Parentalidade: Administrar a Vida Humana
Parentality: Manage Human Life
Odirlei Arcangelo Lovo
Professor na UNIR - Universidade Federal de Rondônia. Doutor em Teologia pela PUC/PR (2019). Mestre em Administração pela FEAD/MG (2013). Contato: oalovo@gmail.com
Resumo
A essência administrativa propulsa o ser humano, em esponsalidade, a ser, no mundo, o ato administrativo de Deus, e perpetuar a espécie humana. É notório que, na biologia da pessoa está a genealogia da pessoa com Deus. Propõese que o ser humano planeje a concepção e o nascimento da vida, inserindo-se no mistério de amor, dizendo com Deus ‘façamos o humano à nossa imagem e semelhança’. A proposta de narrar o ser humano administrador e cocriador da obra de Deus. Ser pai, ser mãe é o Dom que precede o ter filhos, isso implica reconhecer a importância do planejamento da parentalidade e, acima de tudo, que esta nova vida seja regada de amor e da devida formação, para que possa, em livre-arbítrio, se edificar enquanto administrador da obra de Deus.
Palavras chave: Administrador. Essência Administrativa. Parentalidade. Economicidade. Sociabilidade.
Abstract
The administrative essence propels the human being, in responsibility, to be, in the world, the administrative act of God, and to perpetuate the human species. It is well known that in the person’s biology is the person’s genealogy with God. It is proposed that the human being plans the conception and birth of life, inserting himself in the mystery of love, saying with God ‘let us make the human in our image and likeness’. The proposal to narrate the human being administrator and co-creator of the work of God. Being a father, being a mother is the gift that precedes having children, this implies recognizing the importance of parenting planning and, above all, that this new life is governed by love and due formation, so that it can, in free will , build up as an administrator of God’s work.
Keywords: Administrator. Administrative Essence. Parenting. Economics. Sociability.
Introdução
A parentalidade é ato humano que possibilita a perpetuação do ser que é, à imagem e semelhança de Deus, e perpetua no tempo sua própria e limitada capacidade físico-biológica, mediante a kairologia genealógica da pessoa com Deus. A missão parental é participar do ato cocriador de Deus, destinado a gerar e cuidar da vida humana.
A parentalidade inclui, e não se restringe, a dimensão biológica, pois, de muitos modos o ser humano é chamado a ser o cocriador de outros humanos; na formação, no cuidado, na alteridade e na dinâmica de vida e vivência de toda humanidade. Há, portanto, um chamado à ser pai, à ser mãe, e à ser filho. Cada filho é súplica e ação (orar+ação), que se prospecta a ser realizada no futuro.
Pensar a parentalidade é pensar a unidade primeira da humanidade, socialmente constituída e aberta para a família humana. Portanto, a parentalidade, a sociabilidade e a economicidade da pessoa devem constituir um dos núcleos básicos, sobre o qual se pensa a administração e cocriação da obra de Deus.
É preciso edificar o reino, segundo o amor à vida humana, fonte de esponsalidade com o Criador, neste sentido o ser humano é vida plena desde a sua concepção. Em cada vida humana concebida está a genealogia da pessoa em Deus, ali, no ventre há um administrador e cocriador da obra de Deus. Cuidar da vida é responsabilidade dos seres humanos, é um processo no qual se salva e renova a pessoa.
A parentalidade é a doação de si ao cônjuge e do casal à vida, ao novo ser humano que nasce. A parentalidade é um processo de amor e cuidados que vai aos poucos curando as feridas causadas pelo egoísmo, pela egolatria e a soberba. É um processo de amadurecimento das pessoas para viverem a nação dos filhos de Deus, uma nação sem limites geográficos, uma nação que se faz no mistério de amor e acolhimento.
Os esquemas da pesquisa, os problemas apontados e a objetivação das hipóteses elevaram os pesquisadores a aproximarem-se dos objetivos, fomentando narrativas verificáveis. A pesquisa foi desenvolvida sobre afirmativas administrativas e teológicas e enquanto ‘pano de fundo’ fomenta-se a parentalidade, a economicidade e a sociabilidade humana.
É afirmativa a associação e inter-relação, enquanto metodologia, entre Teologia e Administração, de modo que, realizar a vontade de Deus – esponsalidade – significa administrar a criação e, por isso, há práxis teológica e, à medida que se faz teologia, compreende-se como administrar a Criação e, neste sentido, subentende-se que “a vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura” (EV[1] 34).
Eis que “Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no jardim de Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2,15). Sendo dever do ser humano cultivar o jardim, insere-se o momento posterior, a necessidade de administrar e cocriar. Administrar e dar significado, sentido e possibilidades ao que existe, avançando sobre o que não é possibilitado, mas que se alça em ser possibilitado, no futuro, pela ação humana, mediante a essência administrativa.
O ser humano sempre se des-envolve, mediante a essência administrativa e se torna ato administrativo de Deus na criação. Enseja-se que a esperança é constitutiva da ação necessária em perspectiva do reino esperançado, é preciso compreender que “a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável” (LS[2] 116).
Este artigo se propõe à elucidação de questões relacionadas ao ser humano, vertendo-se a compreendê-lo como administrador da obra de Deus. Mediante os procedimentos metodológicos, conduziu-se às possibilidades, às interpretações e às informações, na afirmativa que “uma narrativa é composta por uma sequência singular de eventos, estados mentais, ocorrências envolvendo seres humanos como personagens ou autores” (BRUNER, 2002, p. 46).
A narrativa tem por finalidade explorar, aprofundar e dar respostas às particularidades, onde a realidade não pode, ou não deve ser quantificada, particularizando ainda que, “Uma verdadeira pesquisa narrativa é um processo dinâmico de viver e contar histórias, e reviver e recontar histórias” (CLANDININ e CONELLY, 2011, p.18).
Para explorar o universo dos significados, das aspirações, das crenças, dos valores e práxis humana, utilizou-se, para a narrativa, dois núcleos fundamentais de dados, textos e informações, a saber: os documentos que constituem a (DSI) – Doutrina Social da Igreja; e os documentos que elucidam o projeto, a vivência e a dinâmica familiar, segundo a Igreja Católica. O uso desses dois núcleos tem por base, sua universalidade, isto é, são documentos que se destinam a toda a humanidade, diante dos dons de cada pessoa.
Cada um dos itens da pesquisa foi desenvolvido, tendo por base os textos/ documentos apresentados. Como pontos de discernimento, pesquisou-se fontes/ obras para dar às narrativas, sentido de diálogo, com fundamentações de teólogos que não estão inseridos nos dois núcleos apresentados. As obras foram escolhidas pelo próprio pesquisador, tendo como critério a afinidade com o texto, sendo este o critério metodológico para sua escolha.
A. A parentalidade edifica o Reino
A contingência do reino se faz em zelo e obediência à contingência do reino; é um saber limitar-se e agir sempre em esponsalidade com Deus, na responsabilidade com o reino. O agir da pessoa, não é um agir isolado, mas um agir em parentalidade, sob a perspectiva da família humana.
Diante das limitações de cada pessoa, percebe-se a grandeza da comunhão com a vida humana, na missão de cocriar e administrar o reino de Deus. A parentalidade é nossa forma de agir no futuro, no qual a pessoa que o pensa não pode estar, “Como os filhos refletem a fisionomia de seu pai e são uma espécie de prolongamento da sua pessoa, a natureza inspira-lhe o cuidado do seu futuro e a criação dum patrimônio que os ajude a defender-se” (RN[3] 6).
E, nesse sentido, é importante enfatizar que, “quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa” (EV 43), assim, toda pessoa é concebida à imagem e semelhança de Deus.
Ainda prospectando a importância de se pensar a parentalidade, e sua reciprocidade socioeconômica, o Papa Francisco enfatiza que “um olhar atento à vida cotidiana dos homens e das mulheres de hoje demonstra imediatamente a necessidade que há, em toda a parte, duma vigorosa injeção de espírito familiar” (AL [4] 183). Nesse ensejo, afirma-se que a parentalidade é fonte de amor e edificação do próprio reino de Deus.
Celebrar a vida é um conjunto de interações que envolvem as possibilidades, as necessidades e os subsídios. É nesse conjunto de interações que a vida é proclamada, cada filho é a edificação da vida humana, que acontece e só acontece na criação. É o ser humano, alçando-se a dizer com Deus, “Façamos à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26), e ensinando aos filhos a função de administrar e cocriar a obra de Deus.
Acolher um filho como dom de Deus não é negar/negligenciar ao próximo em benefício do filho. Urge dizer que a consciência de si eleva o ser humano a compreender-se criatura que administra em comunhão de vida humana. É sendo criatura que se observa a importância da vida, segundo o chamado a cocriar e administrar a obra de Deus, sempre sob a base original possibilitada por Deus. É na criação o local onde a essência administrativa possibilita ao ser humano o “Cultivar e guardar a criação” (Gn 2,15).
A essência administrativa possibilita abstrair-se do momento e manter-se na realidade, para buscar no passado elementos que, edificados no presente, possam predispor, segundo a expectância, o futuro. Enfatiza-se a esponsalidade, e nela a essência administrativa. Respalda-se tal afirmativa em função de que “Jesus é retratado como uma pessoa ‘em contato’ com o Deus Criador e com a atividade de Deus. Como tal ele próprio é um agente do poder do Criador” (HEFNER, 1987, p. 294).
A esponsalidade é um ato preliminar, que tem por finalidade assegurar a realização da união definitivo-eterna; aliança esponsal possibilita a essência administrativa para que o ser humano possa, em livre-arbítrio, realizar a vontade de Deus. A união para com a vida eterna se envolve no mistério da vida, da criação, do Criador e dessas à vivência humana. A esponsalidade é perceptível, porque,
Deus está presente ‘repletivamente’ em todos os lugares, e, por isso, Cristo também, ‘à sua direita’, mas para que Deus em Cristo possa estar presente para nós como seres consciente, devemos ser capazes de nos dirigir a ele, de ter uma intenção em relação a ele. (JENSON, 1987, p. 198).
A esponsalidade é, promessa e realização, união recíproca “pessoa ‘em contato’ com o Deus Criador” (HEFNER, 1987, p. 294), que antecede a união definitiva. Substancia o fazer juntos ou fazer sob o mesmo Espírito e, nesse sentido, toda pessoa é “um agente do poder do Criador” (HEFNER, 1987, p. 294).
Há que se reconhecer Deus, antes do primeiro ato de criação, no qual Ele cria as forças evolutivas e a própria potência, presença e ciência humana que, no diálogo com Deus, extrai inspiração e normas, para dar continuidade à Sua criação. Por isso, “no fundo é o próprio Deus que oferece ao homem a honra de cooperar com todas as forças da inteligência na obra da criação” (CDSI[5] 460).
As necessidades, as possibilidades e os subsídios são observados em perspectiva da sociabilidade, da economicidade e da parentalidade para afirmar que não é o que se tem, mas quantos vivem bem com o que se tem, sem que para isso outros tenham vivido, vivam, ou venham a viver mal. Acolher um filho é acolher a obra de Deus na qual o filho há de morar; educar um filho é educar e transformar a vida sobre a terra, que se renova sob o agir humano. Diante disso é possível afirmar que:
Deixamos de notar que alguns se arrastam numa miséria degradante, sem possibilidades reais de melhoria, enquanto outros não sabem sequer que fazer ao que têm, ostentam vaidosamente uma suposta superioridade e deixam atrás de si um nível de desperdício tal que seria impossível generalizar sem destruir o planeta. (LS 90)
É preciso enfatizar que, quando um genitor explora predatoriamente a criação para o benefício da parentalidade, investe-se de avareza e soberba, um desordenamento do amor para a predileção dos seus. O Papa Francisco (2016) preconiza que “A lógica do amor cristão não é a de quem se considera superior aos outros e precisa de fazer-lhes sentir o seu poder, mas a de ‘quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo’ (Mt 20,27)” (AL 98).
A capacidade de administrar e cocriar os mistérios de Deus está para a essência administrativa, que habita o íntimo de cada pessoa, possibilitando, a percepção e solicitude aos subsídios, às necessidades e às possibilidades às quais o próprio humano e o ambiente se apresentam, enquanto processo em desenvolvimento.
B. Dignicidade e concepção
A dignidade da pessoa não se embasa no fato da própria consciência, do livre-arbítrio e da racionalidade, mas na concepção de cada ser humano, considerando-se os processos biológicos nos quais é implícita a genealogia do ser humano, pessoa à imagem e semelhança de Deus. Apresenta-se o termo concepção, porque se fala do ser humano que é administrador e cocriador da obra de Deus, e nesse sentido, a continuidade da vida humana se faz mediante a sexualidade de homem e mulher que administram e cocriam sob os propósitos do agir humano, ainda que “usufruir do dom do amor conjugal, respeitando as leis do processo generativo, significa reconhecer-se não árbitros das fontes da vida humana, mas tão somente administradores dos desígnios estabelecidos pelo Criador” (HV[6] 13).
Em se tratando de concepção, da dignidade da pessoa, torna-se evidente que, quando se enfatiza que “o termo ‘pessoa’ indica uma natureza dotada de inteligência e vontade livre” (CDSI 391), esse não é excludente do ser humano não dotado de inteligência e vontade livre, mas sim o indicativo de quem deve ser o ato administrativo de Deus no mundo, de forma a reconhecer a dignidade da pessoa desde a concepção.
Quando a concepção e a dignidade da pessoa estão intrinsecamente fomentadas em um só processo, pontua-se que “a dignidade humana não pode estar dissociada de sua constituição biológica” (SANCHES, 2007, p. 119). Também Rahner afirma “um embrião já é um homem, a essência humana está ‘ali’ [...]; está feito o começo, que é iniludivelmente começo de um homem, é isto e não outra coisa” (RAHNER, 1969, p. 192).
Desde a concepção existe um novo ser humano, para com o qual a família humana deve se ocupar e socializar-se, para administrar e cocriar os mistérios de Deus. A concepção é o momento no qual há um novo ser à imagem e semelhança de Deus, implicando que a humanidade deve reconhecer que a toda vida pertence a Deus, e que cuidar dos filhos de Deus é louvor a Deus, que se realiza no cuidado à vida humana.
Pontuar sobre razão e concepção é elevar-se a compreender que não é a razão, por si mesma, nossa semelhança com Deus, mas a essência administrativa, que se desenvolve pelos laços de esponsalidade com o Criador, porque “o ser da pessoa brota dessa relação de Deus para com a pessoa e consiste nessa relação, e não nessa ou naquela qualidade que diferencia a pessoa de outros seres viventes” (MOLTMANN, 1993, p. 318).
A essência administrativa é práxis, possibilita ao ser humano ser o ato administrativo de Deus no mundo, segundo os próprios dons, e então “a vida que Deus oferece ao homem, é um dom, pelo qual Deus participa algo de Si mesmo à sua criatura” (EV 34). Participar da vida de Deus é, pois, possibilitar que as pessoas sintam Deus diante do agir humano.
A essência administrativa é práxis, decorre da esponsalidade com o Criador, nosso Pai, “é por isso que ‘nós somos’ crianças de Deus e chamamos Deus de Abba, Pai querido e, simultaneamente, ‘ansiamos’ pela filiação e não sabemos o que devemos pedir” (MOLTMANN, 1993, p. 108). O dom de ser o administrador e cocriador pode ser percebido quando se enfatiza com base no Livro do Gênesis (2,15) que:
O Senhor quis o ser humano como Seu interlocutor: somente no diálogo com Deus a criatura humana encontra a própria verdade, da qual extrai inspiração e normas para projetar a história no mundo, um jardim que Deus lhe deu para que seja cultivado e guardado. (CDSI 452).
Sobre a concepção, epifania – Sopro do Espírito Santo à vida de cada pessoa, é possível preconizar que “o corpo embrionário desenvolve-se progressivamente, segundo um ‘programa’ bem definido, e com um fim intrínseco próprio, que se manifesta no nascimento de cada criança” (DP[7] 4). Ainda que, com a ajuda das modernas formas de reprodução e/ou fertilização, seja possível dissociar-se o ato sexual e conjugal da concepção, espera-se que o novo ser, nasça da sexualidade do casal, que envolve o afeto, o sexo, o projeto a dois, o desejo de ser pai e mãe e, com isso, esperança-se que o filho seja gerado e acolhido no amor do casal.
Compreende-se o ato sexual, como processo de geração dos elementos necessários para a fertilização/fecundação; isso, porém, não deve ser compreendido como a gênese com a qual a vida foi possibilitada, mas sua estrutura de continuidade e proteção, na vontade humana de proliferar. O que se instiga na esponsalidade é que a fertilização aconteça em ambiente de amor e acolhimento, onde o filho é concebido no planejamento de quem já é pai e mãe, pois,
O fruto da geração humana, desde o primeiro momento da sua existência, isto é, a partir da constituição do zigoto, exige o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade corporal e espiritual. (DP 4).
É da relação de duas pessoas, mediante a sexualidade, que se possibilita a vida, fonte inesgotável de nova vida; no entanto, adverte o Papa Francisco (2016) que “é preciso não esquecer que ‘sexo biológico (sex) e função sociocultural do sexo (gender) podem-se distinguir, mas não separar’” (AL 56). É preciso compreender que, ao ser humano, compete o mandado de administrador e cocriador criado. Implica dizer que a cada pessoa importam suas funções de proteção, de cuidado, de amor e continuidade da vida de todo ser concebido. Não é uma questão de transformar o conhecimento sobre a genética em fruto proibido, mas é de se observar o que há de proibido nesse fruto. É preciso compreender que, “o corpo de um ser humano, desde as primeiras fases da sua existência, nunca pode ser reduzido ao conjunto das suas células” (DP 4).
Não se está aqui, definindo as funções com base nos sexos que se complementam, mas enfatizando que a relação de homem e mulher será sempre vista, à luz do evangelho, como fonte sacramental, o que implica reconhecer que toda pessoa é concebida à imagem e semelhança de Deus e que deve realizar-se no livre-arbítrio, onde deverá ser elevada a consciência e segundo seus dons, ser o administrador e cocriador do Reino de Deus.
C. Parentalidade e esponsalidade
A corporeidade humana é perceptiva e, diante dos sentidos, cada pessoa deve significar o mundo, segundo a parentalidade, a sociabilidade e a economicidade. O próprio humano se interioriza em esponsalidade, pois é no íntimo de si que habita o ‘fôlego de vida’, a essência administrativa e a imagem e semelhança de Deus imanente em cada pessoa, a práxis com a qual cada pessoa se direciona à árvore da vida.
Em referência a um recém-nascido, pode-se dizer que há uma presença virginal, ou seja, o ser humano é expressão de sua corporeidade, propiciando seu estar no mundo, onde há que significar e administrar a continuidade da Criação, sobre os alicerces da obra de Deus. Implica dizer que o casal que planeja ser pai/mãe acolhe como Dom de Deus a possibilidade de ter filhos, na qual o ser humano (varão e mulher) exerce a semelhança a Deus, desejando e planejando a vida de um filho.
A vida não é algo inesperado, mas dom de Deus, uma nova vida é concebida no planejamento que possibilita conhecer a potencialidade humana de dizer “Façamos o humano à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26), Portanto, participar da vida de Deus, e dar continuidade ao projeto de Deus é unir-se a Deus no amor de forma que, como,
Imagem viva de Deus, o homem foi querido pelo seu Criador como rei e senhor. ‘Deus fez o homem de forma tal que pudesse desenhar sua função de rei da terra. (...) O homem foi criado à imagem d’Aquele que governa o universo (EV 52)
Francisco (2016) fomenta que “O casal que ama e gera a vida é a verdadeira ‘escultura’ viva, capaz de manifestar Deus criador e salvador” (AL 11); diante de atitudes de esponsalidade, “os humanos se tornariam os perfeitos parceiros de Deus na criação, sendo este exatamente o sublime lugar que Deus teria reservado aos humanos” (SANCHES, 2007, p. 154).
O ser humano, capaz de conceber, deve celebrar a capacidade de ter filhos na atitude de amor, na unidualidade do casal, de forma que à “‘imagem do Deus invisível’, criada no início, está determinada a ser a ‘imagem do filho de Deus que se tornou pessoa humana’” (MOLTMANN, 1993, p. 124). A alteridade humana, práxis de vida e vivência na criação, é possibilidade de agir em sociabilidade no edificar a pessoa, desejo de ‘agora façamos’ possibilitado por Deus ao ser humano, perpetra a fecundidade e o administrar
O desejo de Deus de ver um Si Criador na criação, cria o ser humano, não como transformação de Si, mas com a concepção do ser humano, criatura da terra/obra de Deus. Em analogia, pode-se dizer, assim como o escritor convida caneta e papel, ‘façamos poesia’, o Criador convida toda a criação, e, de forma particular a cada pessoa, a inserir-se no mistério de amor, sob o qual Deus na liturgia da criação transforma a Palavra em Carne, dizendo “Façamos o humano à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26), o administrador e cocriador da criação.
A sociabilidade propicia que a corporeidade humana seja sempre comunicação a edificar-se, em alteridade com a criação; “carne significa o homem todo, em sua realidade corpórea. Ressurreição, portanto, significa a realização definitiva do homem ‘total’ diante de Deus, que lhe comunica a ‘vida eterna’” (RAHNER, 1969, p. 146), é o sim de Deus à vida e vivência que se edificou.
Há, no ser humano, a essência administrativa, que antecede e acolhe todos os dons, sustenta a razão e possibilita compreender que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. Nesse sentido, a vida humana é capaz de fazer conforme a vontade de Deus, cocriando e administrando, e não como uma máquina de calcular e racionalizar. O humano é poesia que Deus escreve com a história da humanidade.
O ser humano, ato administrativo de Deus no mundo, templo do Espírito Santo, desenvolve-se livremente, reconhece o futuro após a morte, mesmo porque “o Espírito Santo é a força da ressurreição. A força da ressurreição é o espírito que cria vida. Essa força é Ruah, a força do Deus criador, através da qual Deus transmite as suas energias à sua criação” (MOLTMANN, 1993, p. 107). Ao ser humano é possibilitada a essência administrativa para conduzir a obra, cocriando-a, e a conduzir o sopro vital da Vida, diante de uma sexualidade consciente.
Ao dizer que salvamos nossa existência mergulhando-a na graça de Deus, dizemos que ela é salva em sua totalidade. Não se pode perder o que uma vez foi realizado; e não é só: nada do que nos foi oferecido por Deus como possibilidade, permanece irrealizado; esta possibilidade que somos nós mesmos. (RAHNER, 1969, p. 225).
O ser humano é constituído de família e humanidade; no ser de cada pessoa, “‘corporeidade’ também é, correspondente às obras de Deus, o objetivo mais nobre da pessoa e o fim de todas as suas obras” (MOLTMANN, 1993, p. 351). Há vida nas decisões e as decisões da vida representam elevada sintonia com a esponsalidade, de tal modo que o relato da criação humana é precedido por uma decisão pessoal de Deus, e cuja decisão pessoal também é uma decisão em desenvolvimento, isto é, um caminho educativo para a vida humana. Não é educativo preparar um filho para explorar predatoriamente a criação em benefício da parentalidade, mesmo porque “Deus como criador age na natureza para levar a criação à sua plenitude, por isso a criatividade humana deve estar em sintonia com a criatividade divina, com a ‘criatividade originante e mantenedora’” (SANCHES, 2007, p. 153).
Assim, o humano caminha e conhece o Bom, o Belo e o Verdadeiro e de uma vida arbitrada, demarca presença intencional, toma ciência da criação e de si, e mantém, mediante sua potência, a perspectiva do Reino. A essência administrativa que projeta o humano a ser agente ativo na criação de Deus, conclama a ser, em família, os administradores da criação e, com isso, “de fato, a capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação” (AL 11).
Cada filho deve ser educado na parentalidade e esponsalidade com o Criador, inserindo-os nos mistérios de Deus, em uma base de fé, esperança e caridade. João Paulo II (1981) fomenta que “Os pais, que transmitem a vida aos filhos, têm uma gravíssima obrigação de educar a prole e, por isso, devem ser reconhecidos como seus primeiros e principais educadores” (FC8 36).
D. Salvar e renovar a pessoa
A corporeidade é elemento constitutivo da pessoa. Nas relações e no chamado/mandado o ser humano, que é o administrador e cocriador, vai desvelando-se húmus da criação. Na visão da corporeidade humana é possível afirmar que Jesus se recusa a ver as enfermidades e o caos como castigo divino; sua práxis de curas é sinal salvador de quem é o administrador do reino. A presença, ciência e potência de Deus possibilitam que cada pessoa possa edificar a vida e a própria vida da pessoa, na onisciência, onipresença e onipotência de Deus.
Observa-se que a cura é devolver à pessoa seu potencial de percepção, relação, correspondência e alteridade. É proporcionar a ela a liberdade necessária para que, em esponsalidade, possa em um ato contemplativo, ver que tudo “é muito bom” (Gn 1,31). O humano é capaz de sentir a presença de Deus, mediante seu próprio realizar, mediante seu trabalho, práxis de vida e vivência.
Eis que “é a pessoa humana que se trata de salvar, é a sociedade humana que importa renovar” (CDSI 1[8]), por isso, o conceito de liberdade é social, e com isso afirmar-se que, “o exercício da liberdade implica a referência a uma lei moral natural, de caráter universal, que precede e unifica todos os direitos e deveres” (CDSI 140).
Sobre o preceito de parentalidade e esponsalidade, pontua-se que é a Luz do intelecto infusa por Deus em nós, elementos da essência administrativa – um Si de Deus Criador. Diante dessa luz, compreende-se o que e como se deve edificar o reino, para que se possa ser a práxis de vida e vivência humana. Toda pessoa é destinada e chamada a ser ato administrativo de Deus na contingência da Criação, e nesse sentido, “A Lei natural ‘não é senão a luz do intelecto infusa por Deus em nós, graças à qual conhecemos o que se deve fazer e o que se deve evitar” (CDSI 140).
Quando se enfatiza o ser humano enquanto administrador e cocriador do reino, enfatiza-se que a essência administrativa possibilita observar o que há de proibido em cada fruto, “Esta luz ou esta lei, deu-a Deus ao homem na criação’ e consiste na participação na Sua lei eterna, a qual se identifica com o próprio Deus” (CDSI 140).
Por sua vez, não se pode confundir “Luz do intelecto” (CDSI 140) com ‘Razão’. A razão em esponsalidade com o Criador direciona a pessoa “à luz do intelecto infusa por Deus em nós” (CDSI 140), aqui compreendida como elemento da essência administrativa. É no participar da vida divina, aqui compreendida como a esponsalidade com o Criador, que se insere em uma autêntica dimensão da vida humana e, com isso, o ser humano é mais que sua própria razão, a essência administrativa o faz partícipe da própria vida de Deus. Não é um contraste com a racionalidade humana, mas prediz que a razão humana, em esponsalidade, eleva o ser humano à essência administrativa, isto é, de algum modo “um ulterior horizonte de vida, que é a própria vida de Deus, e permite refletir mais adequadamente sobre a vida humana e sobre os atos que a constituem” (DP 7). Portanto, a fé e a razão tornam-se unidade e o agir humano torna-se o ato administrativo de Deus no mundo, fonte de esperança e luz,
Esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé, através das quais a inteligência chega à verdade natural e sobrenatural da caridade: identifica o seu significado de doação, acolhimento e comunhão. Sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo (CV [9]3).
A esponsalidade permite mais que ter um corpo, propicia ser o corpo, eis que os sentidos voltados para fora, fazem com que a criação seja uma continuidade de si e, nesse sentido, o humano cocria e administra a criação, enquanto se edifica. Amar a si mesmo é se amar como Deus o criou, é amar também o caminho de santificação que cada pessoa se propõe a edificar.
A cura devolve vida à pessoa, pois o reinado de Deus não se refere a algo que ocorrerá depois da morte e sim à vida atual, que já é eterna para os esponsais. É futuro que transcende a linha do tempo, é um futuro da própria história humana e este futuro “transcende todos os presentes recordados, experimentado e ainda para ser experimentados é que chamamos de futuro escatológico. Ele não deve ser entendido como historia futura, mas como o futuro da historia” (MOLTMANN, 1993, p. 194).
A essência administrativa, que é práxis, possibilita ser partícipe da Criação, de forma que conhecer a si mesmo é administrar e cocriar, eficientemente, a Obra de Deus, como uma continuidade e uma complementaridade de si, ainda que:
Propor a todos os homens um humanismo à altura do desígnio de amor de Deus sobre a história, um humanismo integral e solidário, capaz de animar uma nova ordem social, econômica e política, fundada na dignidade e na liberdade de toda a pessoa humana, a se realizar na paz, na justiça e na solidariedade (CDSI 19).
Quando se enuncia sobre a dignidade da pessoa, bem como a missão individual e social a realizar no mundo, espera-se que isso se faça “à luz do evangelho e da experiência humana” (GS[10] 46), possibilitando a realização efetiva “para algumas necessidades mais urgentes do nosso tempo, que profundamente afetam a humanidade” (GS 46). Enfatiza-se, ainda, que,
Um tal humanismo pode realizar-se a tendência à unidade ‘só será possível, se os indivíduos e os grupos sociais cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade os valores morais e sociais, de forma que sejam verdadeiramente homens novos e artífices de uma nova humanidade, com o necessário auxílio da graça’ (CDSI 19).
E é sobre a experiência humana a qual se evoca como um lugar teológico, onde se faz administrar a criação. A administração humana é lugar onde a razão tem força e não a força tem razão. Não razão, enquanto capacidade de pensar no que se deve acumular predatoriamente, mas a razão em sua plenitude, luz do intelecto, esponsalidade com o Criador.
Sob a perspectiva de experiência de vida e vivência humana, é possível pensar em culturas, e sempre que se fala de culturas se está na dimensão do conhecimento que clama por misericórdia, atenção e desprendimento de preconceitos. O distinto de si deve ser amado e, para isso, se vale a essência administrativa, um Si de Deus, que se faz constitutivo da pessoa; é Deus doando-se enquanto imagem, para que o humano possa ser concebido em dignidade, pessoa semelhante a Deus.
Isso implica dizer que o agir humano deve ser resultado de um processo reflexivo, transparente, honesto, entendido como abertura à alteridade e, por isso, é constitutivo de possibilidades que propiciam o estabelecimento de uma cultura de paz, uma cultura do encontro e da fraternidade entre os povos, elementos esses que devem acontecer no respeito à cultura de cada pessoa.
E. A parentalidade enquanto doação de si
Permitir que as pessoas, em diálogo e esponsalidade com o Criador, se despertem para sua função na Criação de Deus, é dever da humanidade de significar a criação e nela o próprio ser humano, porque “tudo é considerado a partir da pessoa e em vista da pessoa: ‘a única criatura que Deus quis por si mesma” (CDSI 96). É importante frisar que o ser humano é Criado à imagem e semelhança de Deus para administrar e cocriar a Obra de Deus. O privilegio à vida humana se faz ao propósito de ser o ato administrativo de Deus na criação.
É preciso edificar todo ser humano, envolvendo-o em função da formação da consciência de pessoa, com isso se enseja apresentar que projetos que tenham por finalidade formar estruturas de controles, pode desvirtuar o ser humano da capacidade de decidir, corroborando o que se diz evidencia-se que “com a sua doutrina social, a Igreja não persegue fins de estruturação e organização da sociedade, mas de cobrança, orientação e formação das consciências” (CDSI 81).
É preciso enfatizar que o ser humano é o cocriador e administrador da criação de Deus. Todavia, há que se afirmar que Deus é Criador, e que o ser humano é filho de Deus, neste sentido é notório que “no Antigo Testamento, a palavra que aparece mais vezes depois da designação divina (YHWV, o ‘Senhor’) é ‘filho’ (ben), um termo que remete ao verbo hebraico que significa ‘construir’ (banah)” (AL 14). Cada filho/ben é a edificação da vida humana, que acontece mediante o arbítrio da vida e o livre-arbítrio da edificação da comunhão de vida e vivência das pessoas na criação de Deus.
O ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento devem ser-lhe reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e antes de tudo, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida. (DP 4).
Enfatiza-se que, entre a Graça e a Providência Divina, há o agir humano. O ser humano assume-se criatura capacitada a gerir os horizontes da criação e, nesse sentido, é preciso compreender, o tempo/espaço de forma passada, presente, expectiva e futura. Portanto, é preciso administrar a criação, segundo o mandado/chamado de Deus, de tal modo que se reconhece que a soberania pertence ao Criador, se é, então, cocriador criado,
O Senhor, todavia, ‘não quis reter para Si o exercício de todos os poderes. Confia a cada criatura as funções que esta é capaz de exercer, segundo as capacidades da própria natureza. Este modo de governo deve ser imitado na vida social’ (CDSI 383).
O humano é capaz de vivenciar, na cultura, os elementos já vividos, para que possibilitem, de forma comunitária, desenvolver sob nova ótica, as dimensões da pessoa. A capacidade de memória, presente e expectação contribuem, efetivamente, para o desenvolvimento da pessoa e, com isso, o desenvolvimento alicerça o futuro.
As dimensões de tempo/espaço significam para a vida humana, o desenvolvimento da criação de Deus, sua cocriação e administração, mediante o agir. A força da memória e a expectação humana tornam-se fonte e ação cocriadora, sobre a qual se administra a criação de Deus. A liberdade social e a unipluralidade de culturas, promovem um emaranhado de relações humanas; nota-se, então, a importância da palavra administrar (ad-minus). As pessoas se predispõem em alteridade com o outro, reconhecendo o dom da política e da sociabilidade, como elo de si e a atitude de ouvir.
Igualmente, “a criação precede-nos e deve ser recebida como um dom. Ao mesmo tempo somos chamados a guardar a nossa humanidade, e isto significa, antes de tudo, aceitá-la e respeitá-la como ela foi criada” (AL 56). Destarte, a possibilidade de desenvolvimento é implícita na existência humana, e nesse sentido, o Papa Bento XVI (2009) afirma que:
Também o desenvolvimento do homem e dos povos se coloca a uma tal altura, se considerarmos a dimensão espiritual que deve necessariamente conotar aquele para que possa ser autêntico. Este requer olhos novos e um coração novo, capaz de superar a visão materialista dos acontecimentos humanos e entrever no desenvolvimento um ‘mais além’ que a técnica não pode dar. (CV 77).
Responsabilidade e livre-arbítrio são basilares, e Deus criou o humano à sua imagem e semelhança, portanto, responsáveis, capazes de amar, e de doar-se, em parentalidade, à família humana. Não há como falar de livre-arbítrio se a responsabilidade não for implicitamente pensada, não há como falar de Reino de Deus, sem a esponsalidade com o Criador
É na criação que há o necessário para que, a partir dela, e diante da essência administrativa, a vida humana possa evoluir com os próprios recursos, em liberdade, responsabilidade, e esponsalidade, e isso se faz sobre um ambiente onde é possível gerar e educar os filhos. Sobre o embasamento de ser administradores e cocriadores do reino, é preciso pensar a estrutura socioeconômica e suas decorrências para com a vida humana, isso no sentido da economicidade, da sociabilidade, e da parentalidade.
F. A egolatria de quem não quer ouvir a palavra
A estruturação social – Estado – não pode tomar para si o direito, a decisão, tornando-se promotor e ao mesmo tempo um relativizador das desigualdades. Toda pessoa precisa ser capacitada a ouvir/sentir as necessidades, as possibilidades e os subsídios à disposição. Ouvir, não se associa a uma obediência cega, mas em pôr-se a refletir sobre os direcionamentos apresentados; não é colocar-se em submissão, porque “não é das leis humanas, mas da natureza, que dimana o direito da propriedade individual; a autoridade pública não a pode, portanto abolir: o mais que pode é moderar-lhe o uso e harmonizá-lo com o bem comum” (QA[11] II,1).
Aqui não se discute o direito à propriedade, mas se fomenta que o direito à herança das coisas pode originar desigualdades e promover o desequilíbrio entre a parentalidade e a vivência da família humana. Fomenta-se que a herança precisa estar dispersa, diante das atitudes que subsidiam as necessidades das pessoas que se envolveram para tornar algo possível.
É preciso vigor e subsidiariedade na aplicação dos subsídios, é preciso que os frutos, os lucros oriundos do trabalho humano, seja aplicado em vista ao bem comum, de modo que “nem ficam de todo ao arbítrio do homem os seus rendimentos livres, isto é, aqueles de que não precisa para sustentar a vida convenientemente e com decoro” (QA II,1). O lucro não deve aniquilar a esperança das pessoas, constituindo-se da exploração e acumulação predatória, todo resultado que tem como meio a degradação da dignidade da pessoa, se faz em contrariedade ao Reino, isso é, acontece sob a perspectiva da possessividade, do consumismo e do poder.
É desse lucro da exploração predatória, que surge a obsessão e a egolatria que transforma a criação em coisa a ser conquistada e possuída. Todavia há que se afirmar que “cultivar e guardar” (Gn 2,15) é, sim, empregar a riqueza e os bens, de forma digna e honrosa e, com isso, é possível afirmar, que o ser humano, quando faz investimentos que promovam o desenvolvimento participativo e compartilhado, está em esponsalidade com o Criador, porque,
Empregar grandes capitais disponíveis para oferecer em abundância trabalho lucrativo, com tanto que este se empregue em obras realmente úteis, não só não é vício ou imperfeição moral, mas até se deve julgar ato preclaro da virtude da magnificência muito em harmonia com as necessidades dos tempos (QA II,1).
Quando é dado ao não necessário, o valor absoluto, esse ocupa a dimensão de sociabilidade no individuo avarento e, por fim a dimensão familiar, restando- -lhe como opção o trabalho, não no sentido criativo, cocriador e administrador, mas no sentido de exploração e acumulação predatória.
Ao agir sob o desejo de exploração predatória da natureza, e nessa da própria vida humana, cada pessoa torna-se um obstáculo entre a Graça e a Providência divina e, com isso, “povos, raças e nações que se elevam a senhores do mundo não se tornam, com isso, de jeito nenhum, imagem, representantes de Deus ou Deus presente na terra, mas tornam-se, em todos os casos, em monstros” (MOLTMANN, 1993, p. 324).
Sob a perspectiva da egolatria é possível afirmar que ela “gera um sentimento de frustração ou desespero e predispõe para o desinteresse pela vida nacional, impelindo muitas pessoas para a emigração e favorecendo em todo o caso uma espécie de emigração ‘psicológica’” (SS[12] 15).
Na egolatria, é a imagem de si que se projeta sob as posses, e nisto é interessante perceber que “a proibição veterotestamentária de imagens protege também a dignidade da pessoa como a única imagem de Deus” (MOLTMANN, 1993, p. 319). Nesse sentido, objetiva-se um diálogo entre o ‘eu’ e ‘Deus’ sem o próximo, onde se coloca ‘Deus’ a serviço do ‘eu’, mediante a exploração predatória do ‘próximo’ e da criação.
A egolatria gera a individualização, o eleito, o escolhido e de — “futuro, serás maldito sobre a terra que abriu a sua boca para beber da tua mão o sangue do teu irmão” (EV 7). Quando se perde a perspectiva de Reino, perde-se o zelo pela criação, e tudo se torna opção de exploração predatória, em benefício de si mesmo e de sua parentalidade e, então, no,
Lugar da iniciativa criadora prevalece a passividade, a dependência e a submissão ao aparato burocrático que, como único órgão ‘disponente’ e ‘decisional’ — se não mesmo ‘possessor’ — da totalidade dos bens e dos meios de produção, faz com que todos fiquem numa posição de dependência quase absoluta, que é semelhante à tradicional dependência do operário-proletário do capitalismo. (SS 15).
O desinteresse pelo Reino inibe a possibilidade de vida e vivência humana. A egolatria resume o ser humano ao desordenamento do desejo por si mesmo ou no desejo das coisas que satisfazem o próprio ego, onde cada indivíduo passa a ser merecedor do fruto proibido.
É dever cuidar da vida, que é eterna, desde a concepção/epifania, “o evangelho lembra-nos também que os filhos não são uma propriedade da família, mas espera-os o seu caminho pessoal de vida” (AL 18). É preciso que a práxis de vida humana promova a esperança do reino de Deus, e com as atitudes de economicidade, de parentalidade e de sociabilidade, se evite que a terra devore os filhos.
Movimenta-se para os aspectos finais do artigo, lembrando que pensar a parentalidade é pensar a unidade primeira da humanidade, socialmente constituída e aberta para a família humana. Sob este prospecto é necessário zelar dos filhos desde a concepção até o último instante de nossas possibilidades é dever, não é a terra que devora os filhos, são as ações e atitudes egolátricas de cada pessoa que, mediante as estruturas de pecado, propulsam uma cultura de morte e negligência que corrompem a vida humana.
Suscita-se ainda que a parentalidade, a sociabilidade e a economicidade da pessoa devem constituir um dos núcleos básicos, sobre o qual se pensa a administração e cocriação da obra de Deus. Neste sentido, cada pessoa compreende o mistério de amor que envolve a própria vida, o mistério de amor sob o qual Deus concebe a vida humana, e a capacita a tornar-se plenamente responsável pela obra de Deus, momento no qual se compreende que “a interpretação correta do conceito de ser humano como senhor do universo é entendê-lo no sentido de administrador responsável” (LS 116).
Considerações
Anseia-se por aprender a ler o livro da criação e das criaturas, que se possa exercer o mandato/chamado humano de dominar/ler/conhecer e cultivar a terra, todo o húmus da Criação. Observa-se que, enquanto núcleo básico de narrativas, o ser humano deve ser apresentado como administrador e cocriador da obra de Deus, tomando por base as dimensões de vida e vivência humana de economicidade, de sociabilidade e de parentalidade.
Prospectam-se as bases que devem constituir a formação da consciência de pessoa e, pontua-se com altivez, que não se propõem sistemas de controles que compreendam o que deve ser a pessoa, mas o que deve constituir a base das decisões de cada pessoa. Toda pessoa é chamada à responsabilidade sobre os próprios atos, mas esses atos sempre se realizam sobre uma base preexistente. Implica dizer que a pessoa deve ser formada para que exerça as atitudes e, assim, possa realizar-se enquanto ser humano, sob as dimensões da vida e vivência humana.
As relações, de cada pessoa, com a vida humana devem se pautar com base nas dimensões de parentalidade, de economicidade e de sociabilidade. Isso possibilita que cada pessoa possa desenvolver-se segundo os próprios dons; essa é à base da obra de Deus, sobre a qual a vida humana se realiza por si mesma.
Nesse sentido, pontua-se que o ser humano é o administrador e cocriador da obra de Deus, que a pessoa deve ser respeitada e amada. Sob tais fundamentos, apresenta-se que a vida humana se dispõe à economicidade, à sociabilidade e à parentalidade, portanto, essas dimensões da pessoa devem orientar a formação de cada consciência humana.
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—
Notas
[1] JOÃO PAULO II. Evangelium vitae. 1995.
[2] FRANCISCO. Laudato Si’. 2015
[3] LEÃO XIII. Rerum Novarum. 1891.
[4] FRANCISCO. Amoris laetitia. 2016.
[5] JOÃO PAULO II. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 2004.
[6] JOÃO PAULO II. Evangelium vitae. 1995.
[7] BENTO XVI. Dignitas Personae. 2008.
[8] JOÃO PAULO II. Familiaris Consortio. 1981.
[9] BENTO XVI. Caritas In Veritate. 2009
[10] PAULO VI. Gaudium et Spes. 1965.
[11] PIO XI. Quadragesimo anno. 1931
[12] JOÃO PAULO II. Sollicitudo rei socialis. 1987.