Marcial Maçaneiro
Doutor de Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (Roma). Docente da Pós em Teologia da PUCPR. Pesquisador e autor das áreas de Diversidade Religiosa, Diálogo Ecumênico, Pneumatologia e Ecoteologia.
José Luis Manrique Yañez
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Bacharel em Composição e Regência pela Universidade Estadual do Paraná. Pesquisador das áreas de diálogo entre Teologia e Música.
Resumo:
A Música e a Teologia mantiveram constantemente uma relação profícua através da história. Atualmente, graças ao desenvolvimento do pensamento estético dentro da teologia, em especial no século XX, aparecem autores interessados cada vez mais nesta interface. Este artigo estuda a possibilidade de produzir pensamento teológico como resultado de experiências estético-musicais. A partir de um levantamento bibliográfico amplo, por causa da interdisciplinaridade do assunto, selecionam-se conceitos estruturais de autores da antropologia, semiótica, estética hermenêutica e musicologia, para, com eles, construir uma fluxo de pensamento que valide a proposta. Conclui-se que fazer teologia a partir da experiência estético-musical não é só possível, mas também promissória e sugere-se a continuidade de pesquisas neste sentido.
Palavras-chave: Música. Teologia. Estética.
Abstract:
Music and theology have constantly maintained a fruitful relationship throughout history. Currently, thanks to the development of aesthetic thinking within theology, especially in the 20th century, authors appear increasingly interested in this interface. This article studies the possibility of producing theological thinking as result of aesthetic-musical experiences. From an extensive literature review, because of the subject's interdisciplinarity, structural concepts from authors of anthropology, semiotics, hermeneutic, aesthetics and musicology are selected to build a flow of thought that validates the proposal. It is concluded that doing theology from the aesthetic-musical experience is not only possible, but also promising and it is suggested to continue research in this direction.
Key-words: Music. Theology. Aesthetic.
A Teologia e a Música têm-se desenvolvido em paralelo ao longo dos séculos com notórias interações entre as duas áreas. Mas, só a partir do século XX é que estas interações começam a ganhar fôlego suficiente para causar um verdadeiro diálogo de enfoque interdisciplinar. O presente estudo visa mostrar a possiblidade de produzir teologia a partir da experiência estético-musical, resultante da fruição estética do Mistério.
O texto inicia explorando as vivências musicais em Tomás de Aquino e Agostinho como exemplos emblemáticos de diálogo entre Teologia e Música na história. Trazendo a discussão para os dias atuais, menciona-se a reflexão de Jordi-Agustí Piqué, que aponta para a música como lugar teológico a partir da emoção e da sensibilidade. Com ajuda desse preâmbulo, passa-se a analisar a experiência sacro-religiosa pelas lentes da antropologia do sagrado, em particular com os conceitos de ser humano como entidade estratificada, vivência originária e a expressão do absconditus, a partir das pesquisas de Angela Ales Bello e Marcial Maçaneiro. Reconhecendo a arte musical como mediação do Divino, passa-se a analisar como é que o discurso simbólico da música se articula à luz da semiótica de Charles Sanders Peirce, no momento hilético da experiência. Com a mediação da arte sustentada e exposta, ainda é necessário entender como essa expressão-apreensão artística é entendida a partir da filosofia musical: a estética. Aqui a contribuição de Luigi Pareyson será crucial para conceituar a leitura e fruição da obra de arte, onde assinala-se que o primeiro esforço será pela reconstrução material da obra. Como o processo de análise prevê interpretação, a questão hermenêutica será trazida por Hans-Georg Gadamer, costurando a leitura e fruição da arte com a Teologia. Por último, com Piqué, se define a musicologia como ferramenta hermenêutica e de análise disponível para a Teologia, que pode ser desdobrada nos seguintes aspectos: método histórico, método teórico-analítico, crítica textual, pesquisa arquivística, lexicografia e terminologia, práticas interpretativas, e estética e crítica.
Com esta análise e seleção de autores, pretende-se sustentar a possibilidade de produzir teologia a partir da experiência estética do Mistério que a música oferece como linguagem simbólico-sensorial. Nas considerações finais apresentam-se cinco conclusões que revelam a importância da música, como experiência estética do Mistério, e como esta abordagem pode trazer importantes contribuições para a Teologia, a partir da sua própria linguagem.
Durante a história, a música e a teologia mantiveram uma relação profícua, mas raras vezes essa relação foi assumida como um movimento frutífero bidirecional. É muito natural pensar em material musical composto com inspiração teológica, ou seja, quando a poética musical de uma obra tem suas bases em conceitos teológicos pertencentes a uma época e a um determinado lugar. Entende-se também que o resultado estético de tal expressão artística está condicionado pelo pensamento composicional daquela época e daquele lugar. Dentro desse grande repertório, alguns exemplos claros são as composições de Tomás de Aquino para a Missa e o Ofício de Corpus Christi, como o hino Pange Lingua e a sequência Lauda Sion[1]. Tais obras foram compostas em 1264, por solicitação do Papa Urbano IV, para a instituição da festividade celebrada até hoje com esses cantos ou expressões inculturadas dos mesmos.
Por outro lado, é difícil pensar em elaborações teológicas a partir de material musical, ou seja, quando o pensamento teológico é elaborado a partir de uma experiência estético-musical. Mesmo sendo raras, podemos citar o caso emblemático de Santo Agostinho e sua obra De Musica: após analisar os elementos rítmicos constitutivos da Música como tal, nos primeiros cinco livros, o sexto aparece como um ensaio teológico do material exposto nos livros anteriores. Mesmo sendo uma obra anterior aos seus escritos propriamente teológicos, “o Agostinho filósofo realiza o De Musica depois da experiência em Milão, podemos dizer, depois da experiência – de certa forma musical – que o conduz à conversão” (PIQUÉ, 2006, p.88, tradução nossa). Tal episódio na vida de Santo Agostinho, fomentou a reflexão musical que “está enunciada nos seus Sermones e nas Enarrationes in Psalmos. Os pontos culminantes se encontrarão nas Confessiones e nas Retractationes” (Ibidem, p.88, tradução nossa). Isso permite notar que grande parte da produção de Santo Agostinho foi afetada por uma experiência estética-musical.
No século XX, graças ao desenvolvimento do pensamento estético dentro da teologia, em especial pela obra de Hans Urs von Balthasar[2], aparecem autores cada vez mais conscientes das relações entre Música e Teologia. Assim, em 2006 aparece a publicação da tese de doutorado do monge organista beneditino Jordi-Agustí Piqué, atual presidente do Pontifício Instituto Litúrgico de Roma, que habilmente reúne grande parte das pesquisas que colocam a Teologia e a Música em um verdadeiro diálogo[3]. Piqué aponta para a música como lugar teológico a partir da emoção e da sensibilidade: “A música pode conseguir essa emoção porque comparte com o Mistério a mesma incorporeidade, a mesma inefabilidade, a mesma intangibilidade, o mesmo ser efêmero do momento de revelação de percepção do Mistério” (PIQUÉ, 2006, p.27). Entendendo que o Espírito Criador age na inspiração artística humana, o artista é compreendido como co-criador, artífice das obras junto com Deus (Cf. JOÃO PAULO II, 2020). Assim, os artistas imbuídos do Espírito são capazes de provocar “novas «epifanias» da beleza para oferecê-las ao mundo como criação artística” (Ibidem). Pela sua formação musical, Piqué também enxerga os elementos da semiótica que contribuem com a diferenciação entre as linguagens verbais e não verbais. Ele diz:
Se bem no decorrer da história o culto cristão, já desde os inícios, não deixou de utilizar a arte como meio de comunicação e de expansão da sua mensagem, se apresenta uma evolução em direção ao predomínio da palavra em detrimento do elemento simbólico. (PIQUÉ, 2006, p.54)
Nesse sentido, é preciso alertar sobre as limitações da palavra como portadora da mensagem cristã e o papel que desempenham as outras linguagens no processo de evangelização. A música não pode ser considerada simplesmente como decorativa ou recreativa, mas como portadora da mensagem sensível da experiência do sagrado.
Um dos frutos do desenvolvimento científico que mencionamos anteriormente é a Antropologia do Sagrado – uma abordagem específica no rol da fenomenologia religiosa – que permite a elaboração de conhecimento sistemático a partir da experiência do sagrado no humano[4]. Nesta área, destaca-se a pesquisa fenomenológica de Angela Ales Bello, presidente do Centro Italiano di Ricerche Fenomenologiche, a qual mostra o ser humano como uma entidade estratificada, escapando do simples dualismo contraposto de corpo e alma, mas entendendo essas categorias como aspectos corpóreos-espirituais na unidade do ser (Cf. ALES BELLO, 2014, p.22). Essa unidade complexa é a que, por uma experiência essencialmente estética (aesthesis), é capaz de Deus, de perceber o Transcendental. Esta noção da capacidade perceptiva como unidade complexa já estava de algum modo presente na tradição cristã desde a patrística, mesmo que no transcurso da história tenha sido preterida. Isto pode ser verificado nas catequeses mistagógicas de Ambrósio de Milão:
Ambrósio enfatiza a complementaridade das duas visões: citando Isaias 53:2 (“Ele não tinha nem forma nem beleza”), Ambrósio comenta: “Isaias viu [Cristo], e por causa da sua visão espiritual, ele também viu corporalmente; se nós “vemos” em “espírito” também devemos estar vendo alguma coisa fisicamente. (DUNKLE, 2016, p.2201, tradução nossa)
Como Ales Bello explica, “a experiência sacro-religiosa é uma experiência humana”, o que mostra também “o lugar adequado no qual identificar as estruturas fundamentais dos fenômenos” (ALES BELLO, 2014, p.25, tradução nossa). Tal experiência é chamada também de vivência originária, pois são “vivências antropológicas fundantes” (MAÇANEIRO, 2011, p.9) em sentido amplo, valendo tanto para o cristianismo como para as diversas religiões e expressões do Sagrado. Maçaneiro esclarece:
Os símbolos variam e as divindades mudam de nome; mas o conteúdo cultual converge de tal modo, que as religiões se tocam e vão desenhando padrões ou estruturas de culto. Porquê? Porque embora os cenários do Sagrado sejam diferentes, o sujeito que os experimenta e interpreta é o mesmo: a pessoa humana (homo religiosus). (MAÇANEIRO, 2011, p.11)
O sujeito “colhe e interpreta as vivências originárias, lendo-as, relendo-as e ensaiando um modo de expressá-las” (Ibidem, p. 17). Essas expressões podem ser veiculadas pela linguagem musical, presente no conteúdo cultual. Aqui é preciso apontar a uma diferença importante na forma de como se dá a percepção de sacralidade, uma diferença que está clara para Piqué quando afirma que a música e o Mistério compartilham a caraterística de inefabilidade, mistério inominável, que é chamado de numen. Quando essa sacralidade tenta ser expressada em palavras e ganha um nome ou conceito, é o que se chama de nomen, o que é conhecido da divindade pelo intelecto. Nas diversas religiões percebe-se um esforço por passar do numen ao nomen, numa espécie de evolução das hierofanias para as teofanias. Só que nenhuma hierofania (manifestação do Sagrado), pode ser convertida integralmente em teofania; pois “mesmo sendo nomeável (recebendo nome e atributos), a divindade mantém uma reserva numinosa, ou seja, uma reserva de mistério. Pois a divindade nunca se reduz ao nome revelado, nem aos atributos que dela percebemos” (Ibidem, p. 19).
Maçaneiro também sinaliza um meio-termo ou ponto-de-toque entre o numen e o nomen. É exatamente aí que as linguagens artísticas atuam nas diversas religiões e espiritualidades. Aqui está-se falando, por exemplo, na potência simbólica de um beijo no meio de um contexto teatral, ou no sopro de um trompetista no meio de uma sinfonia, ou talvez no balbuciar de um canto glossolálico. As linguagens artísticas permitem essa captura e expressão da vivência originária que cria as pontes entre a sensibilidade espiritual e a sensibilidades corpórea, sobre as quais Ambrósio ensinava, na visão estratificada do ser que Ales Bello aponta. Ressoam aqui, exatamente, essas palavras de João Paulo II: “Para transmitir a mensagem que Cristo lhe confiou, a Igreja tem necessidade da arte. De facto, deve tornar perceptível e até o mais fascinante possível o mundo do espírito, do invisível, de Deus” (JOÃO PAULO II, 2020).
Retomando o exemplo de Tomás de Aquino, sobre os hinos litúrgicos compostos para a festividade de Corpus Christi, como expressão musical de um pensamento teológico, percebe-se o quanto sua vivência eucarística é a manifestação do sagrado nomeável que alimenta a poética das composições musicais dentro das formas de culto dedicadas a tal celebração. Como foi mencionado, tal vivência eucarística possui também um lado absconditus; uma espécie de percepção não exprimível em palavras, mas presente na intimidade da vivência particular do compositor. Aqui é onde a palavra não basta para recolher a totalidade da vivência. Assim, a palavra cantada parece ter mais possibilidades de se aproximar à totalidade da experiência fundante, a partir da emoção e da sensibilidade apontadas por Piqué (Cf. PIQUÉ, 2006, p.27). Mais ainda, as composições eucarísticas de Aquino estão elaboradas em forma de hino, ou seja, pensadas para ser cantadas comunitariamente, expressando já na forma musical o Sacramento de Unidade que a eucaristia é, na essência e na experiência da comunhão. Coincidentemente, a hinódia cristã é inaugurada no século quarto, principalmente com Ambrósio de Milão, como proposta de canto comunitário diferenciando-se do estilo melismático que é mais apropriado para solista. Agostinho, exposto aos hinos de Ambrósio em Milão, cita-os recorrentemente como no seguinte trecho das Confissões, depois da morte da sua mãe: “Estando só, deitado no meu leito, recordei os versos verídicos do vosso Ambrósio: Vós sois, na verdade, ‘Deus, Criador de todas as coisas, regendo o mundo supremo [...]” (AGOSTINHO, 1973, p.186). Estes cantos ambrosianos tinham a caraterística de ficarem impregnados na mente das assembleias e serem fontes de fortaleza na fé para os fiéis. Outro trecho das Confissões, onde o dado musical informa sobre o divino, é o seguinte:
Soltava gritos lamentosos: ‘Por quanto tempo andarei a clamar: Amanhã, amanhã? Por que não há de ser agora? Por que o termo das minhas torpezas não há de vir já, nesta hora?’. [...]. Eis que de súbito ouço uma voz vinda da casa próxima. [...]. Cantava e repetia frequentes vezes: ‘Toma e lê; toma e lê’. [...], reprimi o ímpeto das lágrimas, e levantei-me, persuadindo-me de que Deus só me mandava uma coisa: abrir o códice, e ler o primeiro capítulo que encontrasse. [...]. Agarrei-o, abri-o e li em silêncio o primeiro capítulo em que pus os olhos [...]. Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me no coração uma espécie de luz serena, e todas as trevas da dúvida fugiram. [...] De tal forma me convertestes a Vós [...]. (Ibidem, p.166)
No caso de Agostinho, a expressão do absconditus é mais instigante ainda, pois a vivência que marcou de maneira particular a conversão do teólogo foi uma experiência que inclui o musical, na voz que canta “toma e lê”. Aqui também assume-se como uma vivência originária a experiência que ele teve com os hinos de Ambrósio em Milão, manifestação do Sagrado que afetou Agostinho na sua complexidade como entidade estratificada. Em outras palavras, pode-se especular que parte da experiência de conversão de Agostinho nunca foi plasmada nos seus escritos pela limitação que a própria linguagem verbal apresenta; e que em algum caso a mediação musical, essa parte indizível da vivência do sagrado, tenha sido a mais importante, como ele mesmo dá a entender:
Eis que Ele lhe dá, por assim dizer, o tom da melodia a ser cantada; não procure as palavras, como se pudesse expressar algo que agrade a Deus. Cante no jubilus. Cantar com arte para Deus consiste justamente nisso: cantar no jubilus. O que significa cantar no jubilus? Compreender e não saber explicar com palavras o que se canta com o coração. Os que cantam durante a colheita ou durante a vindima, ou num outro trabalho intenso, primeiro começam a exultar com as palavras do canto, mas em seguida, preenchidos de uma alegria que não podem mais expressar com palavras, afastam-se das sílabas das palavras e entregam-se ao som do jubilus. O som do jubilus significa que o coração dá à luz algo que não pode ser dito. E quem merece essa jubilação, senão Deus inefável? Inefável, de fato, é aquilo que não pode ser dito; e, se você não pode falar, e no entanto não deve se calar, o que resta senão jubilar, por que o coração regozije sem palavras, e a imensidão do regozijo não encontre limite nas sílabas? Cantem bem para Ele, no jubilus. (Em in Ps. 32, 2, 8) (Idem, 1997, p.238)
Estas linhas de Agostinho resumem bem a limitação que ele encontra nas palavras, apresentando o que ele chama de jubilus. Esse tipo de canto é um vocalize sem palavras, composto ou improvisado, da extensão do canto do aleluia. Para Agostinho, nem mesmo a palavra cantada é suficiente para expressar as vivências originárias que alimentaram a sua fé. Na linha intermediária que conecta o numen com o nomen, o Bispo de Hipona pede para compreender algo que não é explicável com palavras, ou seja, algo que não obedece ao intelecto, mas que certamente perdura como um saber de outra ordem – da ordem do Mistério.
A primeira questão a esclarecer – para assumir a experiência musical como lugar teológico – refere-se à legitimidade do discurso musical como elemento portador de uma mensagem sensível. Nesta linha, os estudos de semiótica desenvolvidos por Charles Sanders Peirce são uma porta de acesso para tal finalidade. Santaella, analisando Peirce, entende que as linguagens não-verbais, como a música, são uma ferramenta que o ser humano possui para a apresentação de um discurso simbólico:
Cumpre notar que a ilusória exclusividade da língua, como forma de linguagem e meio de comunicação privilegiados, é muito intensamente devida a um condicionamento histórico que nos levou à crença de que as únicas formas de conhecimento, de saber e de interpretação do mundo são aquelas veiculadas pela língua, na sua manifestação como linguagem verbal oral ou escrita. O saber analítico, que essa linguagem permite, conduziu à legitimação consensual e institucional de que esse é o saber de primeira ordem, em detrimento e relegando para uma segunda ordem todos os outros saberes, mais sensíveis, que as outras linguagens, as não-verbais, possibilitam. (SANTAELLA, 1983, p.10)
Assim, a linguagem verbal, portadora de conceitos, é uma das variadas possibilidades de linguagem disponíveis, limitada em relação aos saberes mais sensíveis. Em contraste, é possível dizer que a linguagem musical possui um valor diferenciado: simbólico-sonoro. Esta caraterística do simbólico-sonoro pode ser, inclusive, mais potente na evocação do Mistério, que qualquer palavra articulada e entendida. Mais ainda, a semiótica de Pierce analisa a experiência sensorial por meio de três categorias: primeiridade, secundidade e terceiridade[6]. As linguagens artísticas não-verbais podem ser situadas principalmente entre a primeiridade – que é o primeiro contato com o elemento sensorial antes de qualquer tentativa de reconhecimento – e a secundidade – que é o reconhecimento de alguma coisa, mas destituída de intencionalidade. Ainda, elas podem se expressar também na terceiridade, que se serve da síntese intelectual para estabelecer uma relação de inteligibilidade. Pierce observa relações triádicas também entre os elementos que intervém na mediação semiótica: “o signo seja um primeiro, o objeto um segundo e o interpretante um terceiro” (Ibidem, pag.52). Por sua vez, o signo também é entendido triadicamente: ícone, índice e símbolo. Diz o autor:
Uma progressão regular de um, dois, três pode ser observada nas três ordens de signos, Ícone, Índice e Símbolo. O Ícone não tem conexão dinâmica alguma com o objeto que representa; simplesmente acontece que suas qualidades se assemelham às do objeto e excitam sensações análogas na mente para a qual é uma semelhança. Mas, na verdade, não mantem conexão com elas. O Índice está fisicamente conectado com seu objeto; formam, ambos, um par orgânico, porém a mente interpretante nada tem a ver com essa conexão, exceto o fato de registrá-las, depois de ser estabelecida. O Símbolo está conectado a seu objeto por força da ideia da mente-que-usa-o-símbolo, sem a qual essa conexão não existiria. (PEIRCE, 2010, p.73)
Se para a semiótica a potência da linguagem musical encontra-se entre a primeiridade e a secundidade, para a fenomenologia do sagrado que Ales Bello desenvolve, tal potência ocupa o momento hilético, que é a componente material de toda vivência, relativo às sensações sensoriais e aos sentimentos sensoriais. O vínculo com a vivência originária se estabelece pela caraterística unificante[7] e, ao mesmo tempo, pela a fascinação que leva ao transcendental – segundo Ales Bello:
A hilética, [...], está particularmente ligada seja com a dimensão corpórea seja com aquela psíquica; trata-se da esfera da sensibilidade, identificada por Husserl no âmbito das sínteses passivas, que envolve tanto a dimensão perceptiva como aquela que diz respeito às vivências psíquicas. Uma cor em particular, por exemplo, suscita um sentimento de bem-estar ou de mal-estar apreendido conscientemente através do “vivenciar” tal experiência. (ALES BELLO, 2014, p.30, tradução nossa)
O exemplo de uma cor em particular estar associada a um sentimento de mal-estar ou bem-estar é muito interessante, desde o ponto de vista semiótico que nos permite identificar os elementos: um objeto de cor, uma pessoa e uma mensagem sensitiva. A depender das experiências passadas que a pessoa tenha vivenciado, a tríade de interpretação pode ter um momento de primeiridade: “percebo que ali tem alguma coisa de cor”; um momento de secundidade: “tem uma cor que me afeta”; e uma terceiridade: “essa cor me afeta de tal forma por causa de tal vivência”. Todo esse processo pressupõe o comprometimento total do ser, da entidade estratificada.
Ales Bello, nesse sentido, oferece uma explicação de como a nossa sociedade ocidental, por meio do cristianismo, foi influenciada historicamente por essa primazia da linguagem verbal mencionada linhas acima: “A partir do encontro do cristianismo com a cultura grega, pode-se, sem dúvida, dizer que a noética passa a ter um papel fundamental” (Ibidem, p. 53, tradução nossa). A noética é a componente intelectual-voluntária da vivência, a nossa consciência disponível para a apreensão do sentido lógico, do entendimento. A expansão do cristianismo carregou junto grande parte desta forma de pensar grega; a qual valorizou o entendimento em detrimento da experiência sensorial, sendo esta última carregada de informações dificilmente expressáveis pelos conceitos e as palavras. Em matéria religiosa, se “mantém sempre ligações com a dimensão hilética” (Ibidem, p. 53, tradução nossa). Por esse motivo, “o conhecimento de Deus é, [...], um ‘sentir’, que acontece através de caminhos que não podem ser reduzidos à razão pura, e é o conhecimento mais elevado que o ser humano pode alcançar” (Ibidem, p. 53, tradução nossa).
Aqui reevocamos a experiência musical do Bispo de Hipona, que agora entende-se como mediação semiótica, imersa em uma experiência hilético-noética integrante. Nessa perspectiva, é mais significativo ainda o fato de Agostinho querer libertar-se da palavra para expressar as suas vivências originárias por meio do jubilus. Cantalamessa, pregador da Casa Pontifícia, confirma a atualidade do pensamento de Agostinho:
[...] é possível escapar a este limite [do esquematismo das palavras e dos conceitos], de duas maneiras: mediante o silêncio ou transcendendo as palavras, que é o que sucede na glossolalia. Não é por acaso que este tipo de necessidade é hoje tão sentido também pelo artista. (CANTALAMESSA, 2014, p.344)
Aqui se faz referência à relação entre a glossolalia e a atividade artística, que “possui a capacidade de evocar o indizível do Mistério de Deus” (ASSEMBLÉIA PLENÁRIA DOS BISPOS, 2007, p.34). A vivência originária, que é unificante[8], se manifesta total ao ser humano por meio dos sentidos e suas capacidades. Pareceria ilógico ter sucesso em reduzir todo isso em palavras, até ficaria entediante a tentativa de fazê-lo. Isto quer dizer que a música, por ela mesma, carrega informação sensível do Mistério. No caso da palavra cantada, a melodia que articula a letra afeta o ser por completo, podendo amplificar as palavras e até modificar a mensagem que o intelecto decodifica.
Dentre as diversas linhas estético-filosóficas recentes, destaca-se o pensamento de Luigi Pareyson, caraterizado pela busca de caminhos conciliantes entre visões totalmente opostas. Como é próprio do pensamento do século XX, Pareyson também escapa dos dualismos de maneira semelhante a como Ales Bello trata a questão de alma e corpo. Assim, dentro de uma complexidade estratificada de atividades artísticas encontramos um equilíbrio construtivo entre historicidade e vivência da arte, entre autonomia e funcionalidade da arte, bem como entre crítica e criação – para citar aqui alguns exemplos. A partir dessa cumplicidade dos opostos é possível entender melhor o que significa a leitura e fruição de uma obra de arte, segundo Pareyson:
[A leitura da obra de arte] trata-se de reconstruir a obra na plenitude de sua realidade sensível, de modo que ela revele, a um só tempo, o seu significado espiritual e o seu valor artístico e se ofereça, assim, a um ato de contemplação e de fruição: em suma, trata-se de executar, interpretar e avaliar a obra, para chegar a contemplá-la e gozá-la. (PAREYSON, 2001, p.201)
O que Pareyson chama de significado espiritual está relacionado de maneira ampla ao contexto no qual a obra foi criada; por exemplo: cultura local, posições políticas, poética do autor, tendências artísticas da época, fatores religiosos, etc. Tudo isso, num tempo só, por meio de uma vivência integrativa que é o encontro com a obra de arte em si. As reflexões anteriores ou posteriores à essa vivência podem ampliar a experiência, possibilitando a fruição da obra mais plenamente. Além disso, visto que esses momentos anteriores e posteriores adquirem valor hermenêutico, evocar a história da arte será essencial:
[...] função de uma história da arte: por um lado, ela determina o nexo da arte com as outras manifestações de uma mesma civilização e, por outro, determina o lugar de uma obra, ou de um artista, no interior de uma tradição artística. [...] duplo e fecundo movimento, que por um lado, utiliza a história geral para iluminar, traçar a história da arte e daí chegar a uma interpretação cada vez mais profunda e avaliação cada vez mais adequada das obras de arte, e, por outro lado, tira da fruição direta das obras de arte a capacidade inseri-las no lugar que lhes compete numa história da arte; e, ao traçar a história da arte, contribui para uma revelação mais ampla e compreensão mais profunda da civilização humana no seu caminho. (Ibidem, p.147-148)
Tanto a iluminação da obra de arte pela história, quanto a iluminação da história pela obra da arte, são válidas para a presente análise. Em ambos os casos, porém, o valor será diretamente proporcional à profundidade com a qual a pesquisa se realize, com a consciência de que “quem quiser traçar a história de uma obra deverá, em primeiro lugar, estudar sua gênese, [...] temporal no seu ato, é intemporal no seu efeito” (Ibidem, p.134-135). A obra de arte bem sucedida cobra uma vida própria, ou seja, comporta uma emancipação a respeito do seu próprio autor. A partir do seu tempo e espaço, a obra nasce e estabelece uma marca, mais ou menos significativa, que se estende extrapolando o tempo e espaço que a viu nascer. Assim, no estudo da obra de arte é importante perceber “as mudanças a que a sua exemplaridade dá lugar, isto é, a série de obras que nela se inspiraram e de artistas que dela aprenderam” (Ibidem, p.135). Temos exemplos de obras de arte na história que redefiniram radicalmente o rumo de toda a arte produzida posteriormente, por outros autores nas diversas linguagens, ou também casos de reelaborações composicionais com elementos da mesma obra.
Outro aspecto que é preciso observar, sobre o efeito intemporal da obra de arte, é “a tradição crítica e a interpretativa a que a obra deu lugar” (Ibidem, p.135). Quando uma obra de arte transcende seu tempo e espaço, é deslocada para outra realidade e – por apresentar novos recursos que inicialmente não lhe estavam disponíveis – abre-se um “incessante processo de leitura e de execução” (Ibidem, p.135) da mesma obra.
Um último aspecto que deve ser cuidado ao resgatar historicamente uma obra de arte é “sua vida perecível e mortal” (Ibidem, p.135). Mesmo a obra de arte musical, sendo imaterial e bem distinta das artes visuais, está “sujeita ao desgaste do tempo” (Ibidem, p.135). Pareyson observa:
Sob a ação do tempo a obra pode chegar até a destruição, e, em todo caso, envelhece, e isto acontece não somente nas obras em que o aspecto físico é mais evidente, como as estátuas, ou as pinturas, ou os edifícios, mas também nas obras musicais, em que a perda de uma tradição interpretativa muitas vezes basta para dissipá-la, e na poesia, em que a morte de uma língua compromete a compreensão de muitos significados e a exata apreciação do elemento sonoro; e acontece, em qualquer lugar, que certos significados estão confiados a símbolos convencionais, que, de per si, estão sujeitos a perder ou mudar o sentido com o variar do tempo, isto é, com a alteração das condições de compreensibilidade. (Ibidem, p.135).
Por exemplo, um gênero musical, interessante tanto para a Teologia como para a Música, que encontra vários desafios neste sentido é o canto que chamamos gregoriano. Isto se dá não só pela discussão acadêmica da interpretação musical mais adequada deste gênero e seus subgêneros, mas também por causa que a escuta humana durante os séculos experimentou mudanças na percepção auditiva; obras do período renascentista, clássico, romântico e contemporânea já modificaram a escuta dos indivíduos e não há como voltar-atrás neste fato. Ou seja, o humano contemporâneo nunca vai vivenciar o canto gregoriano com os ouvidos das pessoas da época em que foi criado; mas é possível ter aproximações com base numa interpretação historicamente informada, que permita deduzir quais as sensações que aquele canto causava.
Pareceria iminente que a fenomenologia seja evocada como método de abordagem nessa discussão, mas Piqué oferece em substituição a via da análise musical influenciado pelo pensamento de Pierangelo Sequeri:
Uma reflexão teológica que queira aprofundar e julgar – como é dever dela – os fatos relativos às diversas formas de elaboração teórica e prática dos nexos entre “o sagrado e a música”, teria, em primeiro lugar, que dotar-se de instrumentos de análise mais concretos e diferenciados dos que estão em uso. (SEQUERI apud PIQUÉ, 2006, p.159, tradução nossa)
Diferente das tendências teológicas contemporâneas, o monge beneditino e seus interlocutores propõem o seguinte: “não partimos da música como fenómeno, mas partimos da mesma música para encontrar elementos teológicos que contribuam para compreender a percepção estética do Mistério” (PIQUÉ, 2006, p.203. tradução nossa). Dessa maneira, o foco da análise se encontra no texto musical, para a partir desse material concreto elaborar reflexões que permitam uma construção teológica da experiência musical. Este foco permite acolher aqueles aspectos da percepção do fenômeno que estão diretamente relacionados aos tópicos tratados anteriormente sobre o discurso musical: a semiótica e a antropologia do sagrado.
Outro elemento que aparece como instrumento no discurso teológico é o problema da interpretação do universo das percepções. O hermeneuta que trata dessa questão, mais explicitamente na discussão semiótica sobre as linguagens artísticas, é Hans-Georg Gadamer. A respeito, ele critica a concepção científica tradicional: “[...], desde sua origem histórica, o problema da hermenêutica ultrapassa os limites que lhe são impostos pelo conceito metodológico da ciência moderna” (GADAMER, 2015, p.29). Gadamer expande a concepção da interpretação na área artística, pois “a linguagem da obra de arte distingue-se pelo fato de a obra de arte singular reunir em si e trazer à aparência o caráter simbólico que, visto em termos hermenêuticos, advém a todo ente” (GADAMER, 2010, p.9), validando as pontes construídas entre a semiótica, a estética e a antropologia. A partir desse olhar é que a hermenêutica é trazida para a discussão:
Seu propósito é rastrear por toda parte a experiência de verdade, que ultrapassa o campo de controle da metodologia científica, e indagar por sua própria legitimação onde quer que se encontre. É assim que as ciências do espírito acabam confluindo com as formas de experiência que se situam fora da ciência: com a experiência filosófica, com a experiência da arte e com a experiência da própria história. (GADAMER, 2015, p.30)
Assim, Gadamer encoraja o presente desejo de fazer teologia a partir de material musical nos fundamentos até agora apresentados. A experiência da filosofia está sendo conduzida principalmente pela reflexão estética de Pareyson. A experiência da arte está incorporada nas reflexões de Piqué em sintonia com a teologia. A experiência da história está na vida da obra de arte a ser escolhida como objeto.
O título deste tópico decorre diretamente das conclusões da tese de doutorado de Piqué, em que propõe a música como um novo campo da teologia. Depois de apresentar materiais de estudo suficientes na Bíblia, na relação Igreja-cultura e na fenomenologia, ele percorre o pensamento teológico a respeito da música nas obras de Santo Agostinho – por exemplo De Musica e Confessiones –, Hans Urs von Balthasar – por exemplo Gloria: Uma Estética Teológica e Spiritus Creator –, e Pierangelo Sequeri – por exemplo Estetica e teologia e Una teologia del ‘sacro in musica’ (Cf. PIQUÉ, 2006). Com esses subsídios conceituais, Piqué faz uma leitura teológica-musicológica de obras musicais dos compositores Tomás L. de Vitória, Arnold Schönberg e Olivier Messiaen. A partir dos textos musicais, ele consegue elaborar conceitos teológicos sobre as sensações que as obras ocasionam no humano quando executadas, como a Teologia da emoção ou a emoção do transcendente: três exemplos de Theologia in Musica do Officium Hebdomadae Sanctae de Victoria (Ibidem, p.230, tradução nossa), a Teologia da in/comunicabilidade: três exemplos de Theologia in Musica do Mosas und Aron de Schönberg (Ibidem, p.282, tradução nossa), e a Teologia do <<deslumbramento>>: três exemplos de Thelogia in Musica na obra de Olivier Messiaen (Ibidem, p.349, tradução nossa). Diz Piqué:
Tempo espaço e finitude, convertem-se em música que leva a uma experiência estética do Mistério através de uma experiência antropológica que provoca emoção e move ao affectus: o passo da contemplação à percepção estético-sonoro-empática da transcendência que pode incorporar ao discurso teológico contemporâneo novas dimensões e elementos de compreensão acessíveis para nossos contemporâneos. (Ibidem, p.392, tradução nossa)
Obviamente que para aprofundar nos conceitos que Piqué apresenta é necessário mergulhar na sua obra. O que é de grande importância para o presente artigo é apontar o método que se propõe na obra e a sua eficácia. Isso acompanhado dos conceitos trazidos da semiótica, da estética e da antropologia do sagrado, é o que acredita-se ser o pano de fundo no qual o músico é chamado a pensar teologia. Por sua parte, o teólogo é convidado a enriquecer-se com as ferramentas musicais para a expansão do pensamento estético-teológico:
Os elementos metodológicos que temos utilizado são originais e novos. Não temos ficado contentes só com descrever a música fenomenologicamente mas que temos utilizado a própria música, plasmada no seu sistema de linguagem musical, para, através dos instrumentos musicológicos, extrair as categorias transvazáveis ao estudo teológico. Esta metodologia é aplicável a outras pesquisas. (Ibidem, p.393, tradução nossa)
Seguindo as conclusões de Piqué, os elementos metodológicos que uma análise teológica-musical diferenciada deveria possuir encontra a suas ferramentas na musicologia. Por sua parte, a musicologia define vários caminhos possíveis para enriquecer tal abordagem, por exemplo: a) o método histórico que permite conhecer as funções e significados das obras segundo o contexto social, religioso e político da época em que foram compostas; b) o método teórico-analítico que busca compreender a estrutura interna das obras; c) a crítica textual que estuda as fontes musicais seja em manuscritos ou edições impressas; d) a pesquisa arquivística que informa o musical a partir do cotidiano como relatos registrados, cartas, tratados e jornais; e) a lexicografia e terminologia que esclarecem e aprofundam na exatidão na mediação das linguagens; f) as práticas interpretativas que estudam como a música foi executada em outros tempos; por fim, g) a estética e a crítica que informam as relações entre a música e a humanidade na perspectiva filosófica (Cf. CASTAGNA, 2008).
Como foi possível verificar ao longo do texto, a Música e a Teologia, já tiveram momentos de encontro importantes, tanto em forma de pensamento teológico que se expressar posteriormente através da linguagem musical, como também em forma de vivências originárias, experiências estéticas do Mistério, nas quais a música está inclusa, afetando o pensamento teológico e ajudando a concebe-lo. Estas experiências do Mistério impulsam toda uma trajetória de acontecimentos e pensamentos, que se comportam como gatilhos para a formulação verbal de alguma verdade revelada. Neste esforço por capturar uma verdade esteticamente revelada, acontece necessariamente a redução de tal experiência para que possa ser veiculada pela linguagem verbal e permita produzir uma reflexão teológica. Assim, a linguagem musical respeita a correspondência intrínseca que ela possui com o Mistério, como expressão do absconditus, impossibilitando o esgotamento da experiência sensível pelo intelecto humano. Em outras palavras, a experiência musical do Sagrado é maior como tal, do que descrita pela linguagem verbal. Temos aqui uma primeira conclusão: a experiência estética do Mistério pode ocasionar um pensamento teológico, mas este pensamento não esgota a experiência.
Por outro lado, o aproveitamento teológico de uma experiência musical, não será de muita ajuda se antes não se tem estruturas mentais capazes de recolher as informações da linguagem musical, mesmo que reduzindo-as no esforço de tradução. Para esta tarefa, a semiótica e a antropologia apresentam-se como vias de acesso e formas de compreensão do momento estético na complexidade do indivíduo. Assim, o universo simbólico é mais interessante que o plano conceitual. Aqui aparece a segunda conclusão: a linguagem musical é coerente com ela mesma na sua expressão sensorial e simbólica, dispensando a apreensão conceitual, sendo tarefa da Teologia entrar no universo simbólico do estético para ser aproveitado.
Uma vez que a Teologia ganha as ferramentas para acessar ao universo simbólico da linguagem musical, esta também precisa assimilar como suas as problemáticas inerentes à estética. A obra de arte precisa ser revivida na sua realidade sensível, por meio da sua história e reinterpretação inesgotável plural-atemporal, para poder estar disponível aos fins da Teologia. Eis aqui a terceira conclusão: só quando uma obra musical consegue ser lida e fruída plenamente pelo espectador, a Teologia também o fará.
Para entrar ao assunto da interpretação, ou reinterpretação, o discurso teológico precisa estruturar-se a partir de uma ferramenta hermenêutica adequada ao objeto de estudo, que está expressado na linguagem musical. Deste modo, as ferramentas hermenêuticas não nascerão da Teologia, mas da Musicologia, e a pessoa quem possui estas ferramentas não é outra senão o músico. Desta forma, podemos formular uma quarta conclusão: a Teologia necessita do músico para o análise hermenêutico da obra musical, não só como executor da obra para revivê-la, mas também como intérprete capaz de refletir sobre a experiência estética do Mistério, propriamente.
O caminho trilhado por Piqué, e sua teologia sistemática sobre a experiência estética do Mistério mostra a efetividade do método e convida à replicação deste em outras obras musicais que sejam interessantes para a Teologia. É justamente essa uma das principais finalidades deste artigo, tomando consciência da potencialidade contemporânea que o diálogo bidirecional entre a Música e a Teologia apresenta. A quinta e última conclusão é esta: a possiblidade de produzir teologia a partir da experiência estético-musical é real e promissória. Contudo, não adianta ficar só com as reflexões, pois os sentidos pedem reviver e reinterpretar as experiências uma e outra vez. Conforme elas vão evoluindo e ganhando novos significados, o anseio de um novo sopro inspirador sempre está presente. Sim, a Igreja precisa de arte, e a Teologia precisa de mais música para que, atiçando os sentidos do espírito, possa alcançar novas epifanias do Mistério.
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[1] Um estudo sobre esse assunto encontra-se na dissertação de mestrado do organista e pianista Thiago Plaça Teixeira. Cf. TEIXEIRA, T. Música e beleza em São Tomás de Aquino, 2012.
[2] Dentro da produção de Balthasar, destaca-se Herrlichkeit (Glória), como uma das obras norteadoras do pensamento estético na teologia do século XX.
[3] Tem-se ciência dos estudos mais recentes de Maeve Louise Heaney e de James Maher, mas escolhe-se a obra de Piqué como central para este artigo pela sua suficiência e abordagem (HEANEY, 2012; MAHER, 2013).
[4] Para aprofundamento neste assunto indica-se a coleção Tratado de antropologia de lo sagrado I, II, III, IV e V, da Editorial Trotta, Madrid, de 1995 até 2005.
[5] Abs-condo: esconder, ocultar. (SILVA, 2012)
[6] Estes três termos serão incorporados ao texto, sendo a tradução ao português que Santaella dá aos neologismos criados por Peirce: firstness, secondness, thirdness. (SANTAELLA, 1983)
[7] A característica unificante ou sintética da vivência originária expressa o comprometimento da totalidade do ser na experiência do sagrado. (MAÇANEIRO, 2011, p.15).
[8] Categoria utilizada por Maçaneiro para expressar a caraterística sintética das vivências originárias. (MAÇANEIRO, p.15-16)