Editorial

A sacralidade da vida humana

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O discurso sobre a dignidade humana talvez seja, neste momento, o mais universal e emergente, porque trata-se de um elemento ético-teológico que diz respeito à sacralidade inerente a todos. O mundo vive o drama do coronavírus (denominado SARS-CoV-2) que já levou à morte mais de 1 milhão de pessoas. No Brasil já passamos de 150 mil mortos e os noticiários continuam a divulgar os altos índices de mortos a cada dia. Nesse contexto é emergente reencontrar o lugar legítimo da lógica do Outro e da ética do cuidado na dinâmica da nossa existência para se repensar a questão da sacralidade da vida humana. Nascer, viver e morrer com dignidade é mais que um direito natural é um direito sacral atestado pelo dom originário da criação. A concepção bíblica e patrística da criação reafirmam que a criação forma parte indissolúvel da história da revelação e da salvação de Deus com os homens. Pensar o ser humano criado à imagem e semelhança de Deus, significa pensá-lo em dignidade transcendental e inviolável. Quando se trata de olhar com profundidade a uma mínima antropológica cristã, observa-se que, primeiramente, nos textos narrativos da criação, dizer que o homem é imagem de Deus é ressaltar a sua missão no meio do mundo: representar Deus na criação. Como imagem de Deus, o homem é o seu alter ego; o seu sujeito não é um ser humano singular, mas “adam”, a humanidade. Ou ainda como compreendeu a teologia oriental, “o adão coletivo”, que somos todos nós, uma vez que, enquanto humanidade somos uno, quer seja pela unidade da natureza, quer seja pela unidade da vida. Por outro lado, a expressão “criados à imagem e semelhança de Deus” também nos leva a pensar em outra especificidade do ser humano: a sua dimensão ética; em especial a ética do cuidado. É próprio da natureza humana a arte do cuidado. Nas palavras de Heidegger: “cuidado significa um fenômeno ontológico-existencial básico”. “Fenômeno que é a base possibilitadora da existência humana enquanto humana”, como afirma Leonardo Boff.

Nesses termos, repensar a questão da dignidade humana requer recolocar no centro da reflexão a pessoa humana e sua sacralidade, concomitantemente, sua realidade de incompletude. Deus criou o ser humano incompleto, inacabado, para que esse seja responsável pela sua própria humanidade. A criação supõe um devir, ou ainda um povir, um processo contínuo de desdobramento onde a responsabilidade configure-se como algo que se espera de um dom recebido. Criado à imagem de Deus, o ser humano não é um clone do seu Criador; é criatura incompleta, esta incompletude atesta que o Criador lhe deixou a responsabilidade de desenvolver a Sua imagem. Só quando somos verdadeiramente humanos desenvolvemos a imagem de Deus, pois o humano que há em nós é, por excelência, o lugar da nossa responsabilidade. Como nos diria Ricoeur, “o paradigma mais próximo do si mandatado do Antigo Testamento é a conformidade com a figura crística”.

É urgente neste tempo de pandemia resgatar o que de fato nos humaniza. Resgatar o humano que há em nós e que nos “diviniza”. Resgatar o humano que nos é dado, que é gratuito e que é disposto em nós como dom. Resgatar a nossa capacidade de hospedar o humano em nós, pois quando anfitriões do humano que nos habita, no paradigma cristológico, seremos capazes de servir, cultivar, cuidar, descobrir a fraternidade e que somos todos irmãos, pois pertencemos a única descendência. Entenderemos melhor a prática da humanidade que Deus mesmo realiza na pessoa de Jesus Cristo e que somos chamados a realizá-la no exercício do amor e da justiça.

Esse número da Revista de Cultura Teológica toca em temas incandescentes da atualidade e inspira-nos a repensar com convicção e criticidade que a fé no Deus da vida não pode ser real à margem do escândalo do sofrimento, sem que haja a suspensão do não sentido por um sentido insuspeitável. Por outro lado, nos convida a repensar a questão emergente da dignidade humana. É evidente que neste tempo de Pandemia, entre acertos e desencontros, desesperanças e esperanças, medos, inseguranças, sonhos e utopias, repensar a dignidade humana como questão ético-teológica provoca um horizonte fecundo de interpretações, justamente porque no princípio está em jogo a “sacralidade da vida humana”. Nessa perspectiva seguem os artigos do presente número.

Em “Espiritualidade ecológica para a humanização da “casa comum” – Aproximações a partir do cap. VI da Laudato Sí”, Elias Wolff e Suzana Terezinha Matiello afirmam que conjugação entre espiritualidade e ecologia é uma das principais exigências dos tempos hodiernos. Trata-se de uma questão de sobrevivência num momento histórico em que se vê a humanidade inteira mergulhada numa profunda crise antropológica, ambiental e sanitária que se agrava com a pandemia da COVID 19. Para os autores a espiritualidade é uma fundamental e imprescindível fonte e sustento de humanização que possibilita uma práxis ecológica consequente. Segundo eles, a espiritualidade precisa ser cultivada na sua dimensão individual e comunitária para a humanização da “Casa Comum”.

Odirlei Arcangelo Lovo em “Parentalidade: administrar a vida humana” ressalta que a essência administrativa propulsa o ser humano, em esponsalidade, a ser, no mundo, o ato administrativo de Deus, e perpetuar a espécie humana. Por outro lado, segundo o autor, é notório que, na biologia da pessoa está a genealogia da pessoa com Deus. Nesse sentido, propõe-se que o ser humano planeje a concepção e o nascimento da vida, inserindo-se no mistério de amor, dizendo com Deus ‘façamos o humano à nossa imagem e semelhança’. O autor evidencia ainda o ser humano administrador e cocriador da obra de Deus. Para ele, ser pai, ser mãe é o Dom que precede o ter filhos, isso implica reconhecer a importância do planejamento da parentalidade e, acima de tudo, que esta nova vida seja regada de amor e da devida formação, para que possa, em livre-arbítrio, se edificar enquanto administradora da obra de Deus.

Cesar Kuzma em “A urgência de uma Teologia Política: Crítica e desafios para o atual contexto brasileiro” chama a atenção para a urgência de uma Teologia Política no Brasil, principalmente por sua situação atual, que nos apresenta inúmeros desafios que também devem ser interpelados e enfrentados pela teologia. O autor faz uma leitura atenta e crítica do contexto em que estamos vivendo, na intenção de trazer novos entendimentos para esta realidade. Sua intenção é que esta perspectiva teológica possa oferecer horizontes de interpretação que podem ser apontados como geradores de uma nova práxis que, de forma construtiva e libertadora, visem ao compromisso público da teologia na sociedade atual. Diante disso, aponta aspectos que determinam as características de uma Teologia Política, com destaque às diversas expressões contextuais que marcaram e ainda se fazem presentes em nosso tempo. Na sequência, faz uma descrição do atual contexto brasileiro, marcado por uma profunda crise social e política. Consequentemente, oferece aspectos fundamentais de uma Teologia Política e como que a realidade atual nos interpela à urgência desta questão.

Rita de Cassia Falleiro Salgado Correio, Waldir Souza e Luis Fretto em “Saúde no “novo normal”: da crise à humanização – integração e responsabilidade” afirmam que uma crise mundial em saúde que impacta a vida humana de diversas formas, causando uma crise geral e global, como é o caso da pandemia de COVID-19, revela alto impacto nas convicções dos seres humanos, provocando mudanças referentes a valores culturais, emocionais, religiosos, sociopolíticos e econômicos. Para eles, tal fenômeno desperta no indivíduo a sensação de impotência e também o autoquestionamento. Nesse sentido, os autores procuram destacar as categorias de Humanização, Integração e Responsabilidade, como elementos essenciais para a “saúde saudável” no “novo normal”. Segundo eles, é urgente uma reflexão acerca da “saúde saudável” em um “novo normal”, a partir de novos comportamentos e práticas humanizadas em resposta às urgências sociais e éticas recém-afloradas.

José Jacinto de Ribamar Mendes Filho e Rodolfo Gaede Neto em “A presença do Imaginário em passagens pela vida: da persistência do imaginário aos modos de bem viver” compreendem o imaginário em passagens pela vida. Para os autores a partir do conceito de Bem Viver e a constatação de que a esperança reside e cresce no sofrimento, é preciso se perguntar: qual a importância do imaginário em situações de sofrimento? Partindo de uma leitura teórica e antropológica sobre o imaginário e de um estudo relacional sobre diferentes situações da vida, vidas bíblicas e vidas indígenas, procuram esboçar uma reflexão teológica sobre o caminho da imaginação e sua ligação com a ideia de esperança. Os autores compreendem que o imaginário está estruturado em uma dimensão religiosa, se tratando mais de um equilíbrio de vida e de um recurso consciente real, que quando usado em passagens de sofrimento da vida, ajuda no aprendizado da esperança e na construção de um mundo de Bem Viver.

Tiago Gurgel Vale e Sergio Lucas Camara ao falar “Sobre os cuidados espirituais no atendimento a recém-nascidos extremamente prematuros” afirmam que o ambiente hospitalar é um lugar repleto de sofrimento e questionamentos sobre o significado da vida, situação em que os pacientes e profissionais são constantemente convidados a refletir sobre a sua própria experiência de vida. Para eles, a unidade de cuidados neonatais tem um significado mais especial, porque é um lugar onde a vida pode ser transformada assim que começa. O momento bastante sonhado do nascimento e com grande potencial de alegria para os pais é, nesse lugar, transformado em sofrimento. Nesse contexto, os membros da equipe estão conscientes que lidam com a parte mais difícil, com o sofrimento dos bebês e de seus familiares e sabem que a tecnologia que está sendo usada muitas vezes não vai salvar o bebê. Os autores procuram construir uma reflexão ética dentro de um contexto específico onde a prática dos profissionais de saúde possa garantir o bem integral (físico, social, psicológico e espiritual) do paciente e da sua família que sofrem e necessitam de cuidados, assegurando-lhes respeito e dignidade. Para eles, a Teologia permite aprofundar a questão da dimensão espiritual e a necessidade urgente de um trabalho adequado e sistematizado de assistência espiritual à família e ao recém-nascido, estimulando uma consciência ética no que diz respeito aos cuidados no início e no fim de vida.

Alexandre Freire Duarte em “A rejeição dos extremos: Aspectos da proposta espiritual de Fulton Sheen” apresenta um esboço de parte da proposta espiritual de Fulton Sheen, baseada na determinação dos mais capitais pares de extremos espirituais que, sendo dilaceradores da vida espiritual cristã e humana coevas, precisam de ser evitados. Para este efeito, e depois de uma breve apresentação dos aspectos mais relevantes da vida pública de Fulton J. Sheen, para tantos desconhecido e (ou) distorcido, o autor avança para um elencar de tais pares e, subsequentemente, para uma reflexão acerca dos pressupostos, natureza e potencialidades de uma vida espiritual que não se deixe seduzir pelos mesmos.

André Luiz Benedito em “O Espírito Santo nos sacramentos do batismo e da confirmação nas catequeses mistagógicas de Ambrósio de Milão” demonstra como o Santo de Milão aborda a ação do Espírito na celebração do respectivo sacramento. Em um segundo momento, o autor discorre sobre o Espírito Santo em seu aspecto tipológico, isto é, a relação entre o sacramento e os eventos da história da salvação que o Bispo de Milão expõe aos seus catequizandos. Em meio a essa abordagem, também se constata a preocupação de Ambrósio em defender a ortodoxia perante as heresias que refutavam a divindade do Espírito Santo.



Marcio Luiz Fernandes e Felipe Sérgio Koller em “O símbolo em Romano Guardini” ressaltam que o referido teólogo trabalhou no horizonte de uma fenomenologia simbólica atenta à dimensão intersubjetiva do conhecimento, oferecendo uma visão que recusa o dualismo e apontando o caminho da percepção do espiritual sempre e apenas através do material. Com isso, o simbólico emerge como um traço que caracteriza um novo momento para o ser humano, com a falência da modernidade. Para os autores, a contribuição de Guardini sobre o tema abre perspectivas para os campos da fenomenologia da experiência religiosa, da teologia fundamental e da teologia da liturgia, bem como dialoga com a antropologia, a arte, a educação e a ecologia.

Caroline Izidoro Marim e Arthur da Silva Pinto em “As religiões afro-brasileiras enquanto objeto de resistência” abordam a resistência afro-brasileira diante do cenário democrático atual, a partir de sua cultura religiosa. Por razões de não existir uma única religião afro-brasileira, senão uma pluralidade de religiões afro-brasileiras. Os autores procuram traçar um itinerário, começando com um pequeno estudo em forma de introdução acerca da história dos africanos e seus descendentes no Brasil, como também, seus grupos étnicos e estrutura social, enfocando em suas bases teóricas – ou seja, mitos e simbologia – acerca das quais se tem cada vez mais buscado sua relação direta com as concepções próprias da África. Depois, em um segundo momento, fundamentados na metodologia de pesquisa do artigo, descrevem os dados atuais do censo, a fim de apresentar as perspectivas e as tendências sobre as práticas afro-brasileiras no cenário político do país.

Claudio de Oliveira Ribeiro e Alonso Gonçalves em “Modelos de interpretação teológica das religiões: crítica e proposição” procuram demonstrar que a teologia das religiões, desenvolvida no campo cristão tanto em setores católicos- -romanos quanto protestantes, tem procurado fazer as melhores adequações, em termos de posições teológicas, diante da realidade inconteste das religiões e suas tradições, ritos, doutrinas, moralidade e ética e como elas se relacionam entre si. Com isso, uma primeira tentativa de classificação das posturas teológicas diante do desafio de compreender as religiões, se deu a partir de três conhecidas perspectivas: exclusivismo, inclusivismo e pluralismo.

Murilo Cavalcante Alves em “Mahdi: o Messias islâmico xiita” descreve o panorama do Islam Sunita com suas características doutrinárias e históricas. O autor aborda as características do Xiismo Duodecimalista e a questão do Imamato, imprescindíveis à compreensão do conceito messiânico xiita. Conclui com uma reflexão sobre os possíveis desdobramentos da questão, em um futuro remoto, a partir da expectativa do retorno do Mahdi aguardado pelos xiitas.

João Luiz Correia Júnior e Eunaide Monteiro de Almeida da Silva em “Uma interpretação da pedagogia de Jesus à luz da pedagogia de Paulo Freire” afirmam que a interpretação da Bíblia é marcada por aspectos que surgem dos constantes desafios e preocupações contextuais. Para os autores, é natural, portanto, que a Hermenêutica se aproprie do estudo desenvolvido em áreas do conhecimento contemporâneo que até então não foi aplicado criteriosamente na busca de uma compreensão aguçada e crítica dos textos das Sagradas Escrituras. Os autores sugerem, ainda que preliminar, a proposição de que é possível uma abordagem hermenêutica para entender a prática pedagógica de Jesus à luz da pedagogia freiriana. Para eles, não resta dúvida de que a compreensão crítica e aguçada da prática pedagógica de Jesus é relevante para se perceber o alcance libertador de sua ação messiânica. Jesus pôs em prática uma pedagogia que se fundamenta numa práxis, isto é, numa tensão contínua entre reflexão-ação-reflexão; entre o que ele faz (na ação missionária junto ao povo) e o que ele pondera a partir dessa ação (na intimidade do seu discipulado).

Ivanaldo Santos de Oliveira Filho, Simone Cabral Marinho dos Santos e Maria José de Araújo em “Bases epistemológicas da interdisciplinaridade no Ensino religioso” ressaltam que a interdisciplinaridade envolve uma prática pedagógica interativa entre diferentes disciplinas, inclusive a de Ensino Religioso.

Waldir Souza e Simoni Maria Texeira Ricetti em “Ousadias teológicas no cuidado da espiritualidade do estudante de medicina” apontam que o cenário acadêmico vivenciado pelo estudante de medicina é permeado por crises de sentido. Para eles, a falta de tempo para o cuidado de si marca a graduação de medicina diante de um curso com carga horária em tempo integral, alto nível de competitividade, ênfase na formação cognitiva em detrimento da formação humana. Transtornos alimentares, distúrbios do sono e depressão são apontados pelas pesquisas como um estresse decorrente na formação médica. Outros fatores são desencadeadores desse estresse: participar de procedimentos invasivos ou dolorosos, contato com a morte, morar longe da família, ter amizades somente dentro do círculo acadêmico e a não aplicação do conceito de qualidade de vida na própria vida. Diante desse quadro, o estudante de medicina passa a apresentar dores psíquicas. Dentro deste horizonte, o convite ao resgate do sentido da espiritualidade do estudante de medicina apresenta-se para além de um imperativo ético. Nessa perspectiva, o diálogo entre a Teologia e a Bioética revelam-se como uma possibilidade de propor novas formas de cuidado perante a fragilidade do estudante, pois ambas trabalham em defesa da vida.

Valeriano dos Santos Costa em “Tempo na liturgia: uma abordagem no horizonte da metafísica zubiriana” analisa a relação entre tempo e liturgia e afirma ser necessário se ter uma noção correta do que seja o tempo em seus processos constitutivos. Recorrendo ao pensamento metafísico de Xavier Zubiri, o autor procura demonstrar a ideia do tempo na liturgia. Para ele, não se trata, portanto, da teologia do tempo na liturgia, mas do tempo em si mesmo enquanto elemento constitutivo da celebração da fé. A metafísica zubiriana apresenta um horizonte que traz uma dimensão realmente nova e desafiadora para o pensamento e a vida humana. E na liturgia repercute de maneira significativa, pois a abordagem do tempo enquanto elemento litúrgico depende inevitavelmente do conceito de tempo em sua articulação com as coisas, considerando que aqui se trata da abordagem tempo e liturgia.

Por fim, José Aguiar Nobre nos apresenta a resenha de “CESAR, Constança Marcondes; BARBOSA, Elyana; BULCÃO, Marly. Vivências filosóficas: três pesquisadoras: Gaston Bachelard no Brasil. – 1a ed. – Goiânia: Editora Espaço Acadêmico, 2020”.

Desejo a todos uma ótima leitura.

Prof. Dr. Donizete José Xavier
Editor Científico