O que os biblistas podem aprender de Jerônimo: dezesseis séculos após seu falecimento 
What Bible Scholars can learn from Jerome: sixteen centuries after his death

Dominik Markl
Pontifício Instituto Bíblico, Roma, Itália.


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RESUMO

Jerônimo de Estridão (cerca de 347-420 d.C.) foi, após Orígenes, um dos poucos estudiosos da antiguidade que se dedicaram a estudos aprofundados das línguas bíblicas: o grego e o hebraico. Sua estilizada tradução latina, a Vulgata, foi acolhida como a Bíblia padrão no cristianismo ocidental durante um milênio. Além de seus intensos estudos de literatura e das línguas, o sucesso monumental de Jerônimo como biblista se baseou no entusiasmo monástico, no ensino de um conjunto amplo de exegetas de origem cristã e judaica, no conhecimento da geografia bíblica e numa rede acadêmica que se estendia pelo mundo mediterrâneo.

Palavras-chave: Jerônimo de Estridão, Estudos bíblicos; Tradução da Bíblia; Vulgata; Recepção.

ABSTRACT

Jerome of Stridon (ca. 347-420 CE) was, after Origen, one of few Christian scholars of antiquity who engaged in profound studies of the biblical languages Greek and Hebrew. His stylistically accomplished Latin translation was received as the standard Bible of Western Christianity for a millennium – the Vulgate. Besides his intense studies of literature and languages, Jerome’s monumental achievement as a biblical scholar was grounded in monastic enthusiasm, the teaching of a wide range of exegetes of Christian and Jewish provenance, a knowledge of biblical geography, and an academic network that spanned the Mediterranean basin. 

Keywords: Jerome of Stridon; Biblical Studies; Bible translation; Vulgate; Reception.

Jerônimo foi um dos mais influentes estudiosos da Bíblia na história do cristianismo,[1] e o primeiro a traduzir a maioria dos livros do cânon bíblico. Por mais de um milênio, sua tradução latina tornou-se a amplamente aceita versão da “Vulgata” no cristianismo ocidental. Já durante sua vida, os trabalhos exegéticos de Jerônimo foram usados por proeminentes figuras como Agostinho de Hipona. Durante todo o período medieval e no início da modernidade, Jerônimo foi retratado como um ótimo exemplo de formação ascética.[2] Com Ambrósio, Agostinho e Gregório, foi venerado como um dos grandes doutores da Igreja latina, e confirmado pelo Papa Bonifácio VIII em 1295. Mesmo hoje, um dos mais amplamente divulgados comentários, em volume único, sobre a Bíblia é intitulado The Jerome Biblical Commentary.[3] Qual a chave do sucesso de Jerônimo? A seguir, explorarei alguns aspectos de sua vida e formação que, mutatis mutandis, ainda podem servir como modelo para biblistas de hoje.

Estudos de línguas e literatura

Nascido por volta de 347 na cidade de Estridão,[4] em uma região periférica do Império Romano, em algum lugar da atual Croácia, Jerônimo passou sua adolescência em Roma estudando língua e literatura latinas com Élio Donato, na época o mais respeitado estudioso da área. Os livros de Donato tornaram-se obras de referência de gramática no período medieval. “Quanto ao latim, passei minha vida perto do berço, entre gramáticos, retóricos e filósofos”, escreve Jerônimo em seu prefácio a Jó. Ele parece ter refinado seu grego durante sua primeira viagem ao Oriente por volta dos trinta anos (373-379). Mais excepcional, contudo, foi o estudo de Jerônimo da língua hebraica,[5] iniciado por ele durante o mesmo período, quando passou dois anos no deserto sírio. Seu conhecimento de hebraico tornou-se cada vez mais profundo à medida que ele traduzia os livros do Antigo Testamento com a ajuda de consultores judeus. Jerônimo aprendeu um pouco de aramaico e de siríaco, mas não chegou a se aprofundar nessas línguas.

Diferentemente dos estudantes modernos de hebraico, Jerônimo não teve livros didáticos ou gramáticas de hebraico à sua disposição. Ele precisou aprender os textos hebraicos sem vocalização, por meio de um meticuloso estudo pessoal e da ajuda de seus professores, e vangloria-se de seus sofrimentos decorrentes desse estudo da língua. Tendo lido grandes obras latinas como as de Cícero e de Plínio, ele escreve:

Estou agora aprendendo o alfabeto hebraico e estudando as palavras hebraicas com suas sibilantes e guturais. Que tive de fazer esforços, que precisei superar dificuldades, que frequentemente me desesperei, que frequentemente desisti e, com muita vontade de aprender, recomecei, só eu e aqueles que viveram comigo sabemos. Mas agradeço ao Senhor, porque, dessa semente de aprendizado semeada na amargura, agora colho frutos doces (Ep. 125,12).

Jerônimo não foi o único cristão na antiguidade que adquiriu familiaridade com as línguas bíblicas. Seu mais proeminente predecessor como estudante cristão de hebraico foi Orígenes (ca. 185-254), e, embora Jerônimo ateste que Epifânio de Salamina conhecesse hebraico, Jerônimo deve ter sido, por muitos séculos, o último autor cristão de origem não judaica a ter adquirido profundo conhecimento de hebraico.[6] Somente com o crescente interesse de cristãos pela cabala, durante o século XV, e dos humanistas pelas fontes da antiguidade, os estudos de hebraico tornaram-se uma matéria de prestígio entre estudiosos cristãos.[7] Jerônimo orgulhosamente exigia, por bons motivos, que fosse chamado de um erudito de “hebraico, grego e latim, trilíngue” (Contra Rufinum III 6) e mais tarde foi venerado como vir trilinguis.

Durante sua vida, Jerônimo moveu-se em direção às fontes da Bíblia, quer geográfica, quer linguisticamente: estudou latim em Roma, grego em Constantinopla e Antioquia, e hebraico na Síria e na Palestina.[8] A qualidade do envolvimento de Jerônimo com a Bíblia baseou-se em sua disposição em dedicar mais tempo e energia ao estudo das línguas bíblicas, o qual se beneficiou de seus antigos estudos teóricos de gramática e literatura latina.

Entusiasmo monástico pela Bíblia

Embora conheçamos pouco sobre a infância de Jerônimo, sua educação clássica parece ter precedido seu fervoroso interesse pela Bíblia. Ele somente foi batizado por volta dos 20 anos, em 367, em Roma. Ele, então, viajou para a residência imperial Augusta dos Tréveros (atualmente Trier, na Alemanha), onde entrou em contato com o movimento monástico e decidiu desistir das aspirações a uma carreira secular, optando por uma vida estritamente monástica.[9] O monaquismo cristão inicial envolvia aprender de cor o Saltério e outros escritos bíblicos.[10] “Meditar” significava “ruminar”, ou seja, repetir e “mastigar” cada palavra das Sagradas Escrituras como o Shemá Israel sugere: “Estas palavras, que hoje eu te ordeno, estarão sobre teu coração! Para teus filhos as repetirás e delas falarás ao sentares em tua casa, ao andares pelo caminho, ao te deitares e ao te levantares!” (Dt 6,6-7).[11] Aludindo ao versículo de abertura do Saltério – “Feliz o homem… [cujo] apreço é pela instrução do Senhor”, Jerônimo escreve:

Pode haver uma vida diferente, sem o conhecimento da Bíblia, pela qual Cristo é conhecido, ele que é a vida dos crentes?… Alguns podem ter tesouros, beber em cálices com joias, vestir seda brilhante, gozar do aplauso das pessoas e ser tão rico que nenhum luxo poderia diminuir sua riqueza! Nosso prazer é considerar a lei do Senhor dia e noite! (Ep. 30,7.13).

A memorização era um ingrediente básico da educação clássica,[12] e, na mesma linha, Jerônimo recomendou a memorização de todos os livros bíblicos (Ep. 107.12). “Pela leitura constante e meditação prolongada”, um cristão completo faz “de seu peito uma biblioteca de Cristo” (Ep. 60.10).[13] Jerônimo via a Bíblia basicamente como “Sagrada Escritura”,[14] e a vivia como um monge e pregador.[15] Uma atitude espiritual dirige seu trabalho como tradutor. Em seu prefácio ao Pentateuco, Jerônimo pede a Desidério uma prece, “para que eu possa traduzir esses livros à língua latina com o mesmo espírito com que eles foram escritos”. O entusiasmo de Jerônimo para com a Bíblia cresceu ainda mais durante as décadas e proveu-o de energia para realizar sua impressionante obra de traduções, comentários e tratados.

Sobre Orígenes, Jerônimo escreveu: “Ele conhecia as Escrituras de cor e labutou dia e noite no estudo do significado delas… Quem não se admira com seu espírito, que ardia pelas Escrituras?” (Ep. 84,8). Semelhantemente, certo Postumino elogiou a dedicação de Jerônimo em seu trabalho: “Ele lê todo o tempo. Dedica-se exclusivamente a seus livros, não descansa, nem de dia nem de noite. Todo o tempo ou está lendo ou está escrevendo”.[16] O caráter do trabalho de Jerônimo inspira-se em um profundo fervor intelectual que era, ao mesmo tempo, um desejo espiritual: conhecer profundamente os escritos bíblicos para experimentar o dom da vida espiritual deles. Paixão intelectual e desejo espiritual nutriam, juntos, seu empreendimento acadêmico.[17]

Um amplo leque de professores de exegese

Tendo estudado literatura clássica em Roma, Jerônimo foi aos centros de ensino do cristianismo no Oriente – Constantinopla, Antioquia e Alexandria. Assim, ele escreve a Pamáquio e Oceano: “Um ávido desejo de aprender obceca-me. Mas não fui tão tolo de tentar ensinar a mim mesmo. Em Antioquia, com regularidade assistia às aulas de Apolinário de Laodiceia”. E, em seu típico tom incisivo, enfatiza que era um estudante crítico: “Embora eu tenha aprendido muito com ele sobre a Bíblia, nunca aceitei seu questionável ensino sobre a interpretação dela” (Ep. 84.3). Em Constantinopla (380-382), assistiu a aulas de Gregório Nazianzeno e encontrou Gregório de Nissa. Quatro anos mais tarde (386), perto de seu quadragésimo aniversário, viajou para o Egito e estudou por quatro semanas com o famoso exegeta Dídimo, o Cego, em Alexandria. Além de visitar o grande professor de exegese de seu tempo, Jerônimo recebeu muito conhecimento e habilidade hermenêutica da leitura de autores anteriores, especialmente Orígenes (ca. 185-254) e Eusébio de Cesareia (ca. 260-340). Embora posteriormente se tenha envolvido em polêmicas contra Orígenes, os comentários de Jerônimo mostram quanto este último deveu ao mais prolífico biblista.[18]

Jerônimo não somente tentou envolver-se com os proeminentes professores passados e presentes da Bíblia e visitar os mais famosos centros de ensino, como também explorou de modo atípico caminhos de pesquisa. Ele frequentemente interagia com judeus, tanto para estudar hebraico como para se beneficiar de seus conhecimentos da tradição rabínica sobre a interpretação bíblica.[19]

Embora de vez em quando fingisse ter consultado professores judeus, enquanto, na verdade, plagiava autores cristãos, pessoalmente ele se envolveu com judeus e com o ensino deles, o que é sobremaneira visível em Hebraicae quaestiones in libro Geneseos, um trabalho bastante irregular, composto de estudos filológicos sobre o Gênesis no contexto do aprendizado cristão antigo.[20] Jerônimo também consultou o Pentateuco Samaritano (Samaritanorum Hebraea volumina).[21] Ele mantinha contato com qualquer fonte que estivesse à sua disposição e manteve relações com pessoas instruídas de diversas classes para adquirir conhecimento e compreensão mais profundos.

Um centro de estudos na Terra Santa

Tendo estudado e trabalhado durante as primeiras quatro décadas de sua vida, Jerônimo finalmente se fixou na Terra Santa para construir seu próprio centro de vida monástica e de trabalho acadêmico. Com a ajuda financeira de mulheres ricas de Roma, especialmente Paula, as quais o acompanharam para viver uma vida monástica, ele fundou um mosteiro feminino e um masculino perto de Belém, onde passou as três últimas décadas de sua vida (389-419).

Mil anos antes da difusão do livro impresso na Europa, a construção de sua biblioteca foi uma tarefa enorme e cara. Escribas profissionais foram enviados ao mundo mediterrâneo para trazer cópias de importantes manuscritos de qualquer lugar que fosse. Jerônimo havia nutrido um amor por livros desde a juventude, tendo adquirido muitas obras clássicas já aos 20 anos, e, durante sua segunda estada em Roma (382-385), copiou muitos escritos em hebraico, inclusive o livro dos Jubileus,[22] cuja versão hebraica foi considerada perdida até que fragmentos foram descobertos nas cavernas de Qumrã.[23] Além da aquisição, a troca de manuscritos foi uma estratégia comum entre os bibliófilos da época. Quando viajava, Jerônimo tinha sempre consigo toda a sua coleção de escritos; a biblioteca que ele construiu em Belém era uma das mais vastas do gênero.[24] Ele também consultou a biblioteca de Cesareia, que preservava a coleção de Orígenes e que havia sido ampliada por Eusébio de Cesareia.[25] Colecionando e comparando manuscritos bíblicos, Jerônimo envolveu-se intensamente no que passou a ser conhecido nos estudos bíblicos como “crítica textual”.[26]

A escolha da localização foi, de alguma forma, uma coincidência. Belém oferecia a necessária tranquilidade, distante de centros políticos e econômicos, permitindo a concentração que o trabalho acadêmico exige. Ao mesmo tempo, o ambiente da Terra Santa facilitava o estudo da geografia e do ambiente bíblicos, conforme se vê, por exemplo, em sua revisão de uma obra grega sobre a toponímia hebraica (De situ et nominibus locorum hebraicorum, ca. 390). A maior parte da obra de Jerônimo foi produzida em Belém, e, embora ele tenha revisado as traduções dos evangelhos durante seu segundo período em Roma (382-385), sua nova tradução da Bíblia Hebraica foi produzida durante suas primeiras duas décadas em Belém (ca. 390-410). Não apenas como um tradutor, mas também como um teórico da tradução, Jerônimo tornou-se uma proeminente figura.[27] Ele produziu uma das mais influentes traduções da Bíblia, que se tornou um importante monumento no cenário da cultura histórica do cristianismo ocidental. A maioria de seus comentários, bem como de suas obras filológicas, foi escrita em Belém. Embora ele tenha comentado amplas partes da Bíblia, seus comentários sobre os profetas são de especial importância.[28] Os escritos exegéticos de Jerônimo tornaram-se amplamente conhecidos e estimados nos séculos seguintes.

A rede acadêmica e a realidade política

Ainda que Jerônimo seja conhecido como uma pessoa difícil, ele foi com certeza um talentoso comunicador – do contrário, ele não teria conseguido realizar projetos que envolviam tarefas organizacionais complexas. A construção de seus mosteiros e de sua biblioteca em Belém pressupõe uma substancial estratégia de captação de recursos, que ainda pode ser reconstruída a partir do corpus de cartas que nos chegaram e das dedicatórias de suas obras a ricos doadores. Sua rede estendia-se a todo o Mediterrâneo, desde a distante Belém até o que hoje é o Egito, a Tunísia, a Turquia, a Alemanha, a Itália, a França e a Espanha.[29] A capacidade de comunicação de Jerônimo, no entanto, não se restringia a escritos diplomáticos, mas baseava-se em encontros pessoais. Ele participou de grupos teológicos de discussão, especialmente com mulheres no monte Aventino, em Roma, tendo convencido algumas delas a se juntarem a ele em vida monástica na Terra Santa.[30] O quanto a amizade lhe era importante é revelado por seu sofrimento pela morte de Paula, em 404: durante dois anos ele não conseguiu realizar nenhum grande trabalho.[31]

Além disso, Jerônimo precisava de alguma força comunicativa para defender seu trabalho inovador contra as resistências e as oposições. Isso, sobretudo, quanto à sua revisão das traduções bíblicas, como as traduções latinas antigas, que, a despeito de sua diversidade, haviam se tornado intocáveis para muitos. Em seu prefácio aos evangelhos, ele antecipa que qualquer pessoa que perceba as mudanças em sua retradução poderia “chamar-me de falsificador, declarando-me ser um sacrílego, porque ousei acrescentar, mudar ou corrigir algo nos antigos livros”. Ao traduzir o Antigo Testamento do hebraico, ele teve de rebater muitos que consideravam a Septuaginta como inspirada.[32] Tendo traduzido muitas das versões gregas da Bíblia, ele defendia seu empenho em transmitir a “verdade hebraica” (hebraica veritas).[33]

A tensão entre o autoisolamento monástico e a impossibilidade de se retirar de uma intensa vida social marcou a última parte da vida de Jerônimo. A conquista e a destruição de Roma pelos visigodos em 24 de agosto de 410 perturbaram tanto Jerônimo que “eu, como se costuma dizer, não me lembro de meu próprio nome; e, assim, fiquei em silêncio por longo tempo, sabendo que se tratava de um tempo de lágrimas” (Ep. 126,2; cf. Eccl 3,4). Dois anos depois, a Palestina e o Egito sofreram invasões bárbaras, e em 416, quando o mosteiro de Jerônimo foi invadido, pilhado e incendiado, ele conseguiu salvar-se, com a maioria de seus companheiros, na torre fortificada do mosteiro. Esse desastre parece ter marcado o fim de sua produção acadêmica – o Comentário a Jeremias, no qual ele estava trabalhando na época, ficou inconcluso. Apesar de sua própria biblioteca ter sido destruída durante essa revolta ou ter sido perdida logo depois de sua morte, suas obras já se tinham espalhado pelo Mediterrâneo, e mantêm-se preservadas, em boa medida, até hoje. Próspero de Aquitânia (ca. 390-455) relata em sua Crônica que Jerônimo morreu em 30 de setembro de 420, mas os historiadores consideram mais provável o outono de 419. Os ossos de Jerônimo foram primeiro enterrados na gruta de Belém e depois transferidos à Basílica Santa Maria Maior, em Roma, no século 13,[34] onde são venerados até hoje.

Nos passos de Jerônimo

Jerônimo foi um modelo de instrução monástica na Idade Média, e Erasmo de Roterdã considerou-o um exemplo de erudição humanista. Martinho Lutero, contudo, teve uma opinião menos entusiasta sobre o uso da alegoria feito por Jerônimo, e a autorização da Vulgata no Concílio de Trento, em detrimento da propagação das traduções vernáculas feita pelos reformadores, ajudou a “catolicizar” a imagem de Jerônimo ao longo dos séculos seguintes.

Na comemoração dos 1.500 anos de sua morte, em 1920, o Papa Bento XV dedicou a Encíclica Spiritus Paraclitus a Jerônimo, enaltecendo-o como Doctor Maximus, dado por Deus à Igreja “para a compreensão da Bíblia”. A encíclica convida os bispos a recordarem a seus padres a importância de estudar a Bíblia, recomendando particularmente seu estudo no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, fundado por Pio X em 1909. Os editores do então recém-fundado periódico Biblica, pertencente ao Instituto, com alegria celebraram Jerônimo como um ponto de referência para a exegese católico-romana.[35] Embora Jerônimo tenha servido, naquele momento, como exemplo de exegese tradicional na defesa apologética contra o Protestantismo e a crítica histórica moderna, o papel do Instituto mudou muito, sendo Jerônimo visto agora sob outra ótica. Hoje, quando 350 estudantes provenientes de todo o mundo estão envolvidos em estudos filológicos e exegéticos no Pontifício Instituto Bíblico em suas duas casas, em Roma e em Jerusalém, aprendendo de exegetas cristãos e de exegetas judeus de diferentes escolas, podem considerar-se seguindo os passos biográficos de Jerônimo.

Jerônimo foi um dos mais vívidos espíritos do cristianismo do primeiro milênio, alguém que viajou, estudou línguas com incomparável rigor e com paixão ascética. Comunicador versátil, envolveu-se com grandes tradições exegéticas de seu tempo, bem como no diálogo com os judeus, não obstante as notórias animosidades entre eles e os cristãos. Ele defendeu a Hebraica veritas, religando mais estreitamente o mundo latino do cristianismo com suas raízes hebraicas e judaicas. A Reforma, de fato, seguiu seus passos defendendo a tradução da Bíblia das línguas originais para as línguas vernáculas, e a Igreja Católica Romana trilhou o mesmo caminho a partir do Concílio Vaticano II. Hoje, Jerônimo é um exemplo para exegetas sobre como realizar nossa tarefa com uma mente aberta – usar todos os meios à nossa disposição e comunicar-se com toda e qualquer pessoa de grande conhecimento para compreender as Escrituras o máximo possível em nossos dias. Além disso, o estudo das línguas e culturas pode capacitar os exegetas, como Jerônimo, a tornarem-se tradutores e mediadores, pessoas que unem culturas.

Tradução portuguesa do inglês: Anoar Jarbas Provenzi

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Notas

[1]    Sobre a recepção de Jerônimo, ver especialmente T. Scheck et al., “Jerome”, Encyclopedia of the Bible and Its Reception 13 (2016) 986-997; A. Cain e J. Lössl (eds.), Jerome of Stridon: His Life, Writings and Legacy, Farnham 2009, especialmente 175-279.

[2]    Ver K. Marsengill, “Jerome. III. Visual Arts”, Encyclopedia of the Bible and Its Reception 13 (2016) 995-997.

[3]    A primeira edição do The Jerome Biblical Commentary (ed. R. E. Brown, J. A. Fitzmyer e R. E. Murphy) foi publicada em 1968; o mesmo editor ficou encarregado da edição revista, The New Jerome Biblical Commentary (1990). The Jerome Biblical Commentary: Second Revised Edition (ed. J. J. Collins, G. Hens-Piazza, B. Reid e D. Senior) está no prelo pela editora Bloomsbury. No Brasil, a obra foi lançada como Comentário Bíblico São Jerônimo (São Paulo: Academia Cristã/Paulus, 2007).

[4]    Para informações biográficas sobre Jerônimo, contei com a obra monográfica de Alfons Fürst, Hieronymus: Askese und Wissenschaft in der Spätantike (Freiburg im Breisgau: Herder, ²2016); uma introdução concisa à sua vida e obra é A. Kamesar, “Jerome”, in: J. C. Paget and J. Schaper (eds.), The New Cambridge History of the Bible: Volume 1: From the Beginnings to 600 (Cambridge: Cambridge University Press, 2013), 653-675.

[5]    Sobre o conhecimento de Jerônimo do hebraico, ver D. Brown, Vir Trilinguis. A Study in the Biblical Exegesis of Saint Jerome, Kampen 1992, esp. 87-120; Fürst, Hieronymus, 79-83.

[6]    Ver M. Graves, Jerome’s Hebrew Philology: A Study Based on his Commentary on Jeremiah (Supplements to Vigiliae Christianae 90), Leiden 2007, especialmente 117-127.

[7]    Sobre a retomada dos estudos hebraicos entre os cristãos, ver especialmente S. G. Burnett, Christian Hebraism in the Reformation Era (1500-1660): Authors, Books, and the Transmission of Jewish Learning (Library of the Written Word 19), Leiden 2012.

[8]    Cf. M. Gilbert, “Saint Jérôme, traducteur de la Bible”, in: Il a parlé par les prophètes: Thèmes et figures bibliques (Collection “Connaître et croire” 1), Namur: Lessius, 1998, 9-28 [Annales 1986, Jerusalem, Notre Dame Center, 1986, 81-105], especialmente 10-13.

[9]    Sobre o desenvolvimento do monaquismo no tempo de Jerônimo, ver Fürst, Hieronymus, 45-54.

[10]   Cf. E. von Severus e A. Solignac, “Méditation. I. De l’Écriture aux auteurs médiévaux”, Dictionnaire de Spiritualité 10 (1980) 907-914; H. Bacht, “‘Meditatio’ in den ältesten Mönchsquellen”, Geist und Leben 28 (1955) 360-373.

[11]   G. Fischer e N. Lohfink, “‘Diese Worte sollst du summen’. Dtn 6,7 wedibbartā bām – ein verlorener Schlüssel zur meditativen Kultur in Israel”, Theologie und Philosophie 62 (1987) 59-72.

[12]   D. Robertson, Lectio Divina: The Medieval Experience of Reading (Collegeville, MN: Liturgical Press, 2011), 75-76.

[13]   Robertson, Lectio Divina, 79.

[14]   R. Kieffer, “Jerome: His Exegesis and Hermeneutics”, in: M. Sæbø (ed.), Hebrew Bible / Old Testament: The History of Its Interpretation. Volume I: From the Beginnings to the Middle Ages (Until 1300). Part 1: Antiquity, Göttingen 1996, 662-681, aqui 671, lista as seguintes expressões usadas por Jerônimo: “scriptura sancta, scriptura sacra, libri sancti, volumina sancta, historia sacra, litterae sacrae, volumina sacra, scriptura divina, scriptura Dei, scripturae dominicae, sermo Dei, sermo divinus, sermo Domini, sermo dominicus, verbum Dei, verba divina, codices divini, libri divini, volumina divina, volumina divinarum litterarum, scripturae caelestes, caelestis scripturarum panis”.

[15]   Cf. Gilbert, “Saint Jérôme”, 13-14: “Il y a ainsi, entre la Bible et lui, une sorte de connaturalité, de connivence”.

[16]   Sulpício Severo, dial. I 9,5 (CSEL 1, 161), citado em Fürst, Hieronymus, 59.

[17]   Ver as considerações sobre “l’objectivité d’un passionné”, in Gilbert, “Saint Jérôme”, 23-24.

[18]   See Fürst, Hieronymus, 134.

[19]   Sobre as relações de Jerônimo com os judeus, ver Brown, Vir Trilinguis, 167-193.

[20]   Fürst, Hieronymus, 137-144. A. Kamesar, Jerome, Greek Scholarship, and the Hebrew Bible: A Study of the Quaestiones Hebraicae in Genesim (Oxford: Clarendon Press, 1993).

[21]   Fürst, Hieronymus, 73: in Gal. II 3,10 (CChr.SL 77A, 84); prólogo a Reis.

[22]   Fürst, Hieronymus, 70; E. F. Sutcliffe, “St Jerome’s Hebrew Manuscripts”, Biblica 29 (1948) 195-204, especialmente 204.

[23]   Cf. J. C. Vanderkam, The Book of Jubilees (Guides to Apocrypha and Pseudepigrapha), Sheffield 2001, 13-17.

[24]   Cf. Fürst, Hieronymus, 72-73.

[25]   Fürst, Hieronymus, 74.

[26]   Fürst, Hieronymus, 73 e 125-127.

[27]   Ver Graves, “Vulgate”, in A. Lange e E. Tov (eds.), Textual History of the Bible. Volume 1A: Overview Articles, Leiden 2016, 278-289, especialmente 283-284; Kieffer, “Jerome”, 670-675; G. Bartelink, Liber de optimo genere interpretandi (Epistula 57). Ein Kommentar (Mn.S 61), Leiden 1980. Sobre a teoria da tradução na antiguidade, ver A. Seele, Römische Übersetzer: Nöte, Freiheiten, Absichten. Verfahren des literarischen Übersetzens in der griechisch-römischen Antike, Darmstadt 1995; H. Marti, Übersetzer der Augustin-Zeit. Interpretation von Selbstzeugnissen (STA 14), München 1974.

[28]   Kamesar, “Jerome”, 670-674; Kieffer, “Jerome”, 675-680; Fürst, Hieronymus, 122-125.

[29]   Sobre a rede de relações de “amizade” (amicitiae) de Jerônimo, ver Fürst, Hieronymus, 75-79, a prosopografia, ibid. 157-252, e o mapa na quarta capa do livro.

[30]   Ver Fürst, Hieronymus, 54-58, 211 e 225-226.

[31]   Fürst, Hieronymus, 226.

[32]   Fürst, Hieronymus, 112-119.

[33]   Ver Fürst, Hieronymus, 107-111.

[34]   I. Ivić, “‘Recubo praesepis ad antrum’: The Cult of Saint Jerome in the Church of Santa Maria Maggiore in Rome at the End of the 13th Century”, Il capitale culturale 21 (2020) 87-119.

[35]   Biblica 1 (1920), especialmente 431-517.