em suas pregações: reconhecer o outro, enquanto outro, e, a partir das distinções, propor a Boa Nova e formar a comunidade. Uma comunidade é formada por uma multiplicidade de “eus” singulares e fenomênicos, o que torna possível a alteridade. Em face de rememoração, ser-em-comum, princípio básico das comunidades cristãs originárias, coloca todos em “pé de igualdade”, não havendo assimetrias ou um sendo subordinado a outro.
É por esta razão que, a Filosofia do Reconhecimento de Buber é fundamental. No momento atual em que a existência humana como coexistência é posta em causa, não só pela desestruturação do homem, condenado à solidão pelo individualismo, ou ao anonimato pelo coletivismo despersonalizante, propomos a mensagem filosófica de Buber como carregada de sentido e uma resposta válida ao problema do ser-em-comum, alicerçada na dignidade do humano, que transcende qualquer objetivação, seja ela política, religiosa ou técnico-científica. O pensar buberiano representa um esforço de vigilância para devolver o sentido à vida humana, e desenvolver a consciência da dignidade, numa perspectiva de co-responsabilidade, dado que, não é possível que a consciência individual, desenvolva o sentido da existência, fechada no seu intimismo e na exclusão do outro. Buber luta contra a indiferença perante a verdade do outro.
Refletir a Carta de Paulo a Filêmon a partir da Filosofia do Reconhecimento de Martin Buber pode apontar-nos caminhos para as relações nos tempos atuais. O reconhecimento do outro contribui no aperfeiçoamento das relações e das comunidades. A nós cabe aderir essa via eficaz, como a do reconhecimento do outro, a fim de responder a esse Deus que sempre se relacionou conosco por primeiro. Há de pontuar que no cerne da proposta relacional entre Deus e o homem, ao contrário dos padrões estabelecidos no mundo greco-romano, o homem se faz servo (doulos) que conhece e confia no seu Senhor. Eis o paradigma escravo-livre proclamado pelas Escrituras judaico-cristãs e personalizado em Jesus e em seus discípulos(as). Sua atitude e serviço não se evoca por um processo coisificante e animalizante de imposição ou dominação simbólica e inconsciente, mas pela livre consciência de servir aquele que merece ser servido, e de nesse serviço estender a mão ao outro ‘Eu e Tu’ humano.
A presença do outro requer atitudes de humanidade autênticas para a instauração de comunidades humanas no tempo presente que evidencia, sobretudo, sinais avançados de degradação humana. Há necessidade da emergência de um mundo em que a coexistência seja levada a sério para criar a civilização da tolerância como respeito pela liberdade do outro, sendo que a ele se pede o mesmo exercício. Porque na verdade, nada causou à nossa espécie mais problemas, criou mais dor, produziu mais sofrimento ou resultou em mais tragédia do que aquilo que deveria trazer-nos a maior alegria: a nossa relação com Deus e as nossas relações uns com os outros. Frutos do amor e justiça divina que emanam no que é feito humano.
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[1] Onésimo, um escravo de Filêmon, amigo de Paulo de Tarso. Ao que parece, Onésimo deu algum prejuízo ao patrão e com isso foi levado à prisão. Os castigos que costumavam aplicar aos escravos rebeldes eram terríveis. A interferência de alguém que merecesse consideração por parte do senhor poderia tornar o castigo mais leve. Paulo estava na prisão em Éfeso. Onésimo ficou com ele algum tempo prestando-lhe pequenos serviços. Paulo o chama de “filho gerado na prisão” (vv.7-12). Paulo agora o manda de volta a Filêmon com esta carta em mãos. Todas as citações bíblicas seguem normalmente a tradução da Bíblia de Jerusalém (2002).
[2] De acordo com Malina (1995), há de se levar em consideração que a distinção social se converte em discriminação só quando a própria sociedade reclama a igualdade social de todas as pessoas. Nenhuma sociedade do século I tinha o discurso de igualda de legal entre todos os homens, muito menos entre todas as pessoas.
[3] Esse termo utilizado por Richter Reimer engloba os conceitos de patriarcado e kyriarcado. Segundo Schüssler Fiorenza (2009, p. 133) “’Patriarcado’ significa literalmente o poder do pai sobre seus filhos e filhas e sobre os demais membros do clã ou casa”. “Na Antiguidade clássica, o kyriarcado era o governo do senhor, amo de escravos, marido, cavalheiro nascido livre, culto, dono de propriedades e pertencente à elite, a quem estiveram subordinados os homens sem voz e vez e todas as mulh*res” (SCHÜSSLER FIORENZA, 2009, p. 136). Entretanto, “o kyriarcado não é simplesmente a dominação de homens sobre mulh*res. É um complexo sistema piramidal de dominação que opera através da exploração econômica e da subordinação vivida” (SCHÜSSLER FIORENZA, 2009, p. 140). Para Wacker (2008, p. 50), “desde Aristóteles, patriarcado é um termo legal, respectivamente político, que se refere ao domínio concreto do pater famílias sobre sua casa, isto é, não somente sobre sua família propriamente dita (esposa, filho e filhas), mas também sobre seus assalariados/as e escravos/as”. De acordo com Richter Reimer (apud SOUSA, 2012, p. 29), “o judaísmo apresenta características patriarcais dentro de seu contexto histórico mais amplo, contudo, o patriarcado não era algo exclusivo da sociedade e religião judaicas; ele era um sistema vigente em todas as sociedades do Mar Mediterrâneo, vigorando ideológica e legalmente sustentado dentro do sistema romano. O patriarcado romano é a dominação e ocupação geopolítica, de exploração física, sexual e psicológica contra todas as pessoas, de expansão e construção na base do trabalho escravo e da imposição de impostos e tributos. Esse patriarcado é a macroestrutura, dentro da qual se organizará a vida, a convivência e a resistência a partir de microestruturas como a casa, a comunidade, a associação profissional”.
[4] A partir de Augusto, os cavaleiros qualificados, ao término de sua carreira de oficiais eram promovidos a procuratores Augusti, para a administração do patrimônio imperial, e em geral, para a gestão econômica e financeira do Império (ALFÖLDY, 1996).
[5] Para Alföldy (1996), os integrantes da ordem senatorial tinham desde sempre o privilégio de ocupar os cargos mais importantes da administração civil, jurídica e militar.
[6] Aqui não pretendemos falar sobre a complexidade que envolve o sistema escravagista no Império dos Césares. Vale ressaltar que a prática da escravidão também era ideologicamente legitimada, onde a principal escravização acontecia no ‘aprisionar das mentalidades’, lugar onde se interditam ou se iniciam as revoluções e as transformações sociais. Sobre a temática ver em Alföldy (1996, p, 106-110), Carcopino (2001, p. 86-91) e Veyne (1990, p. 11-109).
[7] Conforme Vasconcelos (2012, p. 140), “a coisificação do escravo na Antiguidade não era uma invenção apenas do discurso jurídico romano, mas encontrava justificativa também na literatura filosófica e econômica, tanto grega como latina. Na Grécia, Aristóteles descrevia o escravo como órganon, isto é, um instrumento, e como um objeto de propriedade, ainda que com alma ktéma empsychón”.
[8] Cf. Guerra (2018).
[9] Para aprofundamento metodológico, Cf. FERREIRA. Onésimo: um personagem silencioso no Bilhete a Filêmon? Horizonte, Belo Horizonte, v. 14, n. 42, p. 377-401, abr./jun. 2016. Disponível em: file:///C:/Users/20151205700055/Downloads/11305-44016-2-PB%20(1).pdf. Acessado dia 01 de agosto de 2017.
[10] Como eco disso cf. no NT a confissão de Maria em Lc 1,38 e Simeão em Lc 2,29.
[11] Cf. Is 42,1-7; 49,1-9; 50,4-9; 52,13-53,12.
[12] “O movimento de Jesus era um movimento carismático itinerante em que se admitiam homens e mulheres em igualdade de condições. Não fazia acepção de pessoas [...] a todos e todas acolhia e se relacionava da mesma forma. Isto foi verdadeiramente revolucionário. Esta realidade forma parte do conteúdo do reino de Deus, do reinado de Deus que se aproxima com Jesus [...] que é uma intervenção gratuita de Deus dentro da realidade para invertê-la: os últimos serão os primeiros e os marginalizados os herdeiros” (TEPEDINO, 2007, p. 189, tradução própria).
[13] Cf. BUBER, 1997, p. 28.
[14] Cf. BUBER, 1997, pp. 106-107.
[15] Cf. BUBER, 1997, p. 105.