O Símbolo em Romano Guardini 

Symbol in Romano Guardini 

Marcio Luiz Fernandes 

Doutor em Psicologia pela USP e Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Teologia da PUCPR. Membro do Grupo de Pesquisa Tempo, Memória e Pertencimento do IEA. Contato: marciovisconde@yahoo.com.br 

Felipe Sérgio Koller

Mestre em Teologia pela PUCPR. Doutorando em Teologia, na area de Concentração Ético-social, do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Contato: felipesergiokoller@gmail.com 

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Resumo

O artigo, metodologicamente pautado numa análise bibliográfica, apresenta como o filósofo e teólogo Romano Guardini (1885-1968) compreendeu a noção de símbolo. Para tanto, percorre os textos “O espírito da liturgia”, “Os sentidos e o conhecimento religioso” e “O fim dos tempos modernos”. Autor de uma obra ao mesmo tempo vasta e permeada de uma profunda unidade, Guardini trabalhou no horizonte de uma fenomenologia simbólica atenta à dimensão intersubjetiva do conhecimento, oferecendo uma visão que recusa o dualismo e apontando o caminho da percepção do espiritual sempre e apenas através do material. Com isso, o simbólico emerge como um traço que caracteriza um novo momento para o ser humano, com a falência da modernidade. A contribuição de Guardini sobre o tema abre perspectivas para os campos da fenomenologia da experiência religiosa, da teologia fundamental e da teologia da liturgia, bem como dialoga com a antropologia, a arte, a educação e a ecologia. 

Palavras-chave: Símbolo. Romano Guardini. Teologia da liturgia. Teoria do conhecimento. Fenomenologia da experiência religiosa. 

Abstract

The paper, methodologically based on bibliographical analysis, presents how the philosopher and theologian Romano Guardini (1885-1968) understood the notion of symbol. To do so, it covers the texts “The spirit of the liturgy”, “Senses and religious knowledge” and “The end of modern times”. Author of a work at the same time vast and permeated by a profound unity, Guardini works on the horizon of a symbolic phenomenology attentive to the intersubjective dimension of knowledge, providing a vision that rejects dualism and pointing the way of the perception of the spiritual always and only through the material. Thus, the symbolic emerges as a trait that characterizes a new moment for the human being, with the failure of modernity. Guardini’s contribution on the subject opens perspectives for the fields of phenomenology of religious experience, fundamental theology and liturgical theology, as well as dialogues with anthropology, art, education and ecology. 

Keywords: Symbol. Romano Guardini. Liturgical theology. Theory of knowledge. Phenomenology of religious experience. 


Introdução

Romano Guardini (1885-1968) dispensa apresentações. Um dos maiores teólogos de sua geração, a sua contribuição desempenhou um papel fundamental nos movimentos que precederam o Concílio Vaticano II, particularmente no movimento litúrgico. A sua reflexão nos mais variados campos exerceu influência direta sobre o magistério de Bento XVI e sobre o de Francisco, que, quando cogitou os estudos de doutorado nos anos 1980, preparou um projeto de pesquisa sobre Guardini. A figura de Guardini, porém, ultrapassa as fronteiras da confessionalidade católica. Pensador de grande envergadura, ele se debruçou também sobre temas ligados à antropologia, à educação e à arte, compondo uma obra ao mesmo tempo vasta e permeada de uma profunda unidade. 

Em toda ela, Guardini manifesta uma compreensão da complexidade do real que procura acolher o vivido sem violência, o que inclui a recusa a apresentar soluções racionalistas para as antinomias próprias da realidade que nos circunda. Nesse intento, seu pensamento encontra paralelo em autores contemporâneos a ele como Edith Stein (1891-1942) e Pável Floriênski (1882-1937) (ŽÁK, 2020). Como em Stein e Floriênski (ŽÁK; FERNANDES, 2016), para não falar de outros autores ligados à filosofia da religião russa (FERNANDES; ŽÁK, 2015) e ao personalismo (BURGOS, 2012), podemos encontrar em Guardini uma fenomenologia simbólica atenta à dimensão intersubjetiva do conhecimento. 

Podemos sintetizar essa visão, a modo de apresentação, a partir das aulas apresentadas por Guardini nas Universidades de Berlim, Tubinga e Munique sobre o tema da experiência religiosa, publicadas em 1958. Ali, Guardini procura indicar que todas as coisas testemunham algo para além de si mesmas. Essa manifestação depende do “olho íntegro” do ser humano que se volta para o mundo para compreender que todas as coisas têm um caráter simbólico. As coisas reais e essenciais da vida têm traços que nos deixam intuir os elementos definitivos e autênticos nelas presentes e que para Guardini referem-se ao registro do sagrado: “As coisas manifestam a si mesmas e, ao mesmo tempo, algo para além de si mesmas. São, ao mesmo tempo, realidades imediatas e símbolos contemporaneamente” (2001b, p. 23, tradução nossa). 

López Quintás define essa visão como “um olhar dirigido à realidade em seu conjunto e em seus estratos mais profundos; olhar que sabe perceber em cada realidade sua vibração com o resto do universo” (2001, p. 22, tradução nossa, grifos do original). Guardini estava consciente de viver o ocaso de uma época, em que já era possível vislumbrar a luz de um novo tempo. Precisamente essa visão simbólica deveria ser a característica do ser humano desse novo tempo. É um tempo que nos chama a evitar a unilateralidade, superar toda forma de reducionismo e libertar-nos de toda atitude sectária (LÓPEZ QUINTÁS, 2001, p. 19), atitudes que nos tornam capazes de acolher fielmente a realidade, evitando nos engaiolar em ilusões. 

Neste artigo, apresentamos o pensamento de Guardini sobre o simbólico a partir de cinco textos do autor. O primeiro é O espírito da liturgia, publicado pela primeira vez em 1918. Em seguida, utilizamos três textos que constam do volume Os sentidos e o conhecimento religioso, publicado em 1950 reunindo conferências que Guardini proferiu no mesmo ano no Congresso Alemão de Liturgia, em Frankfurt.[1] A outra obra é O fim dos tempos modernos, também de 1950. Depois de colher o que Guardini tem a dizer sobre o símbolo nesses textos, apresentamos como considerações finais as possibilidades de diálogo abertas pelas suas contribuições. 

O espírito da liturgia 

Em O espírito da liturgia, Guardini coloca o problema indagando se é possível que o corpóreo receba algum tipo de significação na relação com um Deus que é espiritual (1942, p. 63). Segundo ele, essa questão “nos leva à própria essência do princípio litúrgico” (1942, p. 63). Para começar a responder a essa pergunta, Guardini (1942, p. 64) descreve duas maneiras pelas quais “o eu vive a relação entre o corpo e a alma no interior da personalidade corporal-espiritual particular”, duas inclinações ou dois temperamentos diferentes a respeito desse tema. 

O primeiro deles entende o espiritual e o corporal como “duas ordens justapostas”. O espiritual se relaciona com o corporal, mas não no nível de uma cooperação imediata. Desde esse ponto de vista, o espiritual se situa além do corporal e o corporal, em si mesmo, nada significa e a sua importância nas relações com o espiritual é meramente acidental. O corporal pode ser, no máximo, uma alegoria do espiritual, mas “jamais chegará a ser um órgão de expressão vital de sua vida interior” (1942, p. 65). 

Já o temperamento oposto percebe o espiritual e o corporal como sempre unidos, a ponto, porém, de confundi-los, de modo a não conseguir engendrar ou interpretar “formas de expressão nítidas e claras” (1942, p. 66). Nesse caso, tanto a expressão quanto a impressão ficam prejudicadas, porque sempre dependentes do “estado subjetivo do momento” (1942, p. 66). A relação entre as formas exteriores e o conteúdo espiritual que elas pretendem expressar jazem na indeterminação. 

Guardini, é claro, avalia que ambos os temperamentos são insuficientes diante da proposta de colher o espiritual no corpóreo. O seu diagnóstico é que “falta a esses temperamentos um dos elementos fundamentais da força de simbolização” (1942, p. 67). Ele explica: 

O primeiro dos dois tipos de temperamento não chegava ao símbolo por não estabelecer uma relação vital entre o espírito e o corpo. Bastante capaz de distinguir e separar, exagerava essa tendência até não ver mais a ligação entre o espiritual e o corporal. O segundo tipo vê tal ligação, projetando a interioridade na estrutura exterior. Falta-lhe, porém, a capacidade de distinguir e delimitar. Ora, para que haja símbolo é necessária a coexistência de ambas essas capacidades (1942, p. 67).

Chegamos, pois, ao tema do símbolo. Coerentemente com a sua visão a respeito das oposições polares, Guardini não dispensa esses dois temperamentos em vista de um terceiro: para ele, ambos concorrem para a formação do símbolo (1942, p. 70). 

Segundo Guardini, o símbolo é marcado por duas grandezas. À primeira podemos chamar de vitalidade ou espontaneidade e diz respeito à ligação orgânica que deve haver entre o conteúdo espiritual e a forma material que o expressa. Já a segunda pode ser denominada determinação ou inteligibilidade, e refere-se à universalidade da forma material empregada, à sua capacidade de circunscrever com clareza o conteúdo que expressa. 

“Um símbolo surge todas as vezes em que o interior e o espiritual encontram sua expressão no exterior e no corporal”, escreve Guardini (1942, p. 67). É devido à primeira das duas grandezas mencionadas que ele se preocupa em diferenciar o símbolo da alegoria, que se dá quando “um conteúdo espiritual está ligado a algo de material em virtude de uma convenção” (1942, p. 67). No símbolo, “o interior deve ao contrário projetar-se externamente de modo vital e com um caráter de necessidade essencial. É assim que o corpo é, naturalmente, a imagem expressiva da alma, e um gesto espontâneo, o reflexo de um estado psíquico” (1942, p. 67-68). 

Ao mesmo tempo em que sublinha a espontaneidade do símbolo, Guardini enxerga uma segunda grandeza necessária, que é a exigência de que a sua “linguagem” seja “clara e firmemente determinada”, sob pena de não haver símbolo “no sentido pleno da palavra”. Segundo ele, o verdadeiro símbolo “surge como expressão natural de um estado da alma particular e atual. Ao mesmo tempo, porém, ele deverá (...) elevar-se além do puramente particular. Não exprimirá apenas um conteúdo psíquico acidental e único, mas também algo de universal sobre a alma e a vida humana” (1942, p. 68). 

Para Guardini, na correlação entre a vitalidade e a clareza, o “conteúdo espiritual” vertido “no molde da forma sensível” do símbolo ultrapassa “o puramente individual onde surgiu para se tornar patrimônio da comunidade” (1942, p. 68). 

Ainda, se a primeira grandeza constituinte do símbolo, a sua espontaneidade, traduz a noção de que na liturgia o espírito se manifesta na matéria, a sua segunda grandeza constituinte, a clareza da sua linguagem, concorre para que a liturgia se manifeste na matéria sem estar de modo algum sujeita à matéria. “Nela todas as formas naturais (...) são refundidas em formas culturais”, resume Guardini (1942, p. 71). Assim como da liturgia participa o pão, e não o ramo de trigo, e o vinho, e não o cacho de uvas, fica melhor manifestada a natureza da liturgia quando todos os elementos materiais que dela participam só o fazem depois de atravessados pela ação humana, como frutos não só da terra, mas do trabalho, como se diz na preparação dos dons na liturgia romana. 

Nesse sentido, para Guardini, as duas grandezas constituintes do símbolo, a vitalidade e a clareza, assim como se relacionam respectivamente com a dimensão da individualidade e a da comunidade, correspondem ao âmbito da natureza e ao da cultura. Ele escreve: 

Quando baixa o patrimônio da cultura da oração, o pensamento empobrece, a expressão se faz rude, as imagens perdem a flexibilidade, os sentimentos se tornam grosseiros e monótonos. Quando a natureza não faz circular nela o seu sangue fresco e vigoroso, o pensamento se torna vazio e monótono, o sentimento fenece ou se torna excessivamente refinado, os símbolos e imagens se amenizam (1942, p. 42). 

Nessas duas grandezas do símbolo, Guardini enxerga “a profundidade de vida de onde se ergueu” e “a força e a limpidez com que foi plasmado” (1942, p. 68-69). Quanto maiores forem essas duas grandezas, mais o símbolo delas originado merece esse nome. É nelas que o símbolo expressa a sua “força criadora” (1942, p. 69). O símbolo, para Guardini, é poderoso: é capaz de “comunicar à verdade uma força e uma persuasão que a simples palavra não tem” e de “traduzir a vida interior com uma plenitude que a palavra simplesmente, uma vez mais, não possui” (1942, p. 71). Precisamente nisso, Guardini vê no símbolo “uma eficácia de libertação” (1942, p. 71). 

Segundo Guardini, o culto divino surge quando uma série de gestos de cunho simbólico se unem “como que numa linha única” (1942, p. 69). Na celebração da liturgia, precisamente pelo fato de ela se compor de símbolos, “se traduz plasticamente um conteúdo espiritual da maior riqueza” (1942, p. 69), e de um modo que a palavra sozinha, enquanto mera discursividade, não é capaz.  

O olho vê desde o coração 

Em 1950, Guardini publicou um texto intitulado O olho vê desde o coração: reflexões filosóficas sobre a Carta aos Romanos 1, 19-21. Esse trabalho nos ajuda a compreender melhor a dinâmica simbólica que Guardini tem em mente. Como o título deixa claro, aqui ele se propõe a analisar o referido trecho de Romanos, que diz o seguinte, segundo o texto da Tradução Ecumênica da Bíblia (2015): 

Pois o que se pode conhecer de Deus é para eles manifesto: Deus lho manifestou. Com efeito, desde a criação do mundo, as suas perfeições invisíveis, eterno poder e divindade, são visíveis em suas obras, para a inteligência; eles são, pois, inescusáveis, visto que, conhecendo a Deus, não lhe renderam nem a glória nem a ação de graças que são devidas a Deus; pelo contrário, eles se transviaram em seus vãos raciocínios e o seu coração insensato se tornou presa das trevas.

Guardini se interessa aqui em perscrutar como se dá a dinâmica segundo a qual as “perfeições invisíveis” de Deus “são visíveis” em suas obras. A partir da premissa de que Deus “manifestou” “o que se pode conhecer” dele, e de que os raciocínios são “vãos” e o coração é “insensato” se não são capazes de colher essa manifestação, Guardini desenvolve sua reflexão sobre a relação entre o corpóreo e o espiritual que apresentou em O espírito da liturgia

Segundo ele, “‘ver’ — ou talvez deveríamos dizer, mais exatamente, ‘olhar’ — significa ser afetado imediatamente e de maneira radical pela aparição sensível do objeto e ser convidado a compreender seu conteúdo” (2001a, p. 8). Ver, para Guardini (2001a, p. 11), é introduzir-se “no campo de forças de um ser”, o que dá início a “uma série de acontecimentos de apreensão e diálogo”. Há, portanto, algo de relacional no ato de acolhimento da realidade ao nosso redor. 

A relacionalidade está no fato de que, “no dado de maneira direta, ‘aparece’ uma realidade própria e peculiar que se encontra ‘por detrás’ dele”, escreve Guardini (2001a, p. 10). “Essa realidade autêntica está, em si mesma, subtraída, oculta (...). Porém, ela aparece, se faz presente, se manifesta no que existe de maneira imediata”. Guardini faz questão de especificar: “A realidade autêntica não é meramente sinalizada, mas transplantada ao dado de maneira direta, podendo então ser vista precisamente assim” (2001a, p. 9). É aí que, retomando as palavras de Romanos, “se manifesta o que em si mesmo é invisível” (2001a, p. 9). 

Esse acolhimento relacional de um conteúdo que ultrapassa o material não se dá fora da matéria, voltando-se as costas a ela, mas nela mesma. Essa presença “brota da realidade do mundo” (2001a, p. 21). Ainda nas palavras de Guardini, “essa realidade espiritual não é acrescentada posteriormente ao que é visto pelos sentidos, por meio do labor do entendimento, por exemplo, mas é apreendida imediatamente pelo olho, ainda que de maneira imprecisa e imperfeita” (2001a, p. 8). Daí se pode afirmar que “o ato essencial do olho consiste em apreender, no dado de maneira direta, a realidade autêntica que aí aparece” (2001a, p. 10). 

Tudo isso leva Guardini a afirmar que “a coisa meramente material não existe em absoluto: o corpo está de antemão determinado pelo espírito” (2001a, p. 8). Em outras palavras, “vejo o corpo apenas na alma, iluminado, dominado, caracterizado por ela” (2001a, p. 10). Mas que realidade autêntica, espiritual, é essa, que se esconde e se manifesta em tudo o que existe? Guardini explica: 

Por trás de tudo que se possa simplesmente dizer, há algo misterioso e ao mesmo tempo profundamente familiar; algo que se diferencia de todas as coisas, outorgando a elas, no entanto, sua suprema densidade ontológica. É o mesmo em todas as coisas, mas em cada uma delas se expressa segundo a índole especial de cada uma. Medidas por seu ser imediato, todas as coisas têm um sobrevalor; cada uma diz mais do que é. Cada uma aponta para algo que ela mesma não é, mas que copertence — como origem, ponto de partida, sentido último — à realidade da coisa, e sem o qual a coisa seria algo débil, pobre de sentido, que não merece pena. Esse algo originário, peculiar e próprio de todas e cada uma das coisas, que se encontra por trás de sua realidade concreta e singular, é a realidade religiosa. É Deus. Dito de forma mais exata: é o poder criador de Deus. Ainda mais exatamente: é o fato de que as coisas foram criadas. E agora vem nossa hipótese: esse fato se vê (2001a, p. 12-13).

Elencando de forma mais direta o que Guardini diz aqui, entendemos que essa realidade que ele qualifica como “autêntica”, “espiritual” e “religiosa”: a) não se confunde com as coisas mesmas; b) ao mesmo tempo, confere a elas a sua densidade ontológica; c) expressa-se em cada coisa segundo a índole própria de cada uma; d) é origem e sentido último de todas as coisas. Guardini não hesita em chamá-la “Deus”, mas acredita ser mais exato chamá-la de “poder criador de Deus”, uma especificação que encontra paralelo na distinção que a teologia do cristianismo oriental faz entre a substância de Deus e as energias divinas. 

O ponto que para Guardini é central é que o olho humano é capaz de ver a presença de Deus nas coisas. “Desde a criação do mundo, as suas perfeições invisíveis, eterno poder e divindade, são visíveis em suas obras”, escreve Paulo. É aqui que emerge novamente o tema do símbolo. 

O símbolo, segundo Guardini (2001a, p. 21), é aquilo em que se configura, uma vez apreendida, a realidade invisível — isto é, Deus — que se manifesta em tudo o que é visível. A religião, por sua vez, é vista acima de tudo como uma produtora de símbolos: “A religião apreende uma peculiaridade das coisas, responde a ela com o respeito, a veneração, a obediência, a súplica, e configura o apreendido em um símbolo, uma sabedoria e uma ordem de vida” (2001a, p. 21). 

A experiência religiosa e a epifania 

Conjuntamente com a sua reflexão sobre o pequeno trecho de Romanos, Guardini publicou outro trabalho, com o título A experiência religiosa e a epifania. Ali ele dá mais indicações sobre a sua visão a respeito daquilo que a essa altura podemos chamar de simbolicidade, isto é, a manifestação do invisível — do divino — no visível — no material. Nesse texto, Guardini identifica esse fenômeno com o da epifania: ela é a “manifestação do divino em figura sensível” (2001a, p. 22), a “manifestação da glória invisível na matéria da existência” (2001a, p. 29-30). 

Esse fenômeno, para Guardini, não é extraordinário: acontece “constantemente, na existência diária do cristão” (2001a, p. 34), “na vida cotidiana”, (2001a, p. 25). Ele insiste nesse ponto: “O epifânico não significa, com efeito, algo que aconteceu apenas uma vez, em outro tempo, mas um fenômeno básico da existência crente em si mesma” (2001a, p. 28). Não se trata de “algo extravagante, ou milagroso”, mas de “algo completamente normal, ‘normal’, é claro, na ordem da graça, que é a ordem da encarnação” (2001a, p. 34). 

É que, por um lado, “Cristo é também a autêntica epifania” (2001a, p. 27), ainda que “a epifania autêntica e total de Cristo no redimido — e em toda criatura — é consumação e só terá lugar nos eschata. Mas o que então acontecerá plenamente, começa a se dar já agora” (2001a, p. 29). Por outro, precisamente “o mundo é santo quando seu ser se converte em expressão Daquele que o criou à sua imagem. Quando se converte — se podemos falar assim — em rosto, em gesto, em palavra, no Deus que se revela” (2001a, p. 33). O simbólico ou o epifânico e, podemos dizer, pertence à estrutura da própria realidade — quanto mais da experiência cristã. 

Guardini explica: no cristianismo, assim como na experiência humana como um todo, há, antes do conceito, a realidade simplesmente dada. “Os conceitos não aparecem senão mais tarde, para elaborar, interpretar e esclarecer o que aqui [na experiência apostólica] está simplesmente ‘dado’” (2001a, p. 27), escreve ele. O dado, note-se, não é apreendido pelo conceito, mas pela visão simbólica. Guardini procura esclarecer esse ponto: 

Nós, os homens de hoje, já não sabemos ler os acontecimentos. Claro, nós nos perguntamos: o que significa isso? Constatamos um fato e o associamos com certas explicações. Mas o que importa realmente é outra coisa: abrir-se ao acontecimento; aceitar sua intenção, deixar-se guiar por sua lógica própria, que é uma lógica de imagem e acontecimento; compreender o que quer — o que ele, e não uma teoria intelectual, quer —; e assim, receber o que vem dele, o que pressupõe, seguramente, que o acontecimento se realize de tal forma que dele possa vir algo (2001a, p. 35).

Estamos prejudicados, portanto, por uma tendência racionalista. Essa associação entre o fato e as explicações é postiça: o sentido do fato deve ser acolhido desde dentro do fato mesmo. Guardini define essa “concepção moderna do homem”, que ele julga “equivocada”, como uma concepção “ao mesmo tempo espiritualista e sensualista”, pois “ambas as atitudes são expressão do fato de que falta o autêntico, o humano-vivente” (2001a, p. 31). Ele vê o caráter espiritualista dessa concepção em “um entendimento que trabalha de forma abstrata, manejando conceitos”, e o seu caráter sensualista no simples “aparato fisiológico dos sentidos, que capta impressões” (2001a, p. 31). O que acontece, para Guardini, é que entre os dois há apenas “um sentimento meramente emocional que, de maneira estranha, carece de lugar próprio” (2001a, p. 31). 

O ser humano, porém, não é essa justaposição de conceitualidade abstrata e corporalidade sensualista. “Seu espírito está corporizado; e seu corpo, espiritualizado”, escreve Guardini (2001a, p. 31). Os sentidos “podem apreender muito mais do que apenas dados materiais; captam também o espírito vivente” (2001a, p. 32). Segundo ele, “a totalidade do corpo pode apreender a realidade e seu conteúdo espiritual” (2001a, p. 32-33). O ser humano, portanto, “não é uma ‘síntese’, mas uma unidade vivente” (2001a, p. 31). Guardini suspira por essa unidade: 

Em uma época em que, por um lado, ressoam por todos os lados os conceitos e as fórmulas e, por outro, existe um materialismo demônico que reduz tudo ao materialmente sensível, o homem gostaria de ter a realidade completa e íntegra do mundo santo, realidade que é corpo e espírito, figura e luz, ser e sentido (2001a, p. 33).

Essa unidade, portanto, não é apenas condição para a visão simbólica: nela mesma já se experimenta a realidade autêntica que o símbolo torna presente. “O homem quer sair da desagregação em que se encontra” (2001a, p. 39), diz Guardini. É a existência mesma que se torna santa quando de desgarrada se torna una, quando a multiplicidade se abre à revelação de um rosto (2001a, p. 34). 

Toda essa dinâmica que Guardini busca descrever se reflete na liturgia, que ele chama o “órgão” da manifestação epifânica (2001a, p. 30). A participação na liturgia acontece em ordem a acolher a manifestação epifânica: o ser humano “busca a aparição da realidade santa no acontecer do culto; o ressoar da palavra eterna no falar e no cantar da liturgia; a presença do Espírito Santo na corporalidade, que se pode tocar com as mãos, do serviço divino” (2001a, p. 34). 

Isso se dá sem extravagâncias ou milagres. É a própria “força expressiva da palavra, do gesto, da figura material” que não se limita a penetrar intelectualmente no entendimento ou esteticamente na imaginação e no sentimento, mas “produz também efeitos religiosos”, de modo a “dar vida à consciência de que o mundo é santo” (2001a, p. 34). 

Essa uma dinâmica que se baseia em uma premissa simples: a nossa vida se dá “em forma de expressão; como realização da expressão e apreensão da expressão” (2001a, p. 37). É por isso que, escreve Guardini, “o ‘Senhor da glória’, se a sua graça quer, pode tornar essa glória visível no símbolo litúrgico” (2001a, p. 37). Guardini caminha com cuidado entre dois pontos que, subentende ele, poderiam entrar em contradição. Por um lado, não hesita em dizer que essa manifestação visível da glória “pode ocorrer, e algo disso ocorre constantemente” (2001a, p. 37). Por outro, faz uma ressalva a respeito da liberdade divina, concluindo, porém, com uma conciliação: 

Que essa realidade oculta se mostre e se expresse também, que o “signo” não apenas sinalize, mas também revele, é algo que depende da livre decisão do Senhor da liturgia. O Senhor pode o conceder se quiser, quando quiser e como quiser. Mas existe, sem dúvida, uma conveniência santa de que o conceda, pois o acontecer litúrgico está efetivamente orientado a isso, contra todo racionalismo. E, por isso, também nós podemos confiar que o concederá (2001a, p. 37).

Assim, Guardini pretende salvaguardar os dois pontos a que dá importância nesse contexto: a atestação de que é precisamente do epifânico que se trata a liturgia e o respeito à suprema liberdade do Senhor em se manifestar. A relevância dessas afirmações aparece à luz de tudo o que Guardini disse sobre o símbolo: se a liturgia está justamente orientada à manifestação simbólica do Senhor, é de se pensar o que se tem feito nas celebrações, já que Guardini havia ressaltado que a visão simbólica é uma capacidade que deixamos para trás, havendo a necessidade de recuperá-la. 

O fim dos tempos modernos

Aqui, antes de prosseguir refletindo a partir dos textos que Guardini publicou em 1950 sobre a dimensão simbólica do conhecimento e da própria liturgia, convém voltar o olhar ao que ele tem a dizer sobre o símbolo em O fim dos tempos modernos

Nesse texto, Guardini avalia que “a angústia dos tempos modernos” deve- -se, em grande parte, “ao sentimento de não ter nem um lugar simbólico nem um refúgio de que se esteja imediatamente seguro; e também à experiência sempre renovada de não encontrar no mundo nenhum lugar para a existência e que satisfaça a sua necessidade” (1964, p. 52). Para o homem moderno, portanto, os símbolos são um “mundo perdido” (1964, p. 94), uma forma de conhecimento “que era evidente para o homem medieval” (1964, p. 65). 

É a esse homem medieval, que “vê símbolos em tudo” (1964, p. 39), que Guardini contrapõe o homem moderno. O homem medieval tem “uma elementar consciência do simbolismo da existência” (1964, p. 39). É uma visão em que “os diferentes domínios do mundo e da vida, com os seus estágios e as suas fases, têm uns com os outros correspondências abundantemente desenvolvidas”, que, em última instância, “se referem ao eterno” e, assim, “um simbolismo universal penetra em toda a existência” (1964, p. 35-36). A descrição de Guardini é útil para reconhecer essa estrutura simbólica: 

Segundo a antiga representação, o mundo era uma grandeza limitada; o seu finito em extensão era compensado por um infinito em intensidade, se assim se pode chamar, isto é, um conteúdo simbólico absoluto que irradiava para toda a parte. O conjunto do mundo tinha a sua imagem primordial no Logos. Cada uma das suas partes realizava um aspecto particular desta imagem. Os símbolos particulares estavam em relação uns com os outros e formavam uma estrutura articulada e rica de conteúdo. Os anjos e os bem-aventurados na eternidade, os astros no espaço cósmico, as coisas naturais na terra, o homem e a sua estrutura interior, tal como a sociedade humana nas suas diversas camadas e funções — tudo isto apareceu como uma estrutura simbólica que tinha um significado eterno. Uma ordem igualmente simbólica dominava as diferentes fases da história que se desenrolava entre o seu autêntico começo, a Criação, e o seu fim também autêntico, o Juízo. Os atos particulares deste drama, as épocas da história, estavam relacionados uns com os outros, e no interior de cada época todo o acontecimento tinha o seu sentido (1964, p. 48-49).

Assim, para o homem medieval, “o todo encontra-se reunido no homem e na sua vida, para desenvolver uma nova ordem: a do microcosmos na plenitude dos seus graus e depois seus significados” (1964, p. 27-28). Guardini, evidentemente, reconhece que “toda esta representação é astronomicamente refutável”. Mas não é isso que importa: ela “exprime a imagem da visão direta; tem uma penetrante força simbólica e continua a ser exata do ponto de vista existencial” (1964, p. 28). 

É que, na visão do homem medieval, “a existência não é constituída por elementos, energias e leis, mas antes por formas” (1964, p. 39). “As formas” — explica Guardini — “significam em si, mas também para lá de si próprias, o Outro, o mais alto, e, por fim, a grandeza em si, Deus e as coisas eternas” (1964, p. 39). É assim que “cada forma torna-se um símbolo” (1964, p. 39). E “um símbolo é tão real como uma substância química ou um órgão do corpo”,segundo Guardini. ,

O símbolo “aponta para o que a transcende”, mas não só: “Também se pode dizer, e mais exatamente: provém de qualquer coisa de mais alto do que ela e que está para lá dela” (1964, p. 39). A forma que o homem medieval enxerga “não é apenas um ‘quê’, apesar de importante e até desejável, mas, em última análise, um ‘como’ in-essencial, porque o desejo de verdade está indissoluvelmente ligado ao de forma” (1964, p. 40). Ou seja, para Guardini, a forma não é um elemento decorativo — e, portanto, dispensável — do conceito: é ela como tal que “afirma algo acerca do mundo — e até porque a sua essência [a do mundo] pode ser expressa numa tal possibilidade de construir formas” (1964, p. 40). 

Imagem litúrgica e epifania 

Se no texto anterior do volume sobre os sentidos e o conhecimento religioso, Guardini procurou falar do epifânico e do simbólico de maneira geral, para apenas em seguida entendê-la na moldura do culto cristão, em Imagem litúrgica e epifania ele se detém totalmente sobre a liturgia, que “tem uma relação especial com o epifânico, devido à sua condição de figura” (2001a, p. 40). “A liturgia” — escreve Guardini — “não trata de doutrinas e normas abstratas; tudo nela é figura visível; tudo nela é palavra audível e coisa apreensível; ela é ação, em que o homem participa realizando-a” (2001a, p. 40). 

“Por todos os lados encontramos na liturgia coisas que não servem a uma utilidade, mas que revelam um sentido, que são símbolos” (2001a, p. 40), escreve Guardini. Neles, a verdade sobrenatural se reveste de forma e figura (2001a, p. 45), de modo que ressoe a “força expressiva da palavra, do gesto, da figura material”, que “produz também efeitos religiosos”. Os símbolos não se limitam a penetrar intelectualmente no entendimento ou esteticamente na imaginação e no sentimento: eles são captados pelos “atos dos quais o homem mais profundamente vive: a intuição viva, o encontro concreto, a certificação interna” (2001a, p. 43). 

Para tanto, nos símbolos a figura é modelada de tal forma que “o seu sentido se assuma diretamente àquele que a ela se aproximar” (2001a, p. 45). Só assim é possível que “a imagem se imponha com todo seu poder ao fiel, revelando a ele seu sentido santo” (2001a, p. 44). Do contrário, “a figura já não fala e se pede ao fiel que lhe empreste artificialmente sua linguagem” (2001a, p. 46) — aqui subjaz a distinção entre símbolo e alegoria que já vimos Guardini apontar. Ele pede uma espécie de exame de consciência a respeito da nossa práxis celebrativa: 

Precisamos aprender de novo a ver, a ouvir, a tocar com as mãos, a atuar com todo o ser vivo e, além disso, precisamos ver com clareza onde nosso obrar litúrgico se tornou pobre em figuras, abstrato, decorativo, e perguntar como podemos recuperar aquela plenitude de imagens e aquela força de operação que, talvez, poderia levar o homem de nossa época até a esfera da revelação, de maneira mais viva e mais humana do que a mera instrução e as exortações (2001a, p. 47).

A gravidade dessa situação fica clara, para Guardini, quando ele a entende tendo por pano de fundo a condição do homem atual. “Nós já não existimos dentro de imagens”, lamenta ele. “As imagens intuídas foram substituídas por conceitos; as imagens personificadas, por aparatos; os ritmos viventes, por divisões mecânicas do tempo, e assim sucessivamente” (2001a, p. 41). Qual é o problema? “Por esse caminho o homem adoece, pois o seu ser interno não pode viver, em última instância, de conceitos e aparatos, mas unicamente de imagens” (2001a, p. 41). 

Aqui a reflexão de Guardini abre uma perspectiva interessante para a liturgia cristã do nosso tempo: se é verdade que, por um lado, “superar o desgarramento entre conceitualidade abstrata e corporalidade sensualista”, voltando a “pôr em evidência o humano-vivente”, é uma “condição prévia” para uma nova práxis celebrativa (2001a, p. 47), também é verdade que a liturgia, uma vez que assuma a sua natureza de manifestação epifânica, pode oferecer um caminho para que o ser humano de hoje retome a visão simbólica e, com ela, parte fundamental de sua humanidade. 

Considerações finais 

A partir desse ponto, podemos, a título de considerações finais, sobrevoar sem pretensão de exaustividade uma série de perspectivas que podem ser abertas pela reflexão de Guardini, e que mostram que o litúrgico é uma dimensão do humano. Liturgia, uma noção que traz em seu cerne a dimensão do simbólico e do epifânico, não é algo que se refere tão somente às práticas rituais internas de uma comunidade religiosa, mas é um caminho de aprofundamento do humano que diz respeito a todos e a cada um. 

Sim, voltar o olhar à dimensão epifânica da liturgia, com atenção a todo o percurso de aproximação ao símbolo descrito por Guardini, é uma chave para em primeiro lugar rever a práxis celebrativa das comunidades cristãs, tanto no que diz respeito à performance ritual (SCHLOBITTEN, 2019), quanto no que se refere ao espaço celebrativo (REGO BÁRCENA, 2019). Isso é particularmente relevante em nosso momento histórico, em que também a liturgia acaba muitas vezes submetida a lógicas de consumo e em que uma geração mais nova, insatisfeita com a práxis celebrativa com que tem contato, recorre à idealização de um passado que não conheceu (BRUSTOLIN; GOMES, 2017, p. 327). 

Nesse sentido, o percurso delineado por Guardini é de muito proveito para aprofundar-se em um itinerário mistagógico que, como afirmou Bento XVI na exortação apostólica pós-sinodal Sacramentum caritatis (2007, n. 64, grifo do original), deve sempre “preocupar-se por introduzir no sentido dos sinais contidos nos ritos”, uma tarefa “particularmente urgente numa época acentuadamente tecnológica como a atual, que corre o risco de perder a capacidade de perceber os sinais e os símbolos”. Como bem sublinha o então pontífice, não se trata meramente de informar, mas de “despertar e educar a sensibilidade dos fiéis para a linguagem dos sinais e dos gestos que, unidos à palavra, constituem o rito” (2007, n. 64). Guardini publicou em 1922 um livreto em que procurou fazer esse exercício, Os sinais sagrados (1993). Nesse sentido, entretanto, a metodologia do laboratório litúrgico (BARONTO, 2006) oferece uma contribuição particularmente significativa, que merece maior difusão. 

Como se tem ressaltado já há muitos anos, hoje esse caminho mistagógico- -celebrativo é indissociável dos percursos de iniciação à vida cristã propostos a qualquer faixa etária. O Diretório para a Catequese (2020) aponta, por um lado, que a linguagem simbólico-litúrgica é uma das “linguagens principais da fé eclesial” (n. 204) e, por outro, que esse caminho responde às exigências do homem contemporâneo, “que habitualmente considera significativas somente as experiências que o tocam na sua corporeidade e afetividade” (n. 64). Dentro da proposta de uma catequese mistagógica, dialogando com a contribuição de Guardini, é importante esclarecer que o simbólico não é uma dimensão decorativa, o que o tornaria dispensável, mas é precisamente o âmbito em que ocorre a iniciação à vida cristã. Como vimos, são os conceitos que estão a serviço dos símbolos e não o contrário. Isso é particularmente um desafio para as tradições protestantes, sobretudo as devedoras do calvinismo, que sob certos aspectos se afastaram mais do mundo simbólico do que os católicos e os ortodoxos. 

Desde aqui se vê que, no campo da teologia, a questão do símbolo, como proposta por Guardini, não diz respeito apenas à teologia da liturgia, mas à teologia como um todo, tocando em problemas próprios da teologia fundamental. De que hermenêutica lançamos mão para falar do modo como aquela realidade a que chamamos Deus se manifesta na vida? Como dizemos dessa realidade fundante quando ela se revela a nós e se deixa tocar? A transição ocorrida no fim do medievo no campo da teologia, que teceu relações de influência mútua com outros campos, foi descrita por Ladaria (2013, p. 17), e antes por Grillmeier (1975), como uma passagem do símbolo à suma. Resgatar o símbolo é abrir-se a uma forma de pensar e de falar sobre o mistério mais adequada ao seu objeto, uma forma que leve em conta que a dimensão experiencial e sapiencial é uma exigência intrínseca da linguagem teológica (BOFF, 2017, p. 122-125). A tarefa neste novo momento de mudança epocal é, como aponta Villas Boas (2016), recuperar a “lógica poética da Revelação”. 

Para Rupnik (2017, p. 184-186, tradução nossa), o abandono do símbolo representou uma “bifurcação trágica”, em que a relação entre Deus e o mundo passou a ser vista como uma “operação intelectual” em vez do “envolvimento relacional em uma presença”, o que se dá sempre em um âmbito de liberdade e não de coação. Antes, portanto, da teologia fundamental, está a própria experiência religiosa que é objeto de sua elaboração teórica, enquanto experiência do humano. Nesse contexto, toda a reflexão de Guardini sobre o símbolo se insere em sua busca de pensar a pessoa. Suas contribuições sobre o símbolo e a sua antropologia são interdependentes. Sua visão recusa o dualismo, compreendendo que sem o corpo é impossível pensar o humano (NODARI; FABIANI, 2019, p. 92-93). 

A determinada visão de pessoa corresponde uma determinada ecologia. Não é nenhuma surpresa, portanto, que toda a concepção de Guardini, que inclui a capacidade simbólica do ser humano, esteja na base de boa parte do capítulo sobre a raiz humana da crise ecológica da encíclica Laudato si’ (2015), de Francisco. Nesse capítulo, em que levanta uma crítica ao paradigma tecnocrático que desconsiderou o humano em todas as suas dimensões, o papa cita diretamente trechos de O fim dos tempos modernos seis vezes. Partindo dali, Francisco reforça a necessidade de “voltar a ampliar o olhar”, identificando na “humanidade autêntica” que “parece habitar no meio da civilização tecnológica de forma quase imperceptível” o convite a uma “nova síntese” (n. 112). Só um “olhar diferente”, mais amplo e orgânico, pode opor “resistência ao avanço do paradigma tecnocrático” (n. 111). 

Isso nos leva a outro ponto: a reflexão que Guardini oferece guarda também uma estreita relação com a educação. É que para ele “o fundamental na tarefa educativa não é transmitir valores, por mais nobres que sejam, mas acompanhar com flexibilidade o desenvolvimento do ser humano, de tal modo que ele possa alcançar a forma ou imagem que lhe é própria” (BRANDÃO, 2006, p. 154). Por isso, a capacidade de orientar-se e orientar “está relacionada à capacidade do homem ver de modo mais amplo e, ao mesmo tempo, profundo a si mesmo e à realidade” (BRANDÃO, 2006, p. 154, grifo do original) — e aqui serve o percurso de aproximação ao símbolo descrito por Guardini. 

Relacionada a isso está a contribuição que o pensamento de Guardini pode dar ao campo da arte. Isso diz respeito, é claro, à arte sacra, em sua ligação indissociável com a liturgia — e aqui é significativo recordar a homilia aos artistas em que Paulo VI (1964) sublinhou que, se ao ministério da pregação faltasse a contribuição dos artistas, esse ministério se veria na necessidade de tornar-se ele mesmo artístico, já que é tarefa e missão própria da arte “revestir de palavras, formas, cores, acessibilidade” o “mundo do espírito, do invisível, do inefável, de Deus” (tradução nossa). Ao mesmo tempo, a visão de Guardini extrapola os limites da arte sacra e oferece uma contribuição à reflexão sobre a criação e a fruição artísticas em si mesmas. Ele mesmo se dedicou também especificamente a essa questão, em A obra de arte (1998), publicado originalmente em 1948. 

Na raiz de todos os pontos mencionados, percebemos que o símbolo é sobretudo uma questão de teoria do conhecimento, no sentido de possibilidade de aproximação do ser humano à realidade (ŠPIDLÍK; RUPNIK, 2010). É aqui que o resgate do símbolo, nos termos de Guardini, concentra a sua força. A modernidade introduziu uma forma fragmentária de se aproximar da realidade, incapaz de responder ao humano em sua plenitude. As consequências disso estão diante de nós todos os dias, nesta fase tardia desse modelo de pensamento. A reflexão de Guardini, nesse campo, é capaz de dialogar na atualidade com as propostas de um pensar decolonial, como a de Enrique Dussel (2012) — que chama o mito da modernidade de irracionalismo, enquanto abstração autorreferencial, fechada à vida em sua corporalidade concreta — e a de Boaventura de Sousa Santos (2019) — que identifica nas epistemologias do Sul uma possibilidade de descolonização cognitiva que privilegia os corpos, a experiência e os sentidos —, bem como com a hermenêutica da carne, discussão que envolve autores como Julia Kristeva, Michel Henry, Jean-Luc Marion e Paul Ricoeur (KEARNEY; TREANOR, 2015).

Hans Urs von Balthasar, evocando Isaías (21, 11), disse de Guardini: “‘Sentinela, quanto falta para acabar a noite?’ Guardini ouve essa questão repetidas vezes. Escutando atentamente a pulsação do seu tempo, dando forma àquilo que ouve, ele vigia pela hora que vem com intensidade, cuidado e interesse” (2010, p. 9, tradução nossa). Todas essas portas possíveis de serem abertas, esses caminhos de diálogo, uns já mais percorridos, outros menos e outros ainda a percorrer, mostram que, a despeito de remontar a cem anos atrás, o pensamento de Guardini sobre o simbólico é repleto de pujança e de atualidade. 

Referências bibliográficas 

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Notas

[1] Usamos aqui a tradução espanhola, publicada com o título El talante simbólico de la liturgia (2001a). Todas as citações diretas desse material são de tradução nossa.