Traduzir a Bíblia: “...a impossibilidade de dizer”
Translate the Bible: "... the impossibility of saying"

Luisa Maria Almendra
Possui doutorado em Teología Bíblica pela Universidade Católica Portuguesa – Lisboa (2005). Contato: ID Lattes:9964504067753999


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Resumo: Desde São Jerónimo que a Bíblia Hebraica, ou partes dela, foi traduzida em quase dois mil idiomas e, em algumas línguas, a tradução prolifera em dezenas de versões. Esta realidade permitiu um acesso quase universal ao texto, porém estabelecendo, em muitos casos, uma distância tremenda com a língua original, as suas características e tonalidades e a verdade do seu dizer. Se existe algo de positivo neste movimento recente ele parece situar-se apenas na diversidade dos vários contributos de conhecimento para a compreensão do texto bíblico e do seu significado que ele permitiu. O debate recente obriga a que estes contributos se entendam como porções diferentes de uma verdade indizível; que resultam de diferentes métodos de tradução, que alguns acusam ser responsáveis por mudar o verdadeiro rosto das próprias Escrituras. Este artigo procura rever este debate procurando situar as fragilidades das tentativas literais e das que arriscam oferecer um lugar ao sentido, defendendo que estas duas tentativas, embora opostas, têm trabalhado uma confluência construtiva. Os desafios persistem e são, por vezes insuperáveis, mas o caminho permanece aberto nas perspetivas e as opções atuais.  

Palavras Chave: linguagem, língua, estilo; tradução; palavra; literal; idioma; literário.

Abstract: Since St. Jerome, the Hebrew Bible, or parts of it, has been translated into almost two thousand languages and, in some languages, translation proliferates in dozens of versions. This reality allowed an almost universal access to the text, but in many cases establishing a tremendous distance with the original language, its characteristics and tonalities and the truth of its saying. If there is anything positive about this recent movement, it seems to be situated only in the diversity of the various contributions of knowledge to the understanding of the biblical text and its meaning that it allowed. The recent debate requires these contributions to be understood as different portions of an unspeakable truth; that result from different methods of translation, which some say are responsible for changing the true face of the Scriptures themselves. This article seeks to review this debate in an attempt to situate the weaknesses of literal attempts and those that risk offering a place to meaning, arguing that these two attempts, although opposed, have worked a constructive confluence. The challenges persist and are sometimes insurmountable, but the path remains open in the current perspectives and options.

Keywords: language; stile; translation; word; literal; idiom; literary.

Introdução

Num dossier que procura evocar 1600 anos da morte de São Jerónimo, um dos maiores precursores da história da tradução da Bíblia, pareceu-me oportuno apresentar um breve estudo capaz de atualizar a persistente complexa tarefa de tradução do texto bíblico. Tomamos como instrumentos de trabalho alguns dos contributos mais recentes, numa tentativa de assinalar as diversas opções e as suas ineludíveis consequências. Inevitavelmente, todos os que, à semelhança de São Jerónimo, ousam traduzir o texto bíblico experimentam como W. Hallo (1982, p. 99) que de somente quem está profundamente convencido da impossibilidade de uma tradução pode empreendê-la com confiança. Esta perceção atual constituiu um eco a uma das primeiras reflexões sobre o ofício da tradução, patente na carta que São Jerónimo dirige ao seu amigo Pacómio por volta do 395/396, referindo-lhe explicitamente que “se alguém não reconhece que a graciosidade de uma língua se altera na tradução que traduza palavra a palavra Homero para latim”. Na verdade, os anos de dedicação extrema à tradução das Escrituras ofereceram a São Jerónimo uma consciência aguda das dificuldades e problemas que um tradutor terá sempre de enfrentar para não cair em fantasias adulterantes do original, nem em literalismos servis, igualmente desvirtuadores. Desde então, foi sempre difícil ocultar o grande princípio de que todo o texto se revela mutante e um significante em perda no momento da tradução, exigindo que se saiba intervir ao dizer, mas também aceitar frequentemente a tremenda impossibilidade de dizer. 

A dificuldade de abarcar a diversidade de linguagens

Um dos campos de estudo do debate recente situa-se numa tentativa de reconstruir o processo de tradução recuperando a confluência natural entre a universalidade da faculdade humana para a linguagem e a diversidade de linguagens, como uma realidade difícil de explicar e de abarcar. As releituras dos povos antigos, como a dos Sumérios, que viram na existência de diferentes linguagens uma espécie de jogo desagradável de um deus trapaceiro (KRAMER, 1968, p. 10-11) é compreensivelmente insuficiente. Considera-se a dos Israelitas mais sugestiva. O seu magnifico mashal da ‘Torre de Babel’ (Gn 11) parece constituir uma tentativa iluminadora de expressar como povos, com uma origem comum, começaram a falar línguas diferentes. No projeto de construção e na altura da torre os seres humanos tentaram uma aproximação e comunicação entre o céu e a terra, capaz de assegurar um futuro de um grupo, isolado do resto do mundo. Porém, tudo o que conseguiram foi uma ‘babel’ (confusão), que ficou como um testemunho da fragilidade de um projeto que ameaçava o mandato divino expresso em Gn 1,28 e 9,1. Por isso, Deus intervêm (desce – yired Gn 11,7), revelando não só o seu inalterável compromisso com a criação, mas também demonstrando que o céu pode ser considerado o próprio lugar da criação onde a presença de Deus se comprovará sempre. O facto da resposta de Deus a este projeto humano não se focalizar na construção da torre, suaviza a impressão negativa de que a confusão das línguas nos pode deixar. Entende-se bem que a diversidade de línguas não é para o caos, mas tem um objetivo singular: impedir que os seres humanos se envolvam em projetos isolantes e destruidores da criação. Esta diversidade é sobretudo um modo de Deus estabelecer limites aos seres humanos, chamados a participar na criação pela sua fecundidade e universalidade (Gn 1,28; 9,1). Na confusão das línguas, Deus promove esta diversidade em detrimento de uma unidade que apenas procure preservar-se num isolamento estéril (FRETHEIM, 1994, p. 410-413). 

Neste contexto, os esforços desenvolvidos, ao longo de séculos, de tradução das Escrituras nunca deveriam perder-se do horizonte, onde a confusão, i. é a diferença, não pretende o engano ou o indizível, mas uma fecundidade universal, onde o mesmo se poderá dizer de formas diversas ou aproximadas. No séc. IV, S. Jerónimo conhecedor de grego, mas também de hebraico compromete-se com este horizonte. Ele sabia que para compreender a linguagem de um texto é necessário conhecer o seu idioma ou ter disponível uma tradução. A grande maioria dos que querem hoje ler e compreender a linguagem do texto bíblico normalmente opta pela última alternativa, a da tradução. Por isso, a Bíblia Hebraica, ou partes dela, foi traduzida em quase dois mil idiomas e, em algumas línguas, a tradução prolifera em dezenas de versões. Esta realidade permitiu um acesso quase universal ao texto, porém estabelecendo, em muitos casos, uma distância tremenda com a língua original, as suas características e tonalidades e a verdade do seu dizer. Se existe algo de positivo neste movimento recente ele parece situar-se apenas na diversidade dos vários contributos de conhecimento para a compreensão do texto bíblico e do seu significado que ele permitiu. Estes contributos entendem-se como partes diferentes de uma verdade indizível; diferentes métodos de tradução que alguns acusam ser responsáveis por mudar a face das próprias Escrituras. Na verdade, o conhecimento da língua original é imprescindível, porém, com ele, é vital que exista sempre um diálogo com uma diferença irredutível.

Oposição de estilos ou confluência construtiva

A exegese recente é unânime em defender que o mérito de uma tradução repousa não apenas na habilidade do tradutor, mas fundamentalmente na filosofia que a sustenta. Fala-se de diferentes estilos de tradução, que mais não são do que a manifestação de teorias divergentes de tradução. Esta categorização organizada, num primeiro momento, simplifica antes de mais uma variedade de posições sobrepostas, ainda que distintas: o estilo literal (tipicamente entendido como uma reprodução mecânica de palavra por palavra) e o estilo idiomático (ou o sentido pelo sentido). O facto de falarmos de sobreposição mais do que distinção advém da própria experiência de tradução onde os dois estilos, por vezes, se sobrepõem. Neste sentido, é praticamente impossível uma tradução exclusivamente literal ou idiomática. Alguns autores defendem que o primeiro tradutor da Bíblia a articular a complexidade desta oposição ou confluência de estilos e, de certo modo, o primeiro a desenvolver um estilo mais idiomático, foi S. Jerónimo quando traduziu a Bíblia para o latim por volta do século IV (GREENSTEIN, 2020, p. 86). Atualmente, muitos tradutores continuam a defender o estilo literal, como uma deferência inquestionável pelas palavras do texto, que devem ser cuidadosamente transferidas para a tradução. Para estes tradutores, a literatura como a arte de usar palavras, pode, com alguma justiça, transparecer no tipo de tradução literal, que deve considerar-se como o mais literário. Não é por acaso que muitos exegetas continuam a preferir uma análise literária das Escrituras reescritas a partir de estilos de tradução mais literais (FISHBANE, 1979; ALTER, 1981; LOUIS, 1982, p. 124-125). Na verdade, uma obra de arte literária é essencialmente um arranjo de palavras. Se alguém perde as palavras, perde a arte, a música, os tons ou os silêncios. Mas, além de uma extrema fixação nas palavras, existem outros aspetos que apoiam uma tradução mais literal. Um deles é de ordem estilística. O grupo de tradutores que envereda por este campo considera que o significado de uma passagem bíblica pode depender da repetição de uma palavra ou de uma alusão. No seu estudo recente. E.L. Greenstein (2020, p. 87), cita como exemplo o uso da palavra bayit (casa) em 2Sm 7,1-13. A mesma palavra hebraica bayit consegue, neste texto, entrelaçar três temas: o da casa real de Davi em Jerusalém, concentrado na figura física da casa (2Sm 1,1.2); o da Tenda onde habitava o Senhor, justificando o desejo que David tem de lhe construir uma casa, que agora assume a configuração de um templo (2Sm 1,5-7.13); e finalmente a promessa que o Senhor faz a David de uma casa duradoura, aludindo à duração da sua dinastia (2Sm 1,11). Um mesmo termo hebraico bayit (casa) assume num mesmo texto diversos significados de: palácio do rei, futuro templo, e descendência. Um segundo grupo que apoia igualmente um modo literal de tradução, além do modo estilístico sublinha a dimensão antropológica das palavras. Para os tradutores que se situam nesta direção “falhar em transmitir essa realidade é falhar o contar da história.” (OPPENHEIM, 1967, p. 59). No entanto, é um facto que todos revelam estar conscientes de que defender e recorrer as traduções literais pode indicar uma recusa subtil em aceitar a existência de uma lacuna entre as duas línguas – a do texto e a do tradutor – e, com ela a da diferença entre as duas civilizações.

Num certo sentido, pode admitir-se que uma tradução menos literal, como a idiomática, possa colmatar o terreno comum entre as culturas, no entanto é o modo mais literal o único a poder destacar uma topografia distintiva. Um exemplo desta diferença é Am 1,3. Um tradutor mais idiomático traduz (ROBERTSON, 1959, p. 88-101): “Isto é o que o Senhor diz: Por causa do ultraje após ultraje cometido por Damasco, não vou ceder! Porque espancaram Gileade, e a trilharam com trenós e com pregos de ferro”; enquanto uma tradução que tende à literalidade, reproduz o próprio idioma de Amós: “Assim diz o Senhor: Por três transgressões de Damasco e por quatro, não voltarei atrás; porque trilharam com ferramentas de ferro Gilead”. 

A questão da autenticidade de uma tradução antropológica ressurgiu mais visivelmente aquando dos reflexos de um debate de género na tradução bíblica. O desejo de uma versão padrão desenvolveu uma controvérsia cujo objetivo seria o de eliminar desnecessariamente a linguagem orientada para o género masculino, esquecendo que apesar do termo hebraico ‘ish traduzir-se normalmente por ‘homem’, ser um termo que refere essencialmente ‘ser humano’. Poderíamos citar aqui os inúmeros casos em que esta leitura é real e determinante. Um exemplo é a tradução proposta por inúmeras traduções para o início do Sl 1,1. Alguns sugerem traduzir simplesmente ‘feliz o homem...? (BJ; cf. KJV;), enquanto outros optam por traduzir ‘happy are those’ (NRSV) ou ainda ‘bienaventurado el varón’ (Reina Varela). Embora discutível, esta diversidade, de certo modo, legitima não intende uma qualquer tentativa de oposição a modernizar o texto hebraico na sua passagem para a tradução, mas sim a afirmação de que a linguagem orientada para o homem, patente Bíblia Hebraica, reflete essencialmente uma perspetiva cultural daqueles que a transmitiram pela primeira vez (ORLINSKY, 1078, p. 47,48). O conceito de ‘pessoa’, desprovido de conotações de género, não parece muito constitutivo da mentalidade de Israel antigo, tal como o conceito de ‘universo’ integrado em Gn 1,1 não o era. 

Os desafios persistentes e insuperáveis

Uma pergunta frequente de um tradutor que pretende seguir uma tradução sobretudo idiomática é a da legitimidade de uma tradução que constrange o texto original uma modernização (ROBERTSON, 1952, p. 102-118). No entanto, embora o modo literal possa ser considerado um tipo de tradução mais literário, o idiomático tem vindo a ser defendido como um estilo seriamente filológico (Nida, E.A. – TABER, CH.R., p. 1). De facto, a natureza da filologia é tentar recuperar o sentido básico de um texto e fixar seu significado o mais exatamente possível, numa tentativa de reconstruir através deste significado a história antiga e um meio cultural particular. É verdade, que subjacente a uma abordagem filológica está uma compreensão do texto principalmente como um meio de informação que se procura transmitir através de uma linguagem equivalente precisa e contemporânea. Praticamente, quase todas as tentativas de tradução das últimas décadas favorecem sempre, tanto pela precisão quanto pela eficiência, este modo de tradução idiomática. 

Porém, a questão não é pacifica entre os diferentes tradutores. Na sua obra sobre ‘The task of the translator’, G. Steiner insiste que o mais crucial é conseguir transmitir as características retóricas do texto e as múltiplas conotações de suas palavras do que transmitir a mensagem denotada ou ideacional do texto (STEINER, 1980, p. 723). Esta posição aparece bem evidenciada em R. Barthes, na sua afirmação de que, enquanto uma tradução filológica se esforça por definir o significado, a tradução literária procura, através da análise literária, proliferar o significado (BARTHES, 1974, p. 7). Uma proposta curiosa de tradução filológica, relativamente recente, é a tradução do livro de Rute realizada por J.M. Sasson, cujo comentário emerge repleto de observações literárias, num estilo intensamente antitético do que é proposto pelo estilo de tradução literária por excelência (SASSON, 1979). Cite a título de exemplo o modo como este autor traduz a mesma palavra hebraica watiššā’ēr (raiz š’r deixar): em Rt 1,3 ‘foi deixada só’ enquanto em 1,5 ‘ela sobreviveu’. É verdade que J.M. Sasson tenta, através de minuciosos detalhes filológicos, recriar, o mais possível, as circunstâncias sociológicas específicas da narrativa de Ruth, coordenando o estilo filológico de sua tradução com o método de seu comentário. 

Neste sentido, muitos outros autores questionam a apropriação do termo ‘literário’ para os modos de tradução literais, defendendo que os métodos que se afirmam como os mais literais são os produzem os textos menos literários (LEFEVERE, 1981,39-50). Uma tradução deve saber utilizar bem o seu próprio idioma e ser capaz de produzir um efeito ou uma reação semelhante aquela que o tradutor julga ser a mais próxima do original. Será sempre impossível garantir que uma tradução literal ofereça o um termo equivalente e exato no idioma da tradução, pelo simples facto de que ele pode não existir. A verdade é que frequentemente uma tradução dita literal produz, frequentemente, um resultado diferente do original. Por outro lado, um tradutor que ota por um estilo mais idiomático-literário também está sujeito a alguns enganos. De certo modo, a tradução é sempre ‘um modo astuto de transformação de uma obra de arte’, na medida em que se propõe transformar um texto num outro que não seja ele mesmo, dando uma aparência de não ter mudado o original de maneira alguma. Porém, enquanto no caso das obras de arte esta transformação é óbvia, sobretudo aos olhos de especialistas que detetam de imediato a réplica, na tradução de um texto de um idioma para outro a metamorfose é disfarçada. E como a maioria dos leitores das traduções de um texto bíblico não conhece o idioma original, torna-se impossível medir a diferença entre o original e o seu substituto. Isto não acontece, por exemplo entre uma performance de piano e outra de orquestra completa, cuja diferença é clara até para os surdos, ou entre uma pintura e uma fotografia, que é evidente até para os menos instruídos na arte, que pelo simples toque podem sentir a diferença. Nestes casos aquele que observa a transformação realizada tem uma perceção contínua de experimentar uma transferência ou reprodução. No caso da tradução de um texto esta perceção não é tão fácil, mas isso não significa que a diferença não seja real. 

No entanto, teremos sempre de admitir que a tradução idiomática deseja servir o público com um texto que ele possa experimentar verdadeiramente como um texto, permitindo que a oposição entre um estilo de tradução literal e um de tradução idiomática se possa comparar à de uma tradução que é sobretudo orientada para o autor original ou orientada para o leitor. Um modo pertinente de expressar esta dinâmica refere que ou o tradutor deixa o autor em paz, tanto quanto possível, e move o leitor na sua direção; ou deixa o leitor em paz, na medida do possível, e move o autor na sua direção (SCHLEIERMACHER, 1982, p.9), consciente de que de algum modo o tradutor deve compensar as perdas sofridas na conversão da fonte para a tradução (STEINER, 1975, p. 395-413). Embora a tarefa do tradutor bíblico seja, em absoluto, a de comunicar a verdade da mensagem bíblica no idioma da sua língua, ele sabe a importância de ajudar o seu a interpretar a tradução e a familiarizar-se com o estilo e a linguagem do original bíblico. Não temos dúvidas que isto coloca sobre os ombros de ambos, tradutor e leitor, uma tarefa específica: o tradutor deve desprender-se da sua própria liberdade literária para se firmar no idioma de um outro; enquanto o leitor só poderá negociar uma tradução literal por meio de esforços, de algum modo superiores aos exigidos por textos de complexidade comparável no seu próprio idioma. 

Os tradutores que optam por uma tradução do texto bíblico mais de estilo idiomático revelam ter duas preocupações fundamentais: que a sua tradução permita uma boa leitura e uma boa tonalidade (TABER, 1978, 131). Porém, isto também tem custos literários.  Depois de um texto como a Bíblia ter sido repetidamente traduzido para um outro idioma, como no caso das traduções para o grego antigo das Escrituras Hebraicas, desenvolveu-se um idioma especializado que assumiu as características linguísticas e estilísticas do hebraico; por exemplo a transferência de uma certa ordem das palavras na frase. O efeito literário valioso deste literalismo é o de oferecer ao leitor os conceitos e imagens na sua sequência original. Ao longo da história realizaram-se algumas tentativas de tradução que respeitassem a construção hebraica, na sua dicção, estrutura da frase e cadência rítmica, numa tentativa desesperada de manter ‘as notas da música’ no seu lugar original e de certo modo manter a música na integridade. Porém, estas tentativas de oferecer ao leitor a voz hebraica do texto apenas puderam contemplaram razoavelmente um público de origem judaica. Ao longo da história, a igreja cristã sempre ouviu suas Escrituras na sua tradução, enquanto a sinagoga judaica cantava suas em hebraico (STERN, 1975,45). Talvez, por isso, os tradutores idiomáticos têm evitado, a todo o custo, esta transferência linguística hebraica e dado prioridade à estrutura linguística do seu idioma. A grande maioria das traduções que hoje conhecemos faz esta opção, relegando o valor desta literalidade para alguns métodos exegéticos, do qual a Análise Retórica Bíblica, é um testemunho vibrante, que tem como uma das suas primeiras e indispensáveis etapas a reescritura do texto na sua literalidade e ordem original (MEYNET, 2007, p. 283-341). Algo que parece nunca ter acontecido com a exegese judaica das Escrituras, que tradicionalmente encontrou sempre um grande significado, não apenas no sentido do texto, mas também na configuração de frases, palavras e até letras hebraicas, manifestando uma antipatia compreensível para qualquer tipo de tradução das Escrituras. Podemos considerar, de certo modo, a tradução de S. Jerónimo (Vulgata) como uma das primeiras tentativas de tradução idiomática. Isto não significa que ele e os que lhe seguiram não tenham procurado a literalidade possível, mas que a sua preocupação era mais o sentido que a letra e a ordem do texto hebraico.

Em síntese, podemos dizer que modos alternativos – literais e idiomáticos – de tradução fazem coisas diferentes e servem a funções diferentes. As traduções mais literais podem abranger um espectro mais amplo de características literárias, enquanto as traduções idiomáticas sugerem as marcas históricas do texto com maior clareza. Frequentemente, alguns autores dizem que embora o estilo idiomático possa nos apresentar uma cultura em termos familiares, uma tradução literal pode revelar os aspetos mais idiossincráticos dessa cultura. Em termos concretos, podemos comparar o modo idiomático à voz clara de quem fala recitando a mensagem de outra pessoa em seu próprio idioma, e o modo de tradução literal à voz do autor, mas abafada. Pode ser difícil discernir o sentido do autor, mas o leitor que deseja ouvi-lo fará os esforços necessários.

Perspetivas e opções atuais  

Atualmente, os que aceitam envolver-se num trabalho de tradução do texto bíblico, estão conscientes de que será sempre difícil duplicar todas as características linguísticas e estilísticas do texto. Por isso, a tendência é a de selecionar para tratamento especial aquelas que lhe parecem mais expressivas e significativas (SCHLEIERMACHER, 1982, p. 13), conscientes de que o texto se comunica não apenas pela semântica, mas também pelo som. Uma outra opção é a de procurar traduzir a mesma palavra da mesma maneira, estabelecendo uma relação entre diversas partes de textos ou mesmo de livros ou campos temáticos (M. Fox, 1983). Afirma-se, a conceção de unidade, tornando-a uma regra hermenêutica básica, que será a pedra angular do estruturalismo contemporâneo e reconhece-se que o texto é um eco de uma variedade de vozes e de fontes. E, embora, na sua forma final editada, o texto compreenda uma ampla rede de associações, uma boa tradução deve manter a rede intacta, destacando as relações lexicais. Procura-se manter as palavras nas suas associações não apenas horizontalmente – as suas relações através de um texto - mas também verticalmente - em suas relações históricas e traduzir as palavras de acordo com seu significado etimológico ou raiz. Em um exemplo muito citado, é o nome de Moisés (mōše), que literalmente indica aquele que extrai (água), embora a filha do faraó lhe dê este nome, justificando que o tirou da água (Ex 2,10). Enquanto ela viu apenas uma criança passiva e indefesa; o texto tenta oferecer uma leitura heroica. Talvez, por isso, a exegese recente suspeite que traduzir etimologicamente pode, por vezes, ser interpretado como um retrocesso ao midrash rabínico, que muitas vezes estabelecia ligações usando conexões etimológicas, reais e fantasiosas (HOBERMAN, 1985, 45).

Ao nível da raiz das línguas, as diversas línguas do mundo compartilham um domínio e uma estrutura comuns. O tradutor deve sondar este nível universal de linguagem. A tradução pode ocorrer somente se ele conseguir atingir este nível. Ele não pode esquecer que o texto Bíblico balbucia uma linguagem de Deus, que compartilha com a humanidade. Não obstante os caminhos de Deus e os dos homens sejam diferentes, a palavra de Deus e a palavra do homem são as mesmas. O que o homem ouve em seu coração como seu próprio discurso humano é a própria palavra que sai da boca de Deus. Pessoas diferentes nomeiam as coisas de maneira diferente porque esses nomes emergem de diferentes encontros. Somente Deus pode encontrar todo o mundo simultaneamente e possuir uma linguagem unificada, uma única lista de nomes. A fala só pode surgir significativamente no diálogo e o pensamento não pode prosseguir sem a fala. Contudo, nós não falamos ou nomeamos apenas. Quem fala está permanentemente a traduzir seus pensamentos para a compreensão que espera do outro. Neste sentido, todos somos tradutores do pensamento e da linguagem uns dos outros; cada um de nós fala um idioma diferente; no entanto, esforçamo-nos por inclinar a nossa linguagem para o nosso interlocutor. Quanto mais as pessoas se comunicarem de verdade, mais rica será a linguagem. Quanto mais as pessoas com algo a dizer dizem isso de maneira impressionante, mais a linguagem cumprirá seu potencial de expressar um que pode ser expresso. Neste sentido, nenhum idioma pode aumentar a sua expressividade sem crescer, sem incorporar os recursos de outros idiomas. A linguagem contém todas as línguas, e é o objetivo, daqueles que desejam alcançar a maior expressividade e conhecimento, fazer de cada tradução uma expansão do idioma de tradução incorporando recursos do idioma de origem. Neste sentido, dificilmente poderá haver uma tradução real, se o que se quer dizer é a transferência do que um texto diz para outro idioma. Os termos de um idioma se interconectam num sistema único, e esse sistema dificilmente poderá ser encontrado em outro idioma. Traduzem-se os significados das raízes, porque o brilho de cada idioma da palavra mais abstrata consegue cobrir pelo menos uma parte de um conceito. Porque o texto bíblico fala hebraico e grego, dificilmente a palavra das Escrituras, não poderá ser transmitido fielmente em nenhuma outra língua. No caso do hebraico bíblico existe um sistema de interconexões únicas que apenas permitem ao tradutor bíblico duas opções: hebraizar a linguagem da tradução ou levar os leitores da tradução ao original. Neste sentido, a tradução será sempre uma miragem, onde a transferência de idioma para outro idioma deve servir apenas como um auxílio para ouvir o texto bíblico. Quando uma tradução soa como uma tradução, ela constantemente lembra que a tradução é apenas uma máscara do texto sagrado que está por trás dela. Alguns autores comparam a leitura de uma boa tradução à imagem de Moisés diante da sarça ardente, obrigado a retirar as suas sandálias e a entrever que está alguém para lá da sarça. Muitos gostariam de poder manter, pelo menos o conforto das sandálias poupando-se ao desconforto da areia e da rocha quentes. Mas a leitura exige um despojamento das sandálias – aceitar o idioma contemporâneo - para poder experimentar o sagrado - (neste caso) o hebraico. Por isso, se diz que somente quem está profundamente convencido da impossibilidade de uma tradução pode empreendê-la com confiança (HALLO, 1982, 99).

Conclusão

De certa fora, como defende Paul Ricoeur, a tradução obriga-nos a caminhar por duas vias em simultâneo: por um lado, pede ao tradutor a capacidade de produzir um equivalente (i. é a capacidade de criar numa língua uma realidade comparável ao que nos tinha sido dado noutra) e espera que ele mantenha o choque do incomparável (i. é consiga vencer, de certa forma, a prova do estrangeiro ou do amigo: a da preservação da distância na proximidade; porque um texto só́ é bem traduzido se vir respeitado o seu carácter intraduzível. Isso mesmo vemos cunhado na sabedoria do antigo ditado rabínico que afiança: «quem traduz literalmente é um falsário; quem acrescenta alguma coisa é um blasfemo». Traduzir é, ao mesmo tempo, dizer e aceitar a impossibilidade de dizer, nunca esquecendo que um texto é sempre um textum: têxtil, textura, tecelagem, trama, tecido; uma espécie de galáxia de significantes impossível de se reduzir a uma estrutura de significados. Por consequência, uma tradução nunca poderá viver da aspiração em encontrar um sentido único, à maneira de uma fechadura ou de um sigilo que se abre, mas de «apreciar o plural de que o texto é feito» (C. Chabrol). Verdadeiramente, traduzir é também perder o texto e o sentido idealizados, para aceder ao texto tal como ele se dá a ler, na sua polissemia e no seu dinamismo de revelação que lhe é inerente. 

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