XAVIER, Donizete José (org.). Paul Ricoeur de A a Z: uma contribuição de estudantes para estudantes. 1. ed. São Paulo: Fons Sapientiae, 2019.



André Anéas

Doutorando e mestre em Teologia pela PUC-SP e bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Batista de SP, na qual é coordenador da pósgraduação e docente. E-mail: andreaneas@gmail.com 


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A filosofia de Paul Ricoeur é um oceano rico e vasto de conceitos e reflexões cuja contribuição se dá em variadas áreas do saber. A sua leitura e compreensão é, simultaneamente, tanto um desafio, frente à riqueza de todo o seu vasto repertório, como uma oportunidade, pois o estudante está diante de um docente que abre caminhos para o saber. Trata-se de um filósofo por excelência, que ama a sabedoria e que tem no labor do ato de pensar a sua vocação. Mais do que isso, trata-se de um verdadeiro mestre, que ensina a pensar.

A vocação de Paul Ricoeur apaixona, encanta e instiga os seus leitores e pesquisadores mais assíduos. O teólogo brasileiro Donizete Xavier é, sem dúvida, grande autoridade e referência quando o assunto é Ricoeur em terras brasileiras. A sua tese doutoral “A Expressividade do Mistério Revelado no horizonte da linguagem a partir da hermenêutica teológica de Paul Ricoeur”, defendida em 2014 na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, bem como os seus artigos acerca da filosofia ricoeuriana, revela a absorção do pathos vocacional do filósofo francês pelo teólogo-filósofo brasileiro. A expressividade maior dessa simbiose ocorre com a obra que os leitores têm em mãos no ano de 2019: “Paul Ricoeur de A a Z: uma contribuição de estudantes para estudantes”. A obra é um exemplo empírico do potencial imensurável da inspiração que a filosofia ricoeuriana pode gerar na interação entre docente e discentes. Não é, definitivamente, um livro acadêmico convencional.

Esteticamente a obra é organizada de maneira a possibilitar ao leitor e estudioso de Ricoeur acesso a uma gama de recursos de maneira intuitiva. Após dois prefácios – que serão sinalizados adiante nessa resenha –, o professor Donizete Xavier realiza uma descrição metodológica da obra e situa o leitor acerca dos fundamentos ricoeurianos que são base para a metodologia empregada, seção intitulada “Na escola de Paul Ricoeur”. O trabalho em “equipe” (p. 16) é destacado por Xavier, salientando que a composição dos verbetes são resultado do esforço reflexivo de estudantes de Direito e de Teologia, o que atesta o caráter interdisciplinar da obra. O teólogo brasileiro não perde a oportunidade nesta seção de situar a sua compreensão do empreendimento teológico que, ao contrário de perspectivas teológicas fundamentalistas e dogmáticas, “não é uma ciência isolada, mas sim em diálogo” (p. 16).

Na sequência, há a seção de “comentários”, que será mencionada adiante nessa análise. Após os comentários, existe uma pequena biografia do filósofo, que constitui um elemento essencial, especialmente para os que estão se aproximando do pensamento e filosofia de Ricoeur. Cabe destacar que toda a obra está para além de objeto de estudo de “profissionais”, sendo acessível aos que desejam desfrutar das perspectivas profundas de Ricoeur e que estão fora do círculo acadêmico. Dessa feita, a obra possui um caráter dialógico que está para além do universo acadêmico, porém sem deixar de lado o rigor acadêmico e metodológico, dando a oportunidade ao leitor de situar-se sobre o filósofo e a sua respectiva biografia.

O coração da obra são os verbetes que, organizados em ordem alfabética, permitem ao leitor adentrar no universo filosófico ricoeuriano. Tal universo é por demais vasto. Porém, Xavier teve a habilidade de selecionar uma série de palavras/conceitos e autores essenciais para um vislumbre profundo, contagiante, inspirador e desafiador do leitor. Ler cada verbete é mergulhar em mares, continentes e penínsulas da complexidade, sofisticação e beleza dessa filosofia, que é um cosmos de possibilidades, interdisciplinaridade e autores que permeiam cada lugar da mente de Ricoeur. É possível categorizar os verbetes da seguinte maneira: a. palavras/conceitos indispensáveis na compreensão do pensamento do filósofo (amor, consciência, direitos humanos, ética, ideologia, utopia...); b. os diversos autores que influenciam ou são pontes de diálogos com o seu pensamento (Albert Camus, Aristóteles, Friedrich Nietzsche, Friedrich Schleiermacher, Hannah Arendt, Immanuel Kant, Martin Heidegger, Platão, Sigmund Freud, Søren Kierkegaard...); d. palavras/conceitos relacionados ao círculo teológico (bíblia, criação, fé, filosofia cristã, hermenêutica teológica, Jesus Cristo, kénosis...); d. por fim, tendo em vista a relevância do pensador no assunto, uma categoria relacionada com a hermenêutica e a linguagem (escrita, hermenêutica, hermenêutica filosófica, hermenêutica teológica, hermenêutica fundamental, imaginação, leitura, narratividade...).

Segue-se a seção de posfácio, chamado “Compreendendo-se diante do Texto”, que merece tanto quanto os “prefácios” e “comentários”, um momento específico nessa resenha. Por fim, há a bibliografia dessa coleção de verbetes. Não é uma bibliografia comum. Trata-se de um momento de entregar ao leitor o “mapa” do pensamento do filósofo de Valence. Todo leitor que foi capturado pelo pensamento de Ricoeur encontra aqui um lugar para conhecer uma biografia completa do filósofo, as suas principais obras, os seus artigos e ensaios. Tratase de um lugar que possibilita conhecimento sobre as obras traduzidas para o português e uma visão ampla de sua bibliografia, especialmente os textos em francês. Torna-se, assim, local de consulta obrigatória para pesquisas avançadas. Destaca-se a organização pelos anos das publicações, indo desde 1935 até 2016. Ainda existe uma subseção com publicações sobre o filósofo, reunindo uma colação de estudiosos e pesquisados da obra ricoeuriana.

Os dois prefácios e os comentários, antes dos verbetes, merecem ser destacados em virtude de referendar a qualidade e a magnitude da extensão que a obra gera na academia e na sociedade. Os teólogos brasileiros Antonio Manzatto e Alex Villas Boas, que assinam os prefácios, assinalam aspectos essenciais desse trabalho. Manzatto lembra o leitor que ele não tem em mãos um dicionário, mas “uma leitura de seus textos [de Ricoeur] em uma reflexão sobre e a partir de seu pensamento” (p. 8). Manzatto desvenda nessa frase o propósito desse trabalho: a interação entre docente e discentes que refletem a filosofia de Ricoeur, o que é ir além de decifrar o seu pensamento. Villas Boas, por sua vez, assinala que os verbetes oferecem “chaves de leitura, conceitos-chaves, influências e interlocutores, em níveis distintos, que ajudará o leitor a se apropriar de Paul Ricoeur, dado que não é um autor sistemático” (p. 10). Ele ainda destaca, mediante uma leitura perspicaz da essência da obra, que Xavier teve a capacidade de unir trabalho acadêmico e pastoral, pois a proposta extrapola objetivos estritamente acadêmicos, colocando os estudantes que forjaram os verbetes em um locus em que, de maneira solidária, puderam pensar as suas respectivas vidas, buscando uma “reedição de nós mesmos”, uma leitura capaz de chegar à uma “oitava acima” (p. 10), convidando o leitor a se aventurar no mesmo processo.

Os comentários sobre a obra são de professores e professoras de diversas áreas do saber. É justamente nesse fato que essa seção tem o seu lugar de destaque, pois revela o alcance da presente obra. As áreas do saber que possuem os seus representantes que endossam a obra são: Teologia, Ciências da Religião, Ciências Sociais, Ciências Humanas, Direito, Literatura, Filosofia e Letras. O endosso desses professores, professoras, doutores e doutoras, atesta a relevância do trabalho realizado, mas também o caráter polifônico da obra ricoeuriana, capaz de produzir ressonância em diversas áreas, dando contribuições importantíssima em variadas temáticas, contribuindo com as ciências de maneira significativa. Nessa perspectiva, a presente obra é uma ponte construída entre as ciências.

O posfácio, “Compreendendo-se diante do Texto”, é um momento ímpar na leitura. O sofisticado conceito de hermenêutica de Ricoeur parece ser empiricamente comprovado nessa seção, uma vez que os relatos dos estudantes sobre as suas respectivas empreitadas na elaboração de cada verbete são, na verdade, o testemunho de quem fora transformado na experiência de ler o texto. Para Ricoeur, a experiência de interpretar transforma-se em um interpretar-se. Os estudantes parecem ter se colocado nesse solo sagrado, tendo, pois, suas constituições humanas reconstruídas e renovadas. É provável, tendo em vista tais testemunhos, que o olhar e a sensibilidade de cada estudante, independente da sua área, ao se deparar com os pensamentos de Ricoeur, acabaram, pois, sendo tragados por um aspecto transcendente ao se engajarem na imanência da empreitada que aceitaram com o convite de Xavier: “Quanto mais o homem se faz imanente, mais será transcendente, pois há algo divino que o habita” (DONIZETE, 2017b, p. 95).

Sobre a metodologia empregada por Xavier, impossível de não ser mencionada, não é difícil observar traços freirianos em relação a prática pedagógica do docente Donizete Xavier juntos dos seus estudantes. A começar pela solidariedade de sua parte assinalada no título do livro – ...de estudantes para estudantes – e destacada por Villas Boas (p. 10). A prática docente rompeu com toda perspectiva que transforma o professor em alguém que é o detentor de um conhecimento absoluto e os discentes seres de intelectualidade inferior. Xavier aqui é estudante entre estudantes. Nesse sentido é possível uma aproximação com a prática pedagógica proposta por Paulo Freire:


Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo não é uma doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a revolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada. (FREIRE, 1987, pos. 1282)


Donziete Xavier revela como organizador desse trabalho ser um verdadeiro humanista. Ele tem “fé nos homens” (FREIRE, 1987, pos. 1241). A fé dele é materializada em seu convite solidários para que os estudantes se coloquem junto dele como estudante. Assim, toda metodologia empregada por Xavier na organização de Paul Ricoeur de A a Z baseia-se no diálogo, na troca, na alteridade e, por que não, no amor, na humildade e na fé nos homens. “Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um pólo no outro é consequência óbvia.” (FREIRE, 1987, pos. 1246) Tal confiança não é somente elemento retórico, mas é sentida pelo leitor, que observa um docente cuja prática com o seus discentes é a de um “educador humanista ou o revolucionário autêntico” cuja “incidência da ação é a realidade a ser transformada por eles [alunos] com os outros homens [...]” (FREIRE, 1987, pos. 1295). Assim, definitivamente, Donizete é o exemplo do docente capaz de um diálogo autêntico.

Sobre o coração da obra, muitos poderiam ser os verbetes discutidos aqui, porém extrapolaria o papel dessa resenha, que se configura mais como um convite de quem provou de um processo reflexivo e deseja, com veemência, inserir o convidado nessa jornada. Entretanto, como é um teólogo que vos escreve, não há como não perceber a contribuição de Ricoeur à Teologia, assinalada em vários verbetes – todos sobre hermenêutica, bíblia, Jesus Cristo, kénosis, querigma, entre outros.

A filosofia de Ricoeur humaniza o pensar teológico e colabora de maneira significativa acerca da ciência hermenêutica, decisiva para uma boa teologia bíblica. A sua capacidade em articular texto, leitor, narrativa, poesia e Deus é uma combinação que coloca a fé dentro de um espaço em que o ser humano converge com a ética da vida, experimentada na prática da justiça, do amor e dos direitos humanos. É possível perceber essa articulação ricoeuriana naquilo que os verbetes apresentam, sempre nos induzindo ao aprofundamento filosófico- -teológico. Donizete Xavier destaca justamente essa articulação quando aborda a tarefa da Teologia sob influência do pensamento de Ricoeur:


Uma das tarefas da Teologia na atualidade é recolocar o sentido da história e da pessoa humana à luz da fé no Deus kenótico, que se esvazia amorosamente renunciando a quaisquer direitos de onipotência dominadora. Por outro lado, compete a fé combater todas as formas de política e de Estado que se arroguem o direito de ditar a verdade, em lugar de exercer a justiça que é a sua única e grande função. (DONIZETE, 2017a, p. 40)


A percepção da kénosis em Ricoeur, sinalizada por um “Deus kenótico” acima, que consiste na ideia de que “o mistério amoroso de Deus se faz patente aos olhos dos homens em uma forma escandalosa que pede à Teologia que a tenha como objeto de sua hermenêutica”, conforme nos diz Donizete no verbete correspondente, coloca o Mistério inserido em um “paradoxo da fraqueza e da potência de Deus” (p. 175).

Privilegiando as contribuições ricoeurianas à Teologia, Paul Ricouer de A a Z contribui em disseminar a ideia de humanizar Deus e, nessa humanização, promover uma humanidade com responsabilidade e dever, pois “[...] se há um ‘dever’ é o de assemelhar-se a Deus, pois Ele é aquele que se dá e é dever do homem dar-se analogicamente” (DONIZETE, 2017b, p. 96). A hermenêutica de Ricoeur nos ensina que o texto não é um elemento estático, objeto de investigação de um cientista frio e calculista, ou instrumento de fundamentalistas dogmáticos que entendem que as verdades eternas estão cristalizadas em proposições doutrinais áridas de sentido à humanidade contemporânea. A filosofia de Ricoeur e essencialmente a sua hermenêutica retratam a vida do humano como uma narrativa em busca de um sentido. O local do leitor é o local de um ser que pensa, que é transformado, reconfigurado, interpretando a si mesmo, sendo na vida um testemunho poético na história. Diz Xavier: “Se a vida humana é uma narrativa em busca de um narrador, é preciso percorrer o caminho da narrativa à vida. É pela narrativa que torna-se possível, para o homem, a refiguração da sua própria vida. ” (DONIZETE, 2014, p. 23)

Esse é um exemplo de muitas possibilidades reflexivas de como Paul Ricoeru de A a Z é um trabalho valioso. Para além do limite de uma área do conhecimento, a obra tem o poder de introduzir o leitor em uma busca de um narrador na narrativa que é a vida. A obra aqui resenhada é um testemunho de estudantes que se encontraram como narradores e ousaram perceber a existência com a poesia de todos os que se colocam em ação testemunhal. Cabe tão somente ao leitor aceitar o convite para essa jornada e Paul Ricoeur de A a Z é esse convite.

Bibliografia

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

DONIZETE, José Xavier. O pathos da miséria como matriz poética da existência. In: Teoliterária, V. 7 - N. 14 – 2017b.

DONIZETE, José Xavier. O conceito de tolerância em Paul Ricoeur. In: REVER, N. 3, set/dez, 2017a.

DONIZETE, José Xavier. A poética do devir a partir da hermenêutica bíblica de Paul Ricoeur. In: Teoliterária, V. 4 - N. 7 – 2014.