Editorial
Estimados leitores
Os grupos de pesquisa LERTE e QUESTÕES DE DEUS da Faculdade de Teologia Nossa Senhora Assunção da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP apresentam esse número especial da nossa revista em comemoração aos 25 anos da publicação da obra do Prof. Antônio Manzatto, Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida na obra nos romances de Jorge Amado. Esta edição reúne para isso alguns membros pesquisadores da Associação Latino-americana de Literatura e teologia (ALALITE) que não só compartilham da construção teológica de Manzatto, mas testemunham uma sensibilidade literária que possibilita o desenvolvimento contínuo de uma visão teológica crítica da realidade.
Manzatto é um inovador, teólogo da percepção da complexidade da realidade e da história. Leitor e intérprete da vida. Faz teologia não como um labor ocasional, mas como saber afetante, que é capaz de compartilhar com todos, como um verdadeiro cientista e pessoa humana de bom trato, voltado aos apelos éticos da vida. Sua obra apresenta a literatura como mediação para a leitura da realidade. Trata-se da publicação da sua tese de doutorado em teologia defendida em 1994 na prestigiosa Université Catholique de Louvain (Bélgica), sob a orientação do teólogo Adolphe Gesché, elevada à categoria de livro no ano seguinte pela Edições Loyola
O objetivo desta edição comemorativa, sugerido pelos grupos de pesquisa LERTE e QUESTÕES DE DEUS, é evidenciar a fecunda intersecção entre o teológico e o literário na compreensão de Manzatto. Sem a intenção de igualar os saberes da teologia aos saberes da literatura, guardando as suas propriedades e fazendo-os dialogar, o método manzattiano realça que na relação entre a teologia e a literatura eclode a possibilidade de se redescobrir a dimensão estética da intepretação da realidade.
Manzatto emprega os romances de Jorge Amado em sua ficção para revigorar e renovar a percepção teológica sobre o humano. Em sua percepção metodológica, uma existência empírica em contato com uma existência ficcional pode de fato ressignificar-se. Nesse sentido, a literatura exerce um papel decisivo no processo humanizador e libertador da pessoa humana. Sua tese, analisada sob o enfoque antropológico amadiano, apresenta a literatura como mediação para a compreensão teológica do povo brasileiro. A literatura em seu escrito pode ser compreendida como um locus theologicus, uma vez que perguntar-se pelo lugar da teologia é perguntar-se pelo lugar da manifestação de Deus. Por outro lado, o movimento interno da teologia não exime a pergunta do homem ante a sua realidade, a história experimentada e a si mesmo, que desemboca na questão da fundamentação de sentido, da justiça, da destinação última e do amor definitivo.
“A literatura descobre os abismos que habitam o homem, ao passo que a revelação, e depois a teologia, os assumem para demonstrar como Cristo chega a atravessá-los e iluminá-los. Em suma, uma antropologia que procura construir-se sem ter pousado um longo olhar preliminar sobre o assunto que estuda, isto é, o homem, corre o risco de ser insignificante. A literatura pode evitar esse risco, descobrindo a dimensão de mistério do homem que o Mistério de Cristo ilumina” (Lautorelle). Manzatto percorre esse caminho, ao fala de Deus e do homem como conceitos-limite. Fala do Deus da liberdade, de Jesus Cristo e seu Reino; de um Deus relacional que é ao mesmo tempo criativo e criador; o Deus da Esperança porque é Amor; o Deus cuja maior glória é exatamente a vida integral do ser humano. Todas essas expressões-limite exploradas por ele remetem a uma epistemologia teológica que esclarece o mistério do homem à luz da revelação de Jesus Cristo.
A seção especial comemorativa organizada pelos grupos de pesquisa LERTE e QUESTÕES DE DEUS se compõe de quatro artigos.
Estrella Isabel Koira (Universidade de Buenos Aires), em “Una vía privilegiada para hablar de Dios con la voz de America Latina”, sustenta que a vida que se expressa na Tenda dos Milagres de Jorge Amado e a palavra teológica vivificante que surge dela para interpelar sobre o mistério do humano conformam as coordenadas da Teologia e Literatura de Antonio Manzatto. Segundo a autora, foi, ademais, um ato fundacional de aproximação das ditas disciplinas que colocou o seu coração no povo da América Latina entendendo-o como lugar teológico e onde se cuidou da rigorosidade de um método de trabalho intelectual e se revelou um propósito: mostrar a beleza como via privilegiada para falar de Deus aos homens.
Alex Villas Boas (Universidade Católica Portuguesa - UCP), em “O método antropológico no diálogo entre Teologia e Literatura em Antônio Manzatto”, analisa e apresenta o debate teórico a respeito do que ficou conhecido como Método Antropológico de diálogo entre Teologia e Literatura desde a publicação da obra Teologia e Literatura – Reflexão Teológica a partir da Antropologia contida nos romances de Jorge Amado de, Antonio Manzatto em 1994, um marco de referência que inaugura o campo de pesquisa no Brasil. Analisa a crítica de Antonio Magalhães à obra de Manzatto em seu livro Deus no Espelho das palavras, de 2000, e se pergunta em que medida isso se aplicação trabalho de Manzatto e se há uma contribuição para o campo com tal debate.
No artigo “A cristologia de Antônio Manzatto (revelação, antropologia e literatura)”, Maria Clara Lucchetti Bingemer considera a obra de Manzatto a partir de sua cristologia, area maior da teologia cristã, e recorda que o teólogo é o pioneiro em nosso país em fazer dialogar com a Teologia com a Literatura. Para ela, na obra de Manzatto a literatura não é apenas nem principalmente tema, mas método para o trabalho teológico; em seu trabalho, ele procura demostrar a importância da antropologia e da textualidade para que aconteça a revelação de Jesus Cristo como messias do texto. Finalmente, conclui com a afirmação que o cruzamento da teologia com a ética e a estética a partir da cristologia é essencial para a identidade da mesma teologia.
Carlos Caldas, em “Influência da Bíblia na cultura pop: leitura do simbolismo e da linguagem bíblica na HQ de Murdock de Frank Miller e David Mazzucchlli”, a partir do caminho aberto pelo diálogo entre a Teologia e a Literatura no Brasil inaugurado por Manzatto, o autor avança a sua discussão para o horizonte da utilização de texto proveniente da assim chamada cultura pop, neste caso, as histórias em quadrinhos. O artigo tem a intenção de apresentar a influência da Bíblia no arco da história em quadrinhos A queda de Murdock, de Frank Miller e David Mazzucchelli. Pretende ainda apresentar como esse arco reflete o tema do justo sofredor, tema que aparece no livro bíblico de Jó, na profecia de Isaías e aplicado a Jesus no Evangelho de Lucas.
Na seção de temas livres, Paulo Sérgio Lopes Gonçalves, em “Identidade e Sabedoria: a reflexão teológica como Veritatis Gaudium”, apresenta epistemologicamente a teologia como sabedoria que produz a alegria da verdade. Para o autor, ao identificar a teologia como sabedoria, realça-se o seu vínculo com a revelação divina, que tem na sabedoria pré-existente o sujeito que realiza a criação, encarna-se na história humana e é o ápice de todo movimento revelador de Deus. Essa sabedoria é teorizada na teologia em sua relação com o mundo e com o ser humano, em toda a sua historicidade, dramas, tensões e perspectivas. Essa teologia sapiencial se torna, então, uma theologia mundi, que, concebida como scientia fidei, cujo assunto é Deus em sua relação com o mundo habitado pela humanidade, torna-se uma scientia Dei mundi. Para o autor, a teologia como sabedoria ou, propriamente, como ciência sapiencial da fé revelada, incide na história do mundo e do homem, para tornar-se contemporânea de cada época histórica.
Francisco Aquino Junior, em “Evangelização e movimentos populares”, ressalta a dimensão social da evangelização, porém, o problema reside na sua compreensão e, sobretudo no seu dinamismo. Para o autor, a tendência mais comum hoje na Igreja é reduzir o social a relações interpessoais em detrimento do aspecto propriamente estrutural ou, na melhor das hipóteses, reduzir a dimensão social da evangelização a princípios abstratos e genéricos sem intervir nos processos sociais concretos. Nesse sentido, procura mostrar que a evangelização tem uma dimensão socio-estrutural irredutível e que seu dinamismo implica diálogo e interação com os movimentos e as organizações populares na luta pela transformação da sociedade a partir e em vista das necessidades e dos direitos dos pobres e marginalizados. Falando da missão evangelizadora da Igreja, destaca sua dimensão sócio libertadora e explicita o vínculo entre evangelização e movimentos populares.
Nadi Maria de Almeida e Victor Dunne, em “Reflexão teológico-pastoral a partir do Decreto Ad Gentes”, enfatizam os fundamentos, horizontes e propostas missionárias a partir de uma reflexão teológico-pastoral do Decreto. Os autores ressaltam ainda o apelo a um maior engajamento nas atividades missionárias da Igreja, mostrando a importância da missão e estimulando um compromisso pastoral mais aberto e missionário no mundo contemporâneo.
André Boccato de Almeida, em “Amoris Laetitia e a vida cristã. Uma reflexão teológico-analítica sobre o papel da consciência no discernimento cristão”, reflete sobre a relação entre a teologia moral, enquanto saber reflexivo- -racional do sentido humano na práxis, e alguns elementos propositivos da exortação pós-sinodal Amoris Laetitia (AL) que atualizam uma busca criativa e corajosa da ética do discernimento na consciência. Ele parte da perspectiva segundo a qual na exortação encontram-se categorias próprias da moral fundamental que fomentam uma reinterpretação da moralidade conjugal e familiar, com o intuito de acentuar a centralidade do amor sobre outras perspectivas relacionadas à vida matrimonial. O autor procura ressaltar que o sentido ético da vida cristã está relacionado ao amor e à alegria, dimensões fundamentais do seguimento de Cristo. Portanto, o discernimento, como chave ético-teológica é o itinerário de todo cristão que busca, na sequela Christi, aperfeiçoar-se em todas as suas dimensões.
Por fim, esta edição especial apresenta uma resenha, elaborada por André Enéas, que analisa a obra de XAVIER, Donizete José (org.). Paul Ricoeur de A a Z. São Paulo: Fons Sapientiae, 2019.
Desejamos a todos uma boa leitura.
Prof. Dr. Donizete José Xavier
Editor Científico
Prof. Ms. Glaucio Alberto Faria de Souza
Grupo de Pesquisa- LERTE