A exegese de Jerônimo exemplificada no Comentário ao Profeta Oseias
Jerome's exegesis exemplified in the Commentary on the Prophet Hosea

Maria de Lurdes Correa Lima
Doutora em Teologia pela Pontificia Universidade Gregoriana de Roma (1997). Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professora do Instituto Superior de Teologia da Arquidiocese do Rio de Janeiro. 
Millima@puc-Rio.br


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Resumo: O presente trabalho detém-se sobre a análise do comentário de Jerônimo ao capítulo 11 de Oseias. Sua finalidade é identificar o procedimento exegético seguido, compreendendo-o em suas linhas estruturantes, em suas bases e seus corolários. Para tanto, situa o comentário a Oseias no conjunto da obra exegética do autor, apresenta sua estrutura e explana sua interpretação do texto em análise. Por fim, sistematiza os principais dados recolhidos da análise feita.

Palavras-chave: Exegese patrística; Sentido literal e espiritual; Tipologia

Abstract: This paper focuses on the analysis of Jerome's commentary on chapter 11 of Hosea. It intends to identify the applied exegetical procedure, understanding it in its structuring lines, its bases, and corollaries. To do so, it places the commentary on Hosea in the body of the author's exegetical work, presents its structure, and explains its interpretation of that text under analysis. Finally, it systematizes the main data collected from the analysis performed.

Keywords: Patristic exegesis; Literal and spiritual sense; Typology

Introdução

A imensa obra de Jerônimo conta com comentários a todos os livros proféticos. Iniciando-se com os chamados “profetas menores”, concluiu-se com o comentário a Jeremias, que, devido às condições pessoais do autor, não pôde ser concluído. O comentário a Oseias, por ter sido formulado, junto com Joel e Amós, na sua última fase de produção antes dos comentários aos grandes profetas, ocupa uma posição ponte entre as primeiras obras exegéticas sobre a profecia e aquelas que se seguirão, particularmente em relação ao grande comentário a Isaías.

Tratando-se de uma obra da maturidade de nosso autor, a análise de seu proceder exegético, ponto focal do presente estudo, permite deslindar a visão de conjunto da metodologia do exegeta. Em vista de sua compreensão, será tomado como exemplo o comentário a Os 11, texto particularmente significativo sob diversos títulos. Não só por nele se apresentarem, numa realização concreta, todas as nuances de sua maneira de proceder, mas também porque em sua exposição se encontra uma importante formulação do princípio que, para Jerônimo, rege a interpretação espiritual.

Para uma mais adequada compreensão de seu trabalho, num momento inicial será localizado o Comentário a Oseias no conjunto de seus comentários aos profetas e de sua trajetória de exegeta, e apresentada sinteticamente a estrutura do mesmo. Após a explanação do conteúdo do comentário, que seguirá a ordem e a segmentação das unidades conforme distinguidas por Jerônimo, serão tematizadas as principais características da exegese tal como se espelha na perícope estudada.

Com estes enfoques, o presente estudo, limitando-se à análise de um capítulo, embora representativo, do profeta, não pretende esgotar todos os aspectos da exegese de nosso autor, mesmo que se possa supor que ali estão postas em prática as coordenadas fundamentais de seu proceder metodológico. Por outro lado, também não se dedica a analisar aspectos próprios de crítica textual, no sentido de verificar os tipos de texto de que Jerônimo dispôs e o gênero de opção textual que teria seguido. Tais questões serão tocadas somente na medida em que são mencionadas no comentário ou em que são significativas para a compreensão de seu raciocínio e sua interpretação.

O Comentário de Jerônimo a Oseias

Os comentários aos profetas 

Jerônimo desenvolveu sistematicamente comentários aos livros proféticos e o fez não seguindo a ordem canônica, mas considerando, provavelmente, o tamanho e a dificuldade dos mesmos. Entre os anos 370 e 378, escreve o comentário a Abdias, depois refeito em 396. Porém, foi somente a partir de 392/393 que empreendeu metodicamente a explanação sobre os profetas, tratando Naum, Miqueias, Habacuc, Sofonias e Ageu, nesta ordem, mas também expondo a visão inaugural de Isaías (cf. Is 6,1-9)[1]. Em 396, tem lugar a explanação sobre Jonas, o comentário a Abdias é remodelado e é desenvolvida a interpretação de textos de Isaías[2]. Uma década mais tarde, no final do ano de 406, reiniciou o trabalho com o comentário aos profetas Zacarias, Malaquias, Oseias, Joel e Amós; em 407, trabalhou o livro de Daniel. Nos três anos que se seguiram, escreveu o grande comentário a Isaías (entre 408 e 410), a seguir o comentário a Ezequiel (de 411 a 414) e, por fim, Jeremias (415-419), que ficou interrompido. Os últimos anos de sua vida são, assim, os mais produtivos quanto aos escritos sobre os profetas.

Excetuando-se a primeira formulação do comentário a Abdias, os pequenos profetas foram redigidos, portanto, em três momentos: em 392/393, 396 e 406. Vieram à luz não só atendendo à extensão dos livros, mas também, a partir de notícias que se podem depreender de outros escritos, a pedidos de pessoas de sua relação.

A última fase da redação dos pequenos profetas é mencionada no início do Prólogo ao livro III de Amós, no qual Jerônimo explica que primeiro redigiu Zacarias e Malaquias e, num momento posterior não muito distante, Oseias, Joel e Amós[3]. Esses cinco comentários são datados da chegada do diácono Sisinnius até sua partida, ou seja, do outono de 406 até o fim do mesmo ano. A realização de tão grande obra em tão pouco tempo foi provavelmente preparada por estudos e anotações anteriores.

Os comentários de Zacarias e Malaquias formam um par, seja pela sequência canônica seja pelo fato de serem dedicados aos fiéis de Toulouse. De fato, através do diácono Sisinnius, chega a Jerônimo uma ajuda financeira do Bispo de Toulouse além de várias cartas de fiéis da região. O mesmo diácono será encarregado de levar os comentários a seus destinatários. Em vista de sua breve estada junto a Jerônimo, os dois comentários foram feitos com presteza. O comentário a Zacarias foi dividido, provavelmente pelo seu volume, em três livros; o de Malaquias é desenvolvido em um só livro. Nesta obra, Jerônimo critica Orígenes por não ter valorizado a história, o que marca seu afastamento do método origeniano[4].

Os comentários a Oseias, Joel e Amós são dedicados a Pammachius, nobre romano. Pertencente ao círculo de amizade de Jerônimo, não só entretinha com ele correspondência, mas também apoiara a elaboração dos comentários. Defendeu Jerônimo na controvérsia com Orígenes e com Rufino[5]. Seu interesse pelos profetas o levou a solicitar a Jerônimo especificamente uma explicação sobre Oseias. Sendo genro de Paula, o trabalho de Jerônimo poderia ser considerado também um preito à sua discípula, que morrera no início de 404[6].

Cada uma destas três obras traz aspectos peculiares. O comentário a Oseias apresenta, como característica geral, de um lado uma exegese espiritual e, de outro, um forte caráter polêmico em vista das acusações de Rufino[7]. O comentário a Joel une a interpretação espiritual à histórica e põe em relevo sobretudo os aspectos messiânicos e espirituais do livro. Amós, ao contrário, é marcado por uma interpretação literalista e histórica.

Com isso, esses três trabalhos, mesmo sem eliminar uma leitura espiritual dos textos, deixam entrever os caminhos da exegese de Jerônimo após a ruptura com a exegese origeniana, sobretudo pela valorização do sentido histórico.

Datação do comentário a Oseias

A questão da datação exata do comentário a Oseias é levantada pela observação presente no Prólogo ao Livro I, no qual Jerônimo menciona sua estada em Alexandria ocorrida “cerca” de vinte e dois anos antes da confecção da obra: “ante anos circiter viginti duos”. O exegeta esteve em Alexandria na primavera de 386, o que levaria o comentário a Oseias, segundo o cômputo hodierno, para o ano 408. Porém, provavelmente a contagem seguida foi a latina, que incluía já o primeiro ano no cômputo final, de modo que, entre 386 e 406 haveria 21 anos. Mesmo assim, não se chega aos vinte e dois anos mencionados.

De outro lado[8], é sabido que os prólogos são escritos após a obra completa, após a sua divisão em livros. Tal divisão era feita, ao final da elaboração do conjunto, segundo o critério de volume de texto, uma vez que só após a finalização de todo o trabalho os amanuenses poderiam conhecer sua real dimensão. Assim sendo, entre a conclusão do comentário, sua revisão e divisão em livros e, por fim, a elaboração do prólogo há uma diferença temporal.

Embora o prólogo do Livro III do comentário a Amós testemunhe ter sido este livro totalmente concluído em 406 (e este foi elaborado após o comentário a Oseias e Joel), não é impossível que o prólogo ao livro I do comentário a Oseias tenha sido redigido posteriormente. Sendo o mais longo e detalhado, se comparado com os prólogos de outros comentários proféticos, poderia ter sido escrito um pouco mais tarde, no início do ano 407, o que corresponderia à indicação de vinte e dois anos a contar da estada em Alexandria e explicaria a maneira aproximativa de falar: “cerca de”. Essa hipótese é corroborada pelo fato de o comentário ser enviado a Pammachius, que estava em Roma. Pelas más condições de navegação no inverno, seria plausível que se esperasse o aparecimento de condições favoráveis, no início da primavera de 407. Desse modo, quando Pammachius recebe o comentário, se terão passado, de fato, vinte e dois anos da estada de Jerônimo em Alexandria. Seria confirmada, assim, a datação do comentário a Oseias no final do ano 406.

Estrutura do comentário a Oseias e divisão do texto[9]

Dos doze profetas menores, se incluídos os prólogos, o comentário a Oseias é o mais longo[10]. Certamente Oseias é, dentre os doze profetas, um dos maiores livros em volume. No entanto, pode-se observar que nem sempre a dimensão do comentário de Jerônimo concorda com o volume textual dos livros, de modo que a largueza deste comentário poderia ser devida também ao fato de, nele, Jerônimo utilizar vários autores.

Na divisão do texto bíblico, não havia, na época de nosso autor, a atual numeração dos capítulos. Algumas divisões já existiam para o texto hebraico, para a Setenta e a Vetus Latina, porém sem que houvesse uma uniformização. A observação do trabalho de Jerônimo parece indicar que ele não seguiu uniformemente uma divisão já existente, e a divisão do comentário a Oseias em três partes parece se dever não a uma divisão de capítulos do livro mas ao princípio do volume, de modo a formar três partes mais ou menos equilibradas quanto à extensão. Além disso, provavelmente essa divisão foi realizada ao final da obra, depois de sua conclusão e correção. Por isso, enquanto o início do Livro II se dá no que hoje é o princípio do capítulo 8, o início do Livro III se dá no que hoje é Os 10,5, quebrando, assim, o capítulo como atualmente se apresenta.

Outro aspecto que chama a atenção é a divisão do texto bíblico em pequenas unidades de sentido. Enquanto para outros livros o comentário ao texto bíblico é feito sobre unidades mais extensas, para Oseias o comentário, normalmente, segue unidades menores. Contando com 198 versículos, o texto de Oseias é dividido, no comentário de Jerônimo, em 116 unidades, o que daria uma média de 1,5 versículo comentado por vez. O livro de Zacarias, com 211 versículos, é dividido em 91 unidades (cerca de 2-2,5 versículos, em média) e o de Amós, com 147 versículos, é fracionado em 64 unidades (também cerca de 2-2,5 versículos em média). Ou seja, o exegeta sentiu a necessidade de, em Oseias, comentar trechos menores, o que faz pressupor que observasse a necessidade de explicações mais minuciosas e atribuísse às palavras deste livro bíblico grande relevância.

A compreensão de Os 11,1-11

O texto do capítulo 11 é dividido, no Comentário a Oseias, em cinco partes. Como no restante do Comentário, em cada uma delas é primeiramente apresentada a tradução latina do texto hebraico, seguida da tradução latina da Setenta e, então, do comentário ao texto.

Os 11,1-2

A unidade textual de Os 11,1-2 é unida à última parte do que hoje se encontra em 10,15[11]:

Texto hebraico: Sicut mane transit, pertransiit rex Israel, quia puer Israel et dilexi eum, et ex Ægypto uocaui filium meum; uocauerunt eos, sic abierunt a facie eorum. Baalim immolabant et simulacris sacrificabant.

LXX: Mane proiecti sunt, proiectus est rex Israel, quia paruulus Israel, et ego dilexi eum, et ex Ægypto uocaui filios suos. sicut uocaui eos, ita abierunt a facie mea ipsi. Baalim immolabant et sculptilibus adolebant incensum.

A conexão de 11,1 com o final de 10,15, na mesma direção da Vetus Latina Ítala[12], corrobora que esta fosse a compreensão majoritária na época.

Enquanto na grande maioria dos manuscritos hebraicos medievais Os 10,15 anuncia o fim do rei de Israel “de manhã” (בשׁחר), o que é confirmado pela tradução grega (ὄρθρου), traduzida corretamente por Jerônimo, assim como pela Vetus Latina (“mane”), a Vulgata e a tradução do Comentário trazem uma comparação: “sicut mane”[13]. Na explicação do v. 15, Jerônimo evoca 10,7, que, com uma comparação, traz a mesma ideia do fim do rei. Comentando a indicação temporal, Jerônimo identifica um de seus principais sentidos – o do rápido desaparecimento da monarquia –, sentido que se depreende tanto quando se lê comparativamente (“como a aurora”) quanto quando se lê temporalmente (“na aurora”)[14]. O fato de não ser mencionada a diferença entre suas traduções do hebraico e do grego confirma possivelmente que a tradução de Jerônimo do hebraico se devesse mais a uma interpretação do que a uma variante textual[15]. A argumentação de Jerônimo é que a aurora, sendo transição entre a noite e o dia, passa rapidamente[16]. A preocupação com o sentido histórico do texto transparece na especificação do “rei de Israel” como rei “das dez tribos”.

A ligação de 11,1 com o final de 10,15 se dá a partir da compreensão da partícula כי em sentido explicativo, conforme a Setenta (διότι) e a Vetus Latina, e confere aos atuais vv. 1-2 um sentido diferente daquele presente no texto massorético. Pois se conecta o rápido desaparecimento da monarquia ao abandono do amor do Senhor e à idolatria.

O v. 2, que textualmente oferece grandes dificuldades, é lido por Jerônimo – se consideramos os manuscritos hebraicos medievais – seguindo estritamente o texto hebraico. O verbo “chamar” (קרא), flexionado no plural, é referido a Moisés e Aarão, instrumentos de Deus para tirar o povo do Egito. Interpretado nessa linha, o versículo expressaria a recusa do povo de Israel de ouvi-los. As ações de sacrificar aos baals e aos ídolos[17] é explicada como uma visão de conjunto que o profeta teria acerca tanto dos tempos antigos como dos recentes. A atenção histórica de Jerônimo retorna aqui ao justificar sua interpretação pelo fato que a adoração a baal teria aparecido na Bíblia na época de Acab, com a introdução em Israel, por Jezabel, de ídolos, que, segundo os dados de que dispunha nosso autor, seriam “dos babilônios e fenícios”. Já na época do deserto houvera o culto a Baal-Peor, mas foi ao se estabelecer na terra que o povo se teria submetido totalmente a “Baal, Astartes e outros ídolos”.

Passa-se então à interpretação simbólica: estes infiéis ou rebeldes do povo são “os heréticos e seu rei, o diabo ou o heresiarca”. Deus os amou no início, chamou-os pelos apóstolos e doutores cristãos, mas eles se afastaram e adoraram seus ídolos: seus pensamentos errôneos.

Neste ponto, para contestar o posicionamento de Juliano Augusto, Jerônimo comenta a diferença entre o hebraico e a leitura da Setenta: enquanto o hebraico diz “do Egito chamei meu filho” (de Deus), a Setenta traz “do Egito chamei seus filhos” (de Israel e no plural). Recorre a Mt 2,15, visto que este fora utilizado por opositores de sua tradução. A argumentação de Jerônimo é feita a partir de dados testemunhais. Mateus teria usado o texto “segundo a verdade hebraica” (“iuxta hebraicam veritatem”) e, ao relacioná-lo a Jesus Cristo, não teria traído a letra e o sentido do texto hebraico. Isso seria garantido porque não há testemunhos do texto hebraico que fossem em outra linha. Desse modo, diferente do que diz Juliano Augusto em sua acusação, Mateus, ao aplicar a passagem a Jesus, não estaria forjando um texto com a finalidade de excluir os pagãos. Pois, continua Jerônimo, como Mateus escreveu seu evangelho em hebraico, só poderia ter consultado fontes hebraicas. Ao aplicá-las a Cristo, portanto, não estaria procurando ir contra os que provinham do paganismo.

Nesse ponto, Jerônimo expressa o princípio que rege seu pensamento: “quod ea quae τυπικῶς praecedunt in aliis, iuxta ueritatem et adimpletionem referantur ad Christum”. Em outras palavras, no Antigo Testamento está o “tipo”, o qual se realiza plenamente no Novo Testamento, na referência a Cristo. Jerônimo argumenta em favor de seu princípio citando o procedimento de Paulo na carta aos Gálatas, com referência ao Sinai e a Sião, a Sara e Agar. Não se trata, para nosso exegeta, de negar a realidade mencionada, mas de lê-la em referência ao Novo Testamento: “haec apostolus Paulus ad duo rettulit testamenta”. No Novo Testamento, por conseguinte, a passagem de Os 11,1 chegou ao seu sentido completo: “perfecte refertur ad Christum”. Como na argumentação de Paulo as realidades do Antigo Testamento existiram realmente, assim também a palavra de Oseias aponta para um dado real – o amor de Deus por Israel, a saída do Egito e a idolatria do povo – mas também para um sentido “perfeito” em relação a Cristo.

Jerônimo aporta então o exemplo de Isaac como “tipo” de Cristo e Lia e Raquel como referentes à sinagoga e à Igreja. Conclui: “Typos enim partem indicat, quod si totum praecedat in typo, iam non est typus, sed historiae veritas appellanda est”. Ou seja, se no Antigo Testamento já temos o sentido completo de algo, então não se trata de tipo, mas de “verdade histórica”; mas se não se encontra no Antigo Testamento a realidade inteira, perfeitamente realizada, e esta retorna no Novo Testamento, então se pode falar de “tipo”. Em outras palavras, o “tipo” não tem em si a totalidade de sentido, mas sim apresenta um sentido parcial, que será completado na revelação neotestamentária.

Os 11,3-4

Texto hebraico: Et ego quasi nutritius Ephraim, portabam eos in bracchiis meis, et nescierunt quod curarem eos. In funiculis Adam traham eos, in uinculis caritatis. Et ero eis quasi exaltans iugum super maxillas eorum et declinaui ad eum ut uesceretur.

LXX: Et ego colligaui Ephraim, suscepi eum super brachium meum; et non cognouerunt ut sanarem illos in corruptione hominum; extendi eos in uinculis caritatis meae. Et ero illis, quasi dans alapas homo super maxillas eius; et respiciam ad eum praeualens ei.

O comentário a esses versículos toma impulso da comparação entre o texto hebraico e o grego, que apresentam muitas diferenças entre si. Jerônimo distingue aqui o sentido histórico, depreendido do hebraico (“iuxta Hebræos historiam”), e o sentido espiritual, proveniente do grego (“iuxta LXX ἀναγωγήν texere”)[18].

Jerônimo explica primeiro o sentido “histórico”. Retomando o amor mencionado no v. 1, o texto fala da relação de Deus com Israel como a de um pai para com seu filho pequeno. Para isso, Jerônimo evoca Dt 1,31; 32,11. A leitura é feita a partir das narrativas da peregrinação no deserto encontradas sobretudo nos livros do Êxodo e Números, ou seja, considerando o sentido da passagem dentro da perspectiva hebraica. A imagem do pai que nutre o filho e o carrega nos braços exprime a condução de Israel no deserto, quando o Senhor o protegeu com a nuvem e a coluna de fogo. Tal conduta expressava sua afeição em virtude de seu amor a Abraão, Isaac e Jacó. Porém, Israel se entregou à idolatria. Com a idolatria do bezerro de ouro (cf. Ex 32), Deus exigiu deles penitência. Mesmo assim, em todo o caminho do deserto, o povo não reconheceu que era Deus quem dele cuidava e que, em seu agir, procurava curá-lo da idolatria.

A exposição segundo a verdade hebraica continua através da consideração de outros momentos dos vv. 3-4. O primeiro diz respeito à tradução de אדם como “Adão”: “com laços de Adão” (“in funiculis Adam”), segundo a tradução do hebraico; a tradução latina do texto da Setenta traz “em meio à corrupção dos homens” (“in corruptione hominum”), que – explica Jerônimo –, assim como Áquila, Símaco e Teodocião, compreendeu o termo hebraico em relação à humanidade toda. Também a segmentação da frase, segundo a tradução de Jerônimo, varia entre o texto hebraico e o grego. O grego, unindo “in corruptione hominum” ao que precede, entende que o povo de Israel, estando em meio à corrupção dos homens, não reconheceu que Deus queria curá-lo. A tradução do hebraico, separando as frases, coloca a expressão “com laços de Adão” em paralelismo com o que segue: “com vínculos de amor”.

O segundo se refere ao que segue: “e (eu) era para eles como quem levanta o jugo de sobre as suas faces [deles]”, que, na tradução da Setenta aparece como: “e (eu) era estes como o homem que bate em suas faces [dele]”. Nesse ponto, Jerônimo menciona a versão de Símaco, mas comenta somente sua própria tradução do hebraico, para o que expõe duas possibilidades de compreensão: tirar deles o jugo das nações ou então da Lei, que eles consideraram como pesado jugo.

O terceiro ponto concerne à frase seguinte: “e descia até ele para [o] alimentar”, que seria uma referência ao maná dado como alimento no deserto. No comentário, comparando essa versão com a de Símaco, que traz “e eu desci [fiz descer] até ele alimentos”, Jerônimo justifica a opção desta versão grega pelo fato que não foi Deus quem desceu, mas sim o alimento do maná.

Passa então a parafrasear o texto, pondo em relevo sua mensagem espiritual: como um pastor, Deus tomou Israel em seus ombros, atraindo-o com laços de amor, como está em Jo 6,44: só pode ir ao Pai quem é por Ele atraído. Porém, Israel recusou este jugo e por isso Deus veio ao mundo em forma humana e deu seu corpo como alimento e banquete.

Depois da análise do texto hebraico, Jerônimo passa à do texto da Setenta, lido, como tinha anunciado ao iniciar o comentário desses versículos, em sentido espiritual. A Setenta confere aos vv. 3-4 um sentido em muitos pontos diferente daquele do hebraico. Porque os israelitas se afastaram, seguindo os ídolos (v. 2), Deus teria atado seus pés, para que não se afastassem ainda mais. Jerônimo explica a tradução da Setenta a partir da forma verbal grega aí usada (συνεπόδισα), que, na sua raiz, refere-se aos “pés”. Da análise terminológica passa, então, a desenvolver o sentido simbólico. Deus os atou através da palavra da Escritura e pelo ensinamento dos mestres da Igreja. Dessa maneira, Deus os tinha em seus braços, embora não entendessem que isso era o modo de salvá-los. Ele os atou com seu amor, porque estavam na infidelidade, levados por enganosos ensinamentos. Como não quiseram seguir o Senhor, e para levá-los à conversão, Deus os golpeou nas faces[19]. Transferindo o texto para o contexto da comunidade cristã, Jerônimo explica que Deus pune os cristãos por ameaças, pelo Evangelho e pelos profetas. Bate em suas faces para que saia de suas bocas o alimento que receberam dos heréticos, e então se voltem para o Senhor e recebam o alimento saudável e delicioso. Os heréticos, em contrapartida, serão dominados por Deus.

Os 11,5-7

Texto hebraico: Non reuertetur in terram Ægypti et Assur ipse rex eius, quoniam noluerunt conuerti. Coepit gladius in ciuitatibus eius et consumet electos eius; et comedet capita eorum et populus meus pendebit ad reditum meum. Iugum autem imponetur eis simul, quod non auferetur.

LXX: Habitabit Ephraim in Ægypto, et Assur ipse rex eius, quia noluit conuerti. Et infirmatus est gladius in ciuitatibus eius, et requieuit in manibus illius, et comedent de cogitationibus suis; et populus eius suspensus est ex incolatu suo, et Deus super pretiosa eius irascetur, et non exaltabit eum.

Uma vez consideradas as diferenças entre o texto hebraico e grego, Jerônimo inicia o comentário explanando o sentido de um e outro. Segundo o hebraico, se os israelitas não retornarão ao Egito, isso levaria a supor, implicitamente, que desejavam ir para lá. Esse pensamento Jerônimo tira provavelmente de seu conhecimento das passagens do livro que mencionam o pedido de auxílio ao Egito (cf. Os 7,11; 12,1). Porém, continua Jerônimo, os assírios os dominarão, pois os israelitas não se converteram. Os israelitas retornaram ao Egito na medida em que adoraram ídolos egípcios na terra prometida, ou então no sentido acima aludido de Os 7,11.

Tal leitura do v. 5 dá a impressão de partir da frase hebraica, lendo a partícula לא no sentido de negação. Entretanto, parece igualmente conjugar o sentido da frase hebraica com o da Setenta, segundo o qual tal partícula é entendida, pela semelhança fonética, como preposição + sufixo pronominal (לוֹ) e unida ao último verbo do v. 4 (“praeualens ei”)[20]

Ao iniciar a exposição do v. 6, Jerônimo observa a dificuldade da forma חלה, da raiz חול, traduzida por “coepit”, com a ideia de começar a agir. Áquila traduz por “irromper” e Símaco por “causar feridas”. O sentido da frase, no entanto, é claro para o Autor: a punição penetrará mesmo nas cidades e atingirá as elites, os poderosos, os chefes, aqueles que são visados com בדיו. Jerônimo, todavia, mencionando Símaco, observa que se poderia traduzir esta forma também como “seus braços”[21].

A lição da Setenta não é referida nem comentada de imediato, mas o será após a explicação do texto hebraico. Possivelmente porque seu texto difere em muitos pontos do hebraico, afastando-se bastante das outras traduções gregas e da análise morfológica da forma verbal aceita por Jerônimo[22]. Mas também porque lhe será dado mais espaço após a explanação do significado do texto hebraico.

Diante da dificuldade da forma מעצותיהם, Jerônimo, que a traduz por “capita eorum”, observa que, contudo, poderia significar “consilia eorum”, com o significado dos planos políticos dos líderes israelitas. A ideia central, numa e noutra acepção, é que não haverá nenhum apoio para Israel.

Na primeira linha do v. 7, Jerônimo interpreta a forma משובתי como o retorno de Deus. O povo que não retornou a Deus desejaria que Deus “retornasse”. As duas frases seguintes são lidas de modo diverso daquele expresso na tradição massorética[23]. As consoantes על são lidas em relação a “jugo” (עֹל), termo que já ocorrera no v. 4, e não como “alto” (עַל), como está no texto leningradense. O jugo que não seria tirado (“jugum autem imponetur eis simul, quod non auferetur”) seria imposto por Deus e significaria a dominação assíria, o assassinato do rei e dos chefes. É o sentido histórico da passagem (“iuxta litteram”). Este jugo será tirado somente em Cristo: “spiritaliter tollatur in Christo”. Os dois sentidos coexistem, para Jerônimo, no texto.

A seguir, passa-se a expor o sentido da Setenta. Nela, o v. 5 é lido como afirmação, e por isso é explicado por Jerônimo com a ideia de que Efraim habitou o Egito mesmo estando na terra e participando da Igreja (“terram sanctam habere se dicens, et Ecclesiam Domini saluatoris”), pois ficou preso aos pecados e foi infiel. Por isso será subjugado pela Assíria: porque se recusou a voltar à Igreja, continuando sob o domínio da sua própria fraqueza, de seus pecados e do demônio. Perdeu a força, pois é Cristo a força e a sabedoria de Deus (parafraseando 1Cor 1,24).

Desenvolvendo o sentido moralizante do texto para os cristãos de sua época, Jerônimo compreende a espada que fere os infiéis como a compreensão espiritual e a palavra da Igreja (“scientia spiritalis uel sermo Ecclesiastici uiri”), que luta contra as cidades dos infiéis e os deixa incapazes de reagir. Devido a seus planos, estes receberão sua punição. Sofrerão o cativeiro e desejarão retornar à sua terra, mas não saberão o que fazer. Isso ocorre porque a ira de Deus se volta contra aqueles que amava, mas que não se converteram. Ficarão, assim, sem salvação. O sentido do texto da Setenta, sublinha Jerônimo na conclusão de sua explanação, pode também ser aplicado ao texto hebraico.

Observa-se que a explanação da Setenta neste versículo é feita de modo diverso da explicação do texto hebraico, pois nela se sobrepõe de imediato o sentido espiritual ao literal.

Os 11,8-9

Texto hebraico: Quomodo dabo te, Ephraim, protegam te, Israel? Quomodo dabo te sicut Adama, ponam te ut Seboim? Conuersum est in me cor meum, pariter conturbata est paenitudo mea. Non faciam     furorem irae meae, non conuertar, ut disperdam Ephraim quoniam Deus ego sum et non homo; in medio tui sanctus et non ingrediar ciuitatem

LXX: Quid tibi faciam, Ephraim, protegam te, Israel? Quid faciam tibi? Sicut Adama ponam te et sicut Seboim; conuersum est cor meum in ipso; simul conturbata est paenitudo mea. Non faciam iuxta iram furoris mei. Non derelinquam ut deleatur Ephraim quia Deus ego sum, et non homo; in te sanctus et non ingrediar ciuitatem.

O comentário se inicia com a discussão do sentido do verbo מגן, presente na forma אמגנך. Observa que sua tradução do hebraico concorda com o sentido do verbo usado na Setenta (ὑπερασπίζω) e com Áquila (ὅπλῳ κυκλώσω σε: “circundar-te-ei com um escudo”; “scuto circumdabo te”), que trazem a ideia de proteção. Com isso, rejeita a versão de Símaco (ἐκδώσω σε: “entregar-te-ei”) e Teodocião (ἀφοπλίσω σε); esta última tem o sentido de aniquilar, retirando o escudo. Isto porque Jerônimo compreende o versículo, no contexto, como uma palavra positiva para Israel e não como ameaça.

Para nosso autor, com efeito, após as duras sentenças dos versículos anteriores (vv. 5-6) e em virtude da perspectiva que se segue, de destruir o povo tal como Adma e Seboim, Deus fala agora a partir de seu afeto de pai, arrepende-se de destruir seu povo e dá lugar à misericórdia: “paenituit me meum quondam populum delere in perpetuum”. Por isso rejeita sua própria cólera, pois não pune para aniquilar, mas para corrigir e levar à conversão: “non enim percutio ut perdam in perpetuum, sed ut emendem”. É nisso que Deus difere do homem (v. 9), que pune para arruinar.

Por fim, Jerônimo liga a menção da santidade de Deus à indicação de que ele não entrará numa cidade. Deus não entra porque não mora numa cidade, não pertence ao mundo humano e não segue a justiça vindicativa deste último. A justiça divina é em vista da salvação dos que aceitam sua correção: “mea autem lex meaque iustitia est saluare correctos”. Lembra, então, o episódio de Caim, que foi o primeiro construtor de uma cidade (cf. Gn 4,17). As perguntas iniciais do v. 8, portanto, colocam a questão de como Deus deve tratar Israel. 

A partir desse momento, para mais bem compreender o versículo, Jerônimo alarga o tema, evocando textos que mencionam Sodoma e Gomorra. Pouco antes já recorrera a Gn 14,8 para situar Adma e Seboim, citadas junto àquelas duas localidades. Agora refere Is 1,10, que aproxima os chefes e o povo pecador da culpabilidade dessas duas cidades, e então passa à palavra de Jesus, segundo a qual a cidade que não recebe os apóstolos terá sorte pior que Sodoma e Gomorra (cf. Mt 10,15). Por fim, lembra Ez 16, que apresenta Sodoma e Gomorra mais justas do que Israel.

Conclui desta análise que Sodoma e Gomorra são as que têm primazia na culpa e que Adma e Seboim seguiram seu exemplo. A aplicação moralizante do texto é feita então a partir da junção do sentido do texto de Oseias, no contexto de algumas passagens do Antigo Testamento, com concepções do Novo Testamento. Evocando Lc 12,47-48, aplica aos hereges a imagem de Sodoma e Gomorra e ao povo a de Adma e Seboim. Assim como o servo que conhece a vontade do senhor e não a realiza será mais severamente castigado do que aquele que não a conhece, assim também os fiéis cristãos que seguirem os heréticos não serão punidos como Adma e Seboim – que são pequenas aldeias –, mas participarão da punição mais dura dos chefes, como Sodoma e Gomorra.

Em outras palavras, Jerônimo enfatiza que o texto fala aos heréticos e a seus seguidores, que, se não se converterem, não terão a salvação. Contudo, ao mesmo tempo, a passagem de Oseias reitera a misericórdia divina: Deus se arrepende e convida à conversão, dizendo que sua ira não se manifestará. Porque Ele é “Deus e não homem” e porque, sendo santo, não partilhará a “cidade” dos heréticos, mas os acolherá se eles de lá saírem.

O comentário é finalizado com a menção da compreensão do que se segue na Setenta: “caminharei atrás do Senhor”[24]. Para alguns, teria o sentido de conversão: como Deus mudou seu desígnio punitivo e não virá a uma cidade para destruí-la, assim o povo não entrará nas localidades dos pecadores, mas seguirá o Senhor. A interpretação dos judeus, assinala Jerônimo, é, todavia, diversa desta versão e se concentra na pessoa de Deus, que não entraria numa cidade porque não abandonará o povo, indo em busca de outros povos (outras cidades).

Os 11,10-11

Texto hebraico: Post Dominum ambulabunt, quasi leo rugiet, quia ipse rugiet; et formidabunt filii maris et uolabunt quasi aues ex Ægypto, et quasi columba de terra Assyriorum; et collocabo eos in domibus suis, dicit Dominus.

LXX: Post Dominum ambulabo, sicut leo rugiet, quia ipse rugiet; et formidabunt filii aquarum et uolabunt quasi auis ex Ægypto, et quasi columba de terra Assyriorum; et collocabo eos in domibus suis, dicit Dominus.

Em termos de tradução latina, chama a atenção particularmente o fato de Jerônimo ter traduzido o mesmo verbo חרד, que ocorre duas vezes (uma em cada versículo), com termos diversos (respectivamente “formidabunt” e “uolabunt”), em contraposição à Setenta, que traduz pelo mesmo verbo (ἐξίστημι). Trata-se, provavelmente, de uma tradução interpretativa na segunda ocorrência, em que o verbo se refere a aves.

Jerônimo compreende a passagem com referência à conversão do povo, que teria lugar a partir da misericórdia manifestada por Deus. Lembra o texto de Am 1,2, onde também é usada a imagem de Deus como leão que ruge. No contexto de Oseias, o rugir se referiria às palavras pronunciadas no v. 8, que, com a menção de Adma e Seboim, previne o povo acerca da possibilidade de juízo, produzindo, assim, temor.

Tal reação terá como efeito o retorno dos “filhos”, compreendidos, a partir da leitura de מים בנים, como “filhos do mar”[25]. Nesse ponto, é comentada e explicada a tradução da Setenta, que supõe as mesmas consoantes do texto hebraico, lidas, porém, com outra vocalização (“filhos das águas”: מַיִם בָּנִים e não מִיָּם  בָּנִים). Para Jerônimo, apesar da diferença, tanto o hebraico como o grego têm sentido equivalente (“filios autem maris, siue aquarum”).

O comentário progride apresentando o teor do texto. O versículo é entendido pelos judeus com referência ao futuro messias, o que corresponderia, para os cristãos, ao messias que já veio, Jesus. Isso porque entre os cristãos se congregam povos não só do oriente (Assíria) e do ocidente (Egito), mas também do norte e do sul.

Os filhos vêm do mar / das águas, ou seja, deste mundo, retornarão para sua morada, a qual, no dizer do Evangelho, corresponde ao recolhimento dos grãos no celeiro e à sua separação da palha (cf. Mt 3,12; Lc 3,17). E, como ao rugido de um leão os outros animais estremecem, assim, à voz do Senhor, os inimigos de Deus, “falsos leões” (cf. 1Pd 5,8), se calarão, sem poderem continuar a ensinar o erro. Deus salvará os que a eles aderiram e então estes seguirão o Senhor. Evocando o Sl 55,7, Jerônimo continua sua leitura em oposição aos heréticos, explanando que os que se convertem virão como pássaros que voam e encontrarão seu lugar na Igreja (a sua “casa”, v. 11). Deixarão a “tristeza” e o “tormento” (“tribulationem ... angustiam”), significado do nome “Egito”, e “os acusadores” (“arguentes”), significado do nome “Assíria”, segundo Jerônimo. Para os heréticos, ficará somente uma casa vazia (“relinquetur ... domus ... deserta”).

Visão de conjunto

Serão aqui agrupadas, por afinidade, as principais características do procedimento exegético de Jerônimo no Comentário a Os 11,1-11:

  1. O comentário a Oseias apresenta o texto bíblico segmentado segundo a lógica e a temática dos versículos, unindo, portanto, aqueles que são afins. Desse modo a divisão contempla os grupos: vv. 1-2. 3-4. 5-7. 8-9. 10-11. Com exceção do segmento que compreende os vv. 8-9, que exige um esclarecimento testemunhal, e do segmento dos vv. 5-7, para o qual Jerônimo expõe de imediato seu sentido, os outros grupos de versículos apresentam de início uma breve retomada de aspectos do segmento anterior:

                - vv. 1-2: “Diversis figuris eumdem explicat sensum. Qui supra dixerat: transire fecit Samaria regem suum quase spumam super faciem aquae” (retoma 10,7);

                - vv. 3-4: “Qui supra dixerat: puer Israel et dilexi eum...” (retoma o v. 1);

                - vv. 10-11: “Domino prospera pollicente, populus convertetur ad eum” (retoma a perspectiva positiva dos vv. 8-9).

 A ausência da retomada no início do comentário aos vv. 5-7 poderia ser devida à complexidade textual e filológica que esse segmento apresenta; a do início do comentário aos vv. 8-9, pela necessidade de esclarecimento das diferenças da tradução do texto hebraico para com a versão da Setenta e com outras versões gregas do século II.

Com as retomadas de elementos dos versículos anteriores, marca-se o desenvolvimento coerente do texto e de sua interpretação. E se demonstra a preocupação de que a compreensão e interpretação dos versículos sejam feitas tendo em consideração a totalidade da perícope. Jerônimo aplica aqui um método usado, na época, na prática de gramáticos e de escolas de retórica[26]. Por utilizar sistematicamente tal procedimento, sobressai em Jerônimo o grande valor que lhe atribui[27].

A exposição de Jerônimo testemunha que nosso autor conhece bem o texto hebraico de que dispôs assim como as antigas versões gregas. Por diversas vezes há um cotejamento das opções de tradução das várias versões, evidenciando-se, assim, que reconhece seu valor. A Setenta[28] é destacada não só porque sua tradução para o latim é apresentada imediatamente abaixo da tradução do hebraico, mas ainda porque as outras versões só são mencionadas enquanto podem servir para esclarecer o sentido de termos ou expressões. A prioridade, todavia, é dada ao texto hebraico, tanto porque o traduz em primeiro lugar quanto porque a compreensão do texto procede, normalmente, a partir da tradução do hebraico[29]. A Setenta é considerada dentro desse desenvolvimento do sentido do texto hebraico.

Não poucas vezes são postas em relevo as diferenças e/ou concordâncias entre os textos hebraico e grego e ainda, quando vem ao caso, a unidade básica de sentido entre eles. Quando diferem, Jerônimo usualmente explica ambos os sentidos. Isso se verifica, por exemplo, na exposição dos vv. 5-7 (em relação à diversidade de compreensão do v. 5, como frase positiva ou negativa) e dos vv. 8-9 (quando, no final, é antecipada a perspectiva própria do singular do v. 10).

A busca pela precisão da tradução e do entendimento do texto bíblico transparece particularmente pela referência à morfologia dos termos hebraicos e à sua etimologia. Alguma vez a atenção se estende também a termos gregos, como ao comentar a versão de Teodocião com ἀφοπλίσω σε (cf. vv. 8-9). Em virtude das significativas dificuldades que se apresentam, amplo espaço é dado a esse procedimento na explanação do sentido dos vv. 5-7 e dos vv. 8-9.

A valorização dos aspectos acima permite compreender o significado da “hebraica veritas” para Jerônimo. Ela abarca diversos elementos.

Primeiramente, implica a proeminência do texto hebraico. Por princípio[30], Jerônimo segue o texto hebraico, que ele traduziu antes de se dedicar ao comentário ao profeta Oseias. De um lado, tal critério não só exclui a prioridade da Setenta mas implicitamente sugere sua colocação em segundo plano e a valorização do hebraico. É a partir do texto hebraico que ele avalia as traduções gregas[31]. Sua preocupação não é corrigir a Setenta, mas sublinhar o valor do texto hebraico. Isso transparece no comentário a 11,1-2, ao enfatizar que a versão da Setenta deste segmento (“seus filhos”) eliminaria a dimensão cristológica do texto, a qual é afirmada somente no texto hebraico (“meu filho”), considerado em Mt 2,15. Tal observação reveste-se de particular importância por mostrar a relevância da tradição hebraica para a compreensão do Novo Testamento e sua perspectiva messiânica. Isso significa que a “hebraica veritas” possui uma dimensão teológica, pois é o texto hebraico que abre a dimensão messiânica e não o grego.

Se comparada com a Vulgata, a tradução latina do texto hebraico, no comentário a Os 11, apresenta somente algumas modificações e polimentos, em vista de melhorar o estilo e a dicção[32]. De outro lado, o recurso às versões gregas hexapláricas dá a impressão de ao menos se ver como possível também outra tradução[33]. É o que ocorre no comentário aos vv. 8-9, que abre o significado também para a acepção de Símaco e Teodocião.

Em segundo lugar, a “hebraica veritas” abrange a significativa atenção aos aspectos linguísticos, que incluem observações lexicais, gramaticais e etimológicas, além de anotações sobre aspectos estilísticos. Um exemplo claro é o comentário aos vv. 5-7. Com isso, nosso exegeta demonstra sua atenção ao texto e aos seus detalhes bem como a intenção de esclarecê-lo em suas dificuldades.

A preocupação com a exatidão da tradução não evitou, porém, alguns deslizes, se considerado o estado dos estudos atuais. Assim é que traduz a expressão מים בנים em sentido de genitivo (filii maris: “filhos do mar”), enquanto o sentido é geográfico (filhos [vindos] do mar = do ocidente). A relação de genitivo normalmente viria expressa com os termos em relação de status constructus (יָם בְּנֵי). Tal ocorre igualmente com a leitura de קטר por “sacrificar”, cuja tradução latina da Setenta é, contudo, “adolebant incensum” e a tradução de אדם no v. 4.

Dentro dessa perspectiva, não deixa de chamar a atenção que, nos vv. 10-11, o mesmo verbo (חרד) seja traduzido com dois verbos latinos diferentes (respectivamente “formidare” e “volare”). Porém, exatamente esta aparente incongruência revela que Jerônimo, conhecendo as nuances dos termos, pode optar por traduções diversas dos mesmos por considerar seus usos em expressões concretas. Assim, o verbo é traduzido por “temer” no v. 10 por ser a reação ao rugido do leão. No v. 11, é traduzido por “voar” por dizer respeito a aves.

  1. Os aspectos sublinhados acima mostram a significativa preocupação de Jerônimo com a “letra” do texto. Seu comentário evidencia a procura, em primeiro plano, de conhecer seu sentido, considerando os aspectos morfológicos, etimológicos e semânticos necessários para uma tradução e compreensão abalizada assim como, na sua explanação do significado da passagem, das figuras estilísticas empregadas (por exemplo, a metáfora do leão no v. 10).

Com certa frequência, no comentário a Os 11, Jerônimo explora o sentido histórico a partir do texto hebraico. Isso aparece primeiramente ao mencionar dados relativos às circunstâncias históricas relacionadas à época do profeta, como, por exemplo, ao precisar que o “rei de Israel”, no final de 10,15, se refere propriamente ao Reino do Norte (rei “das dez tribos”). Para introduzir o sentido literal, Jerônimo utiliza a expressão “iuxta litteram” (no comentário aos vv. 5-7) e o termo “historia” (no comentário aos vv. 1-2. 3-4). Este último é colocado em contraposição a “typus” e, no comentário aos vv. 3-4, a ἀναγωγή, termos que designam o sentido espiritual. Nesses casos, “historia” introduz a interpretação com referência a acontecimentos passados, a compreensão do texto profético em relação à época a que se refere, considerando a interpretação a ele dada pela tradição judaica. Tal dimensão é fundamental no comentário a Oseias 11, pois nele é anunciada a deportação de Israel (v. 5), que terá lugar a partir das investidas da Assíria, e o agir de Deus nessa situação (vv. 8-9.10-11).

O sentido literal é particularmente marcado, assim, pela dimensão histórica, mas abarca também outros aspectos. No comentário a Os 11 são referidos conhecimentos geográficos (v. 8: Adma e Seboim) e das ciências naturais (vv. 10-11: o leão e a reação de outros animais a seu rugido), bem como elementos linguísticos. 

Nesse particular, Jerônimo trabalha com os dados de sua época. Em relação aos elementos históricos, sua fonte principal é a história de Israel tal qual exposta nos livros bíblicos, citados seja de modo mais exato e detalhado seja mais genericamente. Normalmente, alude e parafraseia os textos, sem citá-los literalmente, como ocorre no comentário aos vv. 1-2, com a referência genérica a personagens e acontecimentos do livro do Êxodo. O v. 2 é explicado em relação a Moisés e Aarão, que “chamaram” (verbo קרא, v. 2) o povo, anunciando-lhes a vontade divina, enquanto o povo mesmo chegou a cultuar os ídolos (referência a Baal-Peor e à época de Acab). De modo semelhante trabalha no comentário aos outros segmentos: evoca Dt 1,31; 32,11 e Ex 32 (vv. 3-4); Os 7,11; 12,1 (vv. 5-7); e Caim, para falar da cidade (v. 9; cf. Gn 4,17). Diferentemente, ao tratar de Adma e Seboim, para o que chama em causa Sodoma e Gomorra (vv. 8-9), o tratamento dos textos é mais preciso, evocando Gn 14,8 e Is 1,10. O mesmo ocorre nos vv. 10-11: ao analisar o leão que ruge e os pássaros que voam, traz à memória Am 1,2 e Sl 55,7. A exposição de Jerônimo manifesta, assim, seu vasto conhecimento dos livros bíblicos, seja em sua temática geral seja em detalhes de vocabulário. E, dentro da perspectiva da “hebraica veritas”, para mais bem compreender o texto profético faz uso primeiramente de passagens do Antigo Testamento, através de conexões temáticas e/ou terminológicas.

  1. Tal modo de proceder revela a preocupação de Jerônimo de, diante do sentido do próprio texto no seu contexto veterotestamentário, não priorizar uma interpretação espiritualizante. Ultrapassa, com isso, a oposição entre literalistas e alegoristas[34]. De fato, é somente após a compreensão do texto considerado em suas coordenadas próprias que Jerônimo chega a seu sentido no contexto do Novo Testamento e no contexto das circunstâncias de sua mesma época. Assim é que a frase “não entrarei na cidade” (v. 9) tem sua explicação porque Deus, sendo santo (v. 9) não pertence ao mundo humano. No v. 8, a menção de Adma e Seboim leva a Sodoma e Gomorra (cf. Gn 14,8) e só em seguida a enfatizar a rejeição daqueles que não aceitam o evangelho (cf. Lc 12,42-48). Nos vv. 10-11, explica primeiro a metáfora do leão, chamando em causa Am 1,2, e só posteriormente evoca 1Pd 5,8, que usa a mesma imagem. De modo semelhante, na leitura dos vv. 3-4 e vv. 5-7, somente após explanar o sentido próprio do texto recorre ao Novo Testamento, aludindo respectivamente a Jo 6,44 e a 1Cor 1,24.

De outro lado, nosso exegeta percebe a pluralidade semântica que certas palavras, expressões ou frases podem ter e, com isso, apresenta mais do que uma possibilidade de compreensão de uma mesma passagem. Assim procede ao comentar o jugo que Deus tira de Israel, nos vv. 3-4, que poderia ser o domínio das nações estrangeiras ou a concepção mesma de que a Lei seria um pesado fardo.

O sentido simbólico é, assim, frequentemente construído a partir do que Jerônimo entende ser a literalidade da passagem. Ao comentar os vv. 1-2, Jerônimo fala de “intelligentia spiritalis”, que se distingue de “historia” e equivale a ἀναγωγή. Este termo é usado no comentário aos vv. 3-4 para diferenciar interpretação espiritual e sentido literal.

A interpretação espiritual, contudo, é expressa sobretudo através de relações tipológicas, que aparecem, no comentário aos vv. 1-2, no sentido de prefiguração. Trata-se de conferir um novo significado a uma passagem que não apresenta um sentido satisfatório no horizonte histórico do texto. O sentido tipológico lança luz e torna claro o que realmente o texto quer dizer. No comentário aos vv. 1-2, Jerônimo apresenta a explicação teórica da tipologia, ao baseá-la na relação entre os dois Testamentos, ou seja, no fato que o Antigo Testamento tem sua realização completa no Novo. Desse modo, o tipo mostra que uma realidade do Antigo Testamento é incompleta em si mesma, isto é, que alguns de seus aspectos necessitam ser compreendidos a partir de Cristo e da Igreja. O tipo traz um sentido só parcial da realidade, que é expressa de forma total no Novo Testamento.

A explanação espiritual é muitas vezes desenvolvida a partir do texto hebraico. Com isso, este é base tanto para o sentido histórico como para o simbólico. Em algumas passagens, todavia, Jerônimo apresenta uma distinção entre o sentido histórico, ligado ao texto hebraico, e o sentido simbólico, explorado a partir da Setenta. Esse procedimento é claro na explanação dos vv. 3-4, na qual a análise do significado do texto da Setenta é deixada para o final do comentário, após o desenvolvimento da mensagem do texto hebraico. Isso se deveu ao fato de a Setenta, nestes versículos, apresentar diferenças consideráveis em relação ao hebraico. O mesmo ocorre, e por duas vezes, no comentário aos vv. 5-7, mesmo se, na segunda vez, chega-se à conclusão que o sentido da Setenta poderia valer também para o texto hebraico.

Em outras ocasiões, ainda, Jerônimo desenvolve o sentido simbólico a partir da leitura dos dois textos, hebraico e grego, em conjunto. Isso ocorre no comentário aos vv. 10-11: tomando por base o texto hebraico, enquanto para os judeus a passagem se refere ao messias que esperavam (sentido histórico), para os cristãos diz respeito a Jesus Cristo (sentido simbólico). Nos mesmos versículos, porém, o sentido simbólico é extraído tanto do texto hebraico quanto da tradução grega, de modo que, quer se leia “filhos do mar” (hebraico) quer se aceite “filhos das águas” (Setenta), o sentido é o mesmo tanto sob o ponto de vista histórico quanto em seu significado simbólico. Assim também, ao comentar os vv. 5-7, afirma que a Setenta, apesar de trazer um texto em parte diverso do hebraico, apresenta um sentido que pode valer também para este último.

Em outras palavras, embora priorizando o texto hebraico, tanto este como o grego são utilizados por Jerônimo como base para o desenvolvimento do significado simbólico das passagens, significado este que pressupõe o sentido histórico que resulta basicamente da compreensão do hebraico e não da versão grega. Esta só em alguns momentos é acoplada ao sentido histórico, então em segunda instância e quando não difere do sentido do texto hebraico (mesmo se difere nas palavras).

  1. Por fim, para além do sentido simbólico enraizado no texto bíblico, Jerônimo desenvolve frequentemente um sentido espiritual moralizante, que consiste numa aplicação do texto à sua época e a suas circunstâncias. Este vem como resultado das análises precedentes, quais sejam, a do sentido histórico e do sentido simbólico (no próprio Antigo Testamento e na relação dos dois Testamentos).

Jerônimo desenvolve seu comentário exegético, portanto, considerando três momentos. Segue, assim, o que anteriormente fora proposto e praticado por Orígenes: sentido literal, moral e místico[35]. Isso significa, por outro lado, que, apesar de se apresentar em oposição a Orígenes, Jerônimo continua na mesma estrada exegética, estabelecendo seu comentário na base do sentido literal, espiritual e moral.

  1. Sintetizando o labor exegético de Jerônimo espelhado no comentário a Os 11, fica clara a preeminência do sentido literal. Na base de que a palavra profética está ligada a um momento preciso, este é desenvolvido pela análise em relação ao contexto histórico em que se localiza o texto. Inclui a abordagem filológica, com atenção ao sentido de termos e expressões hebraicos, e o uso das versões gregas, o que traduz a preocupação com o estabelecimento de um texto atendível, ancorado na comparação dos testemunhos disponíveis, com particular atenção à tradução da Setenta.

O segundo momento, construído sobre o anterior, concerne ao sentido espiritual e é desenvolvido sobretudo pela tipologia; portanto, pela leitura do texto profético e sua relação com o Novo Testamento, numa interpretação cristológica e eclesiológica. A interpretação espiritual comporta ainda a dimensão moral, com aplicação à vida e ao comportamento. Nas circunstâncias concretas do trabalho exegético de Jerônimo e porque a preocupação moral diz respeito à salvação, especial enfoque recebe a leitura anti-herética, o que traz ao comentário um tom polêmico[36].

Em forma esquemática, o procedimento exegético e hermenêutico de Jerônimo, no comentário a Os 11, segue as seguintes etapas e perspectivas:

busca do sentido histórico (base: texto hebraico)

indicação do sentido espiritual no contexto do Antigo Testamento

(base: hebraico / grego)

sentido espiritual no contexto do Novo Testamento

(base: hebraico / grego)

sentido espiritual, com aplicação para a época e a situação do exegeta

(a partir das análises anteriores)

Reflexões conclusivas

A exegese de Jerônimo no Comentário a Oseias, particularmente quanto ao capítulo 11, desenvolve-se numa busca de equilíbrio entre o alegorismo alexandrino e a tendência histórico-gramatical antioquena. Na estrada aberta por Orígenes, buscou fugir tanto da arbitrariedade interpretativa quanto da esterilidade de uma interpretação exclusivamente histórica, que se mostrava insuficiente sob o ponto de vista religioso, teológico e eclesiástico. A ruptura com a interpretação origeniana se deu de fato quanto a certas teses teológicas mas não propriamente em relação ao método, mesmo se, para Jerônimo, a abordagem literal de Orígenes devesse ser bem mais aprofundada.

É nesse sentido que Jerônimo procura, com os meios disponíveis, analisar todos os elementos não propriamente teológicos (históricos, linguísticos etc), dando-lhes significativo espaço na sua exposição, conforme seu intento de estabelecer a “hebraica veritas”, que inclui amplo espectro de significados. Por outro lado, a compreensão literal é também estabelecida como base para a interpretação espiritual. Com isto, a busca pela “hebraica veritas” torna-se eixo estruturante do comentário a Os 11, correspondendo não somente a uma metodologia linguística até então não aplicada sistematicamente aos comentários aos livros bíblicos, mas revestindo-se de uma real e importante dimensão teológica.

A compreensão espiritual caminha nas diretrizes de Orígenes, com a vertente moral e mística, seguindo a mesma ordem invertida encontrada na prática origeniana, em que a interpretação moral segue à mística. Desse modo, esta, visando desenvolver a relação dos textos com a realidade de Cristo e da Igreja, traz como corolário a leitura moral, que, não sem certa nota de ênfase, é aplicada ao tema dos desvios da fé. Tal perspectiva moralizante apresenta-se como uma busca de mostrar a atualidade da palavra para a vida do indivíduo e da comunidade aos quais chegará o comentário.

Como obra da maturidade de Jerônimo, o comentário a Oseias, aqui exemplificado na análise de Os 11, fornece os elementos que marcarão os grandes comentários que se seguirão. Nesse sentido, mostrando-se como transição e preparação para estes, confirma-se sua relevância para a compreensão do labor exegético de nosso autor.

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Notas

[1] Cf. Ep. 18A e B, datadas entre 379 e 381. Cf. B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 260.

[2] A. Di Berardino, Patrología, v. 3, p. 274-275.

[3] “Praesenti anno qui sexti consulatus Arcadii Augusti et Anitii Probo fastis nomen imposuit, Exsuperio Tolosanae Ecclesiae pontifici Zachariam et eiusdem urbis Mineruio et Alexandro monachis Malachiam prophetam interpretatus sum. Statimque recurrens ad principium uoluminis, Osee et Ioel et Amos tibi (scil. Pammachio) negare non potui” (J.P. Migne. Patrologiae cursus completus. Series Latina, VI, 309-310).

[4] “Scripsit in hunc librum Origenes tria uolumina sed historiam omnino non tetigit et more suo totus in allegoriae interpretatione uersatus est” (Prólogo ao comentário a Malaquias: J.P. Migne. Patrologiae cursus completus. Series Latina, VI, 941-942).

[5] Cf. Comm. Osee, Prologo II, J.P. Migne. Patrologiae cursus completus. Series Latina, VI, 51-52 (“Tu autem, Pammachi, qui nos facere praecepisti hoc, necesse est sit fautor sis imperii tui [Al, imperio tuo]”).

[6] Cf. B. Mounier, “In manu prophetarum”, p. 273.

[7] Cf. B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 269.

[8] O que aqui segue baseia-se em B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 265-267.

[9] Baseamo-nos aqui sobretudo em B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 274-279.

[10] Enquanto explicação do texto, porém, excetuando-se os prólogos, o mais longo é o comentário a Zacarias.

[11] A indicação da numeração dos versículos seguirá a forma atual segundo o texto hebraico.

[12] Cf. P. Sabatier, Bibliorum Sacrorum Latinae Versiones Antiquae. V. 2, p. 904.

[13] A.A. Macintosh (cf. Hosea, p. 434) reporta que a recensão de Luciano traz a comparação (“como a aurora”); a tradução de Áquila tem o dativo (“na aurora”), o que também ocorre na Peshitta.

[14] Cf. H.W. Wolff, Hosea, p. 244; E. Jacob, Osée, p. 78; Macintosh, Hosea, p. 432.434-435; G. Benzi, Osea, p. 92.

[15] Para o comentário da A. Gelston, Biblia Hebraica Quinta (cf. p. 67*), citando Macintosh (cf. Hosea, 434-435), devido ao entendimento de Jerônimo no comentário, não se deveria supor que ele tenha lido כשׁחר em vez de בשׁחר .

[16] A exegese das últimas décadas coloca também a possibilidade de compreender o versículo no sentido de que, iniciando-se uma batalha pela manhã, dizer que, na aurora o rei passaria mostraria que ele encontraria seu fim como que de imediato. Cf. Wolff, Hosea, p. 244.

[17] Jerônimo traduz o verboזבח  por “imolar” e קטר por “sacrificar”.

[18] O que Jerônimo entende por “anagogia”, será mais bem compreendido na visão de conjunto do comentário a Oseias.

[19] Segundo Carbone – Rizzi, a leitura da Setenta é feita em consideração à experiência do exílio babilônico: Deus puniu seu povo, mas continuou a salvá-lo (cf. S.P. Carbone; G. Rizzi, Osea, p. 213).

[20] Cf. Wolff, Hosea, p. 248; J.L. Mays, Hosea, p. 150; J. Jeremias, Der Prophet Hosea, p. 138.

[21] Não é claro como Símaco chega a este significado. O termo בַּד/בַּדִּים é de difícil explicitação. Por comparação com outras línguas, poderia ser entendido como um tipo de funcionário (cf. W. Baumgartner; B. Hartmann; Y. Kutscher, Hebräisches und Aramäisches Lexikon zum Alten Testament, p. 105: “Orakelpriester”), oficiais do exército ou semelhantes (cf. F.I. Andersen; D.N. Freedman, Hosea, p. 585). Outra possibilidade é entendê-lo como portas ou barras / trancas de uma fortaleza (cf. F. Zorell, Lexicon Hebraicum Veteris Testamenti, p. 96). Daí o sentido de “defesa” (cf. H. Simian Yofre, El desierto de los dioses, p. 148).

[22] A Setenta provavelmente interpreta a forma verbal inicial a partir da raiz חלה, no sentido de “ser fraco”. Cf. Carbone – Rizzi, Osea, p. 214-215.

[23] O texto leningradense traz:וְאֶל־עַל יִקְרָאֻהוּ יַחַד לֹא יְרוֹמֵם  (cf. Gelston, Biblia Hebraica Quinta).

[24] O texto hebraico traz a terceira pessoa do plural. Supõe-se que a Setenta tenha lido em primeira pessoa do singular para apresentar a disposição de Israel de andar no caminho do Senhor (cf. Carbone – Rizzi, Osea, p. 221).

[25] A tradução latina de Jerônimo supõe a leitura dos dois termos (מִיָּם  בָּנִים) em relação de genitivo.

[26] Cf. M. Graves, Jeromes’ Hebrew Philology, p. 13-14.

[27] Cf. B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 435.

[28] A Setenta conhecida e traduzida por Jerônimo provém da Héxapla. Cf. P.-M. Bogaert, La Bible latine des origines au Moyen Age. Aperçu historique; état des questions, p. 137-159, aqui p. 157.

[29] A presença de diferenças entre a tradução de Jerônimo e o texto massorético majoritário indica que Jerônimo pode ter conhecido variantes hebraicas. É atestado que ele recorreu sobretudo a textos babilônicos e a comentários rabínicos, além de outros manuscritos existentes em sua época, assim como cópias da Héxapla. Cf. B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 379-380.

[30] O princípio aparece claramente formulado no comentário a Os 8,1-4: “nos autem sequentes Hebraicam veritatem”. Cf. B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 377.

[31] Assim é que avalia a leitura da Setenta nos vv. 3-4 como errônea.

[32] Isso ocorre no v. 9 (na Vulgata: “Deus ego, et non homo”; no comentário: “Deus ego sum, et non homo”) e no v. 11 (na Vulgata, “avis”, no singular; no comentário, “aves”, em plural, concordando com a ideia coletiva, de que não se trata de um única ave, mas de muitas). Seguimos aqui a edição crítica da Vulgata da Deutsche Bibelgesellschaft (2007).

[33] Cf. B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 387.

[34] Cf. M. Simonetti, Lettera e/o alegoria, p. 337.

[35] Cf. M. Simonetti, Lettera e/o alegoria, p. 78-79.

[36] Cf. B. Mounier. “In manu prophetarum”, p. 466.