Uma interpretação da pedagogia de Jesus à luz da pedagogia de Paulo Freire
An interpretation of Jesus’ pedagogy in the light of pedagogy Paulo Freire
João Luiz Correia Júnior
Pós-doutorado (2012) pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC GOIÁS). Doutor (1998) e Mestre (1995) em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC RIO). Professor e pesquisador da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), onde leciona no Curso de Teologia e no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. -Contato: joao.correia@unicap.br
Eunaide Monteiro de Almeida da Silva
Doutoranda do Programa de Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Contato: eunaidemonteiro28@yahoo.com.br
Resumo
A interpretação da Bíblia é marcada por aspectos que surgem dos constantes desafios e preocupações contextuais. É natural, portanto, que a Hermenêutica se aproprie do estudo desenvolvido em áreas do conhecimento contemporâneo que até então não foi aplicado criteriosamente na busca de uma compreensão aguçada e crítica dos textos das Sagradas Escrituras. O presente estudo oferece um breve ensaio sobre aportes hermenêuticos da Pedagogia de Paulo Freire, sobretudo, a partir da consagrada obra de sua autoria, “Pedagogia do Oprimido”, com o objetivo de aguçar a compreensão sobre o alcance da prática pedagógica de Jesus. Para tanto, tomou-se por base um texto seleto do Evangelho segundo Marcos (1,14-20) que, segundo os estudiosos do Novo Testamento da Bíblia, apresenta uma bela síntese do que Jesus fez e ensinou, no seu contexto histórico. Qual a novidade da prática missionária de Jesus que causava tanta admiração nas pessoas, e que chegaram a atrair multidões? Qual a repercussão dessa prática em seu discipulado mais próximo? Que elementos da pedagogia de Paulo Freire aguçam a compreensão mais aguçada da prática do Mestre Jesus de Nazaré? Para enfrentar tais questões, a metodologia utilizada neste trabalho foi de pesquisa bibliográfica, na fronteira entre Pedagogia aplicada à interpretação de um texto seleto do Evangelho de Marcos. Sugere-se, como resultado, ainda que preliminar, a proposição de que é possível uma abordagem hermenêutica para entender a prática pedagógica de Jesus à luz da pedagogia freiriana. Não resta dúvida que a compreensão critica e aguçada da prática pedagógica de Jesus é relevante para se perceber o alcance libertador de sua ação messiânica. Jesus pôs em prática uma pedagogia que se fundamenta numa práxis, isto é, numa tensão contínua entre reflexão-ação-reflexão; entre o que ele faz (na ação missionária junto ao povo) e o que ele pondera a partir dessa ação (na intimidade do seu discipulado).
Palavras-chave: Religião. Bíblia. Reflexão-ação-reflexão. Interpretação. Conscientização. Pedagogia da Autonomia.
Abstract
The interpretation of the Bible is marked by aspects that arise from constant challenges and contextual concerns. It is natural, therefore, that Hermeneutics appropriates the study developed in areas of contemporary knowledge that until then was not carefully applied in the search for a sharp and critical understanding of the texts of the Sacred Scriptures. The present study offers a brief essay on the hermeneutical contributions of Paulo Freire’s Pedagogy, above all, based on the consecrated work of his authorship, “Pedagogy of the Oppressed”, with the aim of sharpening the understanding of the scope of Jesus’ pedagogical practice. For that, it was based on a select text of the Gospel according to Mark (1,14-20) which, according to the New Testament scholars of the Bible, presents a beautiful synthesis of what Jesus did and taught, in its historical context. What was new about the missionary practice of Jesus that caused so much admiration in people, and that even attracted crowds? What is the impact of this practice on your closest discipleship? What elements of Paulo Freire’s pedagogy sharpen the most keen understanding of Mestre Jesus de Nazaré’s practice? To face such questions, the methodology used in this work was bibliographic research, on the border between Pedagogy applied to the interpretation of a select text of the Gospel of Marcos. As a result, it is suggested, even if preliminary, the proposition that a hermeneutical approach is possible to understand Jesus’ pedagogical practice in the light of Freirian pedagogy. There is no doubt that the critical and keen understanding of Jesus’ pedagogical practice is relevant for realizing the liberating scope of his messianic action. Jesus put into practice a pedagogy that is based on praxis, that is, on a continuous tension between reflection-action-reflection; between what he does (in missionary action with the people) and what he ponders from that action (in the intimacy of his discipleship).
Keywords: Religion. Bible. Reflection-action-reflection. Interpretation. Awareness. Pedagogy of Autonomy.
Introdução
A hermenêutica1 se apropria de estudos desenvolvidos em diferentes áreas do conhecimento que até então não foram aplicados criteriosamente na busca de uma compreensão aguçada, crítica e atualizada de textos literários, jurídicos, históricos, jornalísticos e também se aplica, de modo especial, às Sagradas Escrituras. O presente estudo oferece aportes hermenêuticos da Pedagogia de Paulo Freire2, sobretudo a partir da consagrada obra de sua autoria, “Pedagogia do Oprimido”3, com o objetivo de compreender criticamente a ação missionária de Jesus em trechos do Evangelho segundo Marcos. A compreensão critica do modo como Jesus agiu em sua ação missionária é relevante para se perceber o alcance libertador do que ele fez e ensinou. Como amostra de análise4 , apresenta-se aqui uma perícope do Evangelho que dá informações sobre o contexto histórico e o modus operandi de Jesus no início de sua missão (Mc 1,14-28):
14 Depois que João foi entregue, Jesus veio para a Galileia. Ele proclamava o Evangelho de Deus, e dizia:
15 Cumpriu-se o tempo, e o reino de Deus aproximou-se: convertei-vos e crede no Evangelho.
16 Passando ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, irmão de Simão, lançando a rede ao mar: eram pescadores.
17 Jesus lhes disse: Vinde em meu seguimento, e farei de vós pescadores de homens.
18 Eles deixaram logo as redes, seguiram-no.
19 Indo um pouco adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam no seu barco consertando as redes.
20 Logo os chamou. E deixando no barco seu pai Zebedeu com os empregados, partiram em seu seguimento.
21 Eles entraram em Cafarnaum. E logo no dia de sábado, tendo entrado na sinagoga, Jesus ensinava.
22 Eles ficavam impressionados com o seu ensinamento; pois ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas.
23 Naquela ocasião, estava na sinagoga deles um homem possuído por um demônio impuro; ele exclamou:
24 “Que há entre nós e ti, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder. Eu sei quem és: o Santo de Deus”.
25 Jesus o repreendeu: “Cala-te e sai deste homem”.
26 O espírito impuro sacudiu-o violentamente e saiu dele, soltando um grande grito.
27 Todos ficaram tão espantados que se perguntavam uns aos outros: “Que é isto? Eis um ensinamento novo, cheio de autoridade! Ele manda até nos espírito impuros e eles lhe obedecem!”
28 E sua fama espalhou-se logo por toda a parte, em toda a região da Galileia. (BÍBLIA TRADUÇÃO ECUMÊNICA, 1994).
A perícope acima apresenta uma bela síntese da ação pedagógica de Jesus na Galileia, que pode ser dividida em três partes interligadas: o que Jesus ensinou, a boa nova do Reino de Deus, um novo mundo possível no aqui e agora da história (1,14-15); a formação de discípulos ao longo de sua atividade, para contar com eles em sua missão (1,16-20); e ações libertadoras que curam as pessoas de suas mazelas físicas e mentais (1,21-28).5
O modus operandi de Jesus denota uma prática pedagógica de inserção na vida cotidiana do povo da Galileia, num contexto de dura perseguição a quem ousasse denunciar o poder antiético e imoral de Herodes e seus familiares. Isso fica claro logo nas primeiras palavras do texto: “Depois que João foi entregue...” (Mc 1, 14).
Nesse contexto ameaçador, Jesus anuncia a chegada definitiva do Reino de Deus (Mc 1,15), como uma grande novidade (boa notícia). E seu ensinamento tinha como objetivo a conversão, metanoia, palavra grega que significa “mudança de comportamento” (Mc 1,16).
Em sua missão, Jesus não agiu sozinho. Como se observa na perícope acima (Mc 1,16-20), Jesus formou seu discipulado a partir de uma colônia de pescadores, uma das camadas mais sofridas da sociedade da época. Paulo Freire nos trouxe a ideia de que a educação é direito de todas as pessoas, indiferentemente da classe social à qual pertencem.
Brian Grenier (1998, p. 57-63) delineia a estratégia de Jesus ensinar em três aspectos que causava em todos profunda admiração: 1) Jesus ensinava pelo exemplo; havia perfeita congruência entre o que ele ensinava e o que fazia. Ele proclamava o evangelho (palavra transliterada do grego, que significa “boa nova”: a chegada definitiva do tão esperado reinado de Deus. E agia demonstrando que esse reino já se podia perceber em suas ações restauradoras de vidas; 2) Jesus baseava-se na experiência de vida de seus ouvintes, atento às suas reais necessidades; a cura do homem na sinagoga, em dia de sábado (Mc 1,21-28) denota essa prioridade em atender as pessoas, em suas necessidades imediatas, acima de qualquer condição moral ou cultural, inclusive em dia sagrado como o sábado; 3) Jesus agia com autoridade, pois sua palavra tinha poder de desalienar as pessoas, desde seus problemas psíquicos e emocionais, aos problemas físicos causados por doenças, devolvendo-as à vida com dignidade.
Ao longo do Evangelho de Marcos, que serviu de base para os textos de Mateus e Lucas, observa-se que os gêneros textuais utilizados por Jesus eram parábolas (ensinamentos tirados da vida cotidiana) e sentenças de sabedoria que faziam parte da memória do povo.
O método que Paulo Freire utilizou para alfabetizar segue essas mesmas intuições básicas. Ele orienta que o ensino tem que partir da realidade dos estudantes e, para isto, é necessário que o professor, a quem ele chama sempre de “educador”, conheça profundamente o cotidiano da comunidade na qual a escola está inserida, apresente o conteúdo através de temáticas que sejam do interesse do estudante, o que ele chama de conteúdos significativos, e que estes conteúdos sejam apresentados a partir de unidades mais complexas (textos coesos e coerentes) que serão divididas em unidades mais simples (orações, frases, palavras, sílabas, letras, fonemas). Era utilizada uma “palavra geradora” que era uma palavra escolhida dentro do universo vocabular dos estudantes e que servia de base para as lições que vinham seguidas de discussão para dar significado à realidade da turma (BECK, 2016).
Sendo assim, a aquisição do conhecimento torna-se não uma mera obrigação, mas um fazer prazeroso tanto para o educador quanto para o educando. Ensinar e aprender não são atos isolados. São construções que se dão “em comunhão” (FREIRE, 1999 p. 52).
Também Jesus, ao ensinar, utilizava-se dos conhecimentos já instituídos para acrescentar algo novo que trouxesse mais sentido para a vida do povo que vivia oprimido pelos poderosos da época. Todo o conteúdo de seus ensinamentos (lições) tomava por base elementos constitutivos do contexto no qual o povo estava inserido.
Jesus ensina utilizando poucos recursos (a fala, os gestos, a terra e o dedo)6 . Paulo Freire também fez uso de recursos presentes no cotidiano dos estudantes, tais como telhas, tijolos e outros objetos que eram apresentados de forma real ou através de desenhos ou figuras. É utilizando a reflexão e a problematização que ambos iniciam e consolidam sua prática. Esta será a discussão a seguir.
1. Compreensão do contexto por meio de uma pedagogia problematizadora e reflexiva
“Depois que João foi entregue, Jesus veio para a Galileia. Ele proclamava o Evangelho de Deus e dizia: Cumpriu-se o tempo e o reino de Deus aproximou- -se: convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,14-15).
Inserindo-se nessa realidade perigosa e opressora7, Jesus não convoca uma reação violenta de ódio para a tomada do poder, mas, seguindo a pedagogia profética dos bons anúncios, proclama a boa notícia (to euaggelion) da plenitude dos tempos: o tempo chegou à sua plenitude e o domínio real de Deus, o reino de Deus (he basileia tou theou) se aproximou (eggiken)8 .
Esse alegre anúncio interpela os ouvintes à confiança (pístis) no que está sendo anunciado e à mudança de comportamento (metanoia). Visa, portanto, despertar consciências por meio de um “ensinamento novo, cheio de autoridade” (Mc 1,27).
Freire, apud Jardilino, (1992, p. 10) propôs um trabalho cujos imperativos são os mesmos do evangelho: esperança, amor, denúncia, anúncio, utopia e libertação, que são chaves de interpretação da influência religiosa em suas obras. Freire (1999) afirmava que a “[...] a esperança é necessidade ontológica” e sem ela é impossível viver, pois, ela é o que move o ser humano para a vida. A desesperança é a “esperança que, perdendo o endereço, se torna distorção da necessidade ontológica” (p. 05) que imobiliza o ser humano e retira deste a “capacidade de (re)criar o mundo”. Isto mostra o quanto se faz imprescindível colocar consciência e ação critica junto à esperança para que um sonho (utopia) se torne realidade, pois, ela traz o alento que todas as pessoas precisam para dar continuidade às lutas.
Para Freire (1999, p. 37), “educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem” e, por isso mesmo, pode se contrapor à crise que envolve os processos de ensinar e aprender, podendo também auxiliar a encontrar novas estratégias para o enfrentamento da violência escolar, a crise de autoridade vivida pelos professores na atualidade, o baixo desempenho e a evasão dos estudantes. Com o conceito de amorosidade ele orienta como a geração anterior pode acolher as gerações seguintes e se perceber responsável por elas e, nessa (re)descoberta do amor, todos juntos percebem a necessidade de cuidar da cultura de todos os povos em toda e qualquer civilização.
A principal marca de um profeta é capacidade de denunciar e de anunciar. Freire denunciou uma forma de educar que ele denominou de “educação bancária” e esclareceu que essa forma implica em opressão, negação do corpo na prática pedagógica e a utilização do sujeito como hospedeiro do opressor. Concomitantemente, ele anunciou uma forma de educar que liberta, pois, tem como estratégia a problematização e a tomada de consciência por parte do professor e do estudante de que o seu ser está sendo coisificado e, por isso, precisa lutar para efetivar a sua libertação, bem como a libertação das outras pessoas, pois, ninguém pode ser livre enquanto tiver outras que estão cativas.
O anuncio é de uma forma de se colocar contra a hegemonia que objetiva a desconstrução de uma pratica curricular que impede o crescimento pessoal e social do ser humano e a construção de um currículo que ajude os estudantes a se posicionarem criticamente diante dos acontecimentos sempre com posições éticas e epistemológicas corretas com a finalidade de (re)estruturar o mundo em que vivem.
Freire (1999, p. 52) pensou a utopia como uma forma de ser e de estar no mundo e faz-se necessário alcançar um alto grau de consciência para se perceber que o ser humano é um ser inconcluso e somente a esperança pode ajudá-lo nessa busca pela completude e construir sua própria história enquanto adquire mais conhecimento sobre todos os aspectos do contexto no qual está inserido. Esse conceito de utopia se assemelha com o conceito que os cristãos denominam de céu.
Quando falou sobre libertação, o autor acima citado afirmou que a liberdade só se configura quando o oprimido se percebe como tal e percebe como a opressão se consolida, quais são suas causas e como pode ser abolida sem que outra forma de opressão se instale, ficando assim menos sujeito à dominação. Nesse aspecto, a ideia de libertação de Freire retomou a ideia de que “a verdade vos libertará” (Jo 8,32). Ele ainda esclareceu que a vocação ontológica do ser humano é a liberdade e que este vive numa
busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, as pessoas se libertam em comunhão (FREIRE, 2011, p.19).
Freire continuou esclarecendo que a opressão não deve ser atribuída a Deus porque “Deus não é o fazedor desta desordem desorganizada”, portanto, não se pode atribuir ao Transcendente os acontecimentos que são de responsabilidade de todos e de cada um. Esta é uma forma de pensar que paralisa a capacidade de ser do sujeito, que o despersonaliza e o impede de se indignar e se rebelar contra o opressor e, dessa forma, continua se subordinando por sua própria vontade sem perceber que sua autoestima está sendo destruída, sem perceber que é capaz e produtivo, passando a dar credibilidade ao que o opressor fala a ele e sobre ele.
Desta forma, a libertação só ocorrerá quando a ideia de coisificação for desconstruída e substituída pela força, pelo ânimo e pela capacidade de lutar e transformar o mundo em que vive, percebendo que a liberdade não é uma dádiva: é resultado de luta diária e que só será efetivada na “comunhão” com os semelhantes.
A missão de Jesus na Galileia, desde o seu início, tem por base uma prática que, segundo a pedagogia de Paulo Freire, pode ser aqui interpretada como “pedagogia problematizadora”, cujo intuito é levar à reflexão e à ação (práxis).
Em seu conhecido livro “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire defendeu que “a pedagogia problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade” que tem como objetivo “a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade” (FREIRE, 2018, p. 97-98) e esclarece que
Quanto mais se problematizam os educandos, como seres do mundo e com o mundo, tanto mais se sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados, compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como um problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada. Através dela, que provoca novas compreensões de novos desafios, que vão surgindo no processo de resposta, se vão reconhecendo, mais e mais, como compromisso. Assim é que se dá o reconhecimento que engaja (FREIRE, 2018, p.98).
E foi isso que Jesus fez em Cafarnaum da Galileia. As fontes cristãs atestam como dado historicamente incontestável que Jesus não somente falou do Reino de Deus, mas também fez dele seu tema central, a quintessência e o cerne de sua pregação (BARBAGLIO, 2011, p.261). A mensagem do Reino de Deus e a interpelação à mudança de comportamento (conversão) representam uma forte crítica ao estado daquele contexto em que Jesus estava inserido. Sua firme defesa dos indigentes e famintos, sua acolhida preferencial aos últimos daquela sociedade ou sua condenação da vida suntuosa dos ricos das cidades eram um desafio público ao programa sociopolítico estimulado por Herodes Antipas, favorecendo os interesses dos mais poderosos e mergulhando na indigência os mais fracos (PAGOLA, 2010, p.50). Esse foi o verdadeiro motivo de sua morte. Ele não foi crucificado simplesmente porque dizia ser o Filho de Deus. Ele pagou o preço de morte na cruz porque ousou desafiar o sistema.
Paulo Freire fez a opção pelos pobres e ousou dizer e mostrar que esses são capazes de aprender e são sujeitos de direitos. Em consequência, foi forçado ao exílio, sofrendo todas as implicações que a saída obrigada de sua terra natal poderia trazer. Foi por incomodar os poderosos que ele foi considerado “perigoso, subversivo internacional, inimigo do povo brasileiro e inimigo de Deus”9 e só pode retornar ao seu país dezesseis anos depois.
O Método de Paulo Freire é considerado ainda hoje um método extremamente inovador porque tem o foco voltado para a transformação social e ele afirma:
Meu gosto é que nós todos, brasileiros e brasileiras, meninos e meninas, velhos, maduros tomemos um tal gosto pela liberdade, pela presença no mundo, pela pergunta, pela criatividade, pela ação, pela denúncia, pelo anúncio que jamais seja possível no Brasil a gente voltar àquela experiência do pesado silêncio sobre nós” (FREIRE, 2008, p. 84).
Essa forma de pensar, falar e ensinar é, ainda hoje e para qualquer sistema ditatorial, uma ameaça e, por isso, o educador que recebeu o título de Patrono da Educação, em 2018 é criticado e o país é invadido por uma onda de protestos exigindo o fim do que eles denominaram “doutrinação marxista”. Essa onda de protestos culminou com um abaixo-assinado solicitando à Presidente da República, Dilma Roussef, a revogação da Lei 12.612 de 2012 que concedeu essa titulação ao educador Paulo Freire.
Para aplicar seu método de ensino, Paulo Freire escolheu uma cidade pobre, situada em Angicos, no Rio Grande do Norte. Os estudantes eram trabalhadores rurais e, em Rodas de Conversa, eles escolhiam a palavra geradora, nesse caso, uma delas era a palavra “tijolo” por fazer parte do universo vocabular dos estudantes já que trabalhavam com esse material. Seguindo essa forma de ensinar, não bastava ensinar a leitura da palavra, mas também o educador precisava considerar a “leitura de mundo” que os estudantes traziam a partir de seus conhecimentos prévios, bem como estimular a compreensão da realidade em que viviam. Dessa forma, além de alfabetizar, teria que haver o processo de letramento10 no qual os estudantes debatiam sobre quem fazia o tijolo, quem realizava as construções, quem eram os donos delas e por que nem todos as possuíam.
É sobre essa relação entre oprimidos, opressores e formas de libertação que trata a sessão a seguir.
2. Ação libertadora por meio de uma “pedagogia de comunhão”
Em sua ação missionária, Jesus não agiu sozinho. Formou um discipulado e, com esse grupo, andou pelas aldeias da Galileia, fazendo a experiência da dialogicidade:
Passando ao longo do mar da Galileia, viu Simão e André, irmão de Simão, lançando a rede ao mar: eram pescadores. Jesus lhes disse: Vinde em meu seguimento, e farei de vós pescadores de homens. Eles deixaram logo as redes, seguiram-no. Indo um pouco adiante, viu Tiago, filho de Zebedeu, e João, seu irmão, que estavam no seu barco consertando as redes. Logo os chamou. E deixando no barco seu pai Zebedeu com os empregados, partiram em seu seguimento (Mc 1,16-20).
Os discípulos de Jesus eram trabalhadores braçais, gente do povo que sentia na pele a opressão do governo de Herodes, o mesmo que mandara prender e, posteriormente, matar João Batista. A situação econômica desses primeiros discípulos deve ser considerada modesta, pois, a maioria dos membros do seguimento de Jesus é oriunda do estrato inferior (os pobres, no sentido de ptochós (relativamente pobres) e não no sentido de pénetos (indigente) (STEGEMMAN, E; STEGEMANN, W., 2004, p.234).
Jesus não fazia acepção de pessoas e falava para cada grupo conforme os conhecimentos que traziam de suas experiências prévias. Para Paulo Freire, a dialogicidade é condição essencial em qualquer tipo de relação, incluindo as relações que se estabelecem na escola. Nesta fala já se começa a perceber o quanto sua prática se aproxima das ideias trazidas pelo cristianismo. É a partir da qualidade da atenção dispensada ao estudante que o professor o conhecerá e se fará conhecer por ele para que se estabeleça um processo de estudar ensinando e ensinar estudando, primando pela melhoria do relacionamento consigo mesmo, com o outro, com o planeta e com o Transcendente.
Jesus, como já foi dito, chamou seu discipulado dentre os pobres e oprimidos de Cafarnaum. Quem, melhor que os oprimidos se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? (FREIRE, 2018, p. 29).
Paulo Freire não se permitiu impor nenhuma forma de viver, de estudar e de estar no mundo e toda sua prática foi baseada no amor, no compromisso e na solidariedade. Ele afirmou que é no encontro com o outro que o ser humano se forma, pois, “ninguém liberta ninguém. As pessoas se libertam em comunhão” (FREIRE, 2011, p. 52). E nessa relação dialógica, as pessoas vão se construindo e se libertando à medida que se conscientizam da importância que cada ser possui neste imenso cosmos.
Na convivência diária com trabalhadores braçais numa comunidade de pescadores da região do “mar” da Galileia, também conhecido como mar de Tiberíades ou lago de Genesaré11, Jesus se dedica a uma ação pedagógica de mudança de mentalidade em meio aos desafios do mundo real. Não se baseia na mera transmissão das Sagradas Escrituras Judaicas, tal qual faziam os escribas, intérpretes oficiais da Torá, que se entrincheiravam por trás da autoridade dos textos da tradição.12 Os ensinamentos de Jesus causam admiração porque não estão somente fundamentados no dizer/ensinar, mas também no refletir/fazer/ refletir (Mc 1,22-27).
Paulo Freire (2011, p. 12) afirmava que o trabalho de “ensinar é um risco, pois, faz-se necessário a aceitação do novo e a rejeição a toda forma de discriminação”. Esta afirmação lembra o risco pelo qual Jesus e outros líderes religiosos também correram ao lutar contra as ideias que já estavam postas pelo sistema e ao apresentarem uma proposta diferente, baseado no amor, na solidariedade, na desconstrução da violência e na construção de uma cultura de paz que obriga o sujeito a repensar o seu interior e a se harmonizar com quem está em seu entorno.
Na observação, análise e prática de Paulo Freire pode-se perceber a semelhança com o lema da Teologia da Libertação (ver, julgar e agir) cujo propósito é justamente ensinar e orar (respectivamente) com o povo objetivando a busca de melhores condições de vida e, para isto, não basta ser alfabetizado: precisa ser letrado e, não basta orar, é preciso agir, pois, a fé sem as obras é morta (Tg 2,14-26).
Buscando uma melhor compreensão da práxis de Jesus na perspectiva da Pedagogia de Paulo Freire, encontramos a conhecida e inspiradora frase: “Ninguém educa ninguém, como tampouco, ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 2018, p.96) para que os educandos assumam o seu protagonismo na história.
Nessa forma de trabalho, o professor ensina ao mesmo tempo que aprende e o estudante aprende ao mesmo tempo que também ensina e ambos se libertam das algemas da opressão porque é um estilo de educação que propõe que ambos pensem estratégias de ação que respeite a diversidade de saberes e conhecimentos. É uma concepção na qual o oprimido se conscientiza de que sua libertação não parte de ninguém senão dele próprio e, dessa forma, ele problematiza o que o oprime pois percebe que se tem um oprimido, tem que haver um opressor, adquire consciência de classe e traça estratégias para se libertar (Freire, 2018, p. 20).
Disse Jesus aos seus discípulos: “...farei de vós pescadores de homens” (Mc 1,17b). Os trabalhadores da pesca, ao aceitarem o convite para o discipulado de Jesus, serão capacitados a se tornarem “pescadores de homens”, isto é, participarão da missão salvífica de Jesus que consiste em mudança de mentalidade para uma grandiosa missão: colaborar com o processo de salvação e libertação das pessoas que equivale ao que se entende por “pedagogia do oprimido”.
Para Freire,
Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens [e mulheres] na sua vocação ontológica e histórica de ser mais. Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática (FREIRE, 2018, p.72-73).
Desse modo, pensar a prática no cotidiano escolar considerando as ideias apresentadas na obra Pedagogia do Oprimido é ensinar na perspectiva da libertação, pois, “a ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, ação cultural para a liberdade, por isso mesmo, ação com eles” (FREIRE, 2018, p.73) e nessa ação em comunhão, se forma uma comunidade de leitores e de eleitores críticos, capazes de lidar com a verdade, visto que só a “verdade vos libertará” (Jo 8,32) e “só na verdade, quem pensa certo, mesmo que, às vezes, pense errado, é quem pode ensinar a pensar certo” (FREIRE, 2008, p.27).
Nessa perspectiva, não existem “praticas meritórias”: todos aprendem e todos ensinam; não há doutrinação nem manipulação: há tomada de consciência, cada um a seu tempo, respeitando seus limites e suas possibilidades, onde todos se tornam “pescadores de homens” em consequência de sua própria humanização.
Conclusão
Ao longo do Evangelho segundo Marcos, pode-se utilizar a pedagogia de Paulo Freire como interessante aporte hermenêutico para compreensão mais profunda da práxis de Jesus. Trata-se de uma pedagogia voltada para que o oprimido encontre seu próprio processo de libertação, buscando conscientizar-se de que lhe foi introjetada a lógica do opressor, pois, o oprimido funciona como hospedeiro do opressor (FREIRE, 2018, p. 20), e isto se intensifica por meio de uma instrução religiosa legalista.
Indignados com a situação de injustiça que produz pobreza e rebaixa o ser humano e tentando edificar cada vez mais uma fé que conduza a uma ação eficaz, um grupo de cristãos começou a buscar as causas estruturais da miséria na América Latina e no Caribe dando início a um novo jeito de ver o mundo, ao que chamaram de Teologia da Libertação (TL).
Esta nova forma de compreensão trouxe mudanças no olhar que a Igreja Católica tinha sobre estes povos. Tal qual a igreja, também Paulo Freire apresentou uma nova perspectiva de ensino que propôs uma transformação radical no ato de fazer educação.
A Teologia da Libertação utiliza o método com a tríade “ver, julgar e agir” para compreender a realidade e buscar ações que a transformem se baseando nos ideais de amor cuja finalidade é a libertação de toda forma de opressão. Freire propôs o método “ação-reflexão-ação” (também em tríade) como estratégia de luta contra a realidade opressora e acreditava que só através da educação, fundamentada no diálogo, na confiança e na afetividade, o mundo pode realmente mudar.
Sem falar em religião nem fazer alusão a nenhum texto religioso, em todas as obras de Freire pode-se encontrar ideias que dialogam com as grandes religiões do mundo e, principalmente na obra Pedagogia do Oprimido, ele apresenta os imperativos expostos no evangelho: a esperança, o amor, a denúncia, o anúncio, a utopia e a libertação.
A pedagogia de Jesus tinha uma práxis bem articulada, por isso, tornou-se um movimento sociorreligioso Itinerante (circulava pelas aldeias e cidades da Galileia do século I), anunciando o que já experimentava: uma nova práxis, por meio da qual se dava início a instauração do reinado de Deus, o cerne de sua ação missionária que corrobora com a pedagogia de Freire que tem como metodologia a reflexão-ação-reflexão e, por objetivo, a libertação de todas as pessoas, pois, ao tomarem consciência de sua posição de oprimidas, através da educação ativa, começam o processo de superação da passividade e assumem uma posição de participante do seu próprio aprendizado tornando-se protagonistas de sua própria história.
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Referências
BARBAGLIO, Giuseppe. Jesus Hebreu da Galileia: pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas, 2011.
BECK, C. Método Paulo Freire de Alfabetização. Andragogia Brasil, 2016. Disponível em: http://andragogiabrasi.com.br/metodo-paulo-freire-de- -alfabetização/
BÍBLIA TRADUÇÃO ECUMÊNICA (TEB). São Paulo: Loyola, 1994.
FABRIS, Rinaldo. O Evangelho de Marcos. In: BARBAGLIO, Rinaldo; FAB-RIS, Rinaldo. Os Evangelhos, I. São Paulo: Loyola, 2014.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: três artigos que se completam. São Paulo: Cortez,1989.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 65 ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Paz e Terra, 2018.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 23ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. FREIRE, Paulo. Entrevista ao Matéria Prima. TV Cultura. Disponível em https://www.redebrasilatual.com.br/educação/2017/10/video-com-paulo- -freire-em-programa-antigo-de-serginh-groissman-viraliza/. Acesso em 20/06/2020
FREYNE, Sean. Jesus, um judeu da Galileia: nova leitura da história de Jesus. São Paulo: Paulus, 2008.
GRENIER, Brian. Jesus, o mestre. São Paulo: Paulus, 1998.
HORSLEY, Richard A. Arqueologia, história e sociedade na Galileia: o contexto social de Jesus e dos Rabis. São Paulo: Paulus, 2000.
JARDILINO, José R. Lima. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz a Terra, 1992.
LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de Teologia. São Paulo: Edições Loyola; Paulinas, 2014.
PAGOLA, J. Antonio. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010.
PAULY, Evaldo Luis. Pedagogia do Oprimido. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire (4ª edição revista e ampliada). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, pp. 362-363.
SARTORI, Jerônimo. Educação bancária / Educação problematizadora. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). Dicionário Paulo Freire (4ª edição revista e ampliada). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, pp. 160-162.
SOARES, Magda. Alfabetização e letramento. 5 ed. São Paulo: Contexto,2008.
STEGEMANN, Wolfgang. Jesus e seu tempo. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012.
STEGEMANN, Ekkehar W; STEGEMANN, Wolfgang. História social do protocristianismo. Os primórdios no Judaísmo e as comunidades de Cristo no mundo mediterrâneo. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 2004.
VOIGT, Emilio. Contexto e surgimento do Movimento de Jesus: as razões do seguimento. São Paulo: Loyola, 2014.
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Notas
[1] Hermenêutica é a arte ou ciência da interpretação. Propõe-se determinar o que os textos querem verdadeiramente significar e provar se o que significam tem ou não uma pertinência para “o aqui e o agora”. “O termo latino hermeutica surgiu no século XVII para designar a ars interpretandi [a arte de interpretar] num momento em que se tentava uma disciplina completa, auxiliar da teologia (hermeneutica sacra), da filosofia ou da filologia (hermeneutica profana), ou ainda do direito (hermeneutica juris)” (LACOSTE, 2014, p. 816).
[2] Paulo Freire, Paulo Reglus Neves Freire (Recife, 19/09/1921 — São Paulo, 02/05/1997) é considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia Mundial. É o Patrono da Educação Brasileira.
[3] O livro “Pedagogia do Oprimido” foi escrito durante o exílio no Chile, em 1968. Nele, Paulo Freire elaborou teoricamente a experiência de alfabetização realizada na cidade de Angicos, Rio Grande do Norte, em 1962, na qual trezentos agricultores se alfabetizaram em 45 dias. O livro tem quatro capítulos: o primeiro, apresenta a contradição dialética (contradição) opressores versus oprimidos e mostra a necessidade de se adotar uma práxis que possa orientar uma ação visando a superação dessas contradições; o capítulo II contrapõe a “educação bancária” (que consiste na memorização mecânica de conteúdos apresentados pelo professor) e a educação problematizadora (que promove a “dialogicidade” entre educando e educador mediada pelo mundo; o capítulo III apresenta conceitos estratégicos, tais como diálogo, tema gerador e função pedagógica do partido político; o capítulo IV desenvolve a teoria da ação dialógica, por meio da qual a liderança política não pode temer as massas, sua forma de expressar-se e sua participação efetiva no poder (PAULY, In: STRECK; REDIN; ZITKOSKI (Orgs), 2018, p. 362-363).
[4] No presente artigo, tomamos “como amostra de análise” apenas uma perícope do Evangelho que, como está explicitado acima, “dá informações sobre o contexto histórico e o modus operandi de Jesus no início de sua missão (Mc 1,14-28)”. Poderíamos ter apontado outros textos, mas preferimos nos limitar a este, por se tratar de uma perícope paradigmática para o que pretende o presente artigo: apresentar um breve ensaio sobre a pedagogia de Jesus à luz da pedagogia freiriana.
[5] Para aprofundamento sobre esse trecho de Marcos que narra o primeiro dia da missão de Jesus na Galileia, indicamos uma excelente análise bíblico-teológica do biblista Rinaldo Fabris (2014, p. 435-451).
[6] Como exemplo, ver o caso da mulher adúltera em Jo 8,6
[7] A ação missionária de Jesus, como sugere o texto de Marcos, foi uma inserção na realidade histórica da Galileia, em tempos de crise radical. Do ponto de vista político, perseguição contra opositores ao Governo de Herodes: o profeta João Batista acabara de ser preso. Do ponto de vista socioeconômico, profunda crise socioambiental: a Galileia passa de um sistema de produção agrícola familiar para um sistema de agricultura voltada ao sustento das cidades instaladas por Herodes para a dominação romana na Palestina. Observa-se então: maior controle na cobrança de impostos por meio do implemento da monetarização; venda das pequenas propriedades familiares para saldar dívidas; crescimento do latífúndio; surgimento da monocultura; proliferação dos sem-terra (diaristas); revoltas generalizadas. Sobre o contexto histórico-político e socioeconômico da Palestina e da Galileia no tempo de Jesus, sugere-se aqui dois livros interessantes: “Contexto e surgimento do Movimento de Jesus: as razões do seguimento” (VOIGT, 2014, p. 43-98), e “Arqueologia, história e sociedade na Galileia: o contexto social de Jesus e dos Rabis” (HORSLEY, 2000).
[8] Sobre o Reino de Deus anunciado por Jesus e a questão da proximidade do Reino, sugere-se aqui a leitura complementar de BARBAGLIO, 2011, p. 274-304.
[9] Reprodução de fragmento da fala de Paulo Freire em entrevista à TV Cultura em 1989.
[10] Alfabetização é o processo de desenvolvimento da habilidade de ler e escrever, enquanto Letramento é o desenvolvimento da competência de leitura e escrita com capacidade crítica e atuação nas práticas sociais (SOARES, 2008, p. 37)
[11] A preferência que Jesus fez em seu ministério pela região do lago, ao invés da cidade natal Nazaré e de suas proximidades, pode ter sido por conta de alguns fatores: pelo fato de que ele conhecia alguns discípulos de João Batista oriundos de Betsaida; por causa da rejeição por parte de seu próprio povo; pela busca de trabalho; pela preferência por um ambiente mais aberto, mais cosmopolita; como forma de evitar a presença herodiana em Séforis, perto de Nazaré; por favorecer sua atividade taumatúrgica, numa região que tinha água em abundância (FREYNE, 2008, p. 47).
[12] Os escribas praticavam uma “educação bancária”, usando um conceito conhecido por Paulo Freire, cujos pressupostos se assentam na narração alienada e alienante. Ou seja, há a perspectiva de educar para a submissão, para a crença de uma realidade estática, bem-comportada, compartimentalizada, para a visão de um sujeito acabado, concluso. A educação bancária, nesse sentido, repercute como um anestésico que inibe o poder de criar, próprio dos educandos, camuflando qualquer possibilidade de refletir acerca das contradições e dos conflitos emergentes do cotidiano. Na perspectiva freiriana, a educação bancária tem o propósito de manter a reprodução da consciência ingênua, da acriticidade (SARTORI, in: STREECK, REDIN; ZITKOSKI (Orgs.), 2018, p. 161).