Leonardo Agostini Fernandes
Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio. Membro da Associazione Biblica Italiana (ABI), da Associação Bíblica Brasileira (ABIB), da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), da Society Biblical Literature (SBL), e integra o grupo de pesquisa de Tradução e Interpretação do Antigo Testamento (TIAT) da PUCSP. laf2007@puc-rio.br
Resumo
Tudo o que Moisés recebeu do Senhor, ele transmitiu ao povo como um pai que, antes de morrer, deixa a sua herança para o filho. Como o pai continua vivo no filho, Moisés estará vivo na herança deixada ao “novo Israel”. A boca e o coração de Moisés – que serviram ao Senhor, em todo o processo de libertação e condução pelo deserto até às portas de Canaã – passam, pela ordem-palavra do Senhor, à boca e ao coração do “novo Israel”. Este artigo subdivide-se em: considerações preliminares (processo de formação do livro de Deuteronômio); três partes: 1) tradução segmentada do texto a partir do hebraico, com algumas notas de crítica textual; 2) texto dentro do seu contexto (Dt 28,69–30,20), justificando a sua delimitação; 3) singularidade de Dt 30,11-14; considerações finais (abertura para a missão de Josué como sucessor de Moisés). Quanto à metodologia seguida, foram usados alguns elementos da abordagem diacrônica e sincrônica.
Palavras-chave: Aliança, Discurso de Moisés, Livro de Deuteronômio, “Novo Israel”
Abstract
Everything that Moses received from the Lord, he transmitted to the people as a father who, before dying, he leaves his inheritance to his son. As the father remains alive in the son, Moses will be alive in the inheritance left to the “new Israel”. The mouth and heart of Moses – that served to the Lord in the whole processes of deliverance and guidance through the desert to the gates of Canaan – pass, through the order-word of the Lord, through the mouth and heart of the “new Israel”. This paper is subdivided in: preliminary considerations (process of the formation of the book of Deuteronomy); three parts: 1) segmented translation of the text from Hebrew, with some notes of textual criticism; 2) text within its context (Dt 28,69–30,20), justifying its delimitation; 3) singularity of Dt 30,11-14; final considerations (opening to the mission of Joshua as successor to Moses). As for the methodology followed, some elements of the diachronic and synchronic approach were used.
Keywords: Alliance, Discourse of Moses, Book of Deuteronomy, “New Israel”.
As posições acadêmicas sobre o longo processo de formação do livro de Deuteronômio são muitas, diversificadas e, após a forte crise que se abateu sobre a hipótese dos documentos-fontes, as questões se multiplicaram.
O desenvolvimento desse livro é complexo e não difere, por certo, dos demais livros da Torá. Em geral, admite-se que esse livro passou por diferentes mãos e teve sucessivas etapas em diferentes épocas, que vão desde o século IX a.C., até os séculos V-IV a.C., quando, enfim, teria alcançado a sua forma “final”[1].
Este parecer, porém, contrasta com a proposta presente na dinâmica interna do livro, que apresenta o testamento de Moisés em forma de ensinamentos orais, típico da profecia, e em tom discursivo. Todo o seu conteúdo teria transcorrido no dia em que se chancelou e foi sigilado o inteiro percurso histórico-literário da Torá: o dia da morte de Moisés (Dt 34)[2].
Considera-se que o ponto de partida do livro é o bloco Dt 12–26*. Este contém uma elaborada coleção de leis que se liga ao Israel-norte dos séculos IX-VIII a.C. Pelas mãos de habilidosos sacerdotes-escribas, muitas dessas leis teriam sido elaboradas e colecionadas para responder às questões jurídicas trazidas, pelos peregrinos, aos santuários locais (Dt 26,1-11)[3].
Nessa mesma época, pela narrativa bíblica, teriam atuado os profetas Elias e Eliseu[4], considerados promotores da justiça e fortes defensores do jahwismo frente aos cultos e às divindades cananeias, bem como os profetas Oseias e Amós que atuaram vivamente no Israel norte e se posicionaram, particularmente, contra as injustiças sociais e cultuais. O jahwismo, a promoção da justiça social e cultual são marcas características do livro de Deuteronômio.
Contudo, por ocasião da destruição de Samaria, pelos assírios (721 a.C.), esse corpus legislativo teria sido levado para o reino do Sul por sacerdotes-escribas em fuga. Esta atitude permitiu que esse corpus não somente sobrevivesse, mas acabasse por se tornar a base de futuras e importantes reformas sociais, culturais e religiosas em Judá-Jerusalém[5].
Segundo essa perspectiva, alternando e entremeando seções históricas com exortativas, Dt 1–11* e 27–34* representam, em seus diferentes estágios redacionais, tanto a aceitação do corpus legislativo de Dt 12–26*, como da atuação profético-literária, sobre este, pela corrente deuteronômico-deuteronomista (dtn-dtr), formada por escribas-teólogos de Judá-Jerusalém ligados à corte do rei Ezequias (716-687 a.C.), e, principalmente, à corte do rei Josias (640-609 a.C.). Estes reis são justos, pois promoveram reformas e procuraram eliminar a idolatria. Ezequias e Josias foram considerados reis ótimos pela corrente dtn-dtr por três razões: seguiram os passos do grande rei Davi, fizeram a vontade do Senhor e combateram à idolatria (2Rs 18,3-8; 22,2)[6].
Essa corrente judaíta atuou por quase três séculos, preservou, revisou e buscou atualizar Dt 12–26* às novas situações que foram surgindo, e determinou finalidades específicas, que podem ser situadas a partir de três momentos centrais da história social e religiosa de Israel:
a) Antes do exílio em Babilônia, essa corrente buscou criar os fundamentos para as reformas político-religiosas de Ezequias e, particularmente, de Josias a partir do conteúdo presente em Dt 12–26*;
b) Durante o exílio, buscou oferecer as razões da destruição de Jerusalém e do seu templo, mostrando que a desventura não se deu por fraqueza do Senhor, frente aos deuses dos babilônios invasores, mas foi o cumprimento previsto pela desobediência às suas leis;
c) Depois do exílio, além de alimentar a esperança do retorno da monarquia, buscou lançar as novas bases da história social e religiosa do povo eleito, mas acabou entrando em estreita colaboração com a corrente sacerdotal que assumiu a liderança entre os repatriados[7].
Ao lado dessa breve descrição[8], encontram-se a relevante questão e os vários pareceres sobre como subdividir o livro de Deuteronômio. Sem adentrar nessa discussão acadêmica, mas seguindo a forma final e canônica do livro, as partes podem ser identificadas quer pela presença de um “título” (Dt 1,1; 4,44; 28,69; 33,1), quer pela dinâmica do conteúdo[9].
Com base nos dois critérios (forma e conteúdo), admite-se que o livro possa ser dividido em cinco partes: a) Primeiro discurso de Moisés, que recapitula elementos importantes do período do deserto (Dt 1,1–4,43); b) Segundo discurso de Moisés que reflete sobre a aliança estabelecida no Horeb (Dt 4,44–28,68); c) Terceiro discurso de Moisés sobre a aliança renovada em Moab (Dt 28,69–30,20)[10]; d) Últimas disposições e ações de Moisés antes de sua morte (Dt 31,1–33,29); e) Relato da morte de Moisés e sucessão com Josué (Dt 34,1-12).
Segundo essa subdivisão, que respeita a índole literária e contribui para a compreensão do conjunto do livro, Dt 30,11-14 pertence ao terceiro discurso de Moisés e, dentro desse contexto, deve-se procurar entender o seu sentido literal e contextual. Contudo, essa posição literária não elimina a necessidade de se verificar outras relações, em nível semântico e temático ad intra do libro de Deuteronômio, algo que ultrapassaria a proposta desse estudo.
Portanto[11], esta ordem |
11a |
כִּי הַמִּצְוָה הַזֹּאת |
que eu, hoje, te ordeno, |
11b |
אֲשֶׁר אָנֹכִי מְצַוְּךָ הַיּ֑וֹם |
ela não é elevada para ti |
11c |
לֹא־נִפְלֵאת הִוא מִמְּךָ |
e ela[12] não é inalcançável. |
11d |
וְלֹא רְחֹקָה הִוא׃ |
Ela não está nos céus, |
12a |
לֹא בַשָּׁמַיִם הִ֑וא |
para que perguntes: |
12b |
לֵאמֹר |
“Quem subirá, por nós, aos céus |
12c |
מִי יַעֲלֶה־לָּנוּ הַשָּׁמַיְמָה |
e a buscará para nós, |
12d |
וְיִקָּחֶהָ לָּנוּ |
a ela nos fará escutar |
12e |
וְיַשְׁמִעֵנוּ אֹתָהּ |
e a praticaremos?[13]” |
12f |
וְנַעֲשֶׂנָּה׃ |
E ela não está ao extremo do mar, |
13a |
וְלֹא־מֵעֵבֶר לַיָּם הִ֑וא |
para que perguntes: |
13b |
לֵאמֹר |
“Quem atravessará, por nós, até o extremo do mar |
13c |
מִי יַעֲבָר־לָנוּ אֶל־עֵבֶר הַיָּם |
e a buscará para nós, |
13d |
וְיִקָּחֶהָ לָּנוּ |
a ela nos fará escutar |
13e |
וְיַשְׁמִעֵנוּ אֹתָהּ |
e a praticaremos?” |
13f |
וְנַעֲשֶׂנָּה׃ |
Porque muito próxima de ti está a palavra, |
14a |
כִּי־קָרוֹב אֵלֶיךָ הַדָּבָר מְאֹ֑ד |
na tua boca e no teu coração[14], |
14b |
בְּפִיךָ וּבִלְבָבְךָ |
para que a pratiques[15]. |
14c |
לַעֲשׂתוֹ׃ ס |
Dt 28,69–30,20 é uma unidade textual que pode ser subdividida em sete seções bem delimitadas: a) o êxodo do Egito e a vitória sobre os reis amorreus (Dt 29,1-8); b) os que contraem a aliança em Moab (Dt 29,9-14); c) a lei fundamental da aliança renovada (Dt 29,15-17); d) um olhar para o futuro sob o prisma da transgressão (Dt 29,18-28); e) um olhar para o futuro sob o prisma da conversão e da bênção inaudita (Dt 30,1-10); f) reflexão original sobre a proximidade da lei (Dt 30,11-14); g) recapitulação sob a ótica e a proposta da escolha da vida (Dt 30,15-20).
O terceiro discurso de Moisés, iniciado por uma “ponte ou dobradiça” (Dt 28,69), pois funciona bem como título e como uma espécie de conclusão do segundo discurso[16], lança um olhar para o passado e recapitula, de forma breve, três momentos essenciais contidos no primeiro discurso (Dt 1,1–4,43), e no começo do segundo discurso (Dt 4,44-49): o êxodo do Egito, a marcha pelo deserto e a conquista da Transjordânia. Dt 28,69–29,8 sintetiza esses três momentos. Contudo, Dt 29,8 contém uma ordem que aponta para o futuro e ajuda a entender que o resgate do passado, no presente, é um elemento que possibilita projetar o futuro[17]. Além disso, um olhar atento percebe que um novo cenário se abre em Dt 29,1 e que este alcançará o seu fim em Dt 30,20, pois uma nova fala de Moisés tem início em Dt 31,1.
Dt 28,69 contém uma informação singular e que só se repetirá em Dt 29,8: palavras desta aliança (דִּבְרֵי הַבְּרִית הַזֹּאת). Na primeira citação, pela voz do narrador, afirma-se que Moisés recebeu do Senhor a ordem de concluir com o “novo Israel” uma aliança em Moab, como havia sido feito com seus pais no Horeb. Na segunda, Moisés ordena que os israelitas observem e pratiquem a aliança para terem êxito na terra. A intenção é que a obediência na renovação da aliança suplante e deixe para traz a desobediência à aliança estabelecida no Horeb. Assim, o futuro do “novo Israel” na terra depende da iniciativa do Senhor no “hoje” de Moab, que se abre para o “amanhã” de Siquém (Js 24), à luz do “ontem” no Horeb. O dado comum, nessa lógica temporal, é a experiência que se faz das palavras desta aliança.
A dinâmica temporal, entre passado e abertura para o futuro, serve para introduzir a fala sobre as imprecações (Dt 29,9-28)[18]. Estas miram, em particular, os que contraem a aliança com o Senhor em Moab (Dt 29,9-14), e permitem que se faça uma nova referência ao passado quanto à idolatria (Dt 29,15-17), a fim de convencer quem, porventura, continuasse ou viesse a duvidar da concretização das imprecações por parte do Senhor (Dt 29,18-28).
A seguir, uma prolepse, de cunho profético, anuncia tanto o exílio como a promessa de retorno (Dt 30,1-10)[19]. Essa prolepse é aberta por um verbo no qal weqatal na terceira pessoa do masculino singular (וְהָיָה), seguido de um kî + yiqtol (כִי־יָבֹאוּ)[20]. Essa dinâmica verbal prossegue em uma sequência de verbos no weqatal (vv. 2-3.5-9), com exceção do v. 4, e termina com duas orações, no v. 10, de cunho temporal: kî + yiqtol (כִּי תִשְׁמַע; כִּי תָשׁוּב).
Do ponto de vista verbal, Dt 30,11-14 não continua essa sequência, porque a conjunção kî assume um valor asseverativo no v. 11, introduzindo uma referência específica, e causal, com verbo, no v. 14, em tom explicativo[21]. Por meio dessa construção, Moisés atesta que a lei não é utópica, bem como não é utópica a condição do “novo Israel” que, pelo livre arbítrio e pelo conhecimento das leis, pode realizar a vontade do Senhor e, assim, receber a justa retribuição por suas ações. Então, a possibilidade da obediência e da desobediência se atualiza, no presente do povo, isto é: “neste dia” (הַיּוֹם הַזֶּה), uma condição temporal sobre o que poderá experimentar no futuro: bênçãos ou maldições (Dt 28).
A título de último argumento, vale notar que a lição massorética demarcou Dt 30,11-14 com uma petuḥah em Dt 30,10 e uma setumah em Dt 30,14. Esses sinais são delimitadores e permitem que Dt 30,11-14 possa ser admitido como uma seção dentro da unidade do terceiro discurso, concluído pela argumentação que coloca, diante do povo, o contraste entre a vida e a morte, entre o bem e o mal (Dt 30,15-20). Enquanto a vida e o bem resultam da obediência, a morte e o mal resultam da desobediência (típico da teologia da retribuição). Essa conclusão evoca o que se anunciou para o futuro: a bênção em Dt 28,1-14 e a maldição em Dt 28,15-68.
Dt 30,11ab possui, ad intra do livro, uma formulação quase idêntica a três outros textos: Dt 11,22; 15,5; 19,9. Contudo, existem elementos que concedem singularidade a Dt 30,11ab.
Dito de modo condicional e para destinatários citados na segunda pessoa do masculino plural, Dt 11,22 integra, além do cumprimento da ordem, a prova de amor, a escolha do caminho da vida e a união ao Senhor. Esses elementos são os requisitos necessários, para que o “novo Israel”[22], que sela a aliança nas estepes de Moab, obtenha os favores divinos quando entrar, conquistar e se estabelecer na terra de Canaã. Dt 11,22 supõe a ordem de que as palavras de Moisés sejam conservadas e ensinadas para as futuras gerações (Dt 11,18-21), de modo que se retoma o que havia sido determinado no contexto do shemá‘ Israel (Dt 6,4-9)[23].
Por sua vez, Dt 15,5 está inserido no contexto das normas sobre o ano sabático que deve ser celebrado na terra, por destinatários na segunda pessoa do masculino singular, chamados a redobrar as atenções em favor dos mais necessitados e dos pobres da comunidade. Esta ordem torna-se a condição sine qua non para a bênção acontecer na vida do “novo Israel”.
Já Dt 19,9 está inserido no contexto da lei sobre o homicídio involuntário e a cidade-refúgio. Pela formulação, está próximo a Dt 11,22, mas tem como destinatário um interlocutor na segunda pessoa do masculino singular, como em Dt 15,5. Estes pequenos particulares são importantes para se perceber a distinção que se desejou fazer em relação a Dt 30,11ab.
Nota-se, pela análise, que a formulação presente em Dt 30,11ab não aparece associada a alguma promessa de bênção, como em Dt 11,22, ou a uma norma específica, como citada em Dt 15,5. A atenção e a centralidade de Dt 30,11ab recaem sobre a ordem (הַמִּצְוָה), colocada em evidência pela qualificação que recebe (הַזֹּאת), a fim de fundamentar o sentido da bênção e da maldição (Dt 27,14–28,46), profeticamente anunciadas e certas de serem realizadas na terra de Canaã em virtude da obediência ou da desobediência à vontade do Senhor (Dt 30,1-10).
Tal ênfase fica devidamente confirmada por dois outros motivos. Em primeiro lugar, porque Dt 30,11cd traz duas formulações que não se repetem no livro de Deuteronômio. Em segundo lugar, porque Dt 11,22 possui relação semântica e temática com o que se segue em Dt 30,15-20. Neste texto, tudo fica submetido a duas atitudes: obedecer à voz do Senhor, pela observância dos mandamentos, e se converter ao Senhor, de todo o coração e de toda a alma.
Todavia, o que realmente fundamenta e comprova a singularidade da formulação presente em Dt 30,11ab são os desdobramentos que recebe, pois em nenhuma outra parte do livro de Deuteronômio se repetem as construções frasais que foram usadas em Dt 30,11c-14c. Este dado, então, torna Dt 30,11-14 não apenas relevante, mas singular para todo o livro.
Dt 30,12 coloca a imagem dos céus como argumentação de uma meta inalcançável pelo ser humano que, embora tenha tentado, não obteve êxito na sua empreitada (Gn 11,1-9)[24]. Esse olhar para os céus evoca, de certo modo, Dt 4,32 que, em tom homilético-persuasivo e hiperbólico, recorda a grandeza do Senhor, como Deus criador, que colocou os céus como o limite mais alto sobre a terra. Acima dos céus, existe somente o Senhor e sua glória (Sl 113). Se este feito foi maravilhoso, o Senhor fez outro ainda maior: desceu dos céus, elegeu um mediador, Moisés, e fez ouvir a sua voz a um povo, conservando-o vivo. À luz dessa certeza, a ordem a ser seguida não deve ser buscada nos céus ou além mar. Ninguém deve ir buscá-la, pois ela já se encontra na tua boca e no teu coração, conforme a ordem contida em Dt 6,6-7.
É comum, no livro de Deuteronômio, encontrar Moisés dirigindo as ordens, que recebe do Senhor, aos filhos de Israel em dois tipos de tratamento: na segunda pessoa do masculino singular (tu) e plural (vós)[25]. É o que se nota em relação aos destinatários de Dt 30,11.14 que estão na segunda pessoa do masculino singular (também presente em Dt 29,10-12). Até aqui, então, nada de novo, mas Dt 30,12-13 apresenta um elemento inovador, porque quem fala se inclui na execução da ordem que está sendo dada, pois usou a primeira pessoa comum plural. Isto possibilita denominar Dt 30,12-13 de seção “nós”[26]. Dentro da unidade Dt 28,69–30,20, Moisés também se inclui na fala, mostrando-se, nesse caso, que não é um membro isolado por ser mediador e líder, mas plenamente solidário com os seus destinatários em Dt 29,6.14.28.
Em virtude de todas essas considerações, a singularidade textual de Dt 30,11-14 quer incutir no “novo Israel”, antes de tudo, a aceitação e a irrefutabilidade de uma certeza: a ordem do Senhor, contida e revelada em sua palavra mediada por Moisés, além de próxima, é acessível tanto na sua verticalidade (céus), como na sua horizontalidade (mar). A razão disso pode ser encontrada em Dt 29,28: as coisas ocultas pertencem ao Senhor, mas as coisas reveladas são para o povo ao qual se manifestou por meio de grandes sinais e prodígios[27].
Dt 30,11-14 atesta que a ordem-palavra é uma revelação e não algo a se considerar um segredo, por isso, pertence ao povo e a este cabe colocar em prática tudo o que foi revelado de forma gratuita e por pura vontade do seu Senhor. Na sua base, está a grande lição do passado, contida na rejeição do “antigo Israel” em relação à aliança que fora concluída no Horeb, e a nova perspectiva que se abre pela sua renovação com o “novo Israel” nas estepes de Moab[28].
A aliança estabelecida em Moab é, sem dúvida, o tema do terceiro discurso de Moisés (Dt 28,69–30,20), mas é, igualmente, o grande assunto do livro de Deuteronômio. A ênfase se encontra na proclamação feita por Moisés ao “novo Israel” diante de dois fatos inadiáveis por decisão do Senhor: a sua morte iminente e a passagem do comando para as mãos de Josué.
Segundo o livro de Deuteronômio, o último dia da vida de Moisés foi intenso e, nesse, foram traçadas as diretrizes fundamentais que devem determinar a vida do “novo Israel” na terra de Canaã. Contudo, entre Moisés e o “novo Israel” se encontram a ordem-palavra, que está ao alcance de todos (Dt 30,11-14). Esta indica, por um lado, o critério para o discernir o duplo caminho (Dt 30,15-20), e, por outro lado, serve para fundamentar a missão de Josué, como sucessor de Moisés (Dt 31,1-8).
Josué, além da ordem recebida para ser forte e corajoso, deve agir segundo toda a lei que Moisés prescreveu e não deve se desviar nem para a direita nem para esquerda, a fim de alcançar êxito em todas as suas ações (Js 1,6-9).
Recai sobre Josué uma mudança fundamental, ele passa de lugar-tenente e servo fiel de Moisés, a lugar-tenente e servo fiel-obediente à vontade do Senhor. Como a vida de Josué, ao lado de Moisés, foi de grande aprendizado no cumprimento da vontade do Senhor, de igual modo a fé obediencial de Josué às instruções de Moisés deve garantir o êxito de sua missão e se tornar o exemplo e a fonte inspiradora para o “novo Israel” ao entrar na terra de Canaã.
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[1] Cf. GARCÍA LÓPEZ, 1994, p. 47-61; AMSLER, 1995, p. 51-54; SONNET, 2010, p. 1-20. Para um resumo dedicado à história da pesquisa sobre a formação do livro de Deuteronômio (PAGANINI, 2011, p. 497-510).
[2] A base ad intra, para “o dia da morte de Moisés”, encontra-se na locução temporal “hoje mesmo” (הַיּוֹם הַזֶּה), que ocorre onze vezes ao longo do livro (Dt 2,22.25; 3,14; 5,24; 10,8; 11,4; 26,16; 27,9; 29,3; 32,48; 34,6).
[3] Gherard Von Rad (1953, p. 60-69), levantou a hipótese de que essa legislação começou a surgir nos santuários. Apesar das várias críticas, essa hipótese ainda goza de certa atenção entre os estudiosos (MAYES, 1979, p. 29-55; WEINFELD, 1993, p. 21-35; PAGANINI, 2011, p. 503-504; PAPOLA, 2011, p. 26-32).
[4] 1Rs 17,1–19,21 e 2Rs 1,1–2,13 contêm as narrativas sobre Elias. Já 1Rs 19,19-21 e 2Rs 2,1–13,21 contêm as narrativas sobre Eliseu. Entre esses dois profetas existem passagens comuns, pois Eliseu foi chamado após a experiência que Elias fez de Deus no Horeb (1Rs 19,1-21) e, posteriormente, iniciou a sua vocação dentro da narrativa da assunção de Elias (2Rs 2,1-18). Ecos da ação de Elias e Eliseu podem ser encontrados no livro de Deuteronômio (BRUEGGEMANN, 2001, p. 84-85).
[5] Não se descarta a possibilidade de que, apesar das suas ligações com os tratados de vassalagem neo-assírio (PAPOLA, 2011, p. 17-18). Uma avaliação sobre a questão econômica em Judá, durante o período neo-assírio, torna-se valiosa para se compreender a ânsia pelas reformas necessárias (RICHTER, 2017, p. 23-50). Escribas palacianos, que conheciam o “código da aliança” (Ex 20,19–23,33), teriam retrabalhado Dt 12–26*, desejosos de reformas sociorreligiosas em Judá-Jerusalém, após a catástrofe da destruição do templo e do exílio em Babilônia.
[6] Sobre esse ponto, veja-se: O’BRIEN, 1989, p. 14-24; CORTESE, 1978, p. 341-352; McCONVILLE, 2002, p. 21-33; RÖMER, 2000, p. 183-187; RÖMER, 2008, p. 51-70; PAKKALA, 2009, p. 400.
[7] A história antes, durante e depois do exílio em Babilônia não foi compreendida da mesma forma dentro do movimento dtn-dtr, em particular sobre a monarquia e o templo de Jerusalém, gerando disputas, opiniões e grupos divergentes sobre o futuro da nação (ALBERTZ, 2000, p. 1-17; RÖMER, 2008, p. 165-182).
[8] A datação do livro é uma questão aberta e com várias posições (ARNOLD, 2014, p. 236-248; RICHTER, 2007, p. 342-366; GALLAGHER, 2014, p. 561-572). A referência ao lugar único de culto poderia ser estratégica sobre o templo de Elefantina (PAKKALA, 2009, p. 392-399; HUNDLEY, 2009, p. 535-555; SIST, 2014, p. 95-108).
[9] Há quem subdivida o livro em três partes e considere apenas dois discursos de Moisés, considerando a forma final do livro de Deuteronômio e da Torá (PAGANINI, 2011, p. 24-32): abertura (Dt 1,1-5); primeiro discurso (Dt 1,6–4,43); segundo discurso (Dt 4,44–26,19); conclusão com vários discursos (Dt 27,1–34,12). Ao invés de quatro partes, como comumente se apresenta a divisão do livro de Deuteronômio, prefiro considerar Dt 34 um capítulo à parte devido à importância tanto para finalização do livro como para a Torá.
[10] O Horeb permanece o lugar da eleição e Moab o lugar do estabelecimento da futura nação que entrará e tomará posse da terra (MORAN, 1963, p. 86-87; WEINFELD, 1995, p. 76-98).
[11] A partícula כִּי introduz uma proposição principal asseverativa e sem a presença de uma fórmula de juramento, razão pela qual pode ser traduzida pela conjunção: “portanto” (ALONSO SCHÖKEL, 1994, p. 355-356; JOÜON–MURAOKA, 2006, §164, p. 580-582; FOLLINGSTAD, 2001, p. 11-13.52).
[12] A Septuaginta, provavelmente por razão estilística, finaliza o versículo com “de ti” (ἀπὸ σοῦ), harmonizando a leitura com o primeiro uso do pronome no dativo singular: “eu te ordeno” (ἐγὼ ἐντέλλομαί σοι). A relação, então, foi deslocada da ordem para o sujeito que deve cumpri-la. Além disso, essa lição oferece suporte para a variante encontrada em Qumran na 4QDeutb (GARCÍA MARTÍNEZ, 1994, p. 63-82). Contudo, um número de manuscritos da Septuaginta deslocou ἀπὸ σοῦ para manter a ordem das palavras do texto hebraico como está no Texto Massorético (DOGNIEZ-HARL, 1992, p. 308-309; McCARTHY, 2007, p. 87.133).
[13] Os verbos em hebraico não assumem sufixos duplos como objeto (JOÜON–MURAOKA, 2006, § 61j, p. 181).
[14] A lição do Texto Massorético – “no teu coração” (וּבִלְבָבְךָ) – é sustentada pelo Pentateuco Samaritano, pela Vulgata, pela Peshita, pelo Targum Onqelos e Targum Neofiti. A Septuaginta, por sua vez, possui uma lição maior, pois acrescenta “e na tua mão” (καὶ ἐν ταῖς χερσίν σου). Subjaz, a esse acréscimo, a noção de que já era possível ter o livro em mãos. A presença da mesma lição: “e na tua mão”, também em 4QDeutb confirma essa noção (McCARTHY, 2007, p. 87.133). Esse dado é relevante, pois durante o período macabaico, que coincide com o surgimento da Septuaginta e de Qumran, houve um decreto de morte dado por Antíoco IV Epifanes para quem fosse encontrado com uma cópia da Torá (1Mac 1,56-57).
[15] Nem sempre é possível traduzir os verbos em hebraico de um modo totalmente condizente com a forma usada. A tradução literal para לַעֲשׂתוֹ poderia ser: para praticar ele, para praticá-lo ou para que ele seja praticado. A opção assumida permite evidenciar o sujeito da ação, tu, e seu objeto que, nesse caso, é a palavra. Com isso, se estabelece, igualmente, a relação com a tradução de לֵאמֹר, assumida nos vv. 12b.13b (GHG, § 58).
[16] Dt 28,69–30,20 é admitido como bem delimitado e com uma clara referência à aliança que foi renovada na terra de Moab (ROFÉ, 1995, p. 310-320; PAPOLA, 2008, p. 17-24; CORINI, 2010, p. 13-18; 189-191).
[17] Essa unidade textual pode representar um fenômeno religioso que surgiu depois do exílio a fim de mostrar o que estava por detrás do nascimento de Israel como entidade religiosa e social (CORINI, 2010, p. 3-5).
[18] Dt 29,27 é um marco temporal entre aquele “hoje” em Moab e o “hoje” referente ao exílio em Babilônia que, provavelmente, está na base do que se pretendeu com a aliança estabelecida com o “novo Israel” (BRAULIK, 2004 p. 50-52; PAPOLA, 2008, p. 8.225).
[19] Visto que o livro de Deuteronômio, na sua forma final, supõe o exílio em Babilônia (realização da maldição), e o seu retorno (misericórdia divina), Dt 30,11-14 olha para além do castigo e do perdão divinos, contemplando a possibilidade de o povo vir a obedecer a Deus. Assim, a prolepse serve como recurso temporal, literário e teológico (COXHEAD, 2006, p. 305-320; MILLER, 1990, p. 212-213.215-216).
[20] A sequência וְהָיָה כִי+ verbo בּוא ocorre também em outras passagens: Dt 6,10; 11,29; 26,1; 30,1.
[21] A asseveração vem do raciocínio pautado nos motivos contidos no terceiro discurso, em particular na prolepse presente em Dt 30,1-10, aberto e fechado por orações introduzidas, igualmente, pela partícula כִּי com sentido temporal, ou condicional (vv. 1.9.10). Já Dt 30,14 evoca toda a instrução que, precedentemente, foi transmitida por Moisés ao “novo Israel”, o que permite que a conjunção seja traduzida por um sentido causal reforçativo e enfático (BLOCK, 2012, p. 707). O uso da partícula כִּי, com valor adversativo e causal, não é fácil de ser distinguido (SCHOORS, 1981, p. 240-276); pelo contexto, como é o caso de Dt 30,10, a obediência do povo aparece como uma condição para as promessas se realizarem no futuro (AEJMELAEUS, 1986, p. 193-209).
[22] No livro de Deuteronômio, é ao “novo Israel” que Moisés se dirige e renova a aliança (Dt 4,4; 5,3). Então, por “antigo Israel” entende-se o povo que deixou o Egito, foi partner da aliança estabelecida no Horeb, foi recenseado antes de recomeçar a marcha (Ex 19,1–Nm 10,10), mas, por sua rebeldia e infidelidade, quando se recusou a tomar posse da terra, por ordem do Senhor, além de receber a pena de vagar por quarenta anos pelo deserto, morreu sem adentrar em Canaã (Nm 14,1-45; Dt 1,29-46). No seu lugar, surgiu o “novo Israel”, nascido no deserto, razão pela qual foi novamente recenseado (Nm 26,1-65), para que, sob o comando de Josué, entrasse e tomasse posse da terra (Nm 14,23-25; 27,12-23; Dt 31,1-8.23; 34,9; Js 1,1-5).
[23] A aproximação a Dt 6,6; 11,18 é verificável, mas nem sempre são notadas as sutilezas que se fazem presentes, por exemplo, no uso distinto das preposições. Enquanto que Dt 30,14 é uma afirmação, Dt 6,6; 11,18 são exortações (PAPOLA, 2008, p. 237). A unicidade de Deus seria melhor compreendida no contexto do Segundo Templo, e pode ter adquirido proporções ainda maiores durante o domínio helênico. Contudo, Zc 14,9 não parece entender Dt 6,4 como uma declaração monolátrica ou monoteística, mas como uma descrição de um henoteísmo escatológico, pois, com o exílio em Babilônia, seguido do domínio persa e helênico, o mundo conhecido ficou ainda mais impregnado de deuses. A confissão de fé no Deus Uno será lembrada a cada vez que se entra ou se sai de casa, ao tocar a mezuzah (LANGE, 2010, p. 207-214; LANGER, 2010, p. 215-226).
[24] A pergunta: Quem subirá, por nós, aos céus, estaria bem condizente com a frustração narrada nesse episódio, que contrapõe o anteprojeto divino ao projeto humano, como um contra-mito bíblico da fundação de Babilônia e estaria condizente com Dt 30,1-10 (SEVERINO CROATTO, 1996, p. 65-80; BADEN, 2009, p. 209-224). É significativa a narrativa sobre a experiência do sonho de Jacó em Gn 28,10-22 e o acesso aos céus através da escada que evocaria a ideia de templo – casa de Deus (בֵּית־אֵל) – no alto de uma construção como é o caso dos zigurates (SPEISER, 1964, p. 218-220). Contudo, pela índole do texto, a iniciativa da comunicação partiu da divindade que se colocou ao lado de Jacó. Assim, o contato entre os céus e a terra é uma graça concedida pelo Senhor e não uma tentativa de o ser humano alcançar o inatingível (HOUTMAN, 1977, p. 337-351). Se a experiência do sonho de Jacó for tomada em conta com a fala de Moisés em Dt 30,11-14, é possível que se esteja diante de uma forte reação ao santuário de Betel, grande concorrente do templo de Jerusalém (GIUNTOLLI, 2013, p. 151-156).
[25] Essa mudança no pronome de tratamento representaria uma preparação para a nova aliança, pela qual todas as nações poderiam reconhecer, no dom da lei concedido a Israel, a sabedoria divina (CAZELLES, 1967, p. 207-219). Timothy A. Lenchak (1993, p. 12-16), sustenta que, em razão da natureza retórica do livro de Deuteronômio, a mudança é uma questão de estilo e não um problema redacional, a fim de se criar uma relação particular com os destinatários. Nesse sentido, admite-se que a mudança operada por quem fala para quem se fala, em Dt 30,11-14, é significativa em função do apelo retórico ao indivíduo, esteja ele direcionado a Israel, ou, como parece, esteja dirigido a Josué (HARAGUCHI, 2001, p. 29).
[26] Dt 26,5b-10 contém a fala de quem se apresenta ao santuário para oferecer as primícias. Na sua proclamação, existe uma seção “nós”, próprio da liturgia, pela qual o oferente declara, assumindo sobre si, que a história do seu povo é a sua história, sem a qual não poderia estar na terra e tampouco seria capaz de gozar dos seus benefícios (CHRISTENSEN, 1995, p. 59-62).
[27] De modo particular, essa revelação se destina aos profetas como atesta Am 3,7: O Senhor, em verdade, não faz coisa alguma sem revelar o seu conselho aos seus servidores, os profetas. Esta última parte está presente na literatura deuteronomista (2Rs 9,7; 17,13.23; 21,10; 24,2), que reconhece, no envio dos profetas e na sua missão, um gesto salvífico do Senhor, razão pela qual eles, como se fossem membros do conselho divino, tiveram acesso ao conhecimento da sua vontade (JEREMIAS, 2000, p. 75; SIMIAN-YOFRE, 2002, p. 68).
[28] No livro de Deuteronômio, a obediência do “novo Israel” ao Senhor, que entrará na terra, sob o comando de Josué, representa a obediência que Judá aprendeu no exílio. Então, pode-se admitir uma relação não só entre as alianças, do Horeb e de Moab, entre Josué e Josias, mas também entre o que elas celebram e atestam: o primeiro e o segundo templo (RÖMER, 2008, p. 109-163; HOPPE, 1995, p. 107-110; GARCÍA LÓPEZ, 2000, p. 85-99).