EVANGELIZAÇÃO E MOVIMENTOS POPULARES

EVANGELIZATION AND SOCIAL ORGANIZATIONS


Francisco Aquino Júnior

Doutor em teologia pela Westfälische Wilhelms-Universität Münster - Alemanha; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e do PPG-Teo da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). E-mail: axejun@yahoo.com.br 


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Resumo
Que a evangelização tenha uma dimensão social é algo que se aceita sem maiores dificuldades na Igreja. O problema reside na compreensão e, sobretudo, no dinamismo dessa dimensão social da evangelização. A tendência mais comum hoje na Igreja é reduzir o social a relações interpessoais em detrimento do aspecto propriamente estrutural ou, na melhor das hipóteses, reduzir a dimensão social da evangelização a princípios abstratos e genéricos sem intervir nos processos sociais concretos. Nossa pretensão aqui é mostrar que a evangelização tem uma dimensão socioestrutural irredutível e que seu dinamismo implica diálogo e interação com os movimentos e as organizações populares na luta pela transformação da sociedade a partir e em vista das necessidades e dos direitos dos pobres e marginalizados. Começaremos falando da missão evangelizadora da Igreja. Destacaremos sua dimensão sócio-libertadora. E concluiremos explicitando o vínculo entre evangelização e movimentos populares.

Palavras chave: Evangelização; Sociedade; Transformação; Organizações populares

Abstract
That evangelization has a social dimension is something that is accepted without much difficulty in the Church. The problem lies in understanding and especially in the dynamic of the social dimension of evangelization. The most common tendency in the Church today is to reduce the social dimension to interpersonal relationships to the detriment of the structural aspect or, at best, reduce the social dimension of evangelization to abstract and generic principles without intervening in the concrete reality of social issues. Our intention here is to show that evangelization has an irreducible socio-structural dimension and that it’s dynamic implies dialogue and interaction with social movements and organizations in the struggle for the transformation of society from, and in view of needs and rights of the poor and marginalised. We will begin by talking about the Church’s evangelizing mission. We will highlight its socio-liberating dimension and we will conclude by explaining the link between evangelization and social organizations.

Keywords: Evangelization; Society; Transformation; Social organizations

Introdução

A compreensão da Igreja como “sacramento” de salvação ou do reinado de Deus no mundo (Concílio Vaticano II) e a explicitação da dimensão histórica da salvação ou do reinado de Deus em termos de libertação (Igreja latino-americana) levaram a Igreja a se enfrentar pastoral e teologicamente com os processos de transformação da sociedade e, ligado a isso, com os movimentos e as organizações populares.

Se a missão da Igreja é ser “sinal e instrumento” de salvação ou do reinado de Deus no mundo; se a salvação ou o reinado de Deus se historiciza em termos de libertação de todas as formas de injustiça, opressão e marginalização e tem nos pobres e marginalizados sua medida e seu critério histórico-escatológicos; se os movimentos e as organizações populares são processos e instrumentos de intervenção e transformação da sociedade a partir e em vista das necessidades e dos direitos dos pobres e marginalizados; a Igreja não pode ser indiferente nem ficar à margem desses processos nem muito menos se opor a eles em defesa do status quo da sociedade. Faz parte da missão da Igreja colaborar nos processos de transformação da sociedade a partir e em vista dos pobres e marginalizados.

Isso se concretizou pastoralmente na participação de cristãos e na colaboração da Igreja com movimentos e organizações populares. E se traduziu teologicamente na explicitação da dimensão sócio-libertadora da missão evangelizadora da Igreja e do caráter ou da dimensão salvífico-espiritual dos movimentos e das organizações populares. De uma forma ou de outra, o nexo entre evangelização e movimentos populares é muito mais estreito do que parece.

Nossa pretensão, aqui, é explicitar teologicamente esse nexo ou vínculo entre evangelização e movimentos populares. Começaremos falando da missão evangelizadora da Igreja. Destacaremos sua dimensão socio-libertadora. E concluiremos explicitando o vínculo entre evangelização e movimentos populares.

1 A missão evangelizadora da Igreja

Desde o Sínodo dos Bispos de 1974 sobre a evangelização no mundo moderno (Cf. LIBÂNIO, 1974, p. 115-124) e a Exortação Apostólica Evangelli Nuntiandi (EN) do papa Paulo VI em 1975 sobre a evangelização no mundo contemporâneo (Cf. PAPA PAULO VI, 1976), tornou-se comum falar da missão da Igreja em termos de evangelização: Esse é o tema da Conferência de Puebla em 1979 (Cf. CELAM, 1979); é assim que a CNBB passa a formular o objetivo geral da ação pastoral/evangelizadora da Igreja no Brasil a partir das Diretrizes de 1979-1982 (Cf. CNBB, 1979); é assim que nos vários espaços e instâncias da Igreja os agentes de pastoral se referem ou designam sua missão; e é nessa tradição que se insere a Exortação Apostólica do papa Francisco Evangelii Gaudium (EG) sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (Cf. PAPA FRANCISCO, 2013). Aos poucos as expressões “evangelização” e “evangelizar” vão adquirindo uma importância e centralidade enormes no discurso eclesial, tornando-se inclusive sinônimo da missão da Igreja.

Mas, se há unidade em falar da missão da Igreja em termos de evangelização, há enormes divergências quanto à compreensão e, sobretudo, quanto ao dinamismo da ação evangelizadora: ponto de partida, urgências e desafios, caminhos, metas. E isso se pode constatar tanto nas tensões e nos conflitos pastorais e teológicos entre os vários grupos, setores e tendências na Igreja, como nos próprios documentos do magistério (Cf. AQUINO JÚNIOR, 2018a, p. 35-47). Não vamos entrar aqui nessa problemática porque não é nosso tema. Queremos simplesmente destacar alguns aspectos da problemática da missão evangelizadora da Igreja que nos ajudem a compreender e explicitar o vínculo ou nexo entre evangelização e movimentos populares. E faremos isso no contexto e na perspectiva do dinamismo teológico-pastoral desencadeado pelo Concílio Vaticano II e sua recepção latino-americana a partir da Conferência de Medellín.

Dois documentos do magistério romano são particularmente relevantes aqui: A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi do papa Paulo VI (1975) e a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium do papa Francisco (2013). E não simplesmente por tratarem da problemática da evangelização no mundo atual, mas, sobretudo, por tratarem dessa problemática na perspectiva do Vaticano II e sua recepção latino-americana. Evangelii Nuntiandi foi profundamente marcada pelo dinamismo eclesial latino-americano e foi um texto decisivo na Conferência de Puebla. Segundo o papa Francisco, “é um documento decisivo, de grande riqueza, no caminho pós-conciliar da Igreja”. Chega mesmo a dizer que “é o melhor documento pastoral do pós-concílio”. Evangelii Gaudium se insere nessa tradição e, nas palavras do próprio Francisco, é “um plagio elegante da Evangelii nuntiandi e do Documento de Aparecida” (PAPA FRANCISCO, 2019b).

Não vamos fazer aqui um estudo aprofundado desses dois documentos nem sequer uma apresentação global dos mesmos. Vamos simplesmente, conforme indicamos acima, destacar alguns pontos que nos ajudarão a compreender o vínculo teológico-pastoral entre evangelização e movimentos populares.

Antes de tudo, a afirmação de que a evangelização constitui a “vocação” e a “missão” próprias da Igreja: “a tarefa de evangelizar todos os homens constitui a missão essencial da Igreja”; “evangelizar constitui, de fato, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade”; “ela existe para evangelizar” (EN, 14). A insistência na especificidade e irredutibilidade da missão eclesial é muito importante para ajudar a Igreja a não perder o foco nem se confundir com outras instituições e tarefas na sociedade. Mas isso não pode ser entendido no sentido daquilo que o Concílio denunciava como um “divórcio entre a fé professada e a vida cotidiana” (GS, 43), como se a missão da Igreja não tivesse a ver propriamente com a vida e os problemas concretos das pessoas. Nesse ponto, o Concílio é muito claro: “Não existe nada verdadeiramente humano que não ressoe no coração da Igreja” (GS, 1); “A missão própria que Cristo confiou à sua Igreja por certo não é de ordem política, econômica ou social [mas] de ordem religiosa. Mas [...] desta mesma missão decorrem encargos1, luzes e forças que podem auxiliar a organização e o fortalecimento da comunidade humana segundo a lei de Deus” (GS, 42). O que está em jogo na evangelização não é algo estranho à vida concreta das pessoas e dos povos, mas a configuração da vida em sua totalidade segundo o desígnio salvífico de Deus para a humanidade.

Em segundo lugar, a referência essencial e constitutiva da evangelização a Jesus Cristo e ao Evangelho do reinado de Deus: “Cristo anuncia em primeiro lugar um reino, o reino de Deus”; “em comparação com ele, tudo mais passa a ser ‘o resto’, que é dado por acréscimo”; “só o reino é absoluto” (EN, 7); “a Igreja é depositária da Boa Nova que há de ser anunciada”; essa Boa Nova “é o conteúdo do Evangelho [...] que ela guarda como um depósito vivo e precioso, não para manter escondido, mas sim para o comunicar” (EN, 15); “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG, 176). Esse é o conteúdo da Evangelização. E a clareza desse conteúdo é fundamental para a Igreja não se desviar de sua missão, refugiando-se em doutrinarismos e ritualismos, esgotando-se em atividades e eventos religiosos auto-referenciais, absolutizando o que é secundário e relativizando o que é absoluto. Neste sentido é que Francisco, exortando à Igreja a “voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho” (EG, 11), adverte contra o risco de reduzir a missão a “alguns de seus aspectos secundários” (EG, 34) em prejuízo do que é essencial e constitui o coração do Evangelho: “a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado” (EG, 36). E neste sentido é que Pagola tem insistido tanto na necessidade da Igreja “voltar a Jesus” (Cf. PAGOLA, 2015) e “recuperar o projeto de Jesus” (Cf. PAGOLA, 2019).

Em terceiro lugar, a percepção do caráter salvífico-libertador da missão evangelizadora da Igreja: “Como núcleo central da sua Boa Nova, Cristo anuncia a salvação, esse grande dom de Deus que é a libertação de tudo aquilo que oprime o homem e que é libertação sobretudo do pecado e do maligno” (EN, 9); “entre evangelização e promoção humana – desenvolvimento, libertação – existem de fato laços profundos” (EN, 31); “a Igreja esforça-se por inserir sempre a luta cristã em favor da libertação no desígnio global da salvação que ela anuncia” (EN, 38); “a evangelização procura colaborar [com a] ação libertadora do Espírito”; “a partir do coração do Evangelho, reconhecemos a conexão íntima que existe entre evangelização e promoção humana” (EG, 178); “a proposta é o Reino de Deus” e “na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos” (EG, 180). Não se trata aqui de uma libertação meramente econômico-político- -social nem de uma libertação qualquer, mas de uma libertação integral (Cf. EN, 33) e eficaz (Cf. EN, 8, 19), baseada no reino de Deus (Cf. EN, 34) e que envolve a totalidade da vida (Cf. EN, 29). Sem isso, não há propriamente evangelização e a ação a Igreja não passa de atividades religiosas, cujo conteúdo é como luz que não ilumina ou sal que não dá sabor ou fermento vencido...

Em quarto lugar, a explicitação da dimensão socioestrutural da evangelização, cujo critério e cuja medida são sempre as necessidades e os direitos dos pobres e marginalizados: A Igreja “procura converter ao mesmo tempo a consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade em que eles se aplicam e a vida e o meio que lhes são próprios” (EN, 18); ela “tem como algo importante e urgente que se construam estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos direitos da pessoa e menos opressoras e menos escravizadoras” (EN, 36); a salvação implica “libertação de tudo aquilo que oprime o homem” (EN, 9); a luta por libertação “não é [algo] alheio à evangelização” (EN, 30); ela tem uma dimensão social que “se não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora” (EG, 176); “embora ‘a justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política’, a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça” (EG, 183); “enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum. A desigualdade é a raiz dos males sociais” (EG, 202). De modo que a evangelização tem a ver não apenas com a “conversão do coração”, mas também com a “transformação da sociedade”.

Por fim, na medida em que a evangelização tem uma dimensão social que diz respeito à organização da sociedade a partir e em vista das necessidades e dos direitos dos pobres e marginalizados, ela não pode ser indiferente às lutas por direitos e justiça social nem aos movimentos que articulam e dinamizam essas lutas: “Isso não é alheio à evangelização”; “a Igreja tem o dever de anunciar a libertação [...] de ajudar [...] de dar testemunho em favor dela e de envidar esforços para que ela chegue a ser total” (EN, 30); “Deus vive entre os citadinos promovendo a solidariedade, a fraternidade, o desejo de bem, de verdade, de justiça” (EG, 71), está presente nos que “lutam para sobreviver” e em sua “luta” (EG, 72); a missão da Igreja envolve também “a cooperação para resolver as causas estruturais da pobreza e promover o desenvolvimento integral dos pobres” (EG, 188). Certamente, a evangelização não se reduz a isso (Cf. EN, 32-33), não se identifica sem mais com as lutas e organizações populares (Cf. EN, 35) nem é compatível com qualquer forma de luta (Cf. EN, 37). Mas essa é uma dimensão fundamental da evangelização e, por isso, “a Igreja esforça-se por inserir sempre a luta cristã em favor da libertação no desígnio global da salvação”, anima os cristãos a “se dedicarem à libertação dos outros”, dá “uma inspiração de fé e uma motivação de amor fraterno”, bem como uma “doutrina social” que deve se “traduzir concretamente em categorias de ação, de participação e de compromisso” (Cf. EN, 38).

Tudo isso nos ajuda a perceber que a evangelização tem uma dimensão socioestrutural fundamental que diz respeito à organização da sociedade segundo o dinamismo do reinado de Deus que tem como critério e medida a justiça aos pobres e marginalizados e que essa dimensão social tem como mediação privilegiada (não exclusiva) os movimentos e as organizações populares. De modo que, sem cair em nenhum tipo de reducionismo, é preciso reconhecer que a evangelização tem uma dimensão social irredutível e que essa dimensão social vincula a ação evangelizadora da Igreja aos movimentos e às organizações populares.

2 A dimensão social da evangelização

Falar de dimensão social da evangelização implica reconhecer que a evangelização não se reduz ao social, mas implica reconhecer também que o social é constitutivo da evangelização. Ela não se reduz ao social porque diz respeito à totalidade da vida humana e ao conjunto da criação. Tudo deve ser perpassado e configurado pelo dinamismo salvífico-libertador do reinado de Deus inaugurado por Jesus no poder do Espírito. Mas na medida mesma em que diz respeito à totalidade da realidade, diz respeito necessária e constitutivamente à dimensão social da realidade no que tem de próprio e irredutível. Essa tensão aparece constantemente nos documentos acima referidos, não obstante certas ambiguidades na formulação: a Igreja nem admite “circunscrever a sua missão apenas ao campo religioso, como se se desinteressasse dos problemas temporais” nem admite “substituir o anúncio do reino pela proclamação das libertações puramente humanas” (EN, 34); o Reino de Deus não se reduz ao social, mas “se esta dimensão não for devidamente explicitada, corre-se sempre o risco de desfigurar o sentido autêntico e integral da missão evangelizadora” (EG, 176).

Importa agora insistir nessa dimensão social da evangelização. Antes de tudo por ser uma dimensão constitutiva e essencial, sem a qual a evangelização fica desfigurada e gravemente comprometida, quando não é desviada e corrompida. Mas também por uma razão mais conjuntural. É que a consciência dessa dimensão social da evangelização vem perdendo força e se diluindo no tecido eclesial nas últimas décadas, a ponto de parecer algo estranho à missão da Igreja. Parece haver até mesmo uma dificuldade em compreender e, mais ainda, em enfrentar essa dimensão socioestrutral. Isso tem repercutido até na compreensão comum de pastoral social, cada vez mais reduzida a um serviço assistencial ou, quando muito, a projetos sociais sem maiores preocupações com os processos de transformação da sociedade que caracterizaram as pastorais sociais na América Latina desde Medellín. Convém, por isso mesmo, insistir na especificidade da dimensão social da evangelização e de seu dinamismo pastoral.

2.1 Especificidade socioestrutural

Num sentido muito amplo e genérico, a dimensão social da vida humana e consequentemente da evangelização indica ou diz respeito a toda forma de vínculo e relação entre as pessoas: dos vínculos e relações interpessoais (família, amizade, namoro, grupos etc.) aos vínculos e relações estruturais e institucionais (economia, política, cultura etc.). Num sentido mais estrito, refere-se especificamente aos vínculos e às relações estruturais e institucionais (organização da sociedade). Diz respeito aos mecanismos que configuram, regulam e controlam, para o bem ou para o mal, nossa vida coletiva. E essa é a problemática central da dimensão social da evangelização, como se pode comprovar nas encíclicas sociais e na reflexão teológica sobre a dimensão social da fé e da missão da Igreja.

Falar de sociedade ou estruturas da sociedade é falar dos processos e mecanismos de organização e estruturação de nossa vida coletiva: produção e distribuição de bens e riquezas (economia); relações de poder e à organização social e política (relações sociais, organização política, governo, aparato policial); valores e regras (ética e moral); regulamentação jurídica (justiça); diversas formas de justificação e legitimação dos interesses pessoais e grupais, bem como da manutenção ou transformação da ordem social vigente (cultura). Tratase, portanto, do conjunto de mecanismos que ordenam e regulamentam nossa vida coletiva: costumes, mentalidades, valores, normas, leis e instituições (econômicas, familiares, sexuais, sociais, educativas, religiosas, políticas, jurídicas, coercitivas etc.). Isso condiciona enormemente a vida das pessoas e dos grupos. Muito mais do que se percebe e do que se pensa.

A percepção e explicitação desse dinamismo socioestrutural são relativamente recentes na sociedade e na Igreja. Estão ligadas ao desenvolvimento das ciências sociais no século XIX, ao movimento conhecido como “catolicismo social” que surgiu na Europa no contexto da revolução industrial e do movimento operário e, vinculado a isso, ao desenvolvimento da doutrina ou do ensino social da Igreja, inaugurado pela Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII em 1891. Isso vai tomando corpo ao longo do século XX e ganha novo impulso, novas perspectivas e novas dimensões com o Concílio Vaticano II, particularmente com a Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje. Mas é na Igreja da América Latina e a partir dela que essa consciência se torna mais explícita e é levada às últimas consequências, tanto em termos teológicos quanto em termos pastorais.

A Conferência de Medellín em 1968 já falava de “estruturas opressoras”, “estruturas injustas”, “violência institucionalizada” e apontava para a necessidade de “novas e renovadas estruturas” (CELAM, 1987, p. 7, 10, 31, 11). E a Conferência de Puebla em 1979 reconhece que a pobreza “não é uma etapa casual, mas sim o produto de determinadas situações e estruturas econômicas, sociais e políticas” (CELAM, 1979, n. 30), chegando a falar explicitamente de “dimensão social do pecado”, de “estruturas de pecado” ou de “pecado social” (Cf. CELAM, 1979, n. 28, 70, 73, 281, 282, 452, 487, 1258). Além da percepção dessa dimensão estrutural da injustiça e de seu caráter pecaminoso, Medellín afirmava claramente que “criar uma ordem social justa, sem a qual a paz é ilusória, é uma tarefa eminentemente cristã” e que “a justiça e a paz conquistam-se por uma ação dinâmica de conscientização e de organização dos setores populares” (CELAM, 1987, p. 33, 32).

Essas intuições vão sendo aprofundadas e desenvolvidas na reflexão teológico-pastoral na América Latina (Cf. AQUINO JÚNIOR, 2016, 2019) e assumidas, em grande medida, pelo magistério romano para o conjunto da Igreja.

A Exortação Apostólica Evangelli Nuntiandi de Paulo VI, em 1975, falando do compromisso da Igreja com as lutas por libertação, indica algumas causas da situação de marginalização em que vive grande parte da população: “carestias, doenças crônicas e endêmicas, analfabetismo, pauperismo, injustiças nas relações internacionais e especialmente nos intercâmbios comerciais, situações de neocolonialismo econômico e cultural, por vezes tão cruel como o velho colonialismo político” (EN, 30). E, falando da necessidade de conversão, afirma que “a Igreja tem como algo importante e urgente que se construam estruturas mais humanas, mais justas, mais respeitadoras dos direitos da pessoa e menos opressivas e menos escravizadoras” (EN, 36).

Em sua Carta Encíclica Solicitudo Rei Sociales em 1987, João Paulo II fala explicitamente de “estruturas de pecado” (Cf. SRS, 35-37): “É preciso acentuar que um mundo dividido em blocos, mantidos por ideologias rígidas, onde, em lugar da interdependência e da solidariedade, dominam diferentes formas de imperialismo, não pode deixar de ser um mundo submetido a ‘estruturas de pecado’” (SRS, 36). E propõe como alternativa a essas “estruturas de pecado” a “solidariedade” em todos os âmbitos e níveis da sociedade (Cf. SRS, 38-40): “a resposta corretiva, como atitude moral e social e como ‘virtude’, é a solidariedade”, entendida como “determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum” (SRS, 38).

O Compêndio de Doutrina Social da Igreja, 2004, fala de “pecado social” (Cf. CDSI, 117) e “estruturas de pecado” (Cf. CDSI, 119, 193, 332, 446, 566) que devem ser superadas e transformadas em “estruturas de solidariedade” (Cf. CDSI, 193, 332). E tratando dos “princípios da doutrina social da Igreja” fala da “caridade social e política” (Cf. CDSI, 207-208) que “não se esgota nas relações entre as pessoas, mas se desdobra na rede em que tais relações se inserem que é precisamente a comunidade social e política, e sobre esta intervém, visando ao bem possível para a comunidade no seu conjunto”. Implica “valer-se das mediações sociais para melhorar sua vida ou remover os fatores sociais que causam a sua indigência”, empenhar-se para “organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não venha a encontrar-se na miséria, sobretudo quando esta se torna a situação em que se debate um incomensurável número de pessoas e mesmo povos inteiros, situação esta que assume hoje as proporções de uma verdadeira e própria questão social mundial” (CDSI, 208).

E Francisco tem denunciado fortemente o atual sistema socioeconômico (Cf. EG, 53-60) e insistido na necessidade de mudança estrutural (Cf. BENTO, 2018, p. 509-523; ANDRADE, 2019, p. 615-636). Falando da dimensão social da evangelização, afirma que “embora a ‘justa ordem da sociedade e do Estado seja dever central da política’, a Igreja ‘não pode nem deve ficar à margem na luta pela justiça’” (EG, 183), pois “a desigualdade é a raiz dos males sociais” (EG, 202). Em sua Encíclica Laudato Si fala do “amor civil e político” como “uma forma eminente de caridade, que toca não só as relações entre indivíduos, mas também ‘as macro relações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos’” (LS, 231). E falando da necessária conversão ecológica diz claramente que para mudar essa situação “não basta que cada um seja melhor”: “aos problemas sociais responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias [...] A conversão ecológica, que se requer para uma mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (LS, 219).

De modo que a dimensão social da evangelização não pode ser reduzida ao âmbito das relações interpessoais. Ela tem a ver também e, sobretudo, com os processos e mecanismos de estruturação e regulamentação da vida coletiva. Isso não é indiferente à fé e à missão evangelizadora da Igreja. Nós nos deparamos aqui com a dimensão socioestrutural do pecado e da graça. É que a organização da sociedade pode estar mais ou menos de acordo com o Evangelho de Jesus Cristo, isto é, pode estar mais ou menos em sintonia com o dinamismo de vida suscitado por Jesus e seu Espírito: pode tanto permitir ou facilitar (dinamismo gracioso), quanto impedir ou dificultar (dinamismo pecaminoso), adquirindo, assim, um caráter estritamente teologal. As estruturas da sociedade não são simplesmente estruturas econômicas, política, sociais, culturais, de gênero etc. São também e sempre estruturas teologais, enquanto objetivação (institucionalização) e mediação (poder dinamizador) do pecado ou da graça. Daí sua importância central para a fé cristã e para a missão evangelizadora da Igreja.

2.2 Dinamismo pastoral

A compreensão desse dinamismo social da vida humana com seus processos e mecanismos de estruturação e regulamentação da sociedade, bem como de seu caráter e dinamismo pecaminosos e/ou graciosos têm profundas consequências para a missão evangelizadora da Igreja. Ela não pode ficar indiferente ao modo como a sociedade está organizada e funciona. O reinado de Deus que constitui o centro de sua missão deve se tornar realidade não apenas no coração das pessoas (dimensão pessoal), mas também nas estruturas da sociedade (dimensão socioestrutural). Deve levar tanto à “conversão do coração” quanto à “transformação da sociedade”. A consciência de que nossa sociedade está configurada e dinamizada por “estruturas de pecado” (Cf. SRS, 35-37; CDSI, 119, 193, 332, 446, 566) deve nos comprometer na luta por sua transformação em “estruturas de solidariedade” (Cf. CDSI, 193, 332; SRS, 38-40) ou “estruturas do bem comum” (Cf. PCCU, 1997, n. 25, 59, 64) ou, para sermos precisos teologicamente e na feliz expressão do teólogo sul-africano Albert Nolan, “estruturas de graça” (Cf. NOLAN, 2010, p. 198-200).

Importa insistir aqui que faz parte da missão evangelizadora da Igreja o compromisso com a transformação das estruturas da sociedade. E que, como bem adverte o papa Francisco, isso não se faz simplesmente através da conversão do coração. Para transformar as estruturas da sociedade “não basta que cada um seja melhor”. Noutras palavras, “aos problemas sociais responde-se, não com a mera soma de bens individuais, mas com redes comunitárias” (LS, 219). E isso tem sérias implicações para a ação evangelizadora da Igreja, sobretudo no contexto plural, complexo e global que caracteriza a sociedade atual.

Não temos como desenvolver aqui uma problemática tão complexa como essa. Em todo caso, convém ao menos indicar três pontos que nos parecem fundamentais para sua compreensão e seu dinamismo teológico-pastoral.

Antes de tudo, é preciso levar a sério o caráter plural e complexo de nossa sociedade e suas implicações para a missão da Igreja. Como bem destacou o papa Francisco em seu discurso de natal de 2019 aos membros da Cúria romana, “já não estamos na cristandade”. Vivemos num mundo plural. “Hoje, já não somos os únicos que produzem cultura, nem os primeiros nem os mais ouvidos”. Isso exige de nós uma “mudança de mentalidade pastoral” e um empenho para “encontrar meios adequados para voltar a propor a verdade perene do Evangelho de Cristo” (PAPA FRANCISCO, 2019c). Nesse esforço, é fundamental superar “uma imagem estreita e moralista do cristianismo” (CV, 233), a ilusão de uma “doutrina monolítica” (EG, 40), a tentação ao “autoritarismo” (Cf. EG, 94, 255) e o risco de mutilar e reduzir a mensagem cristã a “alguns de seus aspectos secundários” (EG, 34). É preciso “voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho” (EG, 11). É preciso “partir do coração do Evangelho” (EG, 34- 39) que é o “amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo” (EG, 36). Isso cria um dinamismo eclesial de saída para as periferias (Cf. EG, 20, 30, 46, 191), abre a Igreja para o diálogo ecumênico, inter-religioso e social (Cf. EG, 131, 238-257), capacita-nos para a “convivência social” e a “construção de um povo em paz, justiça e fraternidade” (EG, 221), manifesta e favorece a “genuína catolicidade” da Igreja com seu “rosto pluriforme” (EG, 116) e a “expressão multiforme” de sua verdade (EG, 41) e confere novo sentido e dinamismo à missão evangelizadora da Igreja: “não como quem impõe uma nova obrigação, mas como quem partilha uma alegria, indica um horizonte estupendo, oferece um banquete apetecível” (EG, 15).

Em segundo lugar, é importante não criar falsas ilusões e expectativas quanto ao real poder e às reais possibilidades de interferência da Igreja nos processos de estruturação da sociedade. Primeiro, porque não é fácil transformar a sociedade: seja porque os costumes, as regras, as leis e as instituições conferem estabilidade e tendem sempre a conservar a ordem vigente; seja, sobretudo, porque a ordem vigente favorece aos interesses dos setores dominantes da sociedade que, por essa razão, estão dispostos a usarem todos os meios (econômicos, políticos, jurídicos, culturais, religiosos, policiais etc.) de que dispõem para proteger o sistema e impedir qualquer transformação mais substancial. Segundo, porque a Igreja enquanto tal não tem competência nem dispõe dos meios necessários para isso. Se “a mensagem evangélica é indispensável para que haja uma libertação total dos homens, dos povos e das estruturas”, ela não é suficiente porque não dispõe de meios próprios “nem para discernir as causas da opressão e as propostas de libertação nem para leva-las a cabo” (ELLACURÍA, 2000, p. 320s). Não é tarefa da Igreja nem ela tem competência para conduzir a atividade econômica, o desenvolvimento científico-tecnológico, a organização política e o ordenamento jurídico da sociedade. Mas nem por isso ela pode ser indiferente a esses processos. Não qualquer forma de organização da sociedade é compatível com o Evangelho. É preciso discernir se e até que ponto determinados processos “favorecem ou desfavorecem o anúncio do reino de Deus” (ELLACURÍA, 2000, p. 327) e tomar posição a favor ou contra sua legitimidade e seu dinamismo na sociedade. Falando do “diálogo social como contribuição para a paz”, Francisco reconhece que “a Igreja não tem solução para todas as questões específicas. Mas, juntamente com as várias forças sociais, acompanha as propostas que melhor correspondam à dignidade da pessoa humana e ao bem comum”, propondo “valores” e transmitindo “convicções que possam depois traduzir-se em ações políticas” (EG, 241).

Em terceiro lugar, é preciso considerar o modo de intervenção da Igreja nos processos de transformação da sociedade a partir dos meios que dispõe e dos processos que mais se adequam a seu dinamismo institucional. A Igreja atua no processo de transformação da sociedade através dos cristãos (modo de vida, participação em organizações sociais ou políticas, cargos públicos e de governo, competência técnica etc.), através de comunidades/grupos cristãos (vivência comunitária, anúncio do Evangelho, formação de consciência, ação pastoral, denúncia das injustiças, participação ou apoio a lutas e organizações populares etc.) e do conjunto da Igreja institucionalmente considerada (pastorais e organismos sociais, trabalho de base, mobilizações de massa, denúncia das injustiças, participação ou apoio institucional/físico/material a causas e lutas populares etc.). Cada um desses modos de atuação tem um dinamismo próprio que precisa ser reconhecido e respeitado e não se deve banalizar sua importância e sua força no processo de configuração da sociedade – para o bem ou para o mal. Pensando na atuação da Igreja enquanto instituição, embora a tentação seja sempre agir a partir de instâncias de poder e governo, convém advertir com Ellacuría que “a instituição eclesial é e deve ser uma força que se move direta e formalmente no âmbito do social e não no âmbito do estatal e que lança mão do poder social e não do poder político para realizar sua missão” (ELLACURÍA, 2000, p. 328s). Ela deve realizar sua missão de transformação da sociedade por meio “da pressão social através da palavra e do gesto e não do manejo do poder político” (ELLACURÍA, 2000, p. 329). Deve agir “como força social e através das forças sociais” (ELLACURÍA, 2000, p. 331). Isso se justifica pelo “caráter social e não político da instituição eclesial”, pelo “caráter mais real” e “mais participativo” do social e por representar “uma tentação menor para a Igreja” na realização de sua missão (ELLACURÍA, 2000, p. 329). E, aqui, precisamente, a Igreja se encontra com as organizações populares.

3 Evangelização e movimentos populares

Não basta afirmar que a evangelização tem uma dimensão socioestrutural fundamental e irredutível. É preciso levar a sério o problema de sua mediação histórica. E se é verdade que não qualquer mediação é compatível com o dinamismo evangélico (Cf. EN, 37) e que nesse campo não há posição única e definitiva (Cf. GS, 91; EG, 182), também é verdade que não se pode prescindir de mediações concretas, refugiando-se em princípios genéricos e abstratos. Sem mediações concretas, os “grandes princípios” se degeneram em “meras generalidades que não interpelam ninguém” nem têm incidência no enfrentamento dos problemas (Cf. EG, 182).

E aqui se pode compreender o diálogo e a colaboração da Igreja com os movimentos e as organizações populares. Eles são uma mediação privilegiada, não única e exclusiva, de realização da dimensão socioestrutural da evangelização. Na medida em que enfrentam forças e estruturas que produzem injustiça e marginalização e que lutam pelos direitos dos pobres e marginalizados constituem-se, objetivamente, não obstante suas ambiguidades (e onde não há?), em “sinal e instrumento” do reinado de Deus na sociedade. Não são apenas movimentos e processos sociopolíticos, mas movimentos e processos teologais no sentido mais estrito da palavra.

Por um lado, eles denunciam e se enfrentam com as “estruturas de pecado” que continuam matando filhos e filhas de Deus neste mundo, isto é, os mecanismos econômicos, políticos, jurídicos, culturais, religiosos etc. que negam as condições materiais de vida a grande parte da população, que oprimem e marginalizam amplos setores da sociedade e que legitimam as mais diferentes formas de injustiça, opressão e marginalização. Aquilo que desde Medellín e Puebla se convencionou chamar “estruturas de pecado”, “pecado estrutural” ou “pecado social”.

Por outro lado, eles se constituem como “mediadores de salvação”, na medida em que buscam e ensaiam alternativas de vida e sobrevivência em meio à miséria, injustiça e marginalização, bem como novas formas e novos mecanismos de organização da sociedade que garantam a efetivação dos direitos dos setores empobrecidos e marginalizados, para além de sua mera afirmação formal. E isso independentemente de seu vínculo religioso e eclesial, da consciência do caráter salvífico de sua ação e dos limites e das ambiguidades dessa ação.

Trata-se, aqui, da denúncia e do enfrentamento do pecado em sua dimensão socioestrutural (pecado cristalizado e mediado em estruturas sociais – “estruturas de pecado”), bem como da realização da salvação em sua dimensão socioestrutural, isto é, do esforço de organização da sociedade segundo o espírito evangélico que tem nas necessidades e nos direitos dos pobres e marginalizados seu critério e sua medida permanentes (mediação da salvação em estruturas sociais – “estruturas de graça”).

A afirmação do caráter teologal ou espiritual das resistências, das lutas e das organizações populares em sua dupla dimensão de denúncia/enfrentamento do pecado socioestrutural e ensaio/mediação socioestrutural da salvação não significa absolutização dessas resistências, lutas e organizações nem negação das ambiguidades e contradições aí existentes (e onde não há ambiguidade e contradição???). Elas não são a salvação ou o reinado de Deus sem mais e em sua plenitude como não o é nenhum processo histórico social ou eclesial. Mas são sinais e mediações históricos da salvação ou do reinado de Deus neste mundo. Sinais e mediações limitados, ambíguos e contraditórios, mas reais e verdadeiros.

Nas palavras de Gustavo Gutiérrez: “O crescimento do Reino é um processo que se dá historicamente na libertação [...], porém não se esgota nela; realizando-se em fatos históricos libertadores, denuncia seus limites e ambiguidades, anuncia-lhe a plena realização e impele-o efetivamente à comunhão total [...] Pode-se dizer que o fato histórico, político, libertador é crescimento do Reino, é acontecer salvífico, mas não é a chegada do Reino, nem toda a salvação” (GUTIÉRREZ, 2000, p. 237).

Nas palavras de Leonardo Boff: “as libertações históricas são [...] antecipações e concretizações, sempre limitadas, mas reais, da salvação que será plena somente na eternidade”; entre “reino de Deus e sociedade justa” há uma “identificação” (se identifica em), mas não há uma “identidade” (não se identifica com) (BOFF, L. – BOFF, C., 1980, p. 26, 58).

É claro que a salvação ou o reinado de Deus não pode ser reduzido a sua dimensão social nem essa dimensão social pode ser reduzida aos processos organizados de luta pela transformação das estruturas da sociedade. A salvação ou o reinado de Deus diz respeito a todas as dimensões da vida humana (pessoal, social, histórica) e à totalidade da criação (cosmos); realiza-se na história, mas abrindo e transcendendo a história para além de seus limites espaço-temporais (transcendência na história). E a dimensão social da salvação ou do reinado de Deus diz respeito à diversidade de formas e níveis de vínculo social: relações interpessoais (família, comunidade, conhecidos, associações etc.) e relações estruturais (costumes, normas, leis, estruturas econômicas, políticas etc.). Mesmo a luta pela justiça e pela transformação da sociedade é muito mais ampla e complexa que os movimentos e as organizações populares: Seja pela correlação de forças que exige articulação com outras forças sociais; seja porque tem muitas dimensões e precisa ser assumida e mediada por diferentes grupos e setores da sociedade; seja porque está enraizada em processos mais básicos e sutis de resistência popular: a luta cotidiana pela vida e a solidariedade primária vivida nas situações limites da vida – aquilo que Jon Sobrino chama de “santidade primordial” (Cf. SOBRINO, 2002, p. 35-37, 125-135).

E é claro também que os processos históricos de libertação (resistências, lutas e organizações populares) não são puros nem perfeitos. São limitados, ambíguos e contraditórios. Têm seus pecados: reducionismo, fechamento, autoritarismo, sectarismo, centralismo, personalismo, violência, corrupção, machismo, racismo, homofobia, antropocentrismo, desrespeito e agressão aos próprios companheiros, dentre outros. E precisam ser purificados, alargados e dinamizados com a luz e a força do Evangelho. O reconhecimento de sua densidade teologal ou espiritual não pode ofuscar nem comprometer sua necessidade de conversão e o chamado à mesma.

Mas nada disso nega a densidade salvífico-espiritual dos movimentos e das organizações populares e, consequentemente, a necessidade de diálogo e interação da Igreja com eles na luta em defesa dos direitos dos pobres e marginalizados. Isso explica e justifica a participação de milhares de cristãos em movimentos e organizações populares, a articulação e colaboração das pastorais e organismos sociais da Igreja com diferentes movimentos e organizações populares, o apoio da Igreja às lutas e organizações populares e, mais recentemente, os encontros do papa Francisco com movimentos e organizações populares para discutir os grandes problemas do mundo e as alternativas que vêm sendo gestadas e experimentadas nas periferias do mundo (Cf. PAPA FRANCISCO, 2015b, 2015c, 2016; AQUINO JÚNIOR – ABDALLA – SÁVIO, 2018; AQUINO JÚNIOR, 2018).

Está em jogo aqui a dimensão socioestrutural da evangelização, isto é, a estruturação e organização da sociedade a partir e em função do reinado de Deus que tem nos pobres e marginalizados seu critério e sua medida histórico- -escatológicos (Cf. Mt 25, 31-46). Em vista disso, a Igreja precisa dialogar e interagir com as forças sociais que favorecem esse dinamismo: seja denunciando e enfrentando as “estruturas de pecado” que configuram e dinamizam de modo pecaminoso nosso mundo; seja anunciando, ensaiando e construindo “estruturas de graça” que estruturem e dinamizem de modo gracioso nossa sociedade. Aqui aparece o caráter ou a dimensão salvífico-espiritual dos movimentos e organizações populares. E aqui o vínculo da Igreja com os movimentos e as organizações populares aparece como algo constitutivo de sua missão evangelizadora. Não por acaso Francisco fala dos movimentos populares com “uma benção para a humanidade” (PAPA FRANCISCO, 2015b, p. 18) e insiste na cooperação da Igreja com eles para fortalecer os “esforços e os processos de mudanças” na sociedade (PAPA FRANCISCO, 2015c, p. 13).

A modo de conclusão

Falar do vínculo entre evangelização e movimentos populares é falar tanto de uma dimensão fundamental da evangelização (dimensão socioestrutural) quanto de uma dimensão fundamental das organizações e movimentos populares (dimensão salvífico-espiritual). Certamente, a evangelização não se reduz a sua dimensão socioestrutural (diz respeito a todas as dimensões da vida humana) nem os movimentos populares podem ser considerados simplesmente do ponto de vista de sua dimensão salvífico-espiritual (tem várias outras dimensões irredutíveis: social, política, econômica, cultural, psicológica, ecológica etc.). Mas sem a dimensão socioestrutural, a evangelização, além de incompleta, ficaria radicalmente comprometida; e sem a dimensão salvífico-espiritual, não se compreenderia em sua radicalidade os movimentos e as organizações populares – como nenhuma outra realidade. De modo que falar do vínculo entre evangelização e movimentos populares é falar de algo que é constitutivo de ambos e que é vital para a missão da Igreja de ser “sinal e instrumento” de salvação ou do reinado de Deus no mundo que se materializa, também e de modo particular, nos processos históricos de libertação.

Siglas

CDSI – Compêndio de Doutrina Social da Igreja
CV – Christus Vivit
EG – Evangelii Gaudium
EN – Evangelii Nuntiandi
GS – Gaudium et Spes
LS – Laudato Si’
PCCU – Pontifício Conselho Cor Unum
SRS - Sollicitudo rei socialis

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Notas

[1] A versão portuguesa das Vozes curiosamente traduz “múnus” por “benefícios”. A versão portuguesa do site do Vaticano traduz por “encargo”.