Modelos de interpretação Teológica das Religiões: Crítica e Proposição 

Models of Theological Inteerpretation of Religions: Cristicism and Proposition

Claudio de Oliveira Ribeiro

 Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, assessor das Comunidades Eclesiais de Base. Contato: cdeoliveiraribeiro@gmail.com 

Alonso Gonçalves 

Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo.contato: alonso3134@hotmail.com


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Resumo 

A teologia das religiões, desenvolvida no campo cristão tanto em setores católicos-romanos quanto protestantes, tem procurado fazer as melhores adequações, em termos de posições teológicas, diante da realidade inconteste das religiões e suas tradições, ritos, doutrinas, moralidade e ética e como elas se relacionam entre si. Com isso, uma primeira tentativa de classificação das posturas teológicas diante do desafio de compreender as religiões, se deu a partir de três conhecidas perspectivas: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. Como resultados de nossa pesquisa, constatamos que, embora de importância histórica e singular, tais perspectivas têm sido consideradas limitadas e discutíveis por diferentes motivos. Ainda que as categorias sejam diversas, há um consenso de que a pluralidade religiosa convoca e provoca à teologia a refletir sobre a questão do pluralismo religioso abordando seu aspecto crítico, propositivo e dialógico. Metodologicamente, a pesquisa foi organizada em dois blocos de reflexão. O primeiro é uma crítica aos modelos modernos de interpretação teológica das religiões, por não abarcarem a complexidade e a variedade presentes no quadro de diversidade religiosa, sobretudo as formas de espiritualidades de grupos subalternos, em geral com perfis holísticos e integradores tendo em vista os diferentes campos da cultura e da vivência humana. O segundo, traz perspectivas críticas e propositivas, na linha do diálogo com os estudos culturais, que são as bases do princípio pluralista. 

Palavras-chave: Pluralismo Religioso. Teologia das Religiões. Diálogo Inter-religioso. Princípio pluralista. 

Abstract 

The theology of religions, developed in the Christian field in both Roman Catholic and Protestant sectors, has sought to make the best adjustments, in terms of theological positions, in the face of the undisputed reality of religions and their traditions, rites, doctrines, morality and ethics and how they relate to each other. With this, a first attempt to classify theological positions in the face of the challenge of understanding religions, took place from three well-known perspectives: exclusivism, inclusivism and pluralism. As a result of our research, we found that, although of historical and singular importance, such perspectives have been considered limited and debatable for different reasons. Although the categories are diverse, there is a consensus that religious plurality calls and provokes theology to reflect on the issue of religious pluralism, addressing its critical, propositional and dialogical aspect. Methodologically, the research was organized into two blocks of reflection. The first is a criticism of modern models of theological interpretation of religions, as they do not encompass the complexity and variety present in the context of religious diversity, especially the forms of spirituality of subordinate groups, in general with holistic and integrating profiles in view of the different fields of culture and human experience. The second brings critical and propositional perspectives, in line with the dialogue with cultural studies, which are the basis of the pluralist principle. 

Key-words: Religious pluralism. Theology of Religions. Interfaith dialogue. Pluralist principle. 

Introdução 

O tema das religiões ganha contornos com diferentes autores e autoras, que procuram fazer abordagens teológicas tendo como foco o pluralismo religioso e o diálogo inter-religioso. Nas últimas décadas, a constatação mais nítida da pluralidade religiosa provocou a reflexão teológica. O tema do pluralismo movimentou a teologia cristã que, diante das demais tradições religiosas, procurou/procura refletir e dialogar. Tanto a teologia católica quanto a teologia protestante, se viram diante de um desafio: procurar entender o pluralismo de fato, de princípio e de direito e, como consequência, tecer caminhos que possibilitem o diálogo inter-religioso, dentro de suas respectivas tradições, preservando ou recriando, assim, os principais elementos constitutivos da teologia denominada cristã. É diante dessa realidade que, tanto católicos quanto protestantes, aceitaram o desafio. 

Assim, procurou-se melhor adequação, em termos de posições teológicas, diante da realidade inconteste das religiões e suas tradições, ritos, doutrinas, moralidade e ética. Com isso, uma primeira tentativa de classificação das posturas teológicas diante do desafio de compreender as religiões, se deu a partir de três conhecidas perspectivas: exclusivismo (só há uma religião verdadeira), inclusivismo (as demais religiões, de alguma maneira, são caminhos, mas enquanto apontam direta ou indiretamente para o cristianismo) e pluralismo (a salvação não é exclusividade apenas do cristianismo). Essas categorias têm suas limitações e demonstram as dificuldades em categorizar e tematizar a pluralidade religiosa. Isso já demonstra a amplitude do tema, bem como também a necessidade em apontar outras vertentes de reflexão. Ainda que as categorias sejam diversas, há um consenso de que a pluralidade religiosa convoca e provoca à teologia a refletir sobre a questão do pluralismo religioso. 

A discussão em torno do tema – teologia e sua relação com as religiões – tem sido profícua e necessária em tempos de cultura globalizada e, ao mesmo tempo, fragmentada ária. Além disso, a teologia tem como uma das suas tarefas pensar a relação das religiões com o meio ambiente, mas, principalmente, responder e refletir as consequências que a economia de mercado, na sua versão neoliberal, têm fomentado na cultura contemporânea, em especial as formas consumistas, o apego excessivo ao lucro e os processos de desumanização. 

Na atualidade, o tema da teologia das religiões tem sido disseminado por diversos setores cristãos, que procuram colocar em pauta a necessidade de uma reflexão consistente que contemple um status de alteridade em relação às demais religiões. Esse empreendimento, que esperamos sintetizar neste trabalho, tem proporcionado profundas e interessantes contribuições para o debate teológico e para os estudos de religião em geral. 

A pesquisa que ora apresentamos caminha nessa direção, com dois blocos de reflexão. O primeiro é uma crítica aos modelos modernos de interpretação teológica das religiões, por não abarcarem a complexidade e a variedade presentes no quadro de diversidade religiosa, sobretudo as formas de espiritualidades de grupos subalternos, em geral com perfis holísticos e integradores tendo em vista os diferentes campos da cultura e da vivência humana. O segundo, traz perspectivas críticas e propositivas, na linha do diálogo com os estudos culturais, que são as bases do princípio pluralista

A crítica aos modelos modernos de interpretação teológica das religiões 

A teologia das religiões, desenvolvida no campo cristão tanto em setores católicos-romanos quanto protestantes, tem procurado fazer as melhores adequações, em termos de posições teológicas, diante da realidade inconteste das religiões e suas tradições, ritos, doutrinas, moralidade e ética e como elas se relacionam entre si. Com isso, uma primeira tentativa de classificação das posturas teológicas diante do desafio de compreender as religiões, se deu a partir de três perspectivas: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. Embora de importância histórica e singular, tais perspectivas têm sido consideradas limitadas e discutíveis por diferentes motivos. 

Estas três categorias tradicionais que os teólogos das religiões usaram e ainda usam para descrever as relações cristãs com outras religiões não fazem sentido em contextos não ocidentais ou não ocidentalizados (BARRETO JR., 2019). Elas foram forjadas a partir da concepção moderna de religião, que não dá conta de explicar ou conceber as formas de naturezas holísticas e integradoras dos diferentes aspectos da vida. O conceito moderno de religião concebe as experiências religiosas dentro de uma estrutura rígida de racionalidade, oferecendo a elas apenas um “escaninho” ou um campo restrito e institucionalizado de existência. Para ir além desta visão advogamos que se devem levar em consideração as experiências totalizantes da vida, que engendram estilos, culturas e formas de agir. 

No contexto asiático, por exemplo, o ponto de partida não é a singularidade de Cristo ou de qualquer outra religião, mas sim o diálogo e a cooperação realizados por setores populares a partir das dimensões concretas da vida, que carregam marcas, características e as condições das experiências religiosas. Isto também se dá em diferentes experiências latino-americanas. No entanto, a densidade que esses modelos apresentam e o significado histórico deles no contexto do debate teológico sobre as religiões justificam a sua apresentação e detalhamento nas reflexões sobre pluralismo religioso. 

Os limites do exclusivismo e do inclusivismo salvíficos 

O exclusivismo parte do pressuposto de que há somente uma religião verdadeira, que, em geral, no contexto das teologias cristãs das religiões, se trata do cristianismo. Essa posição entende que só pode haver salvação quando há o “conhecimento explícito de Jesus Cristo e a pertença à Igreja” (TEIXEIRA, 2012, p. 21). Por essa razão, esse paradigma é também denominado de eclesiocentrismo, uma vez que a Igreja detém a mediação salvífica. Nesta direção, o axioma extra ecclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação) não abre qualquer “possibilidade de salvação para os membros das outras tradições religiosas” (TEIXEIRA, 2012, p. 21). 

No contexto católico-romano, o Concílio Vaticano II deu um importante passo para a superação desse paradigma, abrindo a Igreja para um outro paradigma, o inclusivismo. Mesmo assim, há resistência dentro da Igreja Católica quanto a essa abertura. Representativa dessa tensão, é a declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé, formulada pelo então Cardeal Joseph Ratzinger. Os teólogos católicos, dedicados ao tema da teologia das religiões e o pluralismo religioso, receberam a Dominus Iesus com um forte impacto. A declaração, em seu teor, reafirma o exclusivismo de setores conservadores da Igreja Católica, desconsiderando o caminho já aberto pelo Vaticano II. Depois da declaração, houve retaliações quando da publicação de livros que, de alguma maneira, estavam em desacordo com o pensamento dominante da cúpula doutrinária. Dentre esses livros e autores notificados estão Jacques Dupuis, Rumo a uma teologia cristão do pluralismo religioso, e Roger Haight com o livro Jesus, símbolo de Deus

No campo protestante, Karl Barth protagonizou certo exclusivismo, mesmo não sendo fundamentalista, quando concebeu “a religião como o esforço da humanidade em buscar a Deus, esforço ao qual se contrapõe radicalmente o fato da revelação, pelo qual Deus ‘sai gratuitamente ao encontro’ da humanidade” (VIGIL, 2006, p. 75). Assim, Barth passou a ser visto como posição exclusivista na teologia protestante, quando tratou a religião como incredulidade e ressaltou a dimensão cristológica, embora tenha feito isso para se contrapor à ideologia nazista. Tal linguagem deu base para que sua teologia fosse compreendida como exemplo de abordagem exclusivista das religiões no protestantismo por um longo período. Ainda que esse paradigma tenha sido assimilado de maneira negativa, há um esforço para atualizar o conceito a partir de uma outra percepção, qual seja, a de que as religiões sendo assimétricas, a simples “negação do direito à exclusividade quebra a espinha dorsal das religiões” (BRAKEMEIER, 2004, p. 118). Para o teólogo luterano Gottfried Brakemeier (2004, p. 117) não é possível deixar de “reconhecer que todas as religiões são exclusivistas”. A partir desse raciocínio, é possível falar em um exclusivismo aberto, ou seja, o pleno reconhecimento de que as religiões são, naturalmente, exclusivas em suas estruturas, mas tendo a possibilidade de abertura como um dado concreto. Portanto, não se nega o diálogo, mas também não se exige das “religiões a renúncia à exclusividade e, sim, a abertura para a aprendizagem” (BRAKEMEIER, 2004, p. 118). O diálogo inter-religioso respeitoso e digno, não tem como objetivo dissuadir o outro da sua tradição religiosa distinta a deixar a sua tradição, mas, antes, para entrar no diálogo inter-religioso, é preciso ter as posições bem fundamentadas na respectiva tradição religiosa. Com isso, “espera-se dos parceiros religiosos que estejam dispostos para ouvir o outro e para entender o porquê de suas convicções” (BRAKEMEIER, 2004, p. 118). 

Diferente do exclusivismo que advoga um único caminho que se caracteriza pelo eclesiocentrismo, o inclusivismo admite que as demais religiões, de alguma maneira, são caminhos, mas enquanto apontam, direta ou indiretamente para as bases essenciais do cristianismo. Dessa forma, passa-se do eclesiocentrismo (exclusivismo) para o cristocentrismo (inclusivismo). Na teologia católica, a partir do Concílio Vaticano II, um dos responsáveis por essa mudança de perspectiva foi Karl Rahner. Este teólogo alemão, perito no Concílio, teve importante contribuição para a relação do cristianismo com outras tradições religiosas. A teologia da revelação em Rahner se dá como um conhecimento de Deus atemático, ou seja, sem ainda ser sistematizado a partir do dogma. Isso ocorre porque há uma dimensão no humano da autotranscedência que, segundo Rahner, é fruto da natureza transcendental no ser humano. A experiência transcendente orienta para o mistério de Deus, portanto é um conhecimento atemático e anônimo de Deus. Com isso, todo aquele que vive valores humanos e religiosos relacionado ao projeto salvífico de Deus em Cristo Jesus é um “cristão anônimo”, ou seja, é um cristão ainda que não saiba. Assim, Rahner é um pioneiro na teologia das religiões no âmbito católico quando trabalha para que as demais “religiões deixem de serem vistas como simples expressões ‘naturais’ de uma busca humana e passam a serem reconhecidas em sua dimensão sobrenatural, definida pela operante presença do mistério de Jesus Cristo em seu interior” (TEIXEIRA, 2012, p. 42). 

As visões pluralistas e suas limitações 

A perspectiva pluralista parte da seguinte premissa: a salvação não é exclusividade do cristianismo ou de qualquer outra religião. Assim, esse paradigma supera o exclusivismo, ou eclesiocentrismo, mas também o inclusivismo, pautado no cristocentrismo. As limitações deste modelo de interpretação teológica do pluralismo religioso e, consequentemente, base de formulação de uma teologia das religiões, residem nas compreensões pautadas pela modernidade europeia, como referido no início de nossas análises. 

Há diferentes visões que se autocompreendem ou são classificadas como pluralistas e as mais destacadas no cenário teológico estão indicadas a seguir. 

Pluralismo e modernidade 

O pluralismo tem como eixo de debate o teocentrismo ou o reinocentrismo, como indicou José Maria Vigil (2006). O pluralismo é favorecido pelo que comumente ficou conhecido como modernidade. A modernidade (e seus termos correlatos), tornou a religião uma opção dentre outras. Quando a religião perdeu a sua institucionalidade, abriu-se possibilidades de outras formas de experiências religiosas que não são, necessariamente, mediadas pelas instituições religiosas tradicionais. Essa oferta de experiências religiosas desvinculadas da instituição, marcam, significativamente, como um fundamento irrevogável do pluralismo religioso. Isso ocorre porque o sagrado está solto, “entregue às vivências pessoais, individuais em processo crescente de privatização e individualização” (LIBÂNIO, 1998, p. 61). 

As igrejas, de uma maneira geral, “sofreram” com a modernidade. Em especial, a Igreja Católica que perdeu força teológica com a Reforma Protestante, passando a disputar o que considerava hegemônico, a fé. Em sequência, a Revolução Francesa dá um duro golpe no domínio político e ideológico da Igreja. Esses dois acontecimentos contribuíram para o pluralismo. O mundo ocidental não seria mais o mesmo. O Estado toma a forma de “religião”, principalmente quando a sua principal tarefa é assegurar uma política econômica que fortaleça o mercado (TOURAINE, 2007, p. 28). 

Diante desse quadro que Peter L. Berger e Thomas Luckmann (2012) procuraram entender o que orienta o humano marcado pela modernidade. “Vivências puramente subjetivas são o fundamento da constituição do sentido: estratos mais simples de sentido podem surgir na experiência subjetiva de uma pessoa” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 17). Outrora as instituições tutelavam o sentido, ou seja, exerciam a função social de regular o sentido, agora há concorrência quanto à oferta de sentido, provocando a escolha dentre as opções de sentido. Berger e Luckmann (2012, p. 22-23), chamam esse processo de “fornecedores de sentido para obter o favor de um público que se vê confrontado com a dificuldade de escolher entre uma infinidade de ofertas a mais adequada”. 

As instituições produtoras de sentido, como são as religiões, estão diante de uma pluralidade que tem como marca a concorrência de bens simbólicos. Essa concorrência está atestada entre as religiões, mesmo considerando o elemento transcendente do discurso religioso. Isso se deve porque as religiões não exercem mais o domínio incondicional sobre o humano. Dessa forma, não é possível uma prática religiosa ser imposta de maneira obrigatória ou única, uma vez que há uma oferta de sistemas similares concorrendo entre si, favorecendo o sincretismo religioso, bem como a dupla ou múltipla pertença religiosa. Com isso, as experiências religiosas a fornecem condições para que o pluralismo religioso seja dinâmico e perceptível. “O pluralismo moderno leva a um enorme relativismo dos sistemas de valores e da interpretação. Em outras palavras: os antigos sistemas de valores e de interpretação são descanonizados” (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 52). Se por um lado a pluralidade causa crise de sentido, por outro oferece uma considerável diversidade de sentido em termos de experiências religiosas. 

Dentro dessa perspectiva, ou seja, entre potencialidades e demarcações de fronteiras, Pierre Sanchis faz uma importante ressalva quanto à ambiguidade desse processo identificado como secularização e pluralismo religioso: “Para uma das posições, o pluralismo religioso, constituído em ‘mercado’, é a ponta emergida e a ponta de lança da secularização da própria consciência religiosa, porta aberta para a indiferença. Para a outra é esse pluralismo que permite o advento da experiência religiosa à modernidade da autonomia decisória do sujeito, autonomia individual articulada a um mútuo enriquecimento dialogal. Para uma das posições, a secularização fere de morte as instituições gerenciadoras do sagrado, libertando as consciências daquilo que, historicamente, foi o seu papel regulador. Para outra, a modernidade segreda, na insegurança que provoca o reforço das identidades institucionais e dos filões de herança agressivamente reivindicadas: integrismos e fundamentalismos” (SANCHIS, 2018, p. 68-69). 

Tais ambivalências demonstram que, tanto a secularização quanto o pluralismo religioso, corolários aqui, são como uma dobra, favorecendo tanto possibilidades de convergências diante de um quadro plural, como também contribuindo para acirramentos ideológicos, assim como posturas e comportamentos que pretendem fortalecer as cercas com o propósito de “proteger” o grupo de possíveis ameaças que desqualifique ou cause certos desconfortos no discurso estabelecido. Com isso, as experiências religiosas são híbridas, e essa constatação é perfeitamente perceptível no contexto religioso brasileiro. Assim, a religião como instituição perde cada vez mais a sua centralidade como mediadora de experiências religiosas, e novas formas de se experimentar o sagrado ganha outras configurações, mesmo com ambiguidades. “A era da religião como estrutura está terminada, embora não como cultura. A religião perdeu sua função social, embora talvez não sua função subjetiva” (BINGEMER, 1993, p. 29). Será a função subjetiva a exercer, cada vez mais, a matéria para a experiência religiosa. A subjetividade é marca indelével da contemporaneidade e esse dado precisa ser levado em consideração quando o tema é multiplicidade de oferta de bens religiosos e pluralismo religioso. “A sociedade moderna talvez não seja uma sociedade sem religião, mas é uma sociedade que se constitui em suas articulações principais pela ‘metabolização’ da função religiosa” (BINGEMER, 1993, p. 29). Essa metabolização, ou seja, a capacidade de transformar algo que, por alguma razão foi rejeitado, em outra coisa, é uma característica evidente de uma sociedade que soube lidar, ou assimilou, a oferta de bens religiosos. Essa característica permite certa independência do sistema religioso organizado e a possibilidade de bricolagens na construção das experiências religiosas, ou seja, alguém que configura suas experiências religiosas a partir dessa pluralidade de ofertas. 

A capacidade de leitura simbólica de diferentes ramificações da religião é, de fato, notória. Diversas pessoas estão configurando seu mapa religioso tendo como referência não mais doutrinas, ritos ou estruturas estabelecidas e organizadas, mas aspectos subjetivos e práticos. Há um trânsito entre pertenças religiosas que possibilitam uma impermanência em determinada moldura institucional. Essa característica não significa, portanto, em afastamento da religião, pelo contrário, favorece o pluralismo religioso e a dupla pertença, porque “as instituições tradicionais produtoras de sentido têm se deparado com a precariedade do engajamento das pessoas com o seu sistema de crenças” (SOUZA, 2001, p. 159). 

O pluralismo inclusivo de Jacques Dupuis 

Ao lado do debate sobre a visão pluralista, muitas concepções distintas surgirão. Uma delas é de Jacques Dupuis que constrói a sua produção teológica no contexto da cultura indiana e do trabalho missionário cristão guiado pela preocupação desafiante da relação de Jesus Cristo com as outras religiões (DUPUIS, 1999). Ele elabora uma teologia nômade, que caminha entre as posições clássicas da teologia cristã das religiões. Se os modelos são: exclusivista (eclesiocêntrico), inclusivista (cristocêntrico), pluralista (teocêntrico), Dupuis produz na região fronteiriça: o pluralismo inclusivo (cristocentrismo teocêntrico). 

Este novo modelo reconhece e acolhe o pluralismo de princípio, entendido como realidade e vontade de Deus para que Ele se revele através da diversidade de culturas e religiões; reconhecendo a unicidade de Jesus Cristo como revelação do amor de Deus para com a criação e a humanidade e o “valor intrínseco” das outras religiões, enquanto vias misteriosas de salvação. A produção teológica de Jacques Dupuis traz novas perspectivas à teologia cristã das religiões, em que se relacionam e se ligam mundos vividos em seus movimentos de fé e espiritualidade; e permanecendo além de modelos fixos de hermenêutica do pluralismo religioso. Como síntese, a proposta é envolta na paixão pelo encontro, pelo compromisso com um Deus que é graça e mistério, pelo embate diante das identidades absolutas e excludentes – eclesiocêntricas demais – e pelo incessante sonho da construção de uma teologia que esteja sempre a caminho, nunca fechada e estática, mas rumo a, em constante movimento. Uma cristologia reinocêntrica compreende que a mensagem central de Jesus de Nazaré não foi ele mesmo, mas o reinado de Deus, que coloca o Abba no centro da ação de Jesus. Ao ser assim, as fronteiras são alargadas, as concepções são transformadas sobre a centralidade da vida cristã. Fala-se, agora, em universalidade do reino e da ação de Deus. Por ser desta maneira, participantes de experiências religiosas distintas podem seguir a vocação por meio de suas tradições religiosas e responderem ao convite de Deus em seu mistério e se tornarem membros ativos do reinado do Abba. 

O pluralismo normativo de Roger Haight. 

Haight enfatiza que a descrição do relacionamento de Jesus com outras mediações religiosas de Deus é imprescindível para uma cristologia que deseja ser adequada e relevante para a atualidade (HAIGHT, 2003). Mais do que isso, Haight alerta para o fato de que tal inclusão não pode ser entendida como anexo ou adendo “ao final” de uma cristologia, mas deve integrar o próprio método cristológico, uma vez que a abertura ao pluralismo religioso é uma característica da vida cristã. 

Como o estágio de desenvolvimento da teologia das religiões, marcado pela vitalidade do seu crescimento e pela complexidade do debate, ainda não possibilita sínteses satisfatórias, fazendo com que tenhamos que conviver com diferentes visões, métodos e posicionamentos, o autor apresenta, logo de início, uma perspectiva da relação entre pluralismo religioso e a questão cristológica. Ainda que reconheça a fragilidade das tipologias e mesmo a contra produção delas quando se tornam esquemáticas e simplificadoras, Haight sintetiza as posições em torno da relação de Jesus e a salvação humana e utiliza as seguintes nomenclaturas para cada modelo: o exclusivismo, o inclusivismo constitutivo, uma posição normativa não-constitutiva e o pluralismo. 

O exclusivismo sustenta que não existe salvação alguma fora de um explícito contato e fé na pessoa de Jesus Cristo. O inclusivismo constitutivo é inclusivo porque defende que a salvação pode ser acessível a todos os seres humanos e é constitutivo porque considera Jesus a causa dessa salvação. A posição normativa não constitutiva defende a ideia que Jesus é a norma ou medida da verdade religiosa e da salvação de Deus para toda a humanidade, ainda que não cause a ação divina salvífica, pois ela se desenrola fora da esfera cristã. O pluralismo reconhece a multiplicidade das religiões e do valor salvífico delas e defende que outras mediações de salvação estão ou podem estar em “pé de igualdade” com Jesus Cristo. Haight mostra que os cristãos podem relacionar-se com Jesus como normativo da verdade religiosa no tocante a Deus, ao mundo, à existência humana e à salvação, e, ao mesmo tempo, crer que há também outras mediações religiosas que são verdadeiras e, portanto, também normativas. 

O autor realça o que Paul Knitter já afirmara: Jesus é “verdadeiro”, mas “não o único” portador da salvação. Tal relatividade histórica leva o cristão a definir mais exatamente o conteúdo de sua fé em Jesus. A normatividade de Jesus não exclui o pluralismo religioso, muito menos a sua valorização positiva. Ao contrário, da mesma forma em que a teologia cristã necessita interpretar toda a realidade, ela também julgará, em sentido de discernimento responsável, as demais religiões. O próprio Jesus fez isso, como expressam os Evangelhos. 

O argumento remonta, portanto, à tradição judaica da imanência e da transcendência simultâneas de Deus e reafirma a tradição cristã de ver Jesus como o mediador entre o humano e o divino. Deus é sempre maior e o conhecimento dele se dá em uma dimensão de mistério. Nada e ninguém possuem a posse plena de Deus. Sustentar que Jesus Cristo é normativo para a concepção cristã da realidade também não inibe o diálogo inter-religioso. Pelo contrário, a vinculação a Deus mediado por Jesus impele ao diálogo, uma vez que a fé cristã assume que expressão humana, cultural ou religiosa alguma esgota o mistério de Deus. Nesse sentido, portanto, “como as outras religiões são mediações efetivas da graça de Deus (...) os cristãos devem abordá-las com abertura e disposição de espírito para aprender mais acerca dos caminhos de Deus no mundo” (HAIGTH, 2003, p. 483). 

A contribuição de Paul Knitter 

Knitter contribui significativamente com o esforço de muitos outros teólogos para construir tipologias que ajudassem as pessoas, interessadas no tema e também especialistas, a compreenderem melhor o pluralismo religioso e a necessidade premente de interpretações consistentes dessa realidade (KNITTER, 2008). O título já é exemplar da proposta, uma vez que é redigido no plural: teologias! Após apresentar os desafios para o Cristianismo diante das várias realidades e a pluralidade como fato significativo da vida religiosa e cósmica, Knitter apresenta quatro modelos didáticos de compreensão e interpretação do quadro de teologias das religiões, aos quais denominou: i) substituição, ii) complementação, iii) mutualidade, e iv) aceitação. 

O primeiro, denominado modelo de substituição, parte da premissa de que há somente uma religião verdadeira. Tal perspectiva pode ser compreendida tanto como “substituição total” – e aí residem os cristãos cujo perfil ideológico é de caráter fundamentalista – assim como aqueles grupos e visões que consideram que Deus pode estar presente em outras religiões, ainda que parcialmente, a que se chamou de “substituição parcial”. A experiência religiosa fundamentada em Jesus é vivenciada intensamente, o que gera uma postura firme de diálogo polêmico e confrontador com outras religiões. 

O modelo de complementação tem a pressuposição filosófica de que “o Uno dá completude ao vário”. Ele forjou e foi forjado pelos processos de renovação eclesial do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) no contexto católico- -romano, com as contribuições de Karl Rahner, por exemplo, mas também está em sintonia com as perspectivas dialógicas modernas que marcaram o século 20. Nessa visão, o anúncio de Jesus deve, no processo de diálogo, acrescentar aos de outras religiões algo novo, mas que já estava posto, e assim contribuir para que descubram que o Evangelho lhes é fecundo. 

Em seguida, Knitter apresenta o modelo de mutualidade, com base na ideia de “várias religiões verdadeiras convocadas ao diálogo”. Em certo sentido, ele aprofunda a lógica dos modelos anteriores, pois pressupõe que o diálogo inter- -religioso se propõe a ser recíproco. Assim, o processo de diálogo leva os cristãos a passarem pelas transformações que eles mesmos indicam às outras religiões, na busca de um equilíbrio entre a universalidade do amor de Deus e a particularidade da encarnação desse amor em Jesus. 

O modelo de aceitação parte da pressuposição de que “as tradições religiosas que o mundo apresenta são mesmo diferentes, e temos de aceitar essas diferenças” (KNITTER, 2008, p. 272). O autor, ao introduzir a ideia, assumidamente utópica, de “uma comunidade dialógica de comunidades entre as religiões mundiais” enfatiza que “para conhecer a verdade, temos de estar comprometidos com a prática de comunicação com os outros; isso quer dizer conversar realmente com pessoas que são, de modo significativo, diferentes de nós, e escutá-las. Se falarmos somente conosco mesmos ou com alguém de nosso próprio grupo natural, ou se há algumas pessoas que simplesmente excluímos de nosso convívio e com quem não conseguimos nos imaginar falando, então possivelmente nos alijamos da oportunidade de aprender algo que ainda não descobrimos (KNITTER, 2008, p. 32). Nessa visão, a diversidade possui maior valorização, firmada no cultivo da tolerância, na ênfase na alteridade e na valorização da identidade distinta do outro. Não se trata de negação da unidade, mas uma busca de equilíbrio entre unidade e diversidade. 

Desafios da visão pluralista para a teologia cristã 

Em âmbito católico, além da preocupação com o Magistério e seus documentos quanto ao alcance das religiões não-cristãs, o debate se dá, principalmente, sobre a condição salvífica das religiões não-cristãs. O ponto fulcral se dá a partir da unicidade e singularidade de Jesus Cristo. Nesse sentido, a soteriologia domina o debate. Ainda que haja consenso de que “todas as religiões se apresentam aos seus seguidores como itinerários de salvação/libertação” (DUPUIS, 1999, p. 423), o debate soteriológico segue sendo um ponto primordial e sensível à teologia das religiões no âmbito católico. 

A discussão, como bem pontua Claude Geffré (2013, p. 73), é tentar equacionar a pluralidade das religiões e, concomitantemente, não relativizar o cristianismo “que tem a pretensão legítima de ser a única religião”. Parece que esse dado segue sendo um enorme desafio para a teologia católica das religiões. Por um lado, se reconhece as tradições religiosas como portadoras de sentido, portanto, o pluralismo religioso é um fato irrevogável; por outro lado precisa dar conta de uma questão sensível, a salvação tão somente por meio de Jesus Cristo. Por essa razão que Paul F. Knitter (1986, p. 105) constata: “A teologia católica das religiões está hoje diante duma encruzilhada desconcertante e desafiadora”. 

Enquanto há quem procure equacionar esse problema com reflexões teológicas que tentem dar uma resposta; outros ainda, como é o caso de Mário de França Miranda (1998, p. 103), por exemplo, fecham a questão: “Respeitamos os programas salvífico das outras tradições religiosas sem reduzi-los a meras fantasias, levamos a sério suas experiências salvíficas, oferecemos um sentido teológico para as religiões e afirmamos o critério salvífico cristão como instância salvífica para todos”. Eis um impasse que a teologia católica das religiões ainda está por tentar resolver. 

No âmbito protestante, esses três paradigmas não se encaixam muito bem em determinadas abordagens da religião que teólogos protestantes fazem. É caso, por exemplo, de Paul Tillich, sobretudo em The Future of Religions (1966). O autor contribui para o que chamamos de teologia do pluralismo religioso, mas sua reflexão, devido à complexidade dela e suas muitas correlações, não se enquadra, necessariamente, em uma das três comumente conhecidas vias: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. Em Tillich é a preocupação última que possibilita o encontro com as religiões. A religião se dá como fenômeno de algo que a precede. Portanto, a religião se dá dentro da dimensão ontológica do ser humano. Com isso, é possível conceber o pluralismo religioso como um fato subsequente da própria condição humana que, nas contradições da razão, pergunta pela revelação sendo essa pergunta ontologicamente possível porque se encontra com a preocupação última do ser humano. Diante desse quadro, para Tillich “nenhuma religião pode alimentar a pretensão de ter o monopólio da revelação divina [...] Tillich soube identificar com grande delicadeza a presença da universalidade e riqueza dos ‘dons’ de Deus, que sempre antecedem a dinâmica da busca religiosa realizada pelos seres humanos” (TEIXEIRA, 2006, p. 33). 

No campo protestante brasileiro, para além de termos circundantes em torno de um possível enquadramento das expressões religiosas, Claudio Ribeiro propõe o princípio pluralista. O autor entende que há uma maneira de observar a sociedade na sua pluralidade, não sendo possível enxergar a dinâmica religiosa, política, cultural e social de maneira compartimentada, mas, sim, dentro de um processo sinérgico, com as devidas proporcionalidades e diferenciais de poder. O princípio pluralista, nesse sentido, supera algumas simplificações e interditos, sejam eles doutrinários ou institucionais, porque se configura como um fator pertinente de observação policromática de uma determinada dimensão religiosa. 

A Teologia Latino-Americana da Libertação, dentre os seus muitos desafios, tem elaborado uma consistente reflexão sobre os desafios do pluralismo religioso. O marco dessas reflexões foi a publicação de uma pequena obra, sob os auspícios da Associação dos Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo (ASETT), de vários autores com o sugestivo nome, que também dá título à coleção, Pelos Muitos Caminhos de Deus: desafios do pluralismo religioso à Teologia da Libertação (2003). Na sequência, foram publicadas outras obras que aprofundam e ampliam as questões inicialmente levantadas. Em diálogo com esta produção, o princípio pluralista realça as perspectivas teológicas que procuram superar as clássicas visões exclusivistas, inclusivistas e relativistas de compreensão mútua entre as religiões. 

Para Ribeiro (2017b, p. 13), “o princípio pluralista, contempla tal perspectiva ecumênica, valorativa do diálogo e das aproximações inter-religiosas, mas é mais amplo, uma vez que também se constitui em instrumento de avaliação da realidade social e cultural, sobretudo para melhor compreensão das diferenças, religiosas ou não, que se forjam nos entre-lugares das culturas”. É neste sentido que é possível haver recepção da dimensão plural da religião, uma vez que os elementos para uma visão pluralista estão dados, quais sejam: “alteridade, respeito à diferença e o diálogo e a cooperação prática e ética em torno da busca da justiça e do bem comum” (RIBEIRO, 2014, p. 16). 

A contribuição do princípio pluralista 

O que é o princípio pluralista 

Trata-se de um referencial de análise facilitador de melhor compreensão do complexo e variado quadro religioso, que pode também ser utilizado como noção condutora de reflexões sobre o pluralismo metodológico e antropológico, tanto em termos do caráter descritivo e sociológico das ciências da religião, quanto em termos da dimensão hermenêutica da teologia. É um instrumento hermenêutico de mediação teológica e analítica da realidade sociocultural e religiosa que procura dar visibilidade a experiências, grupos e posicionamentos que são gerados nos “entre-lugares”, bordas e fronteiras das culturas e das esferas de institucionalidades (RIBEIRO, 2017a, 2017b). 

O princípio pluralista possibilita divergências e convergências novas, outros pontos de vistas, perspectivas críticas e autocríticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas e formas de alteridade e de inclusão, considerados e explicitados os diferenciais de poder presentes na sociedade. O princípio pluralista, formulado a partir de lógicas ecumênicas e de alteridade, possibilita melhor compreensão da diversidade do quadro religioso e, também, das ações humanas. 

Não se trata de uma indicação ética ou “catequética”. Com ele, as análises tornam-se mais consistentes, uma vez que possibilitam melhor identificação do “outro”, especialmente as pessoas e grupos que são invisibilizados dentro da visão sociológica que Boaventura de Souza Santos (2010) chamou de “sociologia das ausências”. A sensibilidade com as distintas expressões culturais ou religiosas, majoritárias ou minoritárias, fronteiriças ou não, contribui para uma “sociologia das emergências” de novos rostos, variados perfis religiosos, multiplicidades de olhares, perspectivas e formas plurais de atuação. 

A lógica de uma visão pluralista está presente em diferentes autores e autoras, mas, a expressão princípio pluralista tem certo caráter inédito. É fato que a nomenclatura, especialmente por sua sonoridade e constituição, nos remete à ideia do pluralismo de princípio, como nos indicaram Claude Geffré (2004), Jaques Dupuis (1999) e outros autores. Para eles, além do pluralismo religioso de fato, como uma das marcas da realidade social, o pluralismo de princípio, seria uma plataforma teológica que reconhece e valoriza a realidade do pluralismo religioso como vontade e automanifestação divinas, para que a ultimacidade se revele por meio da diversidade de culturas e religiões. 

O princípio pluralista requer uma articulação teórica e metodológica de concepções fundamentais para uma hermenêutica do quadro brasileiro de pluralismo religioso, em especial: (i) a concepção de entre-lugar e de fronteiras, (ii) as tensões entre as sociologias das ausências e das emergências, (iii) as críticas às formas de colonialidade do poder, do saber e do ser, (iv) as visões de alteridade e ecumenicidade e (v) a noção de polidoxia, para gerar bases de aplicação do princípio pluralista que apontem para melhor compreensão da pluralidade religiosa e antropológica. 

Entre-lugares e fronteiras 

O princípio pluralista segue a concepção de entre-lugar, como trabalho fronteiriço da cultura, conforme nos indica Homi Bhabha em sua obra O local da cultura (2001), que requer um encontro com “o novo” que não seja mera reprodução ou continuidade de passado e presente. O princípio pluralista renova e reinterpreta o passado, o refigurando como um “entre-lugar” contingente, que inova, interrompe e interpela a atuação do presente. Ele está em sintonia com o horizonte hermenêutico e de intervenção social, configurado por Homi Bhabha, a partir da possibilidade de “negociação” da cultura ao invés de sua “negação”, comum nas posições dicotômicas e bipolares, tanto no campo político como nas análises científicas. Trata-se de uma temporalidade forjada nos entre-lugares e posicionada no “além”, que torna possível conceber a articulação de elementos antagônicos ou contraditórios e tornar possível novas realidades ainda que sejam híbridas, sem forte coerência racional interna, mas nem por isso desprovida de potencial transformador e utópico. 

O “local da cultura” [para usar o sugestivo título da referida obra] é fundamental no processo de se estabelecer mediações socioanalíticas para as interpretações teológicas e, também, para as análises científicas da religião em geral. O conceito entre-lugar está relacionado à visão e ao modo como grupos subalternos se posicionam frente ao poder e como realizam estratégias de empoderamento. Tais posicionamentos geram entre-lugares em que aparecem com maior nitidez questões de âmbito comunitário, social e político. 

A posição de fronteira permite maior visibilidade das estruturas de poder e de saber, o que pode ajudar na apreensão das subjetividades de povos subalternos. Tal visão está associada à perspectiva dos estudos culturais, que em solo latino-americano ganhou, a partir dos estudos, sobretudo do peruano Anibal Quijano e dos argentinos Enrique Dussel e Walter Mignolo, um novo conteúdo crítico. Trata-se da perspectiva ou giro decolonial. Estas expressões, que se distinguem do “pós-colonial” ou do “descolonial”, possuem um sentido estratégico que revela interpelações políticas e epistemológicas de reconstrução de culturas, instituições e relações sociais. 

Tais interpelações críticas são marcadas por certo caráter propositivo e prático e por ações concretas no âmbito cultural e político. O “decolonial” indica uma desobediência epistemológica sem a qual “não será possível o desencadeamento epistêmico e, portanto, permaneceremos no domínio da oposição interna aos conceitos modernos e eurocentrados, enraizados nas categorias de conceitos gregos e latinos e nas experiências e subjetividades formadas dessas bases” (MIGNOLO, 2008, p.288). A tarefa decolonial consiste em construir a vida a partir de outras categorias de pensamento que estão para além dos pensamentos ocidentais dominadores. 

Trata-se de uma postura e atitudes permanentes de transgressão e de intervenção no campo político e cultural, na incidência das culturas subalternalizadas e invisibilizadas, nas quais se pode identificar, visibilizar e incentivar lugares de exterioridade e de construções críticas alternativas e plurais. “O paradigma decolonial luta por fomentar a divulgação de outra interpretação que põe em evidência uma visão silenciada dos acontecimentos” e, ao mesmo tempo, revela “os limites de uma ideologia imperial que se apresenta como a verdadeira e única interpretação” (MIGNOLO, 2007, p. 457). As proposições conceituais dos estudos culturais decoloniais visam realçar a decolonialidade do poder, do saber e do ser (MIGNOLO, 2008). Com isso, as aproximações religiosas e a valorização do pluralismo podem ser, não somente percebidas e terem suas tendências identificadas nas análises, mas, elas podem ser sobretudo construídas. 

Alteridade e ecumenicidade 

O princípio pluralista arquitetado sob a noção de entre-lugares da cultura e estabelecido também sob outras duas grandezas - alteridade e ecumenicidade – pode reforçar as experiências religiosas que se constituem como aprofundamento dos processos de humanização, da democracia, da cidadania, e da capacidade contra-hegemônica na defesa de direitos humanos e da terra. O mesmo é possível afirmar em relação à necessidade de tais experiências serem vistas e analisadas considerando-se as relações assimétricas de poder presentes na sociedade e as formas de colonialidade. Em ambos os casos, alteridade e visão ecumênica são chaves significativas de interpretação do quadro de pluralismo religioso. 

Compreende-se alteridade como a capacidade de se reconhecer um “outro” que está além da subjetividade própria de cada pessoa, grupo ou instituição, como indicaram Emmanuel Lévinas (2002) e Martin Buber (1987). Trata-se de uma postura, método, ou sistema de ferramentas científicas que permitem redimensionar, em perspectiva, a realidade. Assim, a plausibilidade de um dado sistema (religioso ou cultural) se evidenciaria no convívio com o “outro” e não na confrontação apologética tentando desqualificá-lo. Dessa forma, permite-se uma possibilidade criativa de aproximação e convívio da qual decorrerá em melhor compreensão do “outro”, que não mais será visto como exótico, como inimigo, como inferior ou como qualquer outra forma de desqualificação. 

A aplicação do princípio pluralista para a compreensão do quadro religioso em geral e para as possibilidades de aproximações inter-religiosas leva em conta que a visão pluralista nem anula as identidades religiosas, por um lado, e nem as absolutiza, por outro. A perspectiva pluralista olha as religiões em plano dialógico e diatópico, considerando cada contexto, especialmente os diferenciais de poder que neles estão presentes. Não se trata de igualdade de religiões, mas de relações justas, dialógicas e propositivas entre elas. 

Nossas reflexões fazem um percurso que vai da dimensão transdisciplinar à perspectiva transreligiosa. A formulação do princípio pluralista bebeu das fontes deste caminho. 

A transdisciplinaridade engrendra, pois, uma atitude trans-cultural e trans-religiosa. A atitude trans-cultural designa a abertura de todas as culturas para aquilo que as atravessa e ultrapassa, indicando que nenhuma cultura se constitui em um lugar privilegiado a partir do qual podemos julgar universalmente as outras culturas, como nenhuma religião pode ser a única verdadeira e universal (ARAGÃO, 2008, p. 142-143). 

Tal visão potencializa o plano utópico das experiências inter-religiosas e de diálogo interfé. A perspectiva pluralista das religiões interpela fortemente o contexto teológico latino-americano, especialmente pela sua vocação libertadora e pelos desafios que advém de sua composição cultural fortemente marcada por diferenças religiosas que se interpenetram nas mais diferentes formas. 

A perspectiva ecumênica, que tanto na dimensão intracristã como na inter- -religiosa, ganhou nas últimas décadas forte destaque nos ambientes teológicos, é fundamental para toda e qualquer experiência religiosa ou esforço teológico ou hermenêutico. Esta visão, quando vivenciada existencialmente e/ou assumida como elemento básico entre os objetivos, altera profundamente o desenvolvimento de qualquer projeto, iniciativa ou movimento religioso. Daí, o interesse pelos estudos ecumênicos. 

A presença do “outro”, portanto, é a dimensão interpeladora da prática ecumênica. É este “outro” em seu corpo, fala, face, fé que provoca a vida e a produção teológica de quem com “ela/ele” se relaciona. Esta presença e interação são desafiadoras em diferentes aspectos, em especial a pluralidade. Na interação com o “outro”, nas mobilidades de nossas fronteiras, se dá um encontro com “o novo”, numa espécie de evento kairótico, em que a relação com esta alteridade explode o curso comum das histórias pessoais e coletivas. Há, portanto, uma transformação por meio da graça manifesta na relação, no face-a-face: uma dimensão salvífica. 

Outro significado teológico das aproximações ecumênicas inter-religiosas é a referência utópica. A presença em conjunto de pessoas e de grupos com diferentes experiências religiosas aponta para o futuro e, necessariamente, precisa estar deslocada do real. É a dimensão da imaginação. Este utópico, todavia, não é uma perspectiva linear e progressiva da história em que ela vai completando-se e conhecendo-se rumo a um sentido único. Utopia, aqui, relaciona-se com uma atividade visionária que – a partir da dimensão do futuro – cria intervenções e rupturas no presente, agora. É o sonho que acampa o real, fazendo dele morada. Uma busca para fazer-lugar aquilo que permanece apenas como desejo, como movimentação. A utopia, o residir “no além” é “ser parte de um tempo revisionário, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunalidade humana, histórica; tocar o futuro em seu lado de cá” (BHABHA, 2001, p. 27). 

Quando comunidades religiosas, ainda que de forma incipiente começam – movidas por uma utopia - a se unir em torno de uma proposta socialmente responsável e comum, isso se torna uma ação política e profética. A unidade é, portanto, uma tarefa religiosa sublime e nos cabe identificá-la (ou mesmo as suas contraposições) nas diferentes linguagens religiosas. 

A noção de polidoxia 

O princípio pluralista também está em conexão com a noção de polidoxia, como Kwok Pui-Lan indicou em Globalização, gênero e construção da paz (2015). A polidoxia possui importância na medida em que inibe interpretações e ações bipolares (do tipo ortodoxia versus heterodoxia, ou mesmo verdade versus heresia). Ela é constituída por intermédio da crítica e do desmascaramento do pensamento único, e compreendida no contexto de multiplicidade, irrestringibilidade e relacionalidade das concepções religiosas. 

Na abordagem teológica do pluralismo religioso, feita sob a égide do princípio pluralista, se dão melhores condições de superação do binômio ortodoxia-heterodoxia, uma vez que este, em geral, gera formas excludentes de pensamento e ação. Quando a heterodoxia é vista como heresia a partir de mecanismos coercitivos institucionais das diferentes religiões, os processos de exclusão se acentuam. Considerando o contexto de hegemonia do amálgama Ocidentemodernidade-cristianismo-capitalismo (HALL, 1992), o conceito de polidoxia torna-se uma referência teológica importante para a construção de imaginários dialógicos no contexto das aproximações e diálogos inter-religiosos. 

Nesta direção, se reforça a diversidade, a pluralidade e a fluidez e a variedade da linguagem humana e suas falas acerca do sagrado. “A polidoxia insiste que nenhuma teologia ou credo pode exaurir o sentido de Deus e alegar infalibilidade doutrinal. [...] A polidoxia partilha a afinidade com a teologia apofática, que insiste que a natureza de Deus não pode ser plenamente descrita, e que só podemos falar a respeito do que Deus não é, em vez de sobre o que Deus é” (PUI-LAN, 2015, p. 75-76). Com isso, por intermédio da polidoxia, é possível expor os limites da razão ocidental e reforçar a perspectiva de uma ética de alteridade. Ao demonstrar que a alteridade é constitutiva do ser – que, de fato, é sempre inter- -ser – Pui-Lan mostra que o diálogo interfé é um canal de construção de uma cultura da solidariedade e da paz com justiça. 

Princípio pluralista e diversidade antropológica

O princípio pluralista possui e reforça uma visão antropológica aberta, marcada por identidades em construção. Isto requer uma nova linguagem teológica, forjada nas expressões da corporeidade, da sexualidade e dos desejos humanos, associadas às dimensões místicas de formas de vida marcadas pela alteridade, pela afirmação da diferença, pela linguagem poética e narrativa e pelo empoderamento de grupos subalternizados como os de homossexuais, indígenas, trabalhadores e trabalhadores rurais, grupos de base especialmente de mulheres, de negros e de jovens (GEBARA, 2010). 

Tal visão gera formas de espiritualidades centradas na realidade corporificada no cotidiano, tanto nas dimensões de prazer como nas de dor, incluindo as mudanças e os processos do corpo, da vida pessoal, da autoafirmação e, ao mesmo tempo conectada ao compromisso social e atividade política. Dessa espiritualidade surgem as possibilidades de afirmação do corpo, tanto em seu poder erótico como em seu poder criativo de dar a vida e de ser fonte de cura. Há iniciativas significativas nesta direção realizadas por setores das teologias poéticas, feministas e queer, como as produções e iniciativas no campo latino- -americano de Ivone Gebara, Elza Tamez, Rubem Alves, Marcella Althaus-Reid, Andre Musskopf e outros. 

Além desse quadro, a experiência religiosa brasileira foi e tem sido fortemente influenciada por uma espiritualidade de cunho imagético e por narrativas míticas que se constituem mais por um conjunto de cosmovisões e experiências orientadas pela espontaneidade e sem maior rigor institucional do que por um corpus teológico sistematizado. Sem possuir contornos fixos, as novas espiritualidades se multiplicam, com traços flutuantes, dispersos e plurais. Muitos deles situam-se nas fronteiras e cruzamentos da religião com a medicina, a arte, a física, a filosofia, a psicologia, a ecologia, e, especialmente, com a economia. Tais formas de espiritualidades respondem a dimensões muito variadas do dado antropológico. 

Outro aspecto de destaque no quadro religioso brasileiro atual é o simultâneo e igualmente ambíguo crescimento dos fundamentalismos e do pluralismo religioso. Não obstante ao fortalecimento institucional e popular de propostas religiosas com acentos mais verticalistas, em geral conflitivas, fechadas ao diálogo, marcadas por violência simbólica e de caráter fundamentalista, o campo religioso tem experimentado também formas ecumênicas de diálogo entre grupos religiosos distintos. Pressupomos um tipo de fundamentalismo, mais associado a certa refutação religiosa das perspectivas antropológicas que levam em conta as formas de evolução do universo e da vida humana e as explicações mais racionais da vida, assim como reações contra posturas mais abertas no campo da sexualidade, especialmente no que se refere ao direito das mulheres ao próprio corpo e ao prazer e também à homossexualidade. 

Com o princípio pluralista, as análises podem se tornar mais consistentes por se sentirem constantemente desafiadas pelas novas visões sociais, políticas e científicas e pelas demandas que a sociedade apresenta. As análises não podem se confinar aos dogmatismos eclesiásticos que somente travam a visão crítica, e nem às visões que não levam em conta as mudanças culturais e científicas na forma de compreender o mundo. Ao passar por revisões, críticas e autocríticas, próprias do princípio pluralista, a visão teológica e os estudos de religião terão melhores condições de serem iluminadoras de novas práticas e de novas perspectivas conceituais. 

Considerações finais 

O pluralismo religioso tem desafiado diferentes áreas do conhecimento quanto à sua complexidade e importância global. Isso exige reflexões teológicas a partir das tradições religiosas. 

O texto que apresentamos procurou pontuar os limites na abordagem dos conhecidos e representativos modelos presentes na reflexão teológica, mas também apresentou questões propositivas quando se assume o pluralismo religioso como valor e quando se faz uma leitura a partir do princípio pluralista, conceito que demos o devido destaque nesse trabalho. 

A crítica aos modelos modernos de interpretação teológica das religiões se fundamentou, sobretudo, pelo fato de tais modelos não abarcarem a complexidade dos diferentes grupos e vivências cotidianas que marcam o cenário da diversidade religiosa. Há diversas formas de espiritualidades, especialmente no contexto de grupos e culturas subalternas, que possuem expressões híbridas, holísticas e formas integradoras de vivência da fé, que não se encaixam no conceito moderno de religião e, consequentemente nos modelos dele decorrentes usualmente denominados exclusivismo, inclusivismo e pluralismo. O conceito moderno de religião, em geral, carrega definições rígidas, estanques e institucionalizadas. Daí, a necessidade de olhar a realidade sob o prisma de outro princípio. 

Neste sentido, destacamos perspectivas críticas e propositivas, na linha do diálogo com os estudos culturais, que são as bases do princípio pluralista. Assim, esperamos contribuir com elementos interpretativos na expectativa de favorecer o aprofundamento desse instigante e necessário debate. 

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