Mahdi: o messias islâmico xiita

Mahdi: the Shiite Islamic messiah


Murilo Cavalcante Alves

Professor Adjunto da FALE - Faculdade de Letras da Universidade Federal de Alagoas; Especialista em Metodologia do Ensino Religioso - UNINTER; Especialista em Filologia - PUC-MG; Especialista em Estudos Clássicos – UNB. Contato: professor.mca@gmail.com  

Eunaide Monteiro de Almeida da Silva 

Doutoranda do Programa de Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Contato: eunaidemonteiro28@yahoo.com.br  


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Resumo

O artigo trata da complexa questão do Mahdi, o messias islâmico xiita, com uma breve introdução ao contexto doutrinário-religioso. Descreve o panorama do Islam Sunita com suas características doutrinárias e históricas. Aborda as características do Xiismo Duodecimalista e a questão do Imamato, imprescindíveis à compreensão do conceito messiânico xiita. Conclui com uma reflexão sobre os possíveis desdobramentos da questão, em um futuro remoto, a partir da expectativa do retorno do Mahdi aguardado pelos xiitas.

Palavras-chave: Islam. Messianismo. Sunita. Teologia. Xiita. 

Abstract

The paper deals with the complex issue of Mahdi, the Shiite Islamic messiah, with a brief introduction to the doctrinal-religious context. It describes the panorama of Sunni Islam with its doctrinal and historical characteristics. It addresses the characteristics of Duodecimalistic Shia and the question of the Imamate, which are essential for understanding the Shia messianic concept. It concludes with a reflection on the possible unfolding of the question, in a remote future, based on the expectation of the return of the Mahdi awaited by the Shiites.

Keywords: : Islam. Messianism. Sunna. Shia. Theology 

1. Introdução 

O artigo trata da complexa questão do messias islâmico, aquele que na tradição xiita é nominado como Mahdi. E, para abordagem do tema, faz-se uma breve incursão pelo suporte que o fundamenta, isto é, o contexto doutrinário-religioso. Por isso, a necessidade de se abordar o surgimento do Islam Sunita em suas características doutrinárias e históricas, em contraposição ao Xiismo Duodecimalista, apontando as principais diferenças entre os dois. Se bem que para alguns autores tais diferenças, como se verá, configuram uma falsa questão, uma vez que as duas perspectivas seriam complementares. Por sua vez, a questão do Imamato, ou seja, a questão do surgimento e função dos Imãs no contexto islâmico xiita é imprescindível à compreensão da ideia. Só então, a modo de conclusão, aborda-se os possíveis desdobramentos da questão em um futuro remoto com a expectativa do retorno do Messias islâmico pelos xiitas. 

2. O Islam sunita 

O Islam surgiu na Arábia, no início do século VII da era cristã, em ambiência árabe e em contato com pequenos traços de Judaísmo e de Cristianismo, que como religiões não chegaram a florescer naquela ambiência. Naquele momento, tratava-se de uma sociedade tribal em que a maioria dos habitantes vivia como cameleiros nômades, ajustados ao clima rude do deserto e que possuíam regras morais e sociais que caracterizavam a chamada “civilização do deserto”. 

As crenças reinantes eram, principalmente, fetichismo; animismo; totemismo; religião astral em que duas estrelas Al Lat e Al Uzza eram adoradas; e, finalmente, monoteísmo puro. Sobre essa época, Neuza Neif Nabhan assinala que “a falta de documentos dificulta a reconstrução da religião pré-islâmica, em vista da escassez de informações e que “o mais importante, para uma reflexão da crença desse período que antecede o Islão, é a constatação de uma religião politeísta.” (1996, p.14). 

Nesse cenário materialista vai surgir o Profeta Muhamad (Maomé)1 , nascido em Makka (Meca), provavelmente em 570 d. C., e pertencente ao clã coraichita da tribo Banu Hachim. Só aos quarenta anos é que vai receber a primeira revelação religiosa, enquanto meditava na caverna do Monte Hira, nos arredores de Meca. Aparece-lhe um anjo, mais tarde identificado como o Anjo Gabriel, que lhe ordena recitar um versículo do Alcorão, e o chamou de “Enviado de Deus” (rasul Allah). Após essas primeiras revelações, e durante certo tempo, o Profeta pregaria de forma discreta a sua fé em um Deus único cujas mensagens vão se suceder por mais de vinte anos e que, compiladas após sua morte, caracterizam o livro sagrado dos muçulmanos, o Alcorão. 

Segundo ainda Neuza Neif Nabhan, o Alcorão é uma predicação, já que o espírito do Islam é o de interligação entre os planos temporal e espiritual, portanto não existe separação entre os fatos da vida religiosa daqueles referentes à vida prática ou social (Ibidem). Em árabe, Alcorão (al Qur’an) significa a leitura, o ato de ler, a recitação. Composto de 114 suratas (capítulos) que se subdividem em 6.235 versículos, é o Alcorão a fonte do saber islâmico e, como palavra de Deus revelada ao Profeta, contém em sua totalidade conteúdos doutrinais e normativos, descreve desde as vicissitudes da alma aos assuntos sobre a criação, a astronomia, temas concernentes à terra, aos reinos animal e vegetal e à reprodução humana. Observa então Neuza N. Nabhan que 

o fato corânico é um acontecimento histórico, cultural e religioso. [e que] A linguagem religiosa se desenvolve em três planos: [o do] culto: [com] gestos, ritos, recitações como meios de expressão da alma religiosa; [no plano da] lei: [com as] instituições, direitos dos homens; [e no plano do] pensamento: [com a] teologia, ética, mística, exegese, ciências auxiliares (Ibidem). 

De outro modo, outra peculiaridade do Islam é possuir, além do Alcorão, que como se sabe é o suporte não só para a liturgia islâmica, mas também o código de vida a ser seguido, outro conjunto de tradições orais preservadas e reunidas chamados hadith, isto é, sentenças orais do próprio Profeta (chamadas de hadith nabaui) ou sentenças divinas, recebidas e emitidas pelo Profeta (chamados de hadith kudsi), que são orientações outras que complementam o próprio Alcorão; o conjunto desses ahadith comporiam a chamada sunnah, ou seja, as tradições do Profeta, que abrangem sua maneira de agir em diversas circunstâncias da vida, e que são as orientações a serem observadas e seguidas pelos muçulmanos. Por essa razão o termo sunni significa literalmente “o que é tradicionalista”, denominando aqueles que seguem as tradições do Profeta. 

Enfim, em síntese, podemos resumir a essência do Islam sunita em cinco pilares fundamentais, que compõem a lei dessa religião: 1º) o pilar da fé, que consiste em testemunhar a unicidade de Deus (tawhid) e a Profecia do Profeta, pilar que foi transformado em uma fórmula ritual que é o testemunho islâmico chamado em árabe de shahada, que diz assim: Achahadu a la illaha illa allah ua achahadu an Muhammadan rasul Allah (Atesto que não existe divindade afora Deus e que Muhamad é o Enviado de Deus); o 2º) pilar é o pilar da oração ritual diária, composto de cinco orações canônicas; o 3º) é o pilar do zakat, termo que não tem um correspondente exato nas línguas ocidentais e que alguns traduzem como imposto social; o 4º) pilar é o do jejum do mês do Ramadan (nono mês do calendário lunar islâmico), mês em que começou a Revelação corânica; e finalmente, o 5º) é a peregrinação a Meca com o ritual de circundação da Kaaba. Apresentados esses pontos sobre o sunismo, que na verdade suscita aspectos mais complexos, os quais, infelizmente, as limitações e propósitos deste artigo não permitem ultrapassar, passa-se agora a fazer algumas considerações sobre o xiismo. 

3. Xiismo Duodecimalista

As origens do xiismo estão associadas a uma questão, sobretudo de caráter político, relativa à sucessão do Profeta, após sua morte inesperada. Como o Profeta, segundo os sunitas, não havia deixado expressamente um sucessor (kahlifa), um grupo majoritário apoiou Abu Bakr, amigo e genro do Profeta e um dos primeiros muçulmanos, nomeando-o primeiro califa, em detrimento de outro grupo que apoiava um membro da família do Profeta, o primo e genro do Profeta, o futuro califa Ali b. Ali Talib. A questão se prolonga com o surgimento de dois outros califas que sucedem a Abu Bakr, após sua morte, com a ascensão dos califas Umar e Utsman, respectivamente, e Ali Talib só vem assumir o califado após a morte do terceiro califa Utsman, mas exercendo a função por pouco tempo, pois logo depois é assassinado. Com a morte do califa Ali vai se originar o xiismo, termo cuja raiz é a palavra xia, que significa “partido de Ali”. Porém, a partir desse momento o xiismo passa a ser mais do que uma questão meramente política, uma vez que dá origem a alguns aspectos doutrinários distintos do sunismo. 

A começar pelo termo xiismo, que incorpora outra palavra, duodecimalismo, que tem um significado intrínseco importante e definidor dessa doutrina. O termo duodecimalista, origina-se do código religioso e de sua inspiração espiritual, após o Profeta, com o surgimento de doze Imãs (guias) entre os descendentes do Profeta, segundo os xiitas. Ou seja, os membros dessa vertente complementar do Islam, consideram os Imãs como os únicos intérpretes autorizados do Alcorão e da Sunnah. O termo shi’ah, que significa partido ou seguidor, para os xiitas apresenta um significado mais amplo, pois serve para designá-los como seguidores da Casa do Profeta (Ahl al-Beyt). O uso do adjetivo qualitativo duodecimal (em árabe, ithnaashar, “doze” – por isso quer dizer ithnã ‘ashariyya, “duodecimal’) serve para diferenciá-los de outros ramos menos expressivos do xiismo, como os zaydis e os isma’ilis que, ao admitir que a orientação religiosa deva vir apenas dos membros da família do Profeta, diferem dos duodecimalistas em relação ao número e aos vários membros de seus descendentes, que aceitam como Imãs legítimos. Nesse sentido, os doze imãs aceitos pelo xiismo duodecimalista são: 

(1)‘Ali b. Abi Talib (m. 40/661)
(2 )Al-Hasan b. ‘Ali (m. 49/669)
(3) Al – Husayn b. Ali (m. 61/680)
(4) ‘Ali b. al-Husayn, Zayn al-Abidin (m. 95/714)
(5) Muhammad al-Baqir (d. 115/733)
(6) Ja’far as-Sadiq (m. 148/765)
(7) Musã al-Kãzim (m. 183/799)
(8) ‘Ali ar-Ridã (m. 203/818)
(9) Muhammad Jawãd at-Taqi (m. 220/835)
(10) ‘Ali an-Naqi (m. 254/868)
(11) Al-Hasan al-‘Askari (m. 260/874)
(12) Muhammad al-Mahdi, al-Qãim al-Hujjah (segundo os xiitas, passou à ocultação maior em 329/940)

Ressalte-se que, devido ao fato de todos os filhos homens do Profeta terem morrido na infância, todos esses Imãs têm sua origem comum em Fatimah, filha do Profeta, e esposa de ‘Ali ibn Abi Talib, primo e discípulo do Profeta; por isso ‘Ali ibn Abi Talib é considerado o primeiro Imã. Já Al-Hasan e Al-Husayn, filhos de ‘Ali e Fatimah, são considerados como o segundo e terceiro Imãs, respectivamente. Segundo os xiitas duodecimalistas, depois da morte de Al-Husayn, o Imamato permaneceu em seus descendentes até chegar ao décimo segundo Imã, Muhamad al-Mahdi que, segundo os xiitas, por desígnio de Deus, ocultou-se para continuar dirigindo os crentes até o Dia da Ressurreição. Dessa forma, a crença de que a orientação religiosa deve se originar dos descendentes do Profeta provém no xiismo do conceito corânico das famílias virtuosas e exaltadas dos profetas. Aliás, para eles não é por acaso que o Alcorão constantemente cita profetas rezando a Deus por suas descendências, e solicitando que o Criador mantivesse Sua orientação em suas linhagens, e que também estes herdassem suas qualidades espirituais. Ilustram tal fato alguns versículos do próprio Alcorão. Por exemplo, o interesse de Abraão por sua família, quando Deus diz: “Eu te porei como imã (líder) das gentes.” (ALCORÃO, II, 124). E o próprio Abraão suplica: “E a minha descendência? (dhurriyyati, semente)” (Ibidem). Então, Deus responde: “O meu pacto não atingirá os injustos” (Ibidem), o que significa dizer que os descendentes de Abraão serão pessoas virtuosas para continuarem sua missão. Existe outro versículo bem significativo que diz: “Deus escolheu a Adão, a Noé, à família de Abraão e à família de Imram sobre os mundos.” (Ibidem, III, 3). Isso significa que tais versículos, utilizados por ambas as expressões islâmicas, sunismo e xiismo, servem de fundamento indiscutível para os comentadores do Alcorão de que Muhammad pertencia à “família de Abraão”. Aliás, Abraão era reconhecido pelo povo árabe não somente como seu progenitor, mas também como aquele que fundou a Kaaba, cuidada por quatro gerações de zeladores antepassados do Profeta com prerrogativas sacerdotais. Neste cenário familiar, Muhamad surge como último Profeta de Deus, chamado de o Selo das Profecias (khatim an-nubuwwah), tanto por sunitas como por xiitas, e restaurador da verdadeira religião de Abraão e Ismael. 

Dessa maneira, a santidade da casa de Abraão consagrou no Profeta, de acordo com os muçulmanos, sua perfeição mais elevada. Portanto, essa interpretação corânica do lugar elevado das famílias dos profetas faz parte da crença dos muçulmanos xiitas de que o sucessor do Profeta só poderia ser um homem de sua própria família, portador das mesmas qualidades pessoais. Para os xiitas, esse sucessor só poderia ser ‘Ali ibn Abi Talib, primo e genro do Profeta, pois era casado com a filha deste, Fátima; muçulmano desde o primeiro momento do ressurgimento do Islam, e que apresentava a qualidade de liderança requerida para isso. No entanto, foi logo depois da morte do Profeta que a consideração especial pelo Califa ‘Ali encontrou sua expressão inequívoca quando lhe foi negada a liderança da comunidade, devido talvez, segundo os xiitas, a considerações de natureza política. A complexa questão da sucessão do Profeta mistura-se assim com a visão de liderança da comunidade, apresentando diversas abordagens e vários graus de ênfase em seus aspectos religiosos e políticos. 

Para alguns muçulmanos a questão era mais política do que religiosa, para outros, era mais religiosa do que política. Nesse sentido, não devemos esquecer que o Islam contempla todos os aspectos da vida e do destino humanos, nesta vida e na outra, e o Profeta, para os islamitas, como Mensageiro de Deus enviado para trazer Sua mensagem para a humanidade, acumulou a função de governante temporal e estadista, sobretudo na comunidade de Medina, na qual surgiram as questões mundanas que necessitavam de orientações. Nessa perspectiva, o Islam desde o início incorpora tanto a questão da disciplina religiosa como um movimento sócio-político. O Profeta legou, portanto, uma herança religiosa e um legado político, também. Desse modo, após a morte do Profeta alguns dos seus companheiros achavam que a questão da sua sucessão seria, primordialmente, de grande importância religiosa e espiritual; uma questão de Orientação Divina continuada, a ser conduzida pelos Imãs divinamente escolhidos e inspirados, todos provenientes da família do Profeta, capacitados a interpretar com autoridade a Revelação Divina e a Sunnah profética (JAFRI, 1990, p. 121). 

Já do ponto de vista doutrinário, para o xiismo são sete os deveres religiosos obrigatórios a serem cumpridos na adoração a Deus: 1º) orar cinco vezes ao dia; 2º) jejuar durante todo o mês de Ramadã; 3º) fazer a peregrinação (hajj) à Kaaba, pelo menos uma vez na vida, isto é, se for capaz, financeira e fisicamente; 4º) fazer doações (zakat) equivalentes a um décimo de certas mercadorias, pagas no final do ano, para o bem da comunidade e para os pobres; 5º) pagamento do khums ou um quinto do rendimento anual individual, pago como prerrogativa do Imã da época; 6º) praticar o jihad, traduzido geral, mas não acuradamente, como guerra santa; 7º) o al-amr bi’l-ma’rif wa’l-nahy ‘an al-muskar, exortar os outros a fazer o bem e impedi-los de fazer o mal. Cinco dessas obrigações religiosas que são a prece canônica, o jejum, o hajj, o zakat e o jihad, são comuns ao xiismo e ao sunismo, com poucas variações na realização dos quatro primeiros, existindo alguma diferença na interpretação da obrigação de jihad. Para os xiitas, na ausência do Imã e sem nenhum outro substituto especial deste, a guerra santa não pode ser iniciada. No entanto, quando um inimigo ataca, e coloca um país ou comunidade islâmica em perigo, é dever de todos lutar em defesa de seu país e de seu povo. 

As outras duas obrigações religiosas especificamente xiitas são o kums e o “pregar o bem e impedir o mal”. Ou seja, além de pagarem o zakat, que é obrigação também do sunismo, os xiitas pagam khums – um quinto da sua renda anual ou de qualquer lucro obtido – como uma parte do Imã da época. Isso foi pago ao Profeta durante sua vida e, após sua morte, os xiitas entenderam que deveriam continuar pagando tal tributo ao Imã e aos descendentes do Profeta. No que diz respeito à prática de “pregar o bem e impedir o mal”, isso foi adotado pelos xiitas como uma obrigação necessária para manter o fervor religioso ativo e efetivo. Outras duas práticas observadas pelos xiitas duodecimalistas são a celebração do martírio de Husayn ibn ‘Ali e a peregrinação aos túmulos dos Imãs. Tais costumes “ajudam a entender os ideais espirituais e religiosos xiitas, assim como os conceitos islâmicos de amor, justiça, valores humanos e compaixão pelos oprimidos e ódio pela opressão e a injustiça.” (Ibidem, p. 126). 

As fontes da shari’ah (lei) no xiismo são quase as mesmas do sunismo, isto é, o Alcorão e os (tradições do Profeta). No caso do Alcorão, os xiitas só aceitam as interpretações dos seus Imãs. No que diz respeito aos hadith, ao contrário dos sunitas, que se restringem às sentenças do Profeta, os xiitas acrescentam as tradições dos Imãs também. A shi’ah permite também que alguém dissimule sua fé caso ao demonstrá-la ponha sua vida em risco. Isso se chama taqiyyah. Também ab-rogaram a disposição do casamento temporário (mut’ah), permitido pelo Profeta em sua vida, especialmente durante guerras. Além dessas diferenças, existem outras referentes às escolas jurídicas, que uma exposição dessa natureza não permite abranger. Mas, na essência, os princípios básicos que norteiam a religião (usul ad- -din), tanto no xiismo como no sunismo, são: 1. A unidade de Deus (tawhid); 2. A profecia (nubuwwah), que finda com Mohamad, como o Selo das Profecias, e com o Alcorão como última mensagem de Deus para a humanidade; e 3. A ressurreição (ma’ad) ou a outra vida. São crenças comuns aos xiitas e sunitas, bases promotoras da fraternidade islâmica. No entanto, os xiitas acrescentam a essas, outros dois princípios básicos necessários a uma abrangente consciência religiosa. São eles: 4. A Justiça de Deus (‘adl) e 5. O Imamato. E é este último elemento que, basicamente, separa o xiismo do sunismo, ou seja, a crença cardeal do Imamato dos descendentes do Profeta. Na visão xiita, os dois aspectos do Imamato que estão restritos à família do Profeta e seu caráter divino, não se justapõem apenas, mas se interpenetram. E é este último aspecto que serve muitas vezes de instrumento de discordância entre essas duas vertentes do Islam, e também na essência tais aspectos servem de motivação para provocar a dissensão entre os participantes desta religião e que são explorados por seus opositores. É o que diz expressamente um livrinho de autoria desconhecida com cerca de 36 páginas, traduzido para o espanhol com o título de El sunnismo y El shiismo: uma querella artificial y uma provocacion pérfida (1989) ( O sunismo e o xiismo: uma disputa artificial e uma provocação traiçoeira), editado em Teerã, que segundo o autor denuncia os propósitos colonialistas dos opositores do Islam. 

4. Xiismo versus Sunismo: uma falsa questão?

De acordo com o autor dessa obra, os xiitas e os sunitas são irmãos no Islam, apesar de divergirem às vezes das interpretações do Alcorão e da Sunna. E para fundamentar isso, cita uma fatwa (decreto religioso) de Al-Azhar, universidade islâmica (sunita) do Cairo, que afirma ser 

[...] a escola jafarita, conhecida sob o nome de escola jurídica xiita duodécimana, uma escola que pode ser seguida legalmente em seu culto no mesmo nível das outras escolas sunitas. Os muçulmanos devem, portanto, saber se desembaraçar de seu fanatismo pelas escolas particulares, pois a Religião de Deus e Sua Shari’a não são propriedade de uma escola particular nem estão limitadas a uma única escola (EL SUNNISMO Y EL SHIISMO: UNA QUERELLA ARTIFICIAL Y UNA PROVOCACIÓN PÉRFIDA, 1989, p.17-18).

O livro cita outro sheikh sunita, Muhamad al-Ghazali, autor da obra “Como compreender o Islam”, que diz: “Constatamos que todos são iguais em sua busca da verdade, embora seus meios sejam divergentes.”(Ibidem, p. 19). E, no que diz respeito ao Alcorão, cita outro estudioso, Salim al-Behensawi, que em sua obra “A sunna caluniada”, responde àqueles que afirmam terem os xiitas um Alcorão diferente do comum de todos os muçulmanos, dizendo: “O Alcorão que se encontra entre as mãos dos sunitas é o mesmo que se encontra nas mesquitas e nas casas dos xiitas”, acrescentando: “[...] os xiitas duodécimanos consideram ímpio a quem modifica o Alcorão, o qual goza do consenso unânime dos muçulmanos desde os primórdios do Islam.” (Ibidem, p. 21). 

Enfim, a respeito da diferença entre sunitas e xiitas, o livro traz uma citação do próprio Ayatollah Khomeini (1902-1989) que, na sua chegada a Paris, nos primórdios da Revolução Islâmica do Irã, falou que “a causa que conduziu aos muçulmanos dividirem-se um dia em sunitas e xiitas já não existe hoje [...] Somos todos muçulmanos. Somos irmãos no Islam.” (Ibidem, p. 33). Em outro livro, intitulado de Al–Haraka al-Islamiyya wal Tahdit, citado na obra acima, o autor conhecido como Gnuchi cita as seguintes palavras de Khomeini: “Queremos governar por o Islam tal como foi revelado a Muhamad. Não existe diferença entre sunismo e xiismo, pois as escolas não existiam na época do Profeta.” (Ibidem). Ainda por ocasião de um encontro acontecido em Argel, na Argélia, o representante do Imã Khomeini, Sayyed Khosraud Chahi, afirmou: 

Queridos irmãos! Os inimigos não fazem distinção entre sunita e xiita. O que eles querem é acabar com o Islam enquanto pensamento e ideologia universal. Por isso, toda a chamada ou ação que tenda a dividir os grupos de muçulmanos sob a forma de sunismo e xiismo, equivalerá a um apoio dado à impiedade e um passo contra o Islam e os muçulmanos, e constituirá consequentemente – como o decretou o Imã Khomeini – um ato canonicamente ilícito ao qual os muçulmanos devem opor-se (Ibidem).

Finalmente, para concluir, o autor cita um trecho de um discurso de Khomeini pronunciado em 1972, quando este afirmou que 

As mãos sujas que semearam a divisão entre os sunitas e os xiitas no mundo islâmico não são nem xiitas nem sunitas. São as mãos do colonialismo que quer arrancar-nos o domínio da nação islâmica. Sim, são os países colonialistas, ansiosos em pilhar nossas riquezas por diferentes meios e numerosas artimanhas, os que semeiam a divisão em nome do sunismo e do xiismo (Ibidem).

Em obra na qual analisa as tendências atuais e futuras do mundo islâmico, S.H. Nasr (1985) observa que começa a existir um aumento da consciência do mundo islâmico como uma entidade única. Em sua opinião, tanto os tradicionalistas como os “fundamentalistas” almejam essa unidade, embora a concebam de formas diferentes. Por sua vez, o messianismo sempre teve a unificação do mundo islâmico como o fundamento de seu programa, pois segundo essa perspectiva será o Mahdi quem irá reunificar o mundo islâmico no final dos tempos. Esse desejo de unidade apresenta uma forte inclinação nos círculos teológicos que propugnam por uma cooperação mais aproximada e uma melhor compreensão entre o sunismo e o xiismo. Tal tendência, que já acontece há alguns anos, e deve continuar, foi reforçada uma geração atrás pela fatwa (édito religioso) do shaykh ash-Shaltut, então reitor da universidade de Al-Azhar, no Cairo, ao apregoar que a lei Xiita Duodecimalista (Já’fari) seria ensinada como uma das escolas ortodoxas de direito naquela que é uma das mais antigas universidades do mundo. Isso significa dizer que o diálogo intraislâmico entre sunitas e xiitas só tende a aumentar nos níveis filosófico, religioso e legal. Por outro lado, paralelamente a esses desenvolvimentos religiosos a instrumentalização política das diferenças entre sunitas e xiitas continua cada vez mais se agravando na medida em que o Islam é utilizado como instrumento político por um grupo ou regime contra outro. Isso significa dizer que tais diferenças são uma oportunidade ideal para todas as forças externas e contrárias ao Islam, que tiram proveito do enfraquecimento do mundo islâmico, para criar o caos e a discórdia dentro dele. Tais observações conduzem, então, para aquilo que incomoda aos sunitas no Islam xiita, isto é, a questão do Imamato, aspecto que se passa a analisar mais detidamente, porque é ela que fundamenta a existência e retorno do messias islâmico conhecido como Mahdi. 

5. O Imamato 

Efetivamente, o termo imã (iman) para os xiitas tem um significado diferente daquele empregado pelos sunitas, pois estes últimos adotam o sentido de que imã significa apenas aquele que se coloca à frente dos outros no momento da oração coletiva para conduzi-la. O termo iman para os xiitas significa mais do que isso, literalmente quer dizer “líder” ou “guia”, isto é, aquele que é ordenado por Deus para continuar a Orientação Divina, após o término da revelação da profecia. Chama-se Imamato a gestão dos assuntos temporais e espirituais da sociedade islâmica; a pessoa que se encarrega desta gestão, que guia a comunidade muçulmana, é denominada de Imã. Para os xiitas, o envio de Mensageiros Divinos sempre é necessário para guardar a pureza religiosa e guiar o povo, assim, para eles, o Senhor Todo-Poderoso designa alguém que possui os atributos perfeitos semelhantes aos do Profeta (menos a revelação e a profecia), ou seja, um sucessor capaz de manter as leis religiosas e dirigir os homens no caminho reto. Uma autoridade capaz de preservar rigorosamente a lei divina e guiar sem falhar os homens. Esta autoridade espiritual e temporal não é outra senão o Imã da comunidade muçulmana. Desse modo, o Imamato e a valayat2 são definidas e instituídas para resolver os problemas dos crentes. Outro termo associado a ele, e que tem quase o mesmo sentido, é a palavra wilayah, com a diferença de que esta palavra enfatiza particularmente uma qualidade singular do Imã, com que é dotado por Deus, para interpretar o sentido interior ou esotérico da Revelação Divina. A etimologia do termo também atribui à palavra o significado de ser amigo ou próximo de alguém, por isso que na terminologia xiita wali é aquele que está mais próximo de Deus em amor e devoção e a quem Ele, Deus, confia o ensinamento esotérico da religião. Assim, os Imãs para os xiitas são os awliya Allah (devotos ou amigos de Deus) por excelência. 

Dois são os princípios que norteiam o Imamato xiita: nass e ilm. Nass significa que a prerrogativa do Imamato outorgada por Deus só pode ser atribuída a um membro escolhido da família do Profeta, e esta pessoa a transfere antes de sua morte com a orientação de Deus para outrem por uma designação explícita. Para os xiitas, a Orientação Divina deveria continuar após a morte do Profeta, e por isso, o próprio Profeta antes de sua morte, e sob o Comando Divino, designou ‘Ali ibn Abi Talib como seu sucessor – os sunitas discordam dessa afirmativa. Essa escolha xiita está associada à noção de Ahl al-Beyt, ou seja, dos membros da Casa do Profeta, e que tem uma dimensão mais ampla para o xiismo. Na tradição corânica e islâmica tal expressão tem um significado particular, não profano, e significa dizer que os participantes desta Casa são o Profeta, o califa Ali, a filha do Profeta e esposa de Ali, Fátima, e os filhos do casal, Hassan e Husayn. 

Dessa forma, os Imãs, segundo a tradição xiita, descendem todos desta Casa, ou seja, de Husayn, já que as “pessoas da Casa do Profeta” são as treze pessoas da linhagem do Profeta, reconhecidos pela tradição xiita como “os quatorze infalíveis”, quer dizer, o Profeta, sua filha Fátima e os doze guias espirituais ou Imãs são aqueles que constituem as “gentes da Casa”. Eles se distinguem principalmente por suas virtudes e qualidades excepcionais. Tais características, segundo os xiitas, são referendadas pelo Alcorão, quando diz: “Apenas, Allah deseja fazer ir-se, para longe de vós, a abominação, ó família da Casa, e purificar-vos plenamente” (ALCORÃO, XXXIII, 33), isso significa dizer que eles são infalíveis e inocentes, quer dizer, não pecam e não cometem faltas jamais. Um hadith, por sua vez, também referenda tais qualidades quando diz: “os descendentes do Profeta seguem o Alcorão; quer dizer, não se afastam jamais do Livro nem se equivocam jamais na compreensão e no comentário do Alcorão e da religião de Deus.” (TABATABAÏ, 1989, p. 104). Em diversos escritos relatados, diz-se que o Profeta do Islam declarou que “As gentes de minha Casa se parecem com a arca de Noé; aquele que está a bordo será salvo, os outros perecerão.” (Ibidem, p. 105). De acordo com outros escritos, o Profeta também haveria dito sobre sua descendência o que se segue: “Deixo-vos como recordação duas coisas preciosas e indissociáveis: o Livro de Deus (o Alcorão) e as gentes de minha Casa. Na medida em que vocês sigam estes dois inestimáveis bens que lhes deixo, não caireis em erro.” (Ibidem). Dessa forma, no que diz respeito à autoridade do nass, o Imamato se restringe, portanto, em todas as circunstâncias políticas, a uma pessoa definida entre os descendentes de ‘Ali e Fatimah, quer essa pessoa reivindique o governo temporal ou não. O segundo princípio implícito na doutrina do Imamato é o de ‘ilm. Por este princípio o Imã é detentor divinamente inspirado, detentor de uma soma especial de conhecimento da religião que ninguém mais detém, que só pode ser passada adiante antes de sua morte para o Imã seguinte. Tal conhecimento especial inclui tanto o sentido exotérico (zahir) como o esotérico (batin) do Alcorão. Essa tradição esotérica é o wilayah, confiado ao Profeta por Deus, que o legou a ‘Ali. Tal conhecimento é a herança dos Imãs que se seguem a ‘Ali até o décimo segundo Imã, Muhammad al-Mahdi. Enfim, a doutrina do Imamato xiita duodecimalista gira em torno desses dois princípios, nass e ilm, fundidos indissoluvelmente numa visão unitária de liderança religiosa. 

Além disso, o Imã xiita é responsável por três outras funções: 1. Explicar aquilo que foi revelado através do Alcorão e foi ensinado pelo Profeta, e também, interpretar a Lei Divina, a shari’ah; 2. Ser um guia espiritual que conduz os homens a um entendimento do significado interior das coisas; e como conseqüência dessas duas qualidades deve 3. Governar a comunidade muçulmana, se as circunstâncias do momento permitirem. 

Para o xiismo, o Imamato seria uma aliança entre Deus e a humanidade, por isso o reconhecimento do Imã é dever absoluto de todo muçulmano, pois os Imãs são a evidência (hujjah) de Deus na terra; suas palavras são as ordens divinas, porquanto em todas as suas decisões são inspirados por Deus e têm autoridade absoluta. O Imã de cada época, segundo a crença xiita, é o testemunho para o povo, o portão para Deus (bab Allah), e a estrada (sabil) e o guia (dalil) para Deus. É o repositório do Conhecimento de Deus, o intérprete de Suas Revelações e o pilar de Sua Unidade. Devido a essas funções o Imã deve ser infalível (ma’sum) e imune ao pecado e ao erro. Em síntese, a infabilidade do Imã garante a infabilidade de suas decisões em questões de lei e religião e preserva também a pureza e a santidade da pessoa responsável por tal tarefa. 

Pode-se comparar a função do Imã xiita com o khalifa do sunismo: o khalifa é um servo da Lei, enquanto o Imã é seu intérprete e mestre autorizado; o califa é eleito pelo povo, enquanto o Imã é escolhido pelo Imã anterior; o califa pode ser deposto por atos pecaminosos, enquanto o Imã é sem pecado e infalível. Pode existir ou não um khalifa no mundo, mas o Imã xiita deve estar sempre presente no mundo, mesmo que oculto, como agora está o décimo segundo Imã, o Mahdi, segundo os xiitas. Enfim, o Imã oculto na percepção do xiismo é de certo modo a continuação da personalidade e da barakah (influência espiritual transmitida) do Profeta e a forma pela qual o Alcorão é conservado. Devido a essas funções do Imã não é possível ser eleito pelo povo, pois um guia espiritual só pode receber sua autoridade de Deus. 

Finalmente, a terceira e última função do Imã, qual seja a de governar a comunidade, é um corolário, uma conseqüência das duas outras funções. Ele é o melhor líder possível para um povo tanto nos aspectos materiais como espirituais. Caso as circunstâncias históricas não permitam o exercício de sua autoridade temporal não cabe a ele sublevar-se e tentar ser o governante, pois seu lugar é acima do governante. Quer dizer, aqueles que detêm o poder temporal devem executar o que o Imã, como suprema autoridade espiritual, decidir. 

Segundo o xiismo, o Profeta designou Ali para sucedê-lo como Vali, isto é, como tutor e administrador da comunidade islâmica. De acordo com uma tradição muito conhecida, alguns dias antes de sua morte, Muhamad havia levantado a mão de seu genro Ali diante de cento e vinte mil peregrinos – nas proximidades da cidade de Khom – e declarado aos presentes: “Ali tem um direito de tutela e de administração parecido ao meu; ele administrará a quem eu administro.” (Ibidem, p. 109). Também, segundo outra tradição, relatada pelos xiitas e pelos sunitas, o Profeta declarou que “os Imãs são em número de doze, e pertencem todos ao clã (descendentes de ancestrais comuns) dos Quraich [tribo a qual pertencia o Profeta].” (Ibidem). Deduz-se de tudo isso que o Imã, sob a instância do Profeta, deve ser infalível, protegido do menor pecado; e deve conhecer todas as questões espirituais e temporais das quais dependem o bem-estar humano. Entre os catorze Imãs, cinco cujos nomes são Muhamad, Ali, Fatimah, Hassan e Husayin, são chamados de “companheiros do manto” (ashab kassá), isso porque certo dia o Profeta os reuniu debaixo de seu manto e rogou por eles dizendo que o Senhor Todo-Poderoso revelou sua intenção: 

E permanecei em vossas casas, e não façais exibição de vossos encantos corporais como a exibição dos idos Tempos da Ignorância. E cumpri a oração e concedei az-zakah, e obedecei a Allah e a Seu Mensageiro. Apenas, Allah deseja fazer ir-se, para longe de vós, a abominação, ó família da Casa, e purificar-vos plenamente (Ibidem). 

De acordo ainda com o xiismo, as “gentes da Casa do Profeta” viveram nas condições mais difíceis, subsistindo a pressões de todos os tipos e, apesar disso, cumpriram seus deveres religiosos e cívicos recorrendo à dissimulação ideológica (taqiah), escondendo suas opiniões religiosas ou políticas. Como Imãs lutaram constantemente e de forma velada contra os governantes usurpadores tendo sido obrigados a dissimular suas opiniões religiosas e politicas, com o fim de não dar pretexto aos usurpadores. Durante este tempo, apenas quatro dentre eles puderam expressar livremente suas convicções em um curto período. A história atesta, segundo os xiitas, que entre os dirigentes que sucederam ao nobre Profeta, Ali é o único governante da sociedade islâmica que o realizou da mesma maneira que Muhamad; continuou o método do Profeta sem desviar-se uma polegada do caminho reto, aplicando com idêntico rigor as prescrições e regras islâmicas; assim, Ali é o único dirigente cuja conduta foi conforme a de Muhamad, daí o hadith do próprio Profeta, que afirma: “Eu sou a cidade da ciência e Ali é a porta desta cidade.” (TABATABAÏ, 1989, p. 119). 

6. O Mahdi do xiismo duodecimalista

Com exceção de Ali, primeiro Imã, que como quarto califa dirigiu por pouco tempo a umma (comunidade islâmica) de todos os muçulmanos, nenhum outro imã conseguiu conquistar a regência. Quase todos sofreram mortes não naturais, na opinião dos xiitas sempre causadas pelos califas e seus cúmplices. Essa perseguição tornou-se recorrente de tal modo que o califado, pela época do Imamato de Hassan Askari, o 11º Imã, decidiu eliminar por todos os meios seu sucessor para por termo ao xiismo. Por isso os opositores redobraram a vigilância ao Imã. Quando o Imã do tempo (Imã Zaman), o 12º Imã, veio ao mundo, guardou-se silêncio de seu nascimento, e até chegar aos seis anos ninguém pôde vê-lo, com exceção dos íntimos de seu pai. Depois do martírio de seu pai, o Imã do tempo desapareceu momentaneamente (pequena Ocultação). Comunicava-se com os fiéis da comunidade e resolvia seus problemas com a intercessão de quatro eminentes que se reuniam com ele. Um tempo depois, o Imã do tempo se ausentou por um longo período (grande Ocultação), prometendo reaparecer e salvar aos homens no dia em que a terra fosse desbordada pelo mal e pela opressão. No que diz respeito à ausência e à vinda deste Messias, numerosos relatos foram transmitidos pelo Profeta e pelos Imãs, tanto pelos sunitas como pelos xiitas. Sem dúvida, quando o pai deste Imã ainda vivia, alguns dignitários xiitas tiveram o privilégio e a graça de ver o futuro Messias xiita (Ibidem, p. 103-131). 

Durante sua “ausência” (ghayba), sua comunidade de xiitas, que, por isso chama-se “xiitas do doze” ou “imamitas”, foi a primeira guiada por um substituto (waqil). Todavia, depois do quarto waqil, esse princípio também não tem sido mais praticável. Deu-se uma nova forma de ausência que se chama “grande” em contraposição à primeira, conhecida como “pequena”. Durante todo esse tempo, de acordo com a fé, o décimo segundo imã continua vivo e os imamitas acreditam que um dia ele voltará para conquistar a vitória final para a causa justa e contra todos os usurpadores do poder. Por isso, o décimo segundo imã tem a alcunha de mahdi. O Irã é o único país até hoje em que o “xiismo dos doze”, que cultua a vinda do Mahdi, é a religião oficial da maioria da população. É liderado, em substituição do imã escondido, pelos supremos dignitários espirituais. Agora, eles levam o título de Ayatolá (uma forma contraída de ayat Allah = sinal de Deus) e formam um círculo íntimo de eruditos de destaque que se recrutam entre os escolares religiosos (mujtahids). Como se sabe, no século XX, o Aiatolá Ruhollah Khomeini cumpriu essa função até sua morte (1989). Seu mérito teológico é o de ter plausivelmente provado que durante a “grande ausência” do décimo segundo imã os imamitas não são condenados à mera passividade e à atitude de resistência, mas têm absolutamente o direito, e sob certas circunstâncias até mesmo o dever, de tornarem-se politicamente ativos em nome da religião. Inspirado pela fé do Mahdi foram frequentemente apresentadas teorias histórico-teológicas. O famoso Aiatolá Taleghani, por exemplo, viu nos desenvolvimentos políticos mundiais indícios para uma crescente disposição de recepção do Mahdi na sociedade. De acordo com o primeiro chefe do governo depois da revolução islâmica, Medhi Bazargan, o Estado universal seria a realização ideal de todas as expectativas da humanidade e, sem esperança em um futuro melhor, não seria possível nenhum passo em direção às reformas das dadas circunstâncias. Todas as revoluções e transformações histórico-sociais dos últimos séculos, diz Mehdi Bazargan, foram motivadas pelo desejo de um mundo melhor e mais justo. Foram almejadas igualdade e equidade. Por isso a revolução industrial acabou com as injustiças do feudalismo e da servidão, mas evidentemente ocorreram novas injustiças: as do capitalismo, que por sua parte têm que ser afastadas etc. (ANTES, 2003, p. 97-101). 

O Imã duodécimo é, na concepção xiita, o grande líder e pacificador do mundo, pois o mundo aguarda um grande Ressuscitador, que através de uma grande revolução o transformará com o beneficio da verdade e da justiça. Os sinais indicativos da necessidade desse messias são os anseios de amor e justiça por parte da humanidade em geral, e esta necessidade e busca de justiça pela qual clama todos os seres humanos, indica, segundo eles, que algum dia a justiça e a paz se apoderarão do mundo. Outro sinal é a regra geral existente em todas as religiões sobre a existência de um salvador, um ressuscitador. Por outro lado, do ponto de vista intelectual a ordem da criação é um indício de que o mundo da humanidade deve no final ser governado por uma lei de justiça e de paz. Isto significa dizer que o mundo da existência até onde se sabe é um complexo de ordens, sistemas e leis as quais são provas de uma unidade mundial e da conexão desta a este sistema. E de que um dia o mundo voltará à linha principal da criação. Outra prova disso, tudo de acordo com a visão xiita, é a existência de uma linha evolucionária ou transformadora da humanidade. 

De outro modo, para os xiitas, no grande livro divino que é o Alcorão, existem muitos versículos que falam de uma grande transformação na humanidade. Dentre outros, a Surata 24, versículo 55, do Alcorão, que diz: 

Allah promete aos que, dentre vós, crêem e fazem as boas obras que os fará suceder, na terra, como fez suceder aos que foram antes deles, e que lhes fortalecerá a religião, de que Se agrada, no tocante a eles, e que lhes trocará segurança, após seu medo. Eles Me adorarão, nada Me associarão. E quem renega a Fé, depois disso, esses são os perversos (ALCORÃO, XXIV, 55). 

Este versículo mostra claramente para os xitas que finalmente o mandato na terra estará livre da tirania e de opressores, e que os crentes justos governarão o mundo. O Imã ‘Ali ibn Husayn, ao comentar este versículo, disse: “Este grupo, eu juro por Deus, são aqueles seguidores de nossa escola. Deus, por meio de um homem de nossa família realizará esta promessa e ele é o Mahdi destes crentes fiéis (tradução nossa).” (SHIRAZI, 1987, p. 57-63). As Tradições acerca do governo mundial e sua realização junto com a paz e a justiça, por meio de um membro da família do Sagrado Profeta, a quem é chamado de Mahdi, são inumeráveis nos livros sunitas e xiitas. E as Tradições relacionadas ao duodécimo Imã e sucessor do Profeta e o nono filho do Imã Husayn e filho imediato do Imã Hasan Askari são também extensas nas fontes xiitas. Está escrito numa publicação de Rabitah al-‘Alim Islami, centro de aprendizagem do Hijaz: “Ele é o califa ortodoxo duodécimo o qual o Sagrado Profeta mencionou nas Tradições dos sahabah (companheiros) e estas Tradições do Mahdi foram registradas por muitos dos Acompanhantes do Sagrado Profeta do Islã (tradução nossa).” (Ibidem). Depois de nomear os 20 Acompanhantes do Profeta que registraram as tradições do Mahdi, continua a dizer que um grande grupo registrou estas Tradições e “alguns dos eruditos religiosos sunitas escreveram livros acerca da aparição do Mahdi, entre eles estão Abu Na’im Isfahani, ibn Hujar Haitha, Shu Kani ou Idris Maghrabi, Abu Abbas ibn Abdallah Mu’min (tradução nossa).” (Ibidem). E então, acrescenta: “Um grande grupo de sunitas do passado e de hoje aceitam a sucessão das Tradições do Mahdi (tradução nossa).” (Ibidem). Depois de mencionar o número de um grupo deles, finaliza com estas palavras: “Um grande número de comentaristas e memorizadores disseram diretamente que as Tradições do Mahdi são direta, clara e decisivamente sucessivas e a crença na aparição do Mahdi é obrigatória.”(Ibidem). E acrescenta: “Isto está entre as crenças evidentes dos sunitas e ninguém exceto os ignorantes e hereges a negarão (tradução nossa).”(Ibidem). Finalmente, numa tradição xiita do Iman Sadiq, lê-se: 

Quando chegar o momento da vinda do Redentor, ele o estabelecerá com justiça. A tirania e a opressão, durante seu governo, serão eliminadas: caminhos e passagens, durante seu governo, estarão sem perigo, e a terra será abençoada. Cada direito será dado a seu justo dono e ele, entre as pessoas, julgará como Davi e Muhamad. Neste momento, a terra revelará seus tesouros e revelará suas bênçãos. Não se encontrará nenhuma pessoa necessitada porque todos os crentes estarão sem pobreza (Ibidem). 

Para os xiitas, o Imã Já’far Sadeq, em seus discursos e conselhos inestimáveis, derrubou os muros da ignorância e da falsidade, refundando a doutrina do Profeta. Ele, o sexto Imã, é considerado assim o fundador da doutrina xiita, também chamada de escola Já’farita 

7. O retorno do messias islâmico 

Segundo Maria Isaura Queiroz (1977), os vocábulos “messias” e “messianismo”, bem como o qualificativo “messiânico”, já pertencem à linguagem corrente, que os definiu de acordo com os relatos bíblicos e foi dentro da religião judaica que, ao interpretar acontecimentos históricos, o termo se cunhou em seu primeiro significado, na luta do povo de Israel contra seus vizinhos e adquiriu sua conotação definitiva quando do cativeiro da Babilônia (QUEIROZ, 1976, p. 25). 

De acordo com Wallis (1918), citado por Queiroz, a ideia messiânica não é peculiar ao judaísmo, já que anteriormente a Israel, babilônicos, egípcios, a religião de Zoroastro, tinham mitos tipicamente messiânicos (Ibidem). No entanto, foi na antiga religião judaica que a noção adquiriu sua definição plena. E, ao que parece, o conceito messiânico parece ter passado aos judeus, vindo de fonte oriental. Discussões teológicas ulteriores refinaram pouco a pouco o conceito, dando-lhe sua forma definitiva, mas sempre dentro da religião judaica, ou seja, o messias é o personagem encarado como um guia divino que deve levar o povo eleito ao desenlace natural do desenrolar da história, isto é, à humilhação dos inimigos e ao restabelecimento de um reino terreno e glorioso para Israel. Segundo essa concepção, a vinda deste reino coincidirá com o ‘fim dos tempos’ e significará o restabelecimento do Paraíso na terra. Com o surgimento do Cristianismo, era de se esperar que a expectativa messiânica deveria ter permanecido circunscrita unicamente aos israelitas, uma vez que para os cristãos o Messias, sob a forma de Jesus, já havia chegado. Contudo, o que aconteceu foi uma junção da crença messiânica com a ideia do Juízo Final: Cristo vai retornar, e sua vinda será o sinal do fim dos tempos. Assim, a figura de Cristo se modifica; pois já não é mais o salvador, é um líder guerreiro que virá no futuro dar combate ao Anticristo, personificação do mal, sua vitória constituindo justamente o prenúncio do fim do mundo (Ibidem, p. 26). Essa, aliás, é a visão islâmica sobre a volta do Cristo, que no Islam é venerado como o Selo da Santidade, e que retornará como Julgador implacável – aliás, não é demais lembrar como essa visão se aproxima do apocalipse bíblico. 

Maria Isaura Pereira de Queiroz observa ainda que com o desenvolvimento dos estudos históricos, sobretudo da História Comparada das Religiões, o conceito teológico de messias foi aos poucos se transformando em conceito histórico, já com traços de sociológico – isto é, passando a nomear uma categoria específica de líderes religiosos, com caracteres bem definidos, que teriam existido lendária ou realmente no passado, não em corrente religiosa determinada, mas em qualquer delas, e procurando reconstruir-lhes a história em seus detalhes, identificando a que condições religioso-sociais se prendiam seu aparecimento. Significava reconhecer que esse tipo de líder não era peculiar a uma religião apenas, nem a determinada fase histórica. No entanto, segundo a autora, permaneciam aqueles que só admitiam o messias dentro das religiões originárias do Judaísmo, ou das grandes civilizações, procurando novos termos para designar o fenômeno quando ocorria noutros cultos. Desse modo, urgia se estabelecer uma definição que captasse os aspectos mais gerais do fenômeno. Sendo assim, estudiosos como Max Weber (1864-1920) e Paul Alphandéry (1875-1932), ao lidarem com dados históricos, analisaram o termo exaustivamente e chegaram a definições muito próximas: o messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a vitória do Bem sobre o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo, permitindo o estabelecimento do Paraíso Terrestre, tratando-se, pois, de um líder religioso e social (Ibidem, p. 26). 

Ainda segundo essa concepção, a transformação não se processará mecanicamente, com o mero surgimento do líder; é preciso que os adeptos lhe cumpram as ordens. Isto é, destes é a responsabilidade pelas condições da sociedade, seu papel é se voltar para a coletividade, moralizando-a e santificando-a, a fim de permitir o Advento do Messias. Nessa concepção, o messianismo se afirma, pois, como uma praxis, e não como uma crença passiva e inerte de resignação e conformismo: ao se defrontar com as injustiças, o dever do homem é trabalhar para eliminá-las, pois é sua a responsabilidade pelas condições do mundo. E, desde que a crença se ativa, acontece o movimento messiânico, que se destina a consertar aquilo que de errado existe. Quer dizer, “estes objetivos, que são políticos, sociais, econômicos [...], devem sempre ser, no entanto, religiosamente alcançados, isto é, por meio de rituais especiais que um enviado divino revela aos homens.” (Ibidem, p. 29). 

Em síntese, de acordo com Queiroz, a história do messias cumpre, pois, sempre os mesmos passos: a) eleição divina; b) provação; c) retiro; d) volta gloriosa. Tais características, como se viu, são preenchidas pelo messias islâmico, alcunhado de Mahdi: na concepção xiita ele tem o amparo divino, vai sofrer as injunções temporais que o obrigarão a se ocultar e, finalmente, voltará de forma gloriosa para restabelecer o reino de paz e justiça no mundo. 

Para Seeyd Hossein Nasr (1985) o messianismo sempre esteve presente no Islã e manifestou-se sempre que a comunidade islâmica sentiu seu mundo de valor e significado em risco iminente. Por outro lado, o messianismo sempre encarou a unificação do mundo islâmico como uma parte intrínseca de sua perspectiva e programa, uma vez que segundo a tradição o Mahdi é quem irá finalmente reunificar o mundo islâmico no fim dos tempos (NASR, 1990, p. 321). Para Nasr, a invasão europeia do mundo islâmico no século XIX foi responsável por uma onda de messianismo, desde a África Ocidental até o Sudão, desde a Pérsia até a Índia. Essa onda assumiu formas muito diferentes, em contextos de natureza diversa, produzindo tanto o Mahdi no Sudão, como o Bab na Pérsia. Mas, em sua essência, o fundamento do fenômeno foi, em todos os locais, praticamente o mesmo. Provocou o aparecimento de uma figura carismática reivindicando ser o Mahdi ou seu representante, que em contato direto com Deus e com seus Agentes no Universo, representava uma intervenção divina na história, com implicações escatológicas. 

Na visão de Nasr, os últimos anos têm testemunhado o ressurgimento desse tipo de fenômeno religioso. Para o autor, as fases iniciais das convulsões no Irã em 1978 apresentavam claramente uma dimensão messiânica, para não falar da tentativa de tomada da Grande Mesquita de Meca em 1979, onde, bem estranhamente, as tendências messiânicas estavam misturadas a um tipo de wahhabismo. Nesse contexto, se pode mencionar também os movimentos messiânicos acontecidos no norte da Nigéria. Para esse autor, tais circunstâncias levam a crer que tais formas de messianismo continuarão no futuro, já que um bilhão de pessoas se tornam cada vez mais frustradas por falharem em atingir os objetivos que eles mesmos crêem ter o legitimo direito a realizar, uma reação possível é, certamente, algum tipo de erupção ou convulsão político-social. Outra reação possível, segundo esse mesmo autor, é um messianismo que promete vitória com ajuda divina, baseado na destruição da ordem existente, pois o messianismo só pode possuir um caráter “revolucionário”. É baseado nisso que os muçulmanos tradicionais acreditam que o próprio Mahdi, que virá antes do fim da história, possivelmente realizará uma autêntica revolução religiosa que significará nada menos que o estabelecimento da Ordem Divina na Terra, sendo todas as outras revoluções formas de sublevação, e posterior destruição do que resta da tradição religiosa. Na medida em que o mundo se torna um lugar cada vez mais perigoso de se viver, e, principalmente, que os povos muçulmanos vêem-se assediados de todos os lados por forças estranhas, que ameaçam sua própria existência, a onda de messianismo certamente aumentará, em conformidade, de fato, com alguns ditos do profeta do Islã acerca dos últimos dias (Ibidem).

Referências 

Alcorão:Tradução do sentido do Nobre Alcorão para a língua portuguesa. Tradução de Helmi Nasr. Makka Nobre: Arábia Saudita, 1426 da Hégira, II, 124. 

El Sunnismo y el Shiismo: una querella artificial y una provocación pérfida. Londres: Al Hoda, 1989. 

JAFRI, Syed Husain M. Xiismo Duodecimalista. In: CAMPOS, Arminda Eugenia; BARTHOLO JUNIOR, Roberto S. (org.). Islã: o credo é a conduta. Rio de Janeiro: Imago: ISER, 1990. 

NABHAN, Neuza Neif. Islamismo: de Maomé a nossos dias. Petrópolis, RJ: Vozes,1996. 

TABATABAÏ, Allama Seyed Muhammad Hussein. Introducción al conocimiento del Islam. Londres: Al Hoda, 1989.

Notas

[1] Daqui por diante citado apenas como o Profeta. 

[2] O conceito de valayat assinala que na ausência do imã divinamente inspirado, a preferência na liderança da comunidade deve ser dada a um faqir, isto é, um jurista habilitado no domínio e interpretação da lei islâmica.