A rejeição dos extremos: aspectos da proposta espiritual de Fulton Sheen

The rejection of extremes: aspects of Fulton Sheen’s spiritual proposal

Alexandre Freire Duarte

Doutor em Teologia pela Universidad Pontificia Comillas (Madrid); especialista em Teologia espiritual e mística; docente na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa (Porto e Braga). Membro integrado do CEHR (Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa). Contato: afduarte@porto.ucp.pt 

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Resumo
Este artigo apresenta um esboço de parte da proposta espiritual de Fulton Sheen, baseada na determinação dos mais capitais pares de extremos espirituais que, sendo dilaceradores da vida espiritual cristã e humana coevas, precisam de ser evitados. Para este efeito, e depois de uma breve apresentação dos aspectos mais relevantes da vida pública de Fulton J. Sheen, para tantos desconhecido e (ou) distorcido, o autor avança para um elencar de tais pares e, subsequentemente, para uma reflexão acerca dos pressupostos, natureza e potencialidades de uma vida espiritual que não se deixe seduzir pelos mesmos.

Palavras chave: Fulton Sheen; espiritualidade; extremos; equilíbrio; mundo contemporâneo.

Abstract
This article presents an outline of a portion of Fulton Sheen’s spiritual proposal, based on the determination of the most capital pairs of spiritual extremes that, tearing apart nowadays’ Christian and human spiritual life, need to be avoided. For this purpose, and after a brief presentation of the most relevant aspects of Fulton J. Sheen’s public life, which is unknown and (or) distorted by so many people, the author moves to give a list of such pairs and, subsequently, a reflection about the assumptions, nature and abilities of a spiritual life that isn’t seduced by them.

Keywords: Fulton Sheen; spirituality; extremes; balance; contemporary world.

Introdução

Vivemos, todos os sabemos, em tempos complicados. Dizer isto, é dizer quase tudo e, simultaneamente, nada dizer. Quando é que um dado tempo não foi complicado? Todos os tempos têm a sua complexidade, a sua batalha, a sua luta e tudo pela sobrevivência humana e, sobretudo, do que de humano há no ser humano. Mas talvez se possa dizer que, nos nossos dias, a maior parte das pessoas tem consciência dessa realidade, ainda que muitas delas não vejam que toda a revolta violenta contra o que creem ser o “sistema” leva, na cisada opinião do Autor a que nos passaremos a reportar, a um anarquismo que, no fundo, redunda num fatal compromisso com o que pode ser denominado de “animalismo” (SHEEN, 1955, p. 79). Isto é: com tudo o que de menos humano existe no homem[1] . Assim, a preocupação, a inquietação, a ansiedade e tudo o mais que destas possa decorre, é mais patente. Tudo isto é consequência da complexidade da realidade em que estamos submersos, mas também é, num ou noutro grau e de um ou outro modo, causa dessa mesma realidade, da qual tentamos transcender, mas, na melhor das ocorrências, sem nos desvincularmos dela, caso contrário estaríamos a traí-la e a trair-nos.

Uma das vozes mais notáveis para nos ajudar a viver as problemáticas destes tempos é, sem dúvida, a de Fulton Sheen. Não diremos que ele foi um préfeta, alguém que falou antecipadamente acerca do que ocorreria num momento posterior, num futuro a priori desconhecido dos demais. Mas diremos, sem qualquer hesitação, que o mesmo foi um verdadeiro profeta. Quer dizer: alguém que, extraordinariamente atento ao tempo em que viveu e falando a partir dele e para ele, não deixou de apontar os contornos dos dias subsequente àquele seu presente. Ou seja, os nossos dias.

Não sabemos onde fomos buscar forças para atravessar as medidas do confinamento que o Covid-19 levou a que fossem implementadas em Portugal. Mas parte das mesmas vieram certamente de termos podido encontrar, na biblioteca de uma comunidade religiosa situada bem perto de onde vivemos, as obras completas e originais de Fulton Sheen. Muitas delas já havíamos lido, neste ou naquele idioma, no passado, outras não eram senão nomes e imagens ténues na nossa mente, e até havia algumas que nem chegavam a esse patamar de conhecimento difuso. Ler muitas dessas obras, cujo conteúdo era para nós desconhecido, foi um enorme privilégio. Refletir sobre todas aquelas que já lêramos e pudemos ler, como matriz para um estudo acerca dos desafios da vida espiritual cristã coeva, foi um desafio face a uma dádiva singular. Um desafio que assumiu a forma deste presente trabalho que oferecemos, de imenso gosto, a todos aqueles que o puderem vir a ler.

Pois bem, na gênese do que irá estar formal e materialmente patente neste trabalho, encontra-se uma constatação basilar, formada logo que começamos a contactar com as obras de Fulton Sheen há cerca de dez anos. Este tinha, também por motivos retóricos – que nele adquirem laivos de genialidade –, a predileção por elaborar as suas interpretações da realidade mediante o delinear estoutra em pares de extremos contrastantes. Todas as leituras que, durante o confinamento da primeira metade de 2020, pudemos fazer às demais obras de Fulton Sheen, já muito atentos àquela evidência, apenas corroboraram essa nossa perceção.

Uma vez feitas tais leituras, reforçadas por um colocar os nossos olhos novamente nas mais escassas obras que havíamos lido precedentemente, uma opção tinha que ser feita para, entre as dezenas de oposições que transpiram nos livros daquele, elegermos as que iriam ser usadas por nós para a elaboração deste trabalho. Para o efeito, um critério pragmático – reconhecidamente válido segundo a melhor prática da Teologia Espiritual, mas, apesar disso, passível de ser questionado – foi seguido: apresentar apenas aquelas polaridades de extremos opostos que surgissem, clara e substancialmente, em, pelo menos, vinte por cento das suas obras; isto é, em mais de treze.

Com isto determinado, o tecer deste ensaio foi sendo elaborado e o mesmo adquiriu a sua presente estrutura tripartida. Em primeiro lugar, apresentaremos, pelas razões que evocaremos no local oportuno, um breve bosquejo da vida se Fulton Sheen. Num segundo momento, exporemos aqueloutras polaridades extremadas, apontando, já aí e em contraposição a tais extremos, alguns traços do que deve ser uma saudável espiritualidade cristã. Por fim, reforçando os evocados traços e limitando-nos a ter como apoio os limites contrapostos a eles subjacentes, faremos uma reflexão acerca do que precisa de ser uma verdadeira espiritualidade cristã – para bem da verdade acerca da mesma e, sobretudo, de quem a vive. Uma que, sendo intemporal na sua matriz, é perfeitamente ajustada aos tempos convulsos do início da terceira década do século XX.

Anotações biográficas

Se Fulton John Sheen vivesse hoje, com as atuais enormes facilidades a nível de transmissão de informação pelos meios de comunicação social tradicionais e de nova geração, dificilmente algum cristão, minimamente atento ao mundo eclesial e até social, desconhecê-lo-ia. Essa era, durante o período em que aquele viveu, a realidade vivida pelo menos nos Estados Unidos da América. Contudo estaríamos a iludir-nos se pensássemos que, nos dias de hoje, o mesmo é conhecido. Por esse motivo, seja-nos permitido ousar apresentar, neste momento, um breve esboço biográfico de Sheen (2001) focado nos aspectos da sua vida pública que nos parecem mais relevantes para a configuração do que viremos a referir a seguir.

É evidente que para se apresentar o pensamento espiritual de um autor, em parte ou na sua totalidade, não é estritamente necessário conhecer tais traços da sua vida, nem sequer, e apesar do que dizem algumas almas panadas, as texturas mais características do seu percurso espiritual mais íntimo. Algo que, no caso de Sheen, seria virtualmente irrealizável, já que, mesmo que ele tenha escrito uma autobiografia que ainda iremos citar no decurso deste ensaio, o próprio «estimava enormemente a sua privacidade»[2] (REEVES, Thomas C. America’s Bishop, p. 370.)

Seja como for, que sabemos nós da vida, pública e (ou) íntima, por exemplo, de Pseudo-Macário ou da autora do texto do, assim celebrizado, “Abandon à la Providence divine”? Nada. E não obstante isto, podemos apresentar, com segurança e confiança, as propostas espirituais veiculadas pelos seus escritos. Mas, uma vez dito isto, ainda cremos que o que passaremos a expor já de seguida é assaz importante, tendo em consideração, seja o desconhecimento anotado anteriormente, seja o nosso desejo de delinear e projetar uma moldura para o que, depois, virá a ser por nós dito.

Pois bem, Sheen nasceu em El Paso, no estado norte-americano do Illinois, no ano de 1895. Depois de uma formação sacerdotal de cunho intelectual neotomista, da qual tanto lutou para se desapegar no que a minha tinha de materialmente acessório, é ordenado sacerdote em 1919. Um ano depois, defendeu o seu doutoramento em filosofia na Universidade Católica da América em Washington, e, já no ano de 1923, obteve o mesmo grau em Lovaina, com um estudo reconhecidamente brilhante que viria a ser publicado, em 1926, com o título “God and Intelligence in Modern Philosophy”.

Sheen passaria, de seguida, a exercer o seu ministério sacerdotal na igreja de Saint Patrick, em Londres, ao mesmo tempo que lecionava Teologia no Saint Edmund’s College. Apesar de ter recebido convites para lecionar filosofia nas prestigiadas Universidades de Oxford e Columbia, é enviado para assumir a humilde paróquia de Saint Patrick na cidade de Peoria, no seu estado-natal. O tempo passado nesta missão, encarada pelo seu bispo como uma espécie de “última provação”, não chegou aos dez meses, pois recebe a incumbência de regressar, agora como docente, à sua primeira alma mater universitária, onde ensinará diversas disciplinas de filosofia até ao ano de 1950.

A partir de 1928, Sheen começa a intervir frequentemente em diversos mass media, naquilo que atingiu o seu apogeu na década de cinquenta do séc. XX, período em que, inclusive, recebe o Emmy de 1952 pera a mais destacada personalidade televisiva. Mais: e até uma das pessoas mais célebres nos EUA e o mais influente católico na América em toda aquela centúria (REEVES, 2001, p. 9). Na realidade, a sua «capacidade para pensar de modo claro, o seu desejo de ir para além dos clichés e dizer alguma coisa de genuinamente substancial, o seu talento para discursos persuasivos, a sua ortodoxia, o seu charme e humor, e a sua extraordinária voz» (REEVES, 2001, p. 80). cativaram milhões de pessoas.

Durante esses anos, Sheen é acolhido, como seu protegido, pelo bispo, e futuro cardeal, Francis Joseph Spellman de New York. Este facto leva a que seja nomeado para dirigir o ramo norte-americano da Propaganda Fide e ser convidado, inúmeras vezes e por aquele antes nomeado prelado nova-iorquino, para falar na catedral de Saint Patrick, bem no centro financeiro dos EUA. O seu sucesso pessoal, em contraste com os enormes atritos que o bispo de New York enfrentava devido às suas decisões mais políticas do que propriamente eclesiais, levaram a que este entrasse em conflito com Sheen, tendo acabado por fazer com que este fosse exilado daquela cidade. Realmente, foi isso que se pretendeu com o seu destacamento, no ano de 1966, para bispo da diocese de Rochester, no extremo norte, contíguo ao Lago Ontário, do estado de Nova York.

Tendo reconhecido e assumido a sua própria falta de capacidades para ser administrador de uma diocese, Sheen pede a resignação do cargo em 1969, e, já com Terence James Cooke como bispo de New York, regressa a esta cidade. Aí vive os seus últimos anos de vida, lutando contra graves complicações cardíacas, ao mesmo tempo que, na medida do possível, se entregava com denodo à sua antiga atividade de escritor e conferencista. Ao tempo em que escrevemos estas palavras, o processo da sua beatificação está em curso. Lamentavelmente, Sheen foi, e ainda é, alguém tremendamente desvalorizado pelos estudiosos, quiçá por falta de interesse em alguém com uma vida tão isenta de eventos extraordinários e conflitos notórios. Provavelmente em consequência disto, demasiados católicos dos nossos dias o desconhecem, naquilo que, de acordo com a nossa opinião, se revela um enorme prejuízo para todos.

Mapeamento dos extremos

1)De acordo com Fulton Sheen, a espiritualidade de todo o cristão tem que evitar todos os extremos com que se confronta, já que qualquer extremo está separado, e separa, de toda a verdade substancial. Desde logo, e dado que não há nada de mais concreto e nobre do que a vida espiritual, há que evitar o querer apegar-se ao ideal em detrimento do real e vice-versa: agarrar-se ao real e, assim, prescindir do ideal. O primeiro extremo leva ao que pode ser denominado de “psicose espiritual”, enquanto que o segundo redunda numa espécie de “neurose espiritual”, no que também se traduz, respetivamente e conforme veremos ainda mais à frente desde outro ponto de vista, no «isolar a Igreja do Mundo (…) ou identificando a Igreja com o Mundo» (REEVES, 2001, p. 368).

Ora bem, tal psicose, que pode ser mais ou menos intermitente, mas facilmente ignorável devido a mecanismos de compensação, leva a inclinações magicistas em que se faz hiper-interpretações e hiper-associações entre realidades totalmente desconexas, seja entre si, seja com a realidade. Já a mencionada neurose, mais dificilmente desconsiderável ainda que todavia facilmente camuflável, conduz a um hiper-ativismo suscitador de um exagerado desconforto face ao normativo, o qual, por sua vez, leva a falhas a nível da ação. Eis aqui descrita a «doença comum de quem estima não haver esperança alguma além da que brota de si, (…) tornando-se cínico, ego-centrado e cheio de uma falsa bravata empreendida para compensar as suas carências interiores» (REEVES, 2001, p. 201).

2) Isto, para o nosso Autor e embora os termos usados possam levar a essa conclusão, não é a descrição de um qualquer cenário psicológico. É, isso sim, algo eminentemente espiritual. De facto, o essencial nas expressões “psicose espiritual” e “neurose espiritual”, não são tanto os dois substantivos, mas o adjetivo em comum que as qualifica, dando àquelas as suas determinações conceptuais rigorosas. Ambos são fruto de relações espirituais deturpadas com Cristo Jesus e que levam a mais dois extremos que devem ser superados. Em concreto e respetivamente: a uma espiritualidade com uma Cruz sem Cristo, por um lado, e a uma espiritualidade com um Cristo sem Cruz, do outro lado

Ocorre que, em última análise, «Cristo sem a Cruz não salva, pois acaba reduzido à permissividade e ao estrelato que usam técnicas de marketing para confortar o fracasso; a Cruz sem Cristo não salva, pois acaba por ser sinônimo de (…) campos de concentração que esmagam as pessoas como uvas para se produzir o vinho coletivo do estado» (SHEEN, 1974, p. 33). Eis duas realidades que, por sinal e graças a um mecanismo de pêndulo tão frequente também na vida espiritual, fluem para os extremos a si diametralmente opostos: um Cristo sem Cruz e uma Cruz sem Cristo. Também aqui é bem verdadeiro o provérbio popular que recorda que os “extremos tocam-se”.

3) Continuando-se com os nossos extremos e recuperando algo já apontado de passagem, Sheen chama a atenção para outra dissociação que, quando levada a um dos seus extremos, o cristão deve evitar: a escolha de uma Igreja sem se dar atenção ao mundo ou, então, a opção pelo mundo sem se cuidar da Igreja. A consequência disto será a negação da vida cristã por um de dois meios: ou a sua guetização, por detrás de ilusórias muralhas, ou, então, a sua mundanização, num dissolver da sua especificidade segundo os gostos e as modas de cada circunstância. Surgem, então e daqui, duas formas trágicas de ateísmo: «o da “direita”, que professa amar a Deus e ignora o próximo; e o da “esquerda”, que professa amar ao próximo e ignora a Deus» (SHEEN, 1974, p. 69s).

Acontece que o cristão deve ser um ser “anfíbio”; um ser cuja identidade permite que seja capaz de viver na Igreja e no mundo, amando, tal como Deus, estas duas realidades, as quais, embora não se confundindo, se entrecruzam. E isto, quanto mais não seja porque a missão que requereu, e requer, a existência da Igreja, não é senão a de trazer o Reino de Deus ao mundo. Digamos isto de outro modo: é a missão de transformar o mundano em mundo, de modo a que este, posteriormente, possa ser matriz de acolhimento do Reino. Mas seguindo sempre os critérios messiânicos de Jesus, por Este discernidos aquando da sua estadia no deserto, e inerente recusa de Se «afastar da cruz pelo “curto circuitar” o caminho do amor» (SHEEN, 1957, p. 312). Humanizar a realidade para Deus a divinizar; isto é, tornar participante da Sua vida de amor, mas apenas conquanto o ser humano não «se queira divinizar, atribuindo a si mesmo o que é apenas um dom» (SHEEN, 1926, p. 279).

4) A outra face da moeda do que acabou de ser dito, é o facto de que também não se pode tender para um dos extremos da tensão que sempre existe entre o antigo e o novo; a fidelidade à tradição e a criatividade face aos novos desafios.

Se o cristão não for alguém entre gerações, antes optando exclusivamente pelo antigo da tradição sem dar atenção aos modos como tal depósito de conhecimento e de experiências pode ser significativo para o presente «como aquela memória da comunidade que nos permite pensar, evitar erros e ser fielmente criativos» (SHEEN, 1950, p. 24), acabar-se-á por viver numa espécie de caixa de conservas fora do prazo: porventura bela pelo exterior, mas com um conteúdo impossível de ser consumido. Por outro lado, se eleger entregar-se a um mero esforço de adaptação aos desafios de cada novo momento presente, acabará por ficar num estado de sobressalto face às ondas e pressões momentâneas. Sobretudo se, como consequência também de uma adesão à «conspiração moderna contra a memória» (SHEEN, 1955, p. 124), o fizer sem uma firme ancoragem a um sólido esqueleto, de sabedoria e vivências vividas, que o sustente. Face a esta sua neofilia ambulatória, o cristão nunca chegará a bom porto, pois ter-se-á tornado em «uma aljava cheia de setas, mas sem nenhum alvo fixo» (SHEEN, 1953, p. 2).

5) Talvez se possa traduzir o antes apontado mediante dois outros extremos: o querer ser apenas “rocha” ou somente “água”, ignorando-se que Cristo Jesus é, de uma maneira incontornável, ambas as realidades. Quer dizer: a firmeza de onde brota a vida e a vida que dá firmeza: «a rocha é permanente, a água representa a mudança e o dinamismo da Igreja» (SHEEN, 1974, p. 19).

Face à volatilidade dos nossos dias, não são poucos aqueles que querem ser, ou viver dentro de, uma “rocha” que evite todos os solavancos provocados pela instabilidade circundante. Também não são menos aqueles que acreditam que a única forma de viverem é liquefazerem-se, ou deixarem-se liquefazer, e ir na corrente em constante mudança. Todavia, isso são duas tremendas tentações que mais não logram do que amputar a vida cristã da sua vitalidade missionária, a qual é firme nas convicções e dócil nos modos.

Ora bem, só desse modo se será capaz de implementar, no concreto da existência humana mais abrangente, os dons do amor que têm a sua origem no Pai e são comunicados pelo Senhor Jesus através do unitivo próprio do Espírito Santo, o Qual «vivifica e faz do sujeito um filho de Deus de uma outra forma: não apenas genérica e social, própria da humanidade fraterna, mas particular e espiritual, própria da adoção filial em Cristo» (SHEEN, 1962, p. 33). E fazê-lo com aquela estabilidade realista que está equidistante da presunção otimista e do desespero pessimista que são decorrentes, respetivamente, da satisfação e da frustração do hedonismo.

Optando-se apenas por ser “rocha”, ignorar-se-á inevitavelmente a sempre nova frescura da dinâmica do amor do Espírito; elegendo-se ser somente “água”, acabar-se-á, quase que forçosamente, por esquecer a Cristo Jesus e às diversas mensagens firmes do Mesmo. Com efeito, a ideia de que pode haver uma fecunda ação cristã sem uma consciência da doutrina cristã, é uma ilusão, porquanto todos «agimos em função das nossas crenças: as nossas ideias são a ignição do motor das nossas ações a operar» (SHEEN, 1955, p. 59). Uma fé não conceptualizada é sempre uma ideologia sem sustentáculo.

6) Na linha do que já foi apontado, surge mais um par de extremos: querer reduzir a vida espiritual a um intimismo denominável de “espiritualismo”, ou, então, pretender restringir a mesma a um ativismo apelidável de “sociologismo”.

No primeiro caso, vive-se numa redoma de fino âmbar dourado em que se sente admirado pela Cruz, mas quase que exclusivamente por se querer convertê-la na única e, por conseguinte, errada, chave de leitura do que ocorre na vida. Eis o cristão a converter a Cruz, contra tudo o que ela é, «numa tela opaca que faz de tudo, e sobretudo do sofrimento, algo desprovido de sentido» (SHEEN, 1954, p. 193). Deste modo, o sujeito acabará por se afastar, cada vez mais, da verdade a respeito da mais ampla existência, como se estivesse numa guerra contra a mesma. Uma verdade que, convém sublinhar, só é cruciforme porquanto cristiforme, tendendo-se, inclusive, a recear todo e qualquer envolvimento nessa existência.

No segundo caso, acaba-se por viver empenhado em mil e uma causas incarnadas no mundo, mas acabando-se por fazer do Senhor uma mera justificação das pretensões mais pessoais e até mesmo egoístas. Assim, associa-se indevidamente aspectos meramente particulares da vida e da mensagem d’Este a leituras hiperbolizantes dos “sinais dos tempos”, reduzindo-O, consequentemente, a algo de ilusório e instrumental, pois tendo-se «tornado secular no espírito (…) Cristo é arrastado para justificar qualquer posição que se tenha, acabando-se por usar Jesus em vez de se deixar usar por Ele» (SHEEN, 1974, p. 246). Ou seja: Cristo é transformado num simples artefacto descafeinado e propulsor dos apeteceres particulares, deixando, nesse processo, de ser Alguém que é acolhedor enquanto exigente e suscitador de exigências.

7)Se assim é, não é de admirar que, para Sheen e mesmo respeitando-se as vocações pessoais mais peculiares que possam aparentemente tender de forma exclusiva para um dos extremos que irão ser evocados, o cristão deve evitar ser apenas Maria ou Marta, antes, uma Maria-Marta que não é menos uma Marta-Maria. A oração e a ação devem andar de mãos dadas, como, respetivamente, a inspiração e a expiração de toda uma vida que deve ser estimada como sendo, não “mista”, mas “homogénea”.

Se, por acaso, isto não fosse possível e se ficasse apenas por um único desses modos de vivência espiritual, acabar-se-ia por tender para uma de duas circunstâncias. Ou para um possível exacerbar de tendências interiores inatas que, não passando pelo crivo do contacto existencial com os demais, se tornariam fontes de frequentes enganos nocivos incapazes de batizar o real. E isto, dado que converteriam os crentes «em Budas com os olhos fechados, as mãos cruzadas sobre os peitos, olhando atentamente para dentro, pensando apenas em si mesmos até à ilusão do não-ser» (SHEEN, 1937, p. 39). Ou, então, para o ativismo sem fecundidade evangélica e, assim, reduzido a uma mera atividade desprovida do “magis” que caracteriza o cristão; isto é, da «generosidade que não busca reciprocidade (…) [e] que é o amor extra- -ordinário e extra-adorável» (SHEEN, 1944, p. 111).

Nada, pois, de se deixar seduzir por uma fraudulenta oração sem ação – não raras vezes trasvestida pelo slogan de uma pretensa ação na contemplação –, nem por uma ação sem oração – também não em poucas ocasiões disfarçada pela palavra-de-ordem de “contemplação na ação” –, por mais que se deva admitir que «todo labor honesto, bem feito, pode converter-se em oração» (SHEEN, 1954, p. 54). De qualquer modo, nada de substituir a oração “vertical” explícita pelo serviço “horizontal” e nada deste sem aquela: a vida interior, inclusive de oração e de oração contemplativa, e a vida exterior devem estar unificadas na colaboração com Deus na Sua missão salvífica, a qual não é senão o próprio Jesus Cristo. Por outras palavras: «louve-se o bom samaritano, mas não se fique de tal modo absorvido no que se faz, mesmo por amor, que se esqueça de recolher junto aos pés de Jesus para aprender os Seus ensinamentos» (SHEEN, 1974, p. 20).

8) Sheen também não deixa de ser contundente quando afirma que, na continuação dos extremos antes indicados, surgem dois outros: o psicologismo e o vedetismo. Quer dizer: de um lado, e numa absolutização da dimensão da interioridade, o sentir-se bem, tão típico da «Idade do Sentimento que substituiu, com iguais resultados trágicos para o homem, a Idade da Razão do século dezoito» (SHEEN, 1980, p. 203), e sentir-se assim, seja com sentimentos positivos, seja, de modo retorcido, com sentimentos negativos. De outro lado, o sentir-se reconhecido pela atenção exterior dos demais que vai transformar «o que é entregue de um dom num investimento (…) publicitário desejoso de um retorno» (SHEEN, 1982, p.150), num capitalizar, por conseguinte, da dimensão da exterioridade.

No primeiro caso, acaba-se por enveredar pelo subjetivismo emocional, que faz do contentamento individual a bússola do viver e do agir. Acontece que, felizmente – pois isso redundaria no isolamento e na indiferença negativa –, não há nada na espiritualidade cristã que seja meramente individual, «do mesmo modo que nenhum nascimento é privado. Ninguém pode nascer nem viver sozinho (…) e uma [espiritualidade cristã] sozinha é tão irreal como um amar sozinho» (SHEEN, 1946, p.77). No segundo caso, pauta-se pelo que agrada aos demais, diluindo a própria identidade no magma da aceitabilidade.

Pois bem, em ambos os casos a vida cristã afasta-se da sua dimensão objetiva, plasmada e inspirada pela vida normativa do Senhor Jesus. Em consequência, substitui-se Este por uma de duas realidades idealizadas. No primeiro caso, troca-se o Mesmo pela emotividade flutuante subjugada aos instintos herdados e não evangelizados, o que faz com que «as suas convicções sobre o bem e o mal mudem de orientação como um catavento» (SHEEN, 1954, p. 165). No segundo, Cristo é comutado pela opinião inconstante dos outros enquanto subjugada às dinâmicas da turba, as quais só o permitem sentir-se bem quando «subjugado na multidão, sem originalidade de julgamento ou de soluções, emitindo opiniões que somente são ressonâncias» (SHEEN, 1954, p. 164). Eis o Messias a ser substituído pelo que de pior pode existir na psicologia ou na sociologia e política.

Nessas duas, nada raras, ocorrências, Cristo tornou-se invisível, pois deixou- -se que Este fosse substituído por Freud ou por Marx, os quais, sob a pena e a voz dos seus divulgadores populares, arrebanharam os mais frágeis e desvalidos. Deveras, estes acabaram seduzidos, não pela verdade objetiva decorrente do mais denso e exigente amor, mas, respetivamente, pelo conforto psicológico de um ego-césar feito ego-deus e a agressividade social crente num exo-deus reduzido a exo-césar. Seja como for, tais pessoas mais carentes, e sobretudo quem os manipulou, acabarão a atacar, temática ou atematicamente, o Cristianismo: «os de coração puro serão vítimas do escárnio dos freudianos; os mansos serão desprezados pelos marxistas» (SHEEN, 1953, p. 25). Triste ocorrência esta, mas, não obstante, profundamente verdadeira e que configura um triste sinal da desumanização da humanidade.

9)Associado ao que acabámos de ver, e até na sua base, está mais uma outra dicotomia de extremos que continuam, cada um deles, na linha de todos os que já foram apresentados. A redução, consciente ou não, de Cristo a vítima ou a sacerdote.

Ocorre que Jesus foi simultaneamente sacerdote e vítima e todo o Seu discípulo, todo o cristão, necessita, inapelavelmente, de se reconhecer como dadivante e dom: como alguém que sacrifica e se sacrifica, por mais que «quanto mais intenso for o amor que justifica isto, menos se pensa no sofrimento que lhe pode advir» (SHEEN, 1955, p. 35). Por outras palavras: como alguém que, por um lado, age de modo a que todas as realidades com que relaciona se tornem, ou se façam mais, amor, e, por outro lado, se entrega a Deus, e até aos demais, para que Este e estes o possam transformar em mais amor. Se, como já vimos, não se pode ser um autêntico cristão e querer, ao mesmo tempo, separar a Cruz de Cristo Jesus, então também não é possível sê-lo querendo-se viver sacerdotalmente sem se aceitar uma vida oblativa de regeneração e reconciliação num amor «que não é apenas uma afirmação, mas igualmente uma negação; (…) uma entrega da vontade e dos interesses egoístas tendo em vista o bem do amado» (SHEEN, 1942, p.16).

Para Sheen não pode haver dúvida: ser cristão é ser um prolongamento da incarnação de Deus-Filho que decorreu do facto de que «o amor tende a tornar-se como aquele que é amado; na verdade, até deseja unido àquele que é amado» (SHEEN, 1930, p. 70), e a mesma não é um momento pontual, mas algo dinâmico que culminou na morte d’Aquele. É viver da humildade de Deus numa incondicional entrega reconciliadora do desamor com o Mesmo, fazendo do «realizar a [Sua] vontade até à morte o coração interior de toda a santidade» (SHEEN, 1953, p. 223).

Pode perguntar-se se isto comporta alguma forma de morte e, porventura, até a própria morte em sentido estrito? Não nos parece que possa haver dúvidas quanto a isso: Cristo incarnou para amar salvificamente até ao fim de Si, e isso comporta o carregar o crucifixo no coração. Isto é, acarreta o dar-se totalmente a quem se ama, inclusive aqueles a quem se sabe, ou se pode estimar, que irão rejeitar o nosso amor justamente por ser amor, no que, no caso histórico concreto do Senhor e eventualmente de qualquer cristão, arretou uma morte cruenta.

Uma visão do equilíbrio

Evitando-se os extremos ou, com o tempo, saindo-se de um deles, estar-se- -á a viver no “meio”. É um facto que o “meio” tanto pode ser sinal de corajosa “virtude” como de apática “mediocridade”, mas não há como evitar a tensão decorrente desta realidade: o “meio” é o único local de equilíbrio para uma espiritualidade saudável e para a saúde espiritual. Aquele local porventura maximamente instável em tantos aspectos, pois com tudo ao seu redor.

Não é por se poder correr o risco de acabar por gostar apenas da espuma da cerveja que se há de deixar de reconhecer que a cerveja é deliciosa. Opte-se pelo “meio” enquanto sinônimo da zona brilhante da “virtude” fruto do amor verdadeiro, mas não se anua àqueloutro no que ele pode ter de cinzenta “mediocridade” resultante de acomodações, compromissos e cedências naquela verdade no amor que, em nome de uma falsa noção de diálogo que se torna «a melhor forma de se evitar una decisão» (SHEEN, 1974, p. 20), acaba por ser calcada e com ela o próprio Cristo Jesus. Nesta área, todo o pacto que esboroa o amor de verdade é contraproducente: «não se pode opor uma ideologia com meras opiniões, nem uma filosofia de vida com atitudes aplacadoras, pois o simples facto de se dar o braço direito a um urso não garante que ele não vá arrancar-nos o esquerdo» (SHEEN, 1946, p. 48).

É evidente que uma vida nesse ponto de equilibro, «de proporção, de estabilidade ou, se o pudermos dizer, de humor» (SHEEN, 1946, p. 190), é desafiante. Mas o simples facto de ser cristão é imediatamente desafiante, pelo que é incontornável assumir tal vida, em que se reconhece que «o principal adversário que deve ser superado – a inimizade voluntária com Deus – faz parte de nós: eis a revolução cristã» (SHEEN, 1954, p. 41). Isso fará do crente um ser misterioso; alguém profundamente humano e terreno e, ao mesmo tempo, profundamente divinizável e ciente de que a sua verdadeira morada é o Céu, o qual, não sendo senão aquela thése pneumatiké onde Deus está, também já é este mundo a ser transformado por uma graça que, na esfera da liberdade humana, «só é dada cada vez mais na medida em que a que é usada a que foi entregue antes» (SHEEN, 1955, p. 100).

Neste sentido, o batizado crente será um embaixador de Cristo e mesmo, conquanto não se exagere as leituras da próxima expressão, um outro Cristo, que sabe bem que a sua vida é inseparável da vida dos demais, pois «a chama da fé não é dada para deliciar os nossos olhos, mas para gastar-se no acender as tochas dos outros homens» (SHEEN, 1938, p. 71). Um ser que sabe, e vive em coerência desse saber, que se a santidade é a meta da sua vida, então essa não pode ser alcançável sem um real cuidar da santidade dos demais e, desse modo, igualmente da santidade da própria Igreja. De todos aqueles de quem se faz próximo para, por um testemunho que deve ser espontâneo sob pena de fracassar rotundamente, os tornar participantes da herança de Cristo Jesus pela vivência das bem-aventuranças.

Note-se que, para Sheen e com toda a razão, estas breves descrições existenciais das opções messiânicas do Senhor e, assim, uma coleção proléptica d’Aquele em Cruz, «não são ideais, mas factos sólidos e realidades inseparáveis da Cruz do Calvário, pois todas elas apontam para (…) o sentenciar do homem- -velho» (SHEEN, 1977, p. 119), de modo a que o homem-em-Cristo possa ser liberto. Eis, neste homem-em-Cristo, o homem perfeito no amor: «o homem- -não-apegado, não-apegado à ambição de poder, publicidade e possessões; não- -apegado à ira, ambição e avareza; não-apegado a desejos egoístas» ( SHEEN, 1953, p. 82).

Como vemos, o cristão deve ser um co(m)-mediador no Mediador, cuidando de articular a sua imanência e a sua transcendência, nada declinando de nenhuma das duas, antes vivendo-as até ao fim. Quer dizer: não até um qualquer limite, mas ao máximo que a sua pessoa e as suas circunstâncias pessoais lhe permitem. Homem dos homens sobre o precipício do pecado e, ao mesmo tempo, homem de Deus sob a atracão do Espírito Santo. Homem para os homens e homem para Deus, sem receio de se “sujar” no humano, e até no mundano. Na verdade, o humano é o único caminho que o crente tem para ir ao encontro do divino que vem até si, e, por outro lado, o mundano acaba por ser o horizonte em que aquele precisa de existir, e viver, para realizar a sua missão de intervenção no mesmo na linha do que já aludimos. Isto é, desde um renovamento de corações que «estabelece um novo conjunto de relações com Deus e, desde estas, um empenho social e tudo o mais que advenha – mas não ao contrário» (SHEEN, 1944, p. 48).

Efetivamente, a santidade cristã, que «não requere muito tempo, mas muito amor» (SHEEN, 1967, p. 256), não é divisão e estigmatização, mas união e regeneração até porque, «em linguagem moderna, a Páscoa é o reciclar dos detritos que são os homens feridos pelo pecado» (SHEEN, 1982, p. 221), e isso implica tocar no que se quer limpar. Isto requer muito saber, muita humildade e muito mais amor. Quer dizer: requer o amor sábio decorrente da kénose da Cruz feita o pulsar vivo da existência dos crentes. Só dessa forma não haverá ambiguidades nos seus corações e estes aceitarão – porventura com pesar, ainda que alegre e pacífico – que as demais pessoas pensem, erradamente, estar a vê-las nas suas manifestações exteriores.

Significa isto o ter que aceitar ser um sinal de contradição? Sem dúvida; até porque o viver verdadeiramente a vida humanizada por Cristo leva a uma existência «que só será popular quando deixar de ser autêntica, pois ela é, pela sua natureza, intrinsecamente impopular – certamente impopular para o ego» (SHEEN, 1955, p. 92). Contudo, não há outro caminho para que quem não é cristão possa vir a dizer não apenas “vejam como eles se amam”, mas, especialmente, “vejam como eles nos amam”.

Kénose e Plerose. Inseparavelmente. A «coroa de espinhos como condição da coroa da glória» (SHEEN, 1974, p. 126). Sem uma demissão do próprio “ego”, nunca poderá haver uma plenificação do “eu”. Uma plenificação que só será viável quando só houver, em cada coração, o Senhor Jesus e tudo o que tiver sido tocado pelo Seu amor, conquanto encarado e vivido justamente desde esta perspectiva, e não mais nenhum outro deus a quem se idolatre. Pena é que tantos cristãos, quando constatam vitalmente esta verdade, acabem a «protestar e a clamar, regredindo a estados espirituais mais infantis, ao Egipto das suas vidas, à escravatura espiritual»(SHEEN, 1974, p. 141).

Entre o Panteão de tais falsos deuses, e tal como já temos vindo a indiciar, Sheen aponta dois que nos parecem particularmente relevantes para os nossos dias. Em primeiro lugar, a “emotividade”, típica «das religiões ateias do “eu sinto isso aqui”, em que o estômago substituiu o cérebro e, assim e rapidamente e no que dá origem a um outro totalitarismo irracional, a emotividade individual é subjugada pela coletiva» (SHEEN, 1941, p. 2). Em segundo lugar, o “tempo”, que, apesar de ser tantas vezes um ditador nas nossas vidas e ao qual nos submetemos com afinco, «não é salvador, até porque o seu avenço vetorial não significa necessariamente que as coisas ficam melhores; por vezes ficam piores» (SHEEN, 1974, p. 278).

Ambos, no fundo, também traduzem a propensão para, por um lado, a denúncia profética sem anúncio evangélico, e, por outro lado, o anúncio evangélico sem denúncia profética, no que leva a que quem adira ao mesmo derive para um mero e cómodo «re-anúncio da sua própria pessoa» (SHEEN, 1963, p. 162). E isto não menos porque, em ambos os casos, não se foi capaz de viver uma renúncia prévia àquele sempre nefasto “ego” e aos seus correlatos, os quais, quando levados aos extremo, suscitam uma egolatria que acaba por derivar «numa ou outra forma de ateísmo que é sempre a idolatria totalitária do nada» (SHEEN, 1967, p.220). Uma renúncia que permitisse a passagem da ego-assertividade para a Cristo-assertividade em que já se sabe, e vive numa obediência à verdade «na espontaneidade do amor que recusa toda a servitude mecânica» (SHEEN, 1956, p. 85), que o eu verdadeiro é sempre o eu mais Cristo.

Nenhum Cristão é de si, nem para si. Jamais. Tudo na sua vida só reverte para seu proveito na medida em que é entregue, no Senhor, em benefício de todos os demais de todos os tempos, pois «sendo uma Pessoa divina, [Aquele] é o Eterno Contemporâneo» SHEEN, 1946, p. 94). Aqui surge a necessidade de nos confrontarmos com honestidade com uma outra questão: requer isto uma grande dose de ascetismo? Sim, claramente, mas apenas aquele que é vivido com a consciência de que a meta «da disciplina do “eu” é o amor e, assim, aquele que tiver como principal propósito e finalidade da sua vida o domar até ao limite os seus impulsos animais (…) logrará a negação da sua concupiscência, mas não a afirmação do espírito»(SHEEN, 1954, p. 168).

Com isto em perpectiva, é necessário reconhecer que, sem uma espiritualidade que evite os extremos antes elencados – todos eles decorrentes de defeitos na vida espiritual e eclesial, consequentes do esquecimento ou desvalorização de uma dimensão do real por causa da preocupação com a oposta –, o crente viverá estirado. Nunca será capaz de permanecer, com uma dúctil resiliência espiritual, fiel à sua identidade profunda e, simultaneamente, adaptar-se a realidades sempre em mutação. Sem uma coluna vertebral espiritual firme, nunca será capaz de ser flexível nos seus músculos. Nunca será capaz de, através da sua vida feita transparente ao agir de Deus e também mediante o adquirir de competências culturais, verter a mensagem perene de amor, que traz inscrita no seu coração, em ideias e palavras portadoras de significado e sentido para os momentos e ocasiões com que se irá deparar. Uma mensagem que, não obstante e em si mesma, precisa de ser por ele reconhecida que, tal como a Igreja que é a sua pneumosfera, «não se encaixa facilmente na feição particular de qualquer época, pois foi suscitada para todas as épocas» (SHEEN, 1944, p. 168).

Ler os “sinais do tempo” não é o batizado ficar a olhar para os mesmos, muito menos converter-se ao “tempo”. É, isso sim, e a partir de uma hermenêutica do amor que deve tornar-se progressivamente conatural a si para não temer os riscos que andam associados a oportunidades, o crente comunicar, a quem vive nesse “tempo”, a mais profunda cognição deste mesmo “tempo”. Meramente assim se poderá ser enviado de Cristo e testemunha da verdade confiada à Igreja em cada local e tempo.

Isto requer, como é fácil de ver, uma existência numa anfibologia simples e tranquila que, ancorada na Cruz da morte e ressurreição como único sustentáculo fecundo enquanto «não algo que aconteceu mas que está a acontecer e pode ser encontrada em qualquer local e em qualquer momento» (SHEEN, 1955, p. 190), permita que toda a vida seja uma doação: de si aos demais e, assim, a Deus. E isso, enquanto entretecida a partir de uma espiritualidade cristã veraz que permeie todas as suas dimensões sem separar a religiosidade ocasional da operatividade comum. Na verdade, não pode haver um «“homem espiritual” de um lado e um “homem secular” do outro, antes um homem unificado e integrado pela salvação que é Cristo Jesus» (SHENN, 1974, p. 243); um homem «com a largueza mental e a fortaleza prática da maturidade e a humildade, veracidade, espontaneidade e obediência amorosa da criança» (SHEEN, 1982, p. 173).

Palavras finais

Quando se dá a conhecer uma proposta espiritual baseada nos pressupostos que nortearam a nossa presente exposição, há que constatar, imediatamente, uma evidência: trata-se, sempre e incontornavelmente, de algo francamente parcial. Na verdade, e sendo isto particularmente evidente no caso do pensamento espiritual de Fulton Sheen, há toda a uma panóplia de outras temáticas que, não fossem os referidos pressupostos, teriam que ser necessariamente apresentadas para se tentar fazer jus, ainda que remotamente, a uma visão mais plena de um dado pensamento espiritual.

Contudo, estamos certos que, havendo nós respeitado os códigos de procedimento metodológico da Teologia Espiritual, não deixámos de apresentar uma visão que, ainda que abreviada, é inequivocamente pertinente. E é-o, seja acerca da reflexão espiritual de Fulton Sheen propriamente dita, seja acerca do que, estando patente em tal reflexão, deve ser uma equilibrada espiritualidade cristã dotada, e comunicadora, de sentido para os nossos dias. Dias estes que, de forma tão reiterada, surgem fragmentados por diferentes tendências – políticas, sociais e, também e por mais que isto deseje ser ocultado, religiosas – diametralmente opostas, com toda a violência interior e exterior que acaba por ser potenciada devido à ausência de um equilíbrio humano arraigado numa salutar espiritualidade cristã ou, se não se for cristão, inspirada nesta.

Recusamo-nos aderir à patética mania que, desde 1965, tem perdurado acerca de se dizer, a propósito e a despropósito, que quase toda a pessoa foi um “percursor do II Concílio do Vaticano” (será que alguém já se lembrou de afirmar isso de Jesus Cristo? Não sabemos, mas de Quem tal apreciação seria mais adequada?). Não obstante, é um facto que Fulton Sheen logrou viver exemplarmente o que tal Concílio, desejando ser o maximamente fiel ao Senhor e a tudo o que foi reconciliado por Este, expressou. Assim, e trazendo para aqui uma série de títulos de obras suas, as suas palavras possuem aquela brisa de um intemporal romance divino incarnado que tanto bem pode fazer. E fazê-lo, sobretudo a quem, nos nossos dias repletos de erros antigos com rótulos novos, busca o caminho da felicidade no amor da Vida de Cristo sob um arco-íris de mágoa. Mesmo que, para isso, tenha que seguir pegadas numa floresta escurecida que raramente deixa vislumbrar o valor da livre declaração de dependência que tal amor, enquanto única realidade dadora de paz de alma, requer.

Bibliografia

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Notas

[1] Utilizamos, porquanto nos movendo no âmbito da teologia cristã, o termo “homem” como sinônimo de “ser humano”, englobando o mesmo, por conseguinte, a noção de “varão” e “mulher”.

[2] Todas as traduções presentes neste estudo são da nossa responsabilidade.