Edson de Faria Francisco
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Contato: edson.francisco@metodista.br
RESUMO:
A Bíblia Hebraica possui inúmeras ocorrências de hapax legomena absolutos e que são um autêntico desafio para qualquer tradução bíblica. Geralmente, tal situação é solucionada tendo como referência alguma ou algumas versões já existentes da Bíblia e que servem como apoio para o processo de tradução. Tal circunstância ocorreu na produção da Vulgata, considerada uma das principais versões antigas da Bíblia Hebraica. Este estudo é dedicado a analisar quinze itens lexicais que são hapax legomena absolutos, sendo registrados no texto bíblico hebraico do livro dos Salmos e como Jerônimo de Estridônia os traduziu para a Vulgata, nas versões Psalterium Gallicanum e Psalterium iuxta Hebraeos. Além do mais, este estudo aborda, ainda, como teria sido a relação da Vulgata com o Texto Protomassorético e a Septuaginta na solução de tradução das quinze unidades lexicográficas do texto bíblico hebraico que são selecionadas para este artigo.
PALAVRAS-CHAVE: Bíblia. Vulgata. Texto Protomassorético. Septuaginta. Tradução. Hapax Legomenon.
ABSTRACT:
The Hebrew Bible has numerous occurrences of absolute hapax legomena and which are an authentic challenge to any biblical translation. Generally, this situation is solved with some existing versions of the Bible as reference and that serve as support for the translation process. This circumstance occurred in the production of the Vulgate, considered one of the main ancient versions of the Hebrew Bible. This study is dedicated to analyzing fifteen lexical items that are absolute hapax legomena, being recorded in the Hebrew biblical text of the book of Psalms and how Jerome of Stridon translated them to the Vulgate, in the versions Psalterium Gallicanum and Psalterium iuxta Hebraeos. Moreover, this study also addresses how the Vulgate relationship with the Proto-Masoretic Text and the Septuagint would have been in the translation solution of the fifteen lexicographic units of the Hebrew biblical text that are selected for this article.
KEYWORDS: Bible. Vulgate. Proto-Masoretic Text. Septuagint. Translation. Hapax Legomenon.
Hapax legomenon é um fenômeno lexicográfico peculiar tanto da Bíblia Hebraica quanto de qualquer obra literária antiga ou moderna. Além disso, tal característica do texto bíblico hebraico/aramaico tem recebido muita atenção por parte dos estudiosos. Segundo as definições de Casanowicz e Greenspahn, existem duas classificações para os hapax legomena na Bíblia Hebraica: o hapax legomenon parcial e o hapax legomenon absoluto. O primeiro grupo é pertinente com aquela palavra que possui forma ortográfica ou gramatical única em uma determinada passagem; mas em outra passagem, o mesmo vocábulo possui alguma forma ortográfica ou gramatical similar, por exemplo, o substantivo masculino singular em estado absoluto פְּרָזוֹן (hebr. população rural livre), sendo encontrado somente em Juízes 5,7. Porém, existe outra ocorrência dessa mesma lexia, mas possuindo sufixo pronominal masculino de terceira pessoa singular פִּרְזֹנוֹ (hebr. a população rural livre dele), sendo achada apenas em Juízes 5,11 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 960). O segundo grupo é relacionado com aquele vocábulo realmente único, sem outra forma igual ou similar, por exemplo, o substantivo masculino singular em estado absoluto מָעֳמָד (hebr. terreno firme), sendo registrado unicamente no Salmo 69,3 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 690). A primeira situação é classificada como hapax legomenon parcial ou hápax parcial e a segunda ocorrência é considerada como hapax legomenon absoluto ou hápax absoluto (CASANOWICZ, 1904, p. 226; GREENSPAHN, 1980, p. 9).[1]
Segundo Francisco, grande parte dos hapax legomena do texto bíblico hebraico é de tradução muito difícil, sendo um verdadeiro desafio para o tradutor. A situação se torna ainda mais crítica nas ocorrências dos hapax legomena absolutos, que podem possuir significado incerto ou desconhecido. Possivelmente, tal classe de hapax legomenon seja a mais difícil de ser traduzida, em virtude da sua complexidade (FRANCISCO, 2014, p. 116).
Ainda de acordo com Casanowicz e Greenspahn, existem cerca de 400 ocorrências de hapax legomena absolutos em toda a Bíblia Hebraica (CASANOWICZ, 1904, p. 226; GREENSPAHN, 1980, p. 17). De acordo com Even-Shoshan, há 87 ocorrências de hapax legomena absolutos ao longo do livro dos Salmos (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 565, 628, 815, 954, 1061 etc.). Neste estudo, são elencados e comentados quinze itens lexicográficos com tal característica no texto bíblico hebraico, sendo todos substantivos e adjetivos, sendo encontrados nos seguintes trechos: Sl 21,3; 42,5; 49,4; 66,11; 68,7.36; 71,15; 72,6; 88,5.13; 91,8; 124,5; 107,30; 139,16 e 144,13 (cf. abaixo). Nove palavras qualificadas como hapax legomena absolutos, dentre as quinze que são escolhidas para este artigo, são assinalas na masora parva do Códice de Leningrado (São Petersburgo): Firkowitch I, Evr. I B19a (ML) nas seguintes passagens: Sl 21,3; 42,5; 49,4; 66,11; 68,7.36; 72,6; 88,5 e 124,5 (FREEDMAN et al., 1998, p. 749, 758, 761, 768 [duas vezes], 769, 771, 779 e 797). Contudo, outros seis casos não são assinalados: Sl 71,15; 88,13; 91,8; 107,30; 139,16 e 144,13. Por outro lado, o Códice de Alepo ou Ms. No. 1 do Instituto Ben-Zvi (MA) registra na sua masora parva quase todos aqueles casos que não são anotados na masora parva do Códice ML: Sl 71,15; 88,13; 91,8; 139,16 e 144,13 (GOSHEN-GOTTSTEIN, 1976, p. תקה, תקיד, תקטז, תקלה e תקלז). Somente há uma ocorrência em que os dois códices massoréticos não fornecem nenhuma anotação: Sl 107,30.
O objetivo principal do presente artigo é verificar, mesmo de maneira sucinta, como as quinze unidades lexicais excepcionais do texto bíblico hebraico (cf. abaixo), geralmente de difícil tradução, foram tratadas na Vulgata e como teria sido a relação de tal versão bíblica clássica com o Texto Protomassorético (a Vorlage hebraica que lhe serviu de fonte) e a Septuaginta na solução do problema de natureza tradutória.[2] A tradução em português dos quinze vocábulos do texto bíblico hebraico no livro dos Salmos é baseada na obra Antigo Testamento Interlinear Hebraico-Português, vol. 4: Escritos (ATI) (FRANCISCO, 2020, p. 2-150).
O presente artigo tem como fonte a editio critica minor da Vulgata, de acordo com Weber-Gryson (WEBER E GRYSON, 2007), que por sua vez é baseada em manuscritos medievais mais importantes do texto bíblico latino e também na editio critica major Biblia Sacra iuxta latinam Vulgatam versionem ad codicum fidem iussu Pii PP. XI cura et studio Monachorum Abbatiae Pontificiae S. Hieronymi in Urbe ordinis S. Benedicti edita, editada por Francis A. Gasquet et alii (ROMA, 1926-1996). Na publicação de Weber- Gryson, no livro dos Salmos, constam duas versões latinas distintas do referido escrito bíblico, sendo impressas lado a lado: o Psalterium Gallicanum (lat. Saltério Galicano ou Saltério Gaulês) e o Psalterium iuxta Hebraeos (lat. Saltério segundo os Hebreus) (WEBER E GRYSON, 2007, p. 770-955). As duas traduções possuem os seguintes títulos na edição de Weber-Gryson: Incipit liber Psalmorum iuxta Septuaginta emendatus (lat. O livro dos Salmos inicia segundo a Septuaginta corrigida) para o Psalterium Gallicanum e Incipit liber Psalmorum iuxta Hebraicum translatus (lat. O livro dos Salmos inicia segundo o hebraico traduzido) para o Psalterium iuxta Hebraeos (WEBER E GRYSON, 2007, p. 770-771). Jerônimo de Estridônia (Eusebius Sophronius Heronymus) (c. 347-419/420) produziu ambas as obras: o Psalterium Gallicanum foi traduzido do grego em torno de 388, tendo como base a Septuaginta, de acordo com a quinta coluna da Héxapla e o Psalterium iuxta Hebraeos foi vertido do hebraico por volta de 392, tendo como fonte o Texto Protomassorético. Antes de tais obras de tradução, segundo determinados estudiosos, Jerônimo de Estridônia teria produzido ainda o Psalterium Romanum (lat. Saltério Romano), em torno de 384, e que teria sido uma mera revisão da Vetus Latina com base na Septuaginta, entretanto, há dúvidas se tal tarefa teria sido efetuada por ele próprio (ROBERTS, 1951, p. 248-252; WÜRTHWEIN, 1995, p. 95-96; TOV, 2012, p. 153; idem, 2017, p. 155; FISCHER, 2013, p. 137; ROGERS, 2017, p. 104; MACKENZIE, 1984, p. 970; TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 423; FRANCISCO, 2008, p. 519-521). O Psalterium Gallicanum acabou sendo usado na liturgia cristã ocidental de tradição romana, principalmente na região da antiga Gália (correspondente a partes da costa sul da atual França) a partir do 8º século e, além disso, se tornou a versão padrão em latim dos Salmos em manuscritos medievais da Vulgata, a partir da recensão de Alcuíno de Iorque (735-804), por volta de 797. O Psalterium iuxta Hebraeos acabou sendo destinado, principalmente, para a utilização dos eruditos em seus estudos sobre o texto bíblico (GRIBOMONT, 2013, p. 1372; FISCHER, 2013, p. 137-138; ROGERS, 2017, p. 104; FRANCISCO, 2008, p. 523, 524 e 639).
וַאֲרֶ֫שֶׁת שְׂפָתָיו (hebr. e o desejo dos lábios dele). O vocábulo אֲרֶ֫שֶׁת (hebr. desejo) é um hapax legomenon absoluto, sendo registrado unicamente no Salmo 21,3 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 120), podendo ter as acepções desejo, anseio, petição, pedido, requerimento, sendo que alguns hebraístas relacionam tal palavra com a hipotética raiz verbal ארשׁ (hebr. desejar, requerer) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 77; KOEHLER e BAUMGARTNER, 2001, p. 92; CLINES, 2009, p. 34; HOLLADAY, 2010, p. 38; KIRST et al., 2014, p. 19; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 79; DAVIDSOn, 2018, p. 187). A expressão toda é traduzida tanto no Psalterium Gallicanum quanto no Psalterium iuxta Hebraeos (20,3) como et voluntate labiorum eius (lat. e desde a vontade dos lábios dele).[3] Na Septuaginta (20,3) a locução é vertida como καὶ τὴν θέλησιν τῶν χειλέων αὐτοῦ (gr. e o desejo dos lábios dele). Basicamente, é possível perceber que nas duas versões bíblicas clássicas consta a mesma maneira de tradução: vontade, desejo. A lexia voluntas (lat. vontade) pode também ter outras acepções, como desejo, desígnio, plano, projeto (Gaffiot, 2000, p. 1720; Santos Saraiva, 2000, p. 1289). A unidade lexical θέλησις (gr. desejo, vontade) (Bailly, 2000, p. 921; MURAOKA, 2009, p. 325; Pereira, 1998, p. 263) é uma das opções de tradução para alguns vocábulos hebraicos, como, por exemplo, אֲרֶ֫שֶׁת (hebr. desejo) e רָצוֹן (hebr. favor, agrado, desejo, vontade) (MURAOKA, 2010, p. 56 e 155), sendo sinônimo do item lexicográfico θέλημα (gr. desejo, vontade) (BAILLY, 2000, p. 921; MURAOKA, 2009, p. 325; PEREIRA, 1998, p. 263). Então, as duas versões do livro dos Salmos da Vulgata refletem o campo semântico tanto do texto bíblico hebraico quanto do texto bíblico grego.
בַּסָּךְ (hebr. com a aglomeração). A palavra סָךְ (hebr. aglomeração) é um hapax legomenon absoluto, sendo encontrado no Salmo 42,5 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 808). Diversos hebraístas demonstram dúvidas em relação ao significado preciso de tal item lexical: turba, multidão, ajuntamento, aglomeração (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 697; CLINES, 2009, p. 296; HOLLADAY, 2010, p. 363; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 466; DAVIDSON, 2018, p. 852). Alguns estudiosos não fornecem nenhuma acepção possível, apenas se limitando a informar que se trata de lexia de significado incerto e fazem conexão com a palavra סֹךְ (hebr. ramada, esconderijo, caverna), pois ambas possuem as mesmas consoantes, mas diferem apenas na vocalização (KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 752; KIRST et al., 2014, p. 167). Determinados hebraístas relacionam tal item lexicográfico ora com a raiz verbal I סכך (hebr. cobrir, encobrir) ora com a raiz verbal II סכך (hebr. tecer, trançar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 697; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 752; CLINES, 2009, p. 296; DAVIDSON, 2018, p. 852). A palavra em relevo é vertida no Psalterium Gallicanum (41,5) como in loco tabernaculi (lat. em lugar do tabernáculo) e no Psalterium iuxta Hebraeos (41,5) como ad umbraculum (lat. até o caramanchão). Na Septuaginta (41,5) a lexia em destaque é traduzida como ἐν τόπῳ σκηνῆς (gr. em lugar de tenda). Pelo visto, as duas antigas versões bíblicas vincularam tal unidade lexicográfica com a raiz verbal I סכך (hebr. cobrir, encobrir). Ainda no texto bíblico grego, a palavra σκηνή (gr. tenda, barraca, cabana, espaço para morar) (BAILLY, 2000, p. 1758; MURAOKA, 2009, p. 624; PEREIRA, 1998, p. 519) é uma das alternativas de tradução para os seguintes vocábulos hebraicos: אֹ֫הֶל (hebr. tenda), מִשְׁכָּן (hebr. tabernáculo), סֹךְ (hebr. ramada, esconderijo, caverna), סֻכָּה (hebr. cabana), entre outros (MURAOKA, 2010, p. 107 e 289). No texto bíblico latino, as lexias tabernaculum (lat. tabernáculo, tenda, barraca, abrigo, habitação) e umbracula (lat. sombra, caramanchão, abrigo) (GAFFIOT, 2000, p. 1561 e 1651; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1175 e 1240) evidenciam que Jerônimo de Estridônia as vinculou com a raiz verbal I סכך (hebr. cobrir, encobrir), lendo a palavra como סֹךְ (hebr. ramada, esconderijo, caverna) e não como סָךְ (hebr. turba, multidão, ajuntamento, aglomeração), como está no texto bíblico hebraico de tradição massorética. Será que no Texto Protomassorético da época de Jerônimo de Estridônia, o vocábulo סך, que não possuía ainda vocalização, era lido como סֹךְ e não como סָךְ no Salmo 42,5? Se sim, a leitura teria sido, hipoteticamente, בַּסֹּךְ (hebr. na ramada, no esconderijo, na caverna), que estaria na Vorlage hebraica que serviu de fonte para a Vulgata, o que justificaria as escolhas de tradução no Psalterium Gallicanum e no Psalterium iuxta Hebraeos, como tabernaculum e umbracula, respectivamente. Por fim, na versão grega de Símaco, o vocábulo בַּסָּךְ (hebr. com a aglomeração) é vertido como εἰς τὴν σκηνὴν (gr. para a tenda) (FIELD, 1875, p. 155), que poderia ter influenciado, possivelmente, Jerônimo de Estridônia na leitura umbracula (lat. sombra, caramanchão, abrigo) como alternativa de tradução no Psalterium iuxta Hebraeos.
וְהָגוּת לִבִּי (hebr. e a meditação do meu coração). A lexia הָגוּת (hebr. meditação) é também outro caso de hapax legomenon absoluto, sendo encontrado tão somente no Salmo 49,4 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 279), podendo ser traduzido como meditação, reflexão, pensamento, planejamento (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 212; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 238; CLINES, 2009, p. 85; HOLLADAY, 2010, p. 106; KIRST et al., 2014, p. 52; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 167; DAVIDSON, 2018, p. 339). Dentre tais hebraístas, alguns vinculam tal unidade lexical à raiz verbal I הגה (hebr. murmurar, exprimir, falar, meditar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 212; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 238; CLINES, 2009, p. 85; KIRST et al., 2014, p. 52; DAVIDSON, 2018, p. 339). No Psalterium Gallicanum (48,4) e no Psalterium iuxta Hebraeos (48.4) a locução toda é traduzida como et meditatio cordis mei (lat. e a meditação do meu coração). Na Septuaginta (48,4) a mesma expressão é vertida como καὶ ἡ μελέτη τῆς καρδίας μου (gr. e a ponderação do meu coração). Tanto os dois textos bíblicos latinos quanto o texto bíblico grego refletem o mesmo campo semântico do item lexicográfico הָגוּת (hebr. meditação, reflexão, pensamento, planejamento) do texto bíblico hebraico. Basicamente, na Septuaginta o vocábulo μελέτη (gr. ponderação, ação de ocupar-se de alguém) (BAILLY, 2000, p. 1244; MURAOKA, 2009, p. 447; PEREIRA, 1998, p. 362) é umas das escolhas para a tradução das palavras הָגוּת (hebr. meditação), הָגִיג (hebr. gemido), שִׂיחָה (hebr. preocupação, meditação), entre outras da Bíblia Hebraica (MURAOKA, 2010, p. 77 e 184). No texto bíblico latino, o item lexical meditatio (lat. meditação, reflexão) (GAFFIOT, 2000, p. 969; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 722) confirma que o tradutor das duas versões do livro dos Salmos da Vulgata a conectou com a raiz verbal I הגה (hebr. murmurar, exprimir, falar, meditar) do Texto Protomassorético.
מוּעָקָה בְמָתְנֵינוּ (hebr. aflição aos nossos lombos). No Salmo 66,11 é encontrada a lexia מוּעָקָה (hebr. aflição), sendo outra ocorrência de hapax legomenon absoluto (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 632). As acepções possíveis para o item lexicográfico em relevo são aperto, aflição, angústia, tormento, carga, fardo, sofrimento opressivo, miséria, privação, compressão, sendo derivado da hipotética raiz verbal עוק (hebr. apertar, esmagar, estar em necessidade, estar em tribulação) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 734; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 558, 559 e 802; CLINES, 2009, p. 209 e 316; HOLLADAY, 2010, p. 264; KIRST et al., 2014, p. 119; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 361 e 485; DAVIDSON, 2018, p. 872). No Psalterium Gallicanum (65,11) a locução em destaque é vertida como tribulations in dorso nostro (lat. tribulações em nosso dorso) e no Psalterium iuxta Hebraeos (65,11) é traduzida como stridorem in dorso nostro (lat. estridor em nosso dorso). As duas versões latinas apresentam traduções similares entre si, apenas diferindo no primeiro componente da locução: tribulations e stridorem, respectivamente. Na Septuaginta (65,11) o trecho é vertido como θλίψεις ἐπὶ τὸν νῶτον ἡμῶν (gr. tribulações sobre o nosso dorso). O vocábulo θλῖψις (gr. angústia, tribulação, dificuldade, sofrimento, adversidade, opressão, pressão) (BAILLY, 2000, p. 939; MURAOKA, 2009, p. 331; PEREIRA, 1998, p. 269) é uma das escolhas para a tradução das seguintes lexias hebraicas: מוּעָקָה (hebr. aflição), מְצוּקָה (hebr. aperto), מָצוֹק (hebr. aperto), entre outras (MURAOKA, 2010, p. 57 e 248). A palavra tribulatio (lat. tribulação, tormento) (GAFFIOT, 2000, p. 1625; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1221), que é achada no Psalterium Gallicanum, revela a sua base textual que é a Septuaginta, que possui a leitura θλῖψις (gr. angústia, tribulação). Entretanto, a lexia stridor (lat. estridor, rangido, ruído) (GAFFIOT, 2000, p. 1505; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1133), que é encontrada no Psalterium iuxta Hebraeos, apresenta dificuldades, pois no texto bíblico hebraico de tradição massorética é registrado o item lexical מוּעָקָה (hebr. aflição), que é derivado da suposta raiz verbal עוק (hebr. apertar, esmagar, estar em necessidade, estar em tribulação), que não possui registro no texto bíblico hebraico. Brown, Driver e Briggs e Koehler e Baumgartner comentam que se trata de unidade lexicográfica duvidosa, propondo a leitura מְצוּקָה (hebr. aperto) ou outro item lexical sinônimo proveniente da raiz verbal צוק (hebr. apertar, oprimir) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 734; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 558). Portanto, não é possível saber com certeza absoluta qual teria sido o vocábulo no Texto Protomassorético para justificar a palavra stridor (lat. estridor, rangido, ruído) no Psalterium iuxta Hebraeos.[4] Por último, na versão grega de Áquila a expressão é traduzida como τρισμὸν ἐν τῷ νώτῳ ἡμῶν (gr. grito agudo no nosso dorso) (FIELD, 1875, p. 198). A lexia τρισμός (gr. grito agudo) (BAILLY, 2000, p. 1963; PEREIRA, 1998, p. 582) pode ter sido a referência para Jerônimo de Estridônia, ao adotar o vocábulo stridor (lat. estridor, rangido, ruído) como escolha de tradução no Psalterium iuxta Hebraeos.
בַּכּוֹשָׁרוֹת (hebr. por meio das kosharote). A unidade lexicográfica כּוֹשָׁרָה (hebr. koshará [?]), que é forma singular hipotética, é de significado complexo no contexto do Salmo 68,7, sendo outra ocorrência de hapax legomenon absoluto (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 527). Em diversas obras dicionarísticas dedicadas ao hebraico bíblico, a lexia em destaque é definida, mas com dúvidas, como prosperidade, fortuna, sucesso, alegria, cadeia, música, koshará (deusa cananita) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 507; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 467; CLINES, 2009, p. 174; HOLLADAY, 2010, p. 218; KIRST et al., 2014, p. 100; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 310; DAVIDSON, 2018, p. 625). Alguns hebraístas conectam a palavra à raiz verbal כשׁר (hebr. prosperar, ter sucesso, ser acertado, sair bem) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 507; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 467; DAVIDSON, 2018, p. 625), porém, nem todos os demais eruditos acatam tal asserção. Na Vulgata (67,7), segundo o Psalterium Gallicanum e o Psalterium iuxta Hebraeos, a leitura é in fortitudine (lat. com fortaleza). Na Septuaginta (67,7) a leitura é ἐν ἀνδρείᾳ (gr. em atitude corajosa). Em virtude da complexidade de tradução e por não haver nenhuma escolha que pudesse ser segura e definitiva, no ATI foi adotada simples transcrição fonética da unidade lexical em destaque no Salmo 68,7, tendo como base Clines (a terceira escolha) (CLINES, 2009, p. 174). A adoção pela alternativa fornecida pela obra de Clines é por causa de ser uma das publicações mais recentes dedicadas à lexicografia do hebraico bíblico (FRANCISCO, 2020, p. xxii). O vocábulo ἀνδρεία (gr. atitude corajosa, energia, bravura, virilidade, valentia) (BAILLY, 2000, p. 148; MURAOKA, 2009, p. 48; PEREIRA, 1998, p. 46) é a opção de tradução para a palavra כּוֹשָׁרָה (hebr. koshará [?]) na Septuaginta (MURAOKA, 2010, p. 10 e 231), sendo a única ocorrência de tal uso. A palavra fortitudo (lat. força, solidez, firmeza) (GAFFIOT, 2000, p. 689; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 501), presente nas duas versões latinas do livro dos Salmos, manifesta, de alguma maneira, a leitura do texto bíblico grego. Além disso, a opção de tradução no texto bíblico latino não reflete as possíveis acepções da raiz verbal כשׁר (hebr. prosperar, ter sucesso, ser acertado, sair bem) do texto bíblico hebraico.
וְתַעֲצֻמוֹת (hebr. e robustezes). Como nos demais casos, a unidade lexical תַּעֲצֻמָה (hebr. robustez) é também um hapax legomenon absoluto, sendo registrada unicamente no Salmo 68,36 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 1236). Os possíveis significados da palavra em destaque são vigor, robustez, força, poder, firmeza, sendo derivada da raiz verbal I עצם (hebr. ser forte, ser poderoso, ser numeroso, fortalecer-se, tornar forte) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 782-783; KOEHLER E BAUMGARTNEr, 2001, p. 868 e 1770; Clines, 2009, p. 339 e 492; HOLLADAy, 2010, p. 397 e 560; KIRST et al., 2014, p. 185 e 269; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 513 e 707; DAVIDSON, 2018, p. 894). No Psalterium Gallicanum (67,36) a palavra é vertida como et fortitudinem (lat. e fortaleza) e no Psalterium iuxta Hebraeos (67,36) é traduzida como et robur (lat. e robustez). Na Septuaginta (67,36) a lexia em relevo é vertida como καὶ κραταίωσιν (gr. e força). Na antiga versão grega da Bíblia, a unidade lexical κραταίωσις (gr. força) (BAILLY, 2000, p. 1131; MURAOKA, 2009, p. 410) é a escolha de tradução para os itens lexicográficos תַּעֲצֻמָה (hebr. robustez) e מָעוֹז (hebr. fortaleza) (MURAOKA, 2010, p. 70 e 382). As lexias fortitudo (lat. força, solidez, firmeza) e robur (lat. robustez, vigor, energia) (GAFFIOT, 2000, p. 689; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 501 e 1043), encontrados no texto bíblico latino, revelam o campo semântico da raiz verbal I עצם (hebr. ser forte, ser poderoso, ser numeroso, fortalecer-se, tornar forte) da Vorlage hebraica que lhe serviu de fonte, o mesmo acontecendo com o texto bíblico grego. Por fim, as duas versões bíblicas clássicas concordam entre si ao traduzirem o item lexicográfico hebraico no singular, sendo que está no plural no texto bíblico hebraico.
סְפֹרוֹת (hebr. números). O vocábulo סְפֹרָה (hebr. número [?]) é de significação incerta, além de ser um hapax legomenon absoluto, sendo achado unicamente no Salmo 71,15 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 815). Nas diversas obras lexicográficas dedicadas ao hebraico bíblico são encontradas algumas acepções possíveis, apesar dos hebraístas demonstrarem dúvidas, como número, soma, letra, expressar-se, ler, arte da escrita, sendo derivação da raiz verbal ספר (hebr. enumerar, numerar, contar, recontar, narrar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 707-708; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 765 e 768; CLINES, 2009, p. 302-303; HOLLADAY, 2010, p. 368; KIRST et al., 2014, p. 170; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 470-471; DAVIDSON, 2018, p. 857). Tal palavra é derivada da raiz verbal ספר (hebr. enumerar, numerar, contar, recontar, narrar). No ATI, a lexia em destaque é traduzida como números, sendo baseada em Brown, Driver e Briggs, Clines (a primeira alternativa), Kirst et alii e Davidson (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 708; CLINES, 2009, p. 303; KIRST et al., 2014, p. 170; DAVIDSON, 2018, p. 857), apesar de não haver certeza absoluta se tal escolha é a mais adequada possível (FRANCISCO, 2020, p. xxiii). O vocábulo סְפֹרָה (hebr. número [?]) é traduzido na Vulgata (70,15), conforme o Psalterium Gallicanum, como litteraturam (lat. a literatura) e conforme o Psalterium iuxta Hebraeos, como litteraturas (lat. as literaturas). Na Septuaginta (70,15), o item lexical hebraico em revelo é vertido como γραμματείας (gr. temas de aprendizagem). No antigo texto bíblico grego, a palavra γραμματεία (gr. tema de aprendizagem, função de secretaria, instrução, ciência) (Bailly, 2000, p. 418; Muraoka, 2009, p. 136; Pereira, 1998, p. 116) é a correspondente para o vocábulo סְפֹרָה (hebr. número [?]) (MURAOKA, 2010, p. 25 e 292) da possível Vorlage hebraica que lhe serviu de fonte. Neste tópico, percebe-se que a Vulgata tende a ser mais próxima da Septuaginta do que da Vorlage hebraica que lhe serviu de base, ao traduzir a palavra סְפֹרָה (hebr. número [?]) como litteratura (lat. arte de escrever, escritura, literatura, gramática, alfabeto) (GAFFIOT, 2000, p. 926; Santos SARAIVA, 2000, p. 684). Tal constatação pode ser em virtude da dificuldade que Jerônimo de Estridônia enfrentou ao verter a lexia em realce que é um hapax legomenon absoluto do texto bíblico hebraico. Contudo, a alternativa de tradução registrada na Vulgata ainda mantém algo do campo semântico da raiz verbal ספר (hebr. enumerar, numerar, contar, recontar, narrar).
זַרְזִיף אָ֫רֶץ (hebr. aguaceiro de terra). O item lexicográfico זַרְזִיף (hebr. aguaceiro) somente é registrado no Salmo 72,6, sendo mais um caso de hapax legomenon absoluto, igual às demais ocorrências analisadas neste estudo (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 339). As definições possíveis para tal unidade lexical são aguaceiro, chuvisco, orvalho, chuva abundante, regadura, gotejamento (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 284; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 281; CLINES, 2009, p. 104; HOLLADAY, 2010, p. 130; KIRST et al., 2014, p. 61; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 199; DAVIDSON, 2018, p. 438). Koehler e Baumgartner e Holladay propõem a conjectura de que a palavra em destaque seria uma forma verbal, derivada da pressuposta raiz verbal I זרף (hebr. gotejar, pingar, regar, jorrar), na conjugação pilpel, tendo a redação זִרְזְפוּ, podendo ser vertida como regaram fartamente (KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 283; HOLLADAY, 2010, p. 130). Os demais hebraístas, não aderindo a tal hipótese, conectam o vocábulo com a presumível raiz verbal I זרף (hebr. gotejar, pingar, regar, jorrar), mesmo que não seja registrada na Bíblia Hebraica (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 284; CLINES, 2009, p. 104; DAVIDSON, 2018, p. 438). No Psalterium Gallicanum (71,6) é encontrada a leitura stillicidia stillantia super terram (lat. gotas a gotas que gotejam sobre a terra) e no Psalterium iuxta Hebraeos (71,6) é achada a leitura stillae inrorantes terram (lat. gotas que regam a terra). Ambos os textos latinos dos Salmos apresentam quase a mesma leitura. Na Septuaginta (71,6) é registrada a leitura σταγόνες στάζουσαι ἐπὶ τὴν γῆν (gr. gotas que gotejam sobre a terra). A lexia σταγών (gr. gota) (BAILLY, 2000, p. 1782; MURAOKA, 2009, p. 632; PEREIRA, 1998, p. 526) é a alternativa de tradução para a unidade lexical זַרְזִיף (hebr. aguaceiro) na Septuaginta (MURAOKA, 2010, p. 108 e 193). O vocábulo stillicidium (lat. gota a gota) (GAFFIOT, 2000, p. 1499; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1128), do Psalterium Gallicanum, naturalmente reflete a fonte grega, a Septuaginta. Porém, a palavra sinônima sttila (lat. gota, pingo) (GAFFIOT, 2000, p. 1499; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1128), do Psalterium iuxta Hebraeos, revela maior proximidade com a Septuaginta do que com a Vorlage hebraica que lhe serviu de fonte, por se tratar, provavelmente, de situação de difícil tradução. O possível motivo da dificuldade no Psalterium iuxta Hebraeos é que a conjectural raiz verbal I זרף (hebr. gotejar, pingar, regar, jorrar) não ser registrada no texto bíblico hebraico. Tal circunstância poderia explicar a razão de Jerônimo de Estridônia adotar uma leitura muito próxima do texto bíblico grego na versão Psalterium iuxta Hebraeos, a mantendo, quase igual, à versão Psalterium Gallicanum. Nas três versões gregas, Áquila, Símaco e o kaige-Teodocião, a unidade lexical זַרְזִיף (hebr. aguaceiro) é traduzida como ψεκάδες (gr. gotas de chuva) (FIELD, 1875, p. 211). O item lexicográfico ψακάς/ψεκάς (gr. gota de chuva) (BAILLY, 2000, p. 2166; MURAOKA, 2009, p. 741; PEREIRA, 1998, p. 636) pode ter sido a referência para Jerônimo de Estridônia, ao aceitar a palavra sttila (lat. gota, pingo) como opção de tradução no Psalterium iuxta Hebraeos.
כְּגֶ֫בֶר אֵין־אֱיָל (hebr. como varão não há viço). Da mesma maneira dos demais casos estudados neste artigo, a unidade lexical אֱיָל (hebr. viço), encontrado no Salmo 88,5, é outro hapax legomenon absoluto (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 46). De acordo com lexicógrafos bíblicos, a lexia em evidência pode ter as significações força, vigor, socorro, sendo derivada da raiz verbal אול (hebr. ser forte, ser poderoso) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 33; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 40; CLINES, 2009, p. 15; HOLLADAY, 2010, p. 16; KIRST et al., 2014, p. 9; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 47; DAVIDSON, 2018, p. 145; JASTROW, 2005, p. 33 e 48; DAVIDSON, 2018, p. 145; JASTROW, 2005, p. 48). No Psalterium Gallicanum (87,5) a leitura é sicut homo sine adiutorio (lat. como homem sem socorro) e no Psalterium iuxta Hebraeos (87,5) a leitura é quasi homo invalidus (lat. quase homem débil). Na Septuaginta (87,5) a leitura encontrada é ὡς ἄνθρωπος ἀβοήθητος (gr. como ser humano desamparado). O item lexicográfico ἀβοήθητος (gr. desamparado, sem recursos, sem auxílio possível) (BAILLY, 2000, p. 3; MURAOKA, 2009, p. 1; PEREIRA, 1998, p. 2) serviu de opção de tradução para a unidade lexical אֱיָל (hebr. viço) no antigo texto bíblico grego (MURAOKA, 2010, p. 3 e 145). A unidade lexical adiutorium (lat. ajuda, auxílio, socorro) (GAFFIOT, 2000, p. 45; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 27), do Psalterium Gallicanum, confirma a opção de tradução da Septuaginta e o item lexicográfico invalidus (lat. fraco, débil, doente, achacado) (GAFFIOT, 2000, p. 861; Santos Saraiva, 2000, p. 632), do Psalterium iuxta Hebraeos, pode ter sido uma interpretação ao invés de um tradução da expressão אֵין־אֱיָל (hebr. não há viço) que estaria na Vorlage hebraica que lhe serviu de referência. Na versão grega de Símaco, a locução é vertida como οὐκ ἰσχύων (gr. sem forças) (FIELD, 1875, p. 239), que reflete de maneira mais próxima a sua Vorlage hebraica. Não é possível saber, com certeza absoluta, se Jerônimo de Estridônia poderia ou não ter tomado o item lexical ἰσχύς (gr. força, vigor, firmeza) (BAILLY, 2000, p. 985; MURAOKA, 2009, p. 345; PEREIRA, 1998, p. 283), que consta na versão de Símaco, como alguma referência para a unidade lexicográfica invalidus (lat. fraco, débil, doente, achacado) como alternativa de tradução no Psalterium iuxta Hebraeos.
בְּאֶ֫רֶץ נְשִׁיָּה (hebr. em terra de esquecimento?). A palavra נְשִׁיָּה (hebr. esquecimento) é registrada tão somente no Salmo 88,13, sendo também outra ocorrência de hapax legomenon absoluto do texto bíblico hebraico (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 786). Os significados da lexia em destaque são esquecimento e oblívio, tendo proveniência na raiz verbal I נשׁה (hebr. esquecer, esquecer-se, ser esquecido, fazer esquecer, olvidar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 674; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 729; CLINES, 2009, p. 286; HOLLADAY, 2010, p. 351; KIRSt et al., 2014, p. 162; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 454; DAVIDSON, 2018, p. 838). No Psalterium Gallicanum (87,13) é encontrada a leitura in terra oblivionis (lat. na terra do esquecimento) e no Psalterium iuxta Hebraeos (87,13) é achada a leitura in terra quae oblivioni (lat. na terra que é esquecida). Na Septuaginta (87,13) é encontrada a leitura ἐν γῇ ἐπιλελησμένῃ (gr. em terra a que é esquecida). A palavra נְשִׁיָּה (hebr. esquecimento) do texto bíblico hebraico foi traduzido como ἐπιλανθάνομαι (gr. esquecer, esquecer-se) (BAILLY, 2000, p. 758; MURAOKA, 2009, p. 275-276; PEREIRA, 1998, p. 214) no texto bíblico grego (MURAOKA, 2010, p. 48 e 284). A unidade lexicográfica oblivium (lat. esquecimento) é um substantivo neutro (GAFFIOT, 2000, p. 1069; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 800) e a unidade lexicográfica obliviscor (lat. esquecer, esquecer-se, olvidar) é um item verbal (GAFFIOT, 2000, p. 1069; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 800). Neste ponto, o Psalterium Gallicanum se afasta da sua fonte grega, ao traduzir a forma verbal ἐπιλελησμένῃ (gr. a que é esquecida) por um substantivo (lat. oblivionis, do esquecimento) e não por uma forma verbal. O Psalterium iuxta Hebraeos também se distancia da sua Vorlage hebraica ao verter o substantivo נְשִׁיָּה (hebr. esquecimento) por um item verbal (lat. oblivioni, é esquecida) e não por um substantivo. Nesta última situação, que é inusitada, a versão latina, baseada no texto bíblico hebraico, se aproxima do texto bíblico grego e a versão latina, fundamentada no texto bíblico grego, se acerca do texto bíblico hebraico (!).
וְשִׁלֻּמַת רְשָׁעִים (hebr. e retribuição de ímpios). O vocábulo שִׁלֻּמָה (hebr. retribuição) no Salmo 91,8 é outro caso de hapax legomenon absoluto (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 1148), podendo ser vertido como retribuição, recompensa, paga, revide, retaliação, tendo procedência na raiz verbal שׁלם (hebr. restituir, retribuir, recompensar, ressarcir, reembolsar, pagar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 1022 e 1024; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 1534 e 1540; CLINEs, 2009, p. 465; HOLLADAy, 2010, p. 531; KIRSt et al., 2014, p. 253-254; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 675-676; DAVIDSON, 2018, p. 1031). No Psalterium Gallicanum (90,8) a expressão em realce é traduzida como et retributionem peccatorum (lat. e a retribuição dos pecadores) e no Psalterium iuxta Hebraeos (90,8) é vertida como et ultionem impiorum (lat. e a punição dos ímpios). Na Septuaginta (90,8) a referida locução é traduzida como καὶ ἀνταπόδοσιν ἁμαρτωλῶν (gr. e recompensa de pecadores). No texto bíblico grego, a palavra ἀνταπόδοσις (gr. recompensa, retribuição, restituição) (BAILLY, 2000, p. 173; MURAOKA, 2009, p. 57) é a tradução para o vocábulo שִׁלֻּמָה (hebr. retribuição) (MURAOKA, 2010, p. 12 e 369). O vocábulo retributio (lat. retribuição, recompensa) (GAFFIOT, 2000, p. 1376; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1036), do Psalterium Gallicanum, de maneira inequívoca, se baseia na palavra ἀνταπόδοσις (gr. recompensa, retribuição, restituição) do texto bíblico grego. Contudo, o item lexical ultio (lat. punição, castigo) (Gaffiot, 2000, p. 1650; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1239), do Psalterium iuxta Hebraeos, apresenta problemas, pois no texto bíblico hebraico consta o item lexicográfico שִׁלֻּמָה (hebr. retribuição, recompensa, paga, revide, retaliação). Normalmente, dentro do campo semântico da raiz verbal שׁלם (hebr. restituir, retribuir, recompensar, ressarcir, reembolsar, pagar) não consta a acepção de castigar, punir, penitenciar. Será que poderia ter havido alguma hipotética leitura diferente na Vorlage hebraica que serviu de base para a tradução do Psalterium iuxta Hebraeos ou o campo semântico da referida raiz verbal hebraica seria mais amplo, incluindo, ainda, os significados de castigar, punir, penitenciar? Tais suposições poderiam justificar ou explicar a leitura que é registrada na mencionada versão latina do livro dos Salmos. Infelizmente, não é possível saber de maneira definitiva o que poderia ter acontecido. Por fim, no manuscrito 11QapSl consta a seguinte variante textual no Salmo 91,8: שלום (שִׁלּוּם) (hebr. retribuição de) (ULRICH, 2010, p. 654). Tal variante textual é sinônima da lexia שִׁלֻּמָה (hebr. retribuição, recompensa, paga etc.), que consta no texto bíblico hebraico de tradição massorética no Salmo 91,8.[5]
אֶל־מְחוֹז חֶפְצָם (hebr. para o porto do agrado deles). Da mesma maneira das outras palavras que são hapax legomenon absolutos analisadas neste estudo, a lexia מָחוֹז (hebr. porto), encontrada no Salmo 107,30, também apresenta a mesma característica (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 641). As acepções do vocábulo são porto, refúgio, cidade, ancoradouro, sendo procedente da suposta raiz verbal חוז (hebr. coletar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 562; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 568; CLINES, 2009, p. 213; HOLLADAY, 2010, p. 269; KIRST et al., 2014, p. 121; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 366; DAVIDSON, 2018, p. 445; JASTROW, 2005, p. 757). No Psalterium Gallicanum (106,30) a expressão em relevo é traduzida como in portum voluntatis eorum (lat. no porto da vontade deles) e no Psalterium iuxta Hebraeos (106,30) é vertida como ad portum quem voluerunt (lat. até o porto que tiveram vontade).[6] Na Septuaginta (106,30) a mesma locução é traduzida como ἐπὶ λιμένα θελήματος αὐτῶν (gr. sobre porto de vontade deles). O item lexical λιμήν (gr. porto) (BAILLY, 2000, p. 1193; MURAOKA, 2009, p. 432; PEREIRA, 1998, p. 348) é a escolha de tradução para a unidade lexicográfica מָחוֹז (hebr. porto) (MURAOKA, 2010, p. 74 e 250). O item lexical portus (lat. porto, enseada, angra, baía) (GAFFIOT, 2000, p. 1219; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 920), presente nas duas versões latinas do livro dos Salmos, concorda tanto com o texto bíblico grego quanto com o texto bíblico hebraico. Concluindo, a redação do Texto Massorético é corroborada pela leitura do manuscrito 4QSlf: מחוז (hebr. porto) (Ulrich, 2010, p. 673). Tal manuscrito da caverna 4 de Qumran é também um testemunho da leitura dos textos bíblicos latino e grego.
הַמַּ֫יִם הַזֵּידוֹנִים (hebr. as águas impetuosas). O vocábulo זֵידוֹן (hebr. impetuoso) no Salmo 124,5 é mais uma ocorrência de hapax legomenon absoluto do texto bíblico hebraico (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 329). Segundo os lexicógrafos bíblicos, os significados são impetuoso, fervente, espumejante, transbordante, predominante, tempestuoso, enfurecido, insolência, tendo como base a raiz verbal זיד/זוד (hebr. agir com arrogância, ser presunçoso; esquentar-se, enfurecer-se; aquecer, ferver, cozinhar, guisar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 267-268; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 268; CLINES, 2009, p. 99; HOLLADAY, 2010, p. 124; KIRST et al., 2014, p. 58; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 191-192; DAVIDSON, 2018, p. 429). A locução em destaque é vertida no Psalterium Gallicanum (123,5) como aquam intolerabilem (lat. a água insuportável) e é traduzida no Psalterium iuxta Hebraeos (123,5) como aquae superbae (lat. águas soberbas).[7] Na Septuaginta (123,5) o citado trecho é vertido como τὸ ὕδωρ τὸ ἀνυπόστατον (gr. a água irresistível). O vocábulo ἀνυπόστατος (gr. irresistível) (BAILLY, 2000, p. 192; MURAOKA, 2009, p. 61; PEREIRA, 1998, p. 60), na Septuaginta, é a opção de tradução para a palavra זֵידוֹן (hebr. impetuoso) (MURAOKA, 2010, p. 12 e 191). O item lexicográfico intolerabilis (lat. intolerável, insuportável) (Gaffiot, 2000, p. 858; Santos Saraiva, 2000, p. 630), presente no Psalterium Gallicanum, demonstra afastamento do texto bíblico grego, que possui a leitura ἀνυπόστατος (gr. irresistível). A unidade lexical superbus (lat. soberbo, altivo) (GAFFIOt, 2000, p. 1540; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 1160), constante no Psalterium iuxta Hebraeos, de alguma maneira, reflete uma das possibilidades do campo semântico da raiz verbal זיד/זוד (hebr. agir com arrogância, ser presunçoso; esquentar-se, enfurecer-se; aquecer, ferver, cozinhar, guisar). Neste caso, a versão latina baseada no texto bíblico grego difere da sua fonte e a versão latina fundamentada no texto bíblico hebraico adere, de algum modo, à sua Vorlage. Concluindo este tópico, nas três versões gregas clássicas, Áquila, Símaco e o kaige-Teodocião, a locução é traduzida como τὰ ὕδατα οἱ ὑπερήφανοι (gr. as águas magníficas) (FIELD, 1875, p. 282), que demonstra a sua Vorlage hebraica. O vocábulo ὑπερήφανος (gr. magnífico, esplêndido, orgulhoso, arrogante, desdenhoso) (BAILLY, 2000, p. 2004; MURAOKA, 2009, p. 698; PEREIRA, 1998, p. 592) poderia ter influenciado Jerônimo de Estridônia, ao optar pela palavra superbus (lat. soberbo, altivo) como opção de tradução no Psalterium iuxta Hebraeos.
גָּלְמִי (hebr. o meu embrião). O item lexicográfico גֹּ֫לֶם (hebr. embrião) no Salmo 139,16 é outro caso de hapax legomenon absoluto (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 237). O item lexicográfico em destaque possui algumas acepções, tais como embrião, substância não formada, massa informe, coisa informe, sendo derivação da raiz verbal גלם (hebr. enrolar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 166; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 194; CLINES, 2009, p. 68; HOLLADAY, 2010, p. 84; KIRST et al., 2014, p. 42; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 140; DAVIDSON, 2018, p. 306; JASTROW, 2005, p. 222). No Psalterium Gallicanum (138,16) a unidade lexical é traduzida como inperfectum meum (lat. o meu estado imperfeito) e no Psalterium iuxta Hebraeos (138,16) é vertida como informem adhuc me (lat. o meu estado ainda informe). Na Septuaginta (138,16) a mesma palavra é traduzida como τὸ ἀκατέργαστόν μου (gr. o meu estado informe). No texto bíblico grego, a lexia ἀκατέργαστος (gr. informe, não plenamente formado ainda, não trabalhado) (BAILLY, 2000, p. 57; MURAOKA, 2009, p. 20) é o correspondente para o item lexical גֹּ֫לֶם (hebr. embrião) do texto bíblico hebraico (MURAOKA, 2010, p. 6 e 175). As palavras inperfectus (ou imperfectus) (lat. imperfeito, incompleto) e informis (lat. informe, tosco, bruto, mal formado, disforme) (GAFFIOT, 2000, p. 787 e 825; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 580 e 606) são as escolhas naturais das duas versões latinas do livro dos Salmos para os vocábulos גֹּ֫לֶם (hebr. embrião) e ἀκατέργαστος (gr. informe, não plenamente formado ainda etc.), dos textos bíblicos hebraico e grego, respectivamente. Nesta situação, ambas as versões latinas são fiéis às suas fontes. Na versão grega de Áquila, a supracitada unidade lexicográfica é vertida como τὸ ἀκατέργαστόν μου (gr. o meu estado informe), que concorda com a Septuaginta, e na versão grega de Símaco é traduzida como ἀμόρφωτόν με (gr. me [fitou] amorfo) (FIELd, 1875, p. 294). Os itens lexicais ἀκατέργαστος (gr. informe, não plenamente formado ainda, não trabalhado) e ἄμορφος (gr. amorfo, disforme, sem forma, informe) (BAILLY, 2000, p. 57 e 102; MURAOKA, 2009, p. 20 e 33; PEREIRA, 1998, p. 32) podem ter servido como fundamentação para Jerônimo de Estridônia, na sua escolha de tradução como informis (lat. informe, tosco, bruto, mal formado, disforme) no Psalterium iuxta Hebraeos. Por último, a redação do Texto Massorético é corroborada pela leitura do manuscrito 11QSla: גלמי (hebr. o meu embrião) (ULRICh, 2010, p. 718). Tal manuscrito da caverna 11 de Qumran também atesta a leitura dos textos bíblicos latino e grego.
מְזָוֵינוּ (hebr. os nossos celeiros). A lexia מָ֫זוּ (hebr. celeiro) é um hapax legomenon absoluto, sendo encontrado exclusivamente no Salmo 144,13 (EVEN-SHOSHAN, 1997, p. 640). Nas diversas obras dicionarísticas dedicadas ao hebraico bíblico, o item lexical em realce tem como acepções possíveis armazém, depósito, celeiro, silo, armazém de cereais, sendo derivação das hipotéticas raízes verbais זוה (hebr. pôr de lado, esconder, ocultar) ou מזה (hebr. sugar, mamar) (BROWN, DRIVER E BRIGGS, 1996, p. 264-265; KOEHLER E BAUMGARTNER, 2001, p. 565; CLINES, 2009, p. 211; HOLLADAY, 2010, p. 267; KIRST et al., 2014, p. 120; ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 364; DAVIDSON, 2018, p. 429). Clines conecta a palavra מָ֫זוּ (hebr. celeiro) com o vocábulo מָזֶה (hebr. armazém, repositório) que é encontrado no manuscrito 1QH (CLINES, 2009, p. 211). No Psalterium Gallicanum (143,13) a palavra é vertida como promptuaria eorum (lat. as despensas deles) e no Psalterium iuxta Hebraeos (143,13) é traduzida como promptuaria nostra (lat. as nossas despensas). Na Septuaginta (143,13) o mesmo vocábulo é vertido como τὰ ταμίεια αὐτῶν (gr. os celeiros deles). O item lexical מָ֫זוּ (hebr. celeiro) é traduzido como ταμιεῖον (gr. celeiro, armazém, provisões) (BAILLY, 2000, p. 1894; MURAOKA, 2009, p. 669; PEREIRA, 1998, p. 565) na Septuaginta (MURAOKA, 2010, p. 115 e 250). A lexia promptuarium (lat. dispensa, armazém) (GAFFIOT, 2000, p. 1270; SANTOS SARAIVA, 2000, p. 963) foi a opção de tradução que Jerônimo de Estridônia escolheu tanto para o Psalterium Gallicanum quanto para o Psalterium iuxta Hebraeos para traduzir a palavra ταμιεῖον (gr. celeiro, provisões) da Septuaginta e a lexia מָ֫זוּ (hebr. celeiro) da Vorlage hebraica que lhe serviu de base. Além disso, ambas as versões latinas do livro dos Salmos são fiéis aos textos bíblicos grego e hebraico dos quais derivam, ao manterem os pronomes possessivos: deles (Psalterium Gallicanum e Septuaginta) e nossos (Psalterium iuxta Hebraeos e Texto Protomassorético). Terminando este tópico, na passagem bíblica em destaque, Áquila possui a leitura αἱ ἀποθῆκαι ἡμῶν (gr. os nossos armazéns) e Símaco possui a leitura τὰ ταμεῖα ἡμῶν (gr. os nossos celeiros) (FIELD, 1875, p. 300). Os itens lexicográficos ἀποθήκη (gr. armazém, depósito, adega) e ταμιεῖον (gr. celeiro, armazém, provisões) (BAILLY, 2000, p. 224 e 1894; MURAOKA, 2009, p. 74 e 669; PEREIRA, 1998, p. 70 e 565) corroboram a tradução do Psalterium iuxta Hebraeos, inclusive, na fidelidade em se traduzir o pronome possessivo no plural (nossos) e a forma do vocábulo מָ֫זוּ (hebr. celeiro) também no plural (celeiros).
Como estatística geral, no quadro sinóptico abaixo, constam informações em que o Psalterium Gallicanum e o Psalterium iuxta Hebraeos são iguais (=) ou diferentes (≠) das suas fontes textuais, a Septuaginta e o Texto Protomassorético, respectivamente, nos quinze casos de hapax legomena absolutos no livro dos Salmos que foram elencados e discutidos neste breve estudo:
textos bíblicos latinos |
= ou ≠ |
textos bíblicos grego e hebraico |
quantidade de casos |
Psalterium Gallicanum |
= |
Septuaginta |
12 |
Psalterium Gallicanum |
≠ |
Septuaginta |
3 |
Psalterium Gallicanum |
= |
Texto Protomassorético |
1 |
|
|
|
|
Psalterium iuxta Hebraeos |
= |
Texto Protomassorético |
8 |
Psalterium iuxta Hebraeos |
≠ |
Texto Protomassorético |
7 |
Psalterium iuxta Hebraeos |
= |
Septuaginta |
3 |
Por meio do quadro acima, é possível constatar que o Psalterium Gallicanum é igual à sua fonte, a Septuaginta, em doze situações (80 %), é diferente em três (20 %) e é igual ao Texto Protomassorético em um (6,67 %). O Psalterium iuxta Hebraeos é igual à sua fonte, o Texto Protomassorético, em oito ocorrências (53,33 %), é diferente em sete (46,67 %) e é igual à Septuaginta em três (20 %). De maneira surpreendente, em um caso (Sl 88,13) é verificada uma circunstância peculiar: o Psalterium Gallicanum concorda com a fonte hebraica (!) e o Psalterium iuxta Hebraeos adere à fonte grega (!). A razão de tal inversão entre os textos é, muito possivelmente, em virtude da situação complexa de se traduzir o trecho.
A razão plausível da concordância quase completa entre o Psalterium Gallicanum e a Septuaginta deve ser pelo motivo do antigo texto bíblico grego ser muito conhecido, ser muito utilizado, ter grande prestígio e ter status canônico entre os cristãos, principalmente os do Oriente (WÜRTHWEIN, 1995, p. 96; FISCHER, 2013, p. 138-139). Tal fato pode ser explicação admissível a respeito de haver menos conflitos entre a referida versão latina e a sua fonte grega no transcorrer do processo de tradução. O motivo admissível do menor número de aderência entre o Psalterium iuxta Hebraeos e a sua Vorlage hebraica é em virtude da dificuldade de tradução, principalmente naquelas situações em que a palavra, que é hapax legomenon absoluto, ser derivada de raiz verbal duvidosa ou inexistente no texto bíblico hebraico, como foi mostrado por meio do presente estudo. Isso pode ter dificultado ou impedido a total anuência entre ambos os textos no decorrer da atividade de tradução. Além do mais, naquelas passagens de complexa tradução em que o Psalterium iuxta Hebraeos manifesta a leitura da Septuaginta ou coincide com o Psalterium Gallicanum, se verifica a mesma leitura nas três versões gregas, Áquila, Símaco e kaige-Teodocião (cf. Sl 72,6 e 88,13) e isso pode ter feito Jerônimo de Estridônia se apoiar em tais obras bíblicas para solucionar o problema de natureza tradutória.
No quadro abaixo, também de maneira sinóptica, é mostrada como é a situação em cada uma das quinze ocorrências de hapax legomena absolutos no livro dos Salmos selecionados e tratados no presente artigo. As siglas utilizadas na tabela abaixo são: igual (=), diferente (≠), texto latino (txt.lt.), texto grego (txt.gr.), texto hebraico (txt.hb.), Septuaginta (LXX), Texto Protomassorético (pTM), Psalterium Gallicanum (PsGl) e Psalterium iuxta Hebraeos (PsHb):
salmo |
txt.lt. |
= ou ≠ |
txt.gr. |
txt.lt. |
= ou ≠ |
txt.hb. |
= ou ≠ |
21,3 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
42,5 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
≠ |
pTM |
|
49,4 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
66,11 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
≠ |
pTM |
|
68,7 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
≠ |
pTM |
PsHb = LXX |
68,36 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
71,15 |
PsGl |
≠ |
LXX |
PsHb |
≠ |
pTM |
|
72,6 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
≠ |
pTM |
PsHb = LXX |
88,5 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
88,13 |
PsGl |
≠ |
LXX |
PsHb |
≠ |
pTM |
PsGl = pTM |
″ |
″ |
″ |
″ |
″ |
″ |
″ |
PsHb = LXX |
91,8 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
≠ |
pTM |
|
107,30 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
124,5 |
PsGl |
≠ |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
139,16 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
144,13 |
PsGl |
= |
LXX |
PsHb |
= |
pTM |
|
Jerônimo de Estridônia seguia estritamente a sua Vorlage hebraica, porém, não se baseou de maneira exclusiva nela. Ele muitas vezes foi guiado, do mesmo modo, pela exegese das seguintes versões gregas: Septuaginta, Símaco, Áquila e o kaige-Teodocião, nesta exata sequência de uso e influência (TOV, 2012, p. 153; TOV, 2015, p. 87; TOV, 2017, p. 156; WÜRTHWEIN, 1995, p. 97; ROBERTS, 1951, p. 254; GRIBOMONT, 2013, p. 1371; ROGERS, 2017, p. 105; TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 423; FRANCISCO, 2008, p. 520). Inclusive, como não havia ainda na época de Jerônimo de Estridônia dicionários, léxicos, gramáticas ou concordâncias de hebraico bíblico, ele recorria a tais versões gregas clássicas da Bíblia, além de algum auxílio que pudesse vir de círculos judaicos em sua atividade tradutória (WÜRTHWEIN, 1995, p. 96-97; FRANCISCO, 2008, p. 520). Tais testemunhos textuais serviram como recursos fundamentais de tradução para a produção da Vulgata. Em sete passagens deste estudo, é possível verificar realmente tal asserção, como nos casos dos Salmos 42,5 (influência de Símaco); 66,11 (influência de Áquila); 72,6 (influência das três versões gregas); 88,5 (influência de Símaco); 124,5 (influência das três versões gregas); 139,6 (influência de Áquila e Símaco) e 144,13 (influência de Áquila e Símaco). Em tais segmentos, é possível constatar o contínuo influxo dos três textos bíblicos gregos, que foram produzidos no decorrer dos três primeiros séculos da era comum, sobre o Psalterium iuxta Hebraeos.
O que se pode verificar, além do mais, que a tradução do Psalterium iuxta Hebraeos se mostra muito próxima, além de cuidadosa, da sua Vorlage hebraica (Brotzman e Tully, 2016, p. 87; Rogers, 2017, p. 106). Isso é evidente em vários seguimentos analisados neste artigo, principalmente nos seguintes: Sl 21,3; 49,4; 68,36; 88,5; 107,30; 124,5; 139,16 e 144,13. Além disso, a Vorlage hebraica na época de Jerônimo de Estridônia (4º séc.) se manifesta virtualmente idêntica à estrutura consonantal do Texto Massorético, que surgiu a partir do 7º século em diante, com a atividade massorética (TOV, 2015, p. 93-94; ROBERTS, 1951, p. 265; FISCHER, 2013, p. 139; BROTZMAN E TULLY, 2016, p. 88; ROGERS, 2017, p. 106, 109 e 110; TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 425; FRANCISCO, 2008, p. 521).
Geralmente, as duas versões latinas do livro dos Salmos são fidedignas às suas fontes grega e hebraica, refletindo muito de perto seus textos (Rogers, 2017, p. 106). Isso não significa que a concordância seja completa e que não possam existir conflitos pontuais ao longo das duas obras de tradução do referido livro da Bíblia. As duas tabelas colocadas no tópico Dados estatísticos demonstram tal situação (cf. acima).
De acordo com Tov, a Vulgata demonstra evidente proximidade textual com o Texto Protomassorético e muito raramente se desvia dele (TOV, 2015, p. 87), como é possível averiguar por meio do presente artigo. Além disso, tal versão clássica da Bíblia é considerada componente importante do grupo de antigas versões bíblicas que surgiram a partir do Texto Protomassorético, ao lado do Targum, da Peshitta e das versões gregas de Áquila, Símaco e kaige-Teodocião (TOV, 2015, p. 88 e 94).
A Vulgata é considerada pelos especialistas da área de crítica textual dedicada à Bíblia Hebraica um dos principais testemunhos do Texto Protomassorético ao lado dos Manuscritos do Deserto da Judeia, dos Fragmentos da Guenizá do Cairo, do Pentateuco Samaritano, do Targum, da Septuaginta, das versões gregas de Áquila, Símaco e o kaige-Teodocião, da Peshitta, da Vetus Latina, entre outras versões clássicas da Bíblia (TOV. 2012, p. 115; tov, 2017, p. 117; FISCHER, 2013, p. 139; BROTZMAN E TULLY, 2016, p. 87; FRANCISCO, 2008, p. 517). Além do mais, segundo Graves e Trebolle Barrera, a tradução original de Jerônimo de Estridônia na Vulgata pode fornecer uma janela para o texto bíblico hebraico dos 4º e o 5º séculos, e por meio de tal obra bíblica latina, é possível, também, vislumbrar de como teria sido o texto bíblico hebraico do 2º século, que estava por trás das três versões gregas da Bíblia, Áquila, Símaco e kaige-Teodocião (GRAVES, 2017, p. 223 e 241; TREBOLLE BARRERA, 1996, p. 425).
Por fim, por meio do presente estudo, mesmo que sucinto, espera-se que o leitor possa ter ideia, mesmo que de modo conciso, de como teria sido o processo de tradução de Jerônimo de Estridônia na Vulgata e o nível de dependência com a Septuaginta e também com o Texto Protomassorético que era corrente em sua época.
Siglas dos manuscritos de Qumran
1QH Hinos de Ação de Graças (Hôdayôt) da caverna 1 de Qumran.
4QSlf sexto manuscrito de Salmos da caverna 4 de Qumran.
11QSla primeiro manuscrito de Salmos da caverna 11 de Qumran.
11QapSl Apócrifo de Salmos da caverna 11 de Qumran.
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[1] Hapax legomenon (gr. ἅπαξ λεγόμενον, contado ou dito uma só vez) é uma expressão técnica usada pela crítica textual para designar o vocábulo ou expressão que aparece uma única vez ao longo de uma determinada obra literária. A locução hapax legomena (gr. ἅπαξ λεγόμενα, contados ou ditos uma só vez) é a forma plural da expressão hapax legomenon (Gesenius, Kautzsch e Cowley, 1910, § 17 e, p. 67; Joüon e Muraoka, 2009, § 16 d, p. 64; Tov, 2012, p. 67; idem, 2017, p. 68; Fischer, 2013, p. 304; Wonneberger, 2001, p. 48; Brotzman e Tully, 2016, p. 101). No caso da Bíblia Hebraica, especificamente, tais situações são assinaladas pela massorá por meio da abreviatura ל̇, que é a inicial dos itens terminológicos de proveniência aramaica לֵית, לַית e לֵיתָא, aparecendo principalmente na masora parva (ocasionalmente ocorre também na masora magna) dos códices massoréticos (Dotan, 1972, col. 1422; Khan, 2013, p. 67; Martín Contreras e Seijas de los Ríos-Zarzosa, 2010, p. 128; Francisco, 2008, p. 625). Os termos significam não há, não existe, não tem, nada, não (Jastrow, 2005, p. 710; Sokoloff, 2002a, p. 283; idem, 2002b, p. 628). Tais lexias terminológicas de procedência aramaica são formadas do seguinte modo: a aglutinação de duas palavras aramaicas, o advérbio de negação לָא (aram. não) e a partícula de existência אִית (aram. existe, há, tem, é), formando a locução לָא אִית (aram. não há, não existe, não tem, não é) (Kelley, Mynatt e Crawford, 1998, p. 124 e 127). Ofer explica, ainda, que a abreviatura ל̇ seria redução da expressão terminológica לֵית דִּכְוָתֵהּ (aram. não existe outro que nem este) (Ofer, 2002, p. 33; idem, 2019, p. 16 e 50).
[2] Vorlage: (lit. algo posto em frente a, modelo) (pl. Vorlagen): termo técnico de procedência alemã que é utilizado pelos eruditos de crítica textual para indicar a fonte original de alguma versão bíblica clássica (ex.: a Vorlage hebraica da Septuaginta, a Vorlage hebraica da Vulgata, a Vorlage hebraica de Áquila etc.) (Tov, 2012, p. 423; idem, 2017, p. 429; McCarter Jr, 1986, p. 79; Francisco, 2008, p. 649; idem, 2020, p. xxxvii, n. 187).
[3] No aparato crítico da edição de Weber-Gryson (Weber e Gryson, 2007, p. 790), para a versão Psalterium Gallicanum, é achada a seguinte nota para a unidade lexical voluntate (lat. vontade) no Salmo 20,3: uoluntatem IWKΦ (a leitura uoluntatem [lat. a vontade] é encontrada nos códices Ruense [séc. 10], Vienense [8º séc.], Augiense triplo [9º séc.] e Alcuiense [8º séc.]). Ainda no mesmo aparato crítico da mesma publicação crítica da Vulgata, mas para a versão Psalterium iuxta Hebraeos (Weber e Gryson, 2007, p. 791), é encontrada a seguinte anotação para o item lexicográfico voluntate (lat. vontade) no mesmo salmo: uoluntatem FIΣAKS (a leitura uoluntatem [lat. a vontade] é achada nos códices Corbeiense triplo [8º séc.], Ruense [séc. 10], Toletano [séc. 10], Amiatino [8º séc.], Augiense triplo [9º séc.] e Sangalense [9º séc.]). A forma voluntatem é o acusativo masculino singular e a forma voluntate é o ablativo masculino singular e ambas as formas pertencem à terceira declinação, do substantivo voluntas (lat. vontade) (Richards, 1958, p. 66; Almeida, 2000, p. 67; Borregana, 2006, p. 38; Lourenço, 2019, p. 94; Gaffiot, 2000, p. 1720; Santos Saraiva, 2000, p. 1289). Além disso, nos manuscritos latinos mencionados, a palavra uoluntatem é grafada com a letra u e não com o caractere v, como é atestada pela edição de Weber-Gryson (Weber e Gryson, 2007, p. 790-791).
[4] No aparato crítico da Biblia Hebraica (BHK) (Kittel e Kahle, 1973, p. 1030) e da Biblia Hebraica Stuttgartensia (BHS) (Elliger e Rudolph, 1997, p. 1145) constam propostas conjecturais a respeito da lexia מוּעָקָה (hebr. aflição) no Salmo 66,11: 1. BHK: prps מְצוּקָה vel מוּצָקָה; frt l deriv a מעד cf 69,24 Ez 29,7 (são propostas as leituras מְצוּקָה [hebr. aperto] ou מוּצָקָה [hebr. aperto]; possivelmente para ser lida alguma palavra derivada da raiz verbal מעד [hebr. titubear, vacilar], cf. Sl 69,24 e Ez 29,7 [obs.: no trecho de Ez 29,7 consta um item derivado da raiz verbal עמד {hebr. permanecer, estar em pé} e não da raiz verbal מעד {hebr. titubear, vacilar}]). 2. BHS: θλῖψις; šwšlt’ catenam, Hier stridonem; prp מְצוּקָה vel מוּצָקָה (a Septuaginta possui a leitura θλῖψις [gr. angústia, tribulação]; o Targum de Salmos apresenta a leitura שׁוֹשֶׁלְתָּא [aram. corrente], as catenas [compilações de comentários exegéticos dos Pais da Igreja] e a versão de Jerônimo de Estridônia [o Psalterium iuxta Hebraeos] leem stridonem [lat. estridor]; são propostas as leituras מְצוּקָה [hebr. aperto] ou מוּצָקָה [hebr. aperto]). Então, as duas edições críticas do texto bíblico hebraico propõem as duas conjecturas citadas acima em lugar do vocábulo em destaque no Salmo 66,11, tendo como base as alternativas encontradas nas antigas versões da Bíblia Hebraica, como os textos grego, aramaico e latino, e nas coleções de comentários exegéticos patrísticos.
[5] Na edição de Ulrich consta a seguinte anotação no aparato crítico a respeito da palavra שלום (hebr. retribuição de) no manuscrito 11QapSl: [ותרא]ה̇ שלום רשע[ים] 11QapocrPs (cf Isa 34:8; Hos 9:7; Mic 7:3) ] וְשִׁלֻּמַת רשעים תראה L (no manuscrito 11QapSl consta a leitura [ותרא]ה̇ שלום רשע[ים] [hebr. {e verá}s retribuição de ímpio{s}] [cf. Is 34,8; Os 9,7 e Mq 7,3]; a leitura וְשִׁלֻּמַת רשעים תראה [hebr. e retribuição de ímpios verás] é atestada pelo Texto Massorético [de acordo com o Códice de Leningrado B19a {ML}] e pela Septuaginta) (Ulrich, 2010, p. 654). Nas três passagens bíblicas citadas pela nota, consta o vocábulo שִׁלּוּם (hebr. retribuição), que é sinônimo da palavra שִׁלֻּמָה (hebr. retribuição) (cf. Is 34,8; Os 9,7 e Mq 7,3). Então, tanto o manuscrito da caverna 11 de Qumran quanto os textos bíblicos hebraico e grego apresentam, praticamente, a mesma leitura.
[6] No aparato crítico da obra de Weber-Gryson (Weber e Gryson, 2007, p. 909), para a versão Psalterium iuxta Hebraeos, consta uma anotação sobre o item verbal voluerunt (lat. tiveram vontade) no Salmo 106,30: uoluerint CΣL (a leitura uoluerint [lat. terão vontade] é registrada pelos códices Cavense [9º séc.], Toletano [séc. 10] e Londrino [9º séc.]). A forma verbal voluerunt (lat. tiveram vontade) é a terceira pessoa do plural do tempo pretérito perfeito e a forma verbal voluerint (lat. terão vontade) é a terceira pessoa do plural do tempo futuro perfeito do verbo volo (lat. querer, desejar, ter vontade) (Richards, 1958, p. 25; Almeida, 2000, p. 230; Borregana, 2006, p. 78; Lourenço, 2019, p. 151; Gaffiot, 2000, p. 1718; Santos Saraiva, 2000, p. 1288). Além do mais, nos manuscritos latinos citados, o vocábulo uoluntatem (lat. vontade) é grafado com o caractere u e não com a letra v, como é adotada na edição de Weber-Gryson (Weber e Gryson, 2007, p. 909).
[7] No aparato de variantes textuais da publicação de Weber-Gryson (Weber e Gryson, 2007, p. 933), para a versão Psalterium iuxta Hebraeos, consta uma anotação sobre o vocábulo superbae (lat. soberbas) no Salmo 123,5: superbiae RFKΘ (a leitura superbiae [lat. soberbas] é registrada pelos códices Reginense duplo [8º séc.], Corbeiense triplo [8º séc.], Augiense triplo [9º séc.] e Teodulfiano [9º séc.]). Os itens lexicais superbae e superbiae são formas do nominativo feminino plural do adjetivo superbus (lat. soberbo), apenas diferindo na grafia de ambas as palavras (Richards, 1958, p. 20; Almeida, 2000, p. 50; Borregana, 2006, p. 51; Lourenço, 2019, p. 232; Gaffiot, 2000, p. 1540; Santos Saraiva, 2000, p. 1160).