SOBRINO, Jon. A Misericórdia. Petrópolis: Editora Vozes, 2020. ISBN 978-85-326-6338-2.

 Emerson Sbardelotti
Doutorando e Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


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 O padre Jon Sobrino, é da Companhia de Jesus, nasceu em 1938 no País Basco, residente em El Salvador desde 1957, tendo se afastado apenas em duas ocasiões: uma estudando Filosofia e Engenharia na França, outra estudando Teologia na Alemanha, foi amigo e assessor teológico de São Oscar Romero, amigo de Inácio Ellacuría, ambos, mártires em El Salvador. Junto com Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Pedro Casaldáliga, é um dos mais reconhecidos autores da Teologia da Libertação e da Espiritualidade da Libertação.

Segundo Luís Henrique Alves Pinto, a ilustração foi criada com um fundo de cor marrom-terra molhada, retratando o título original em espanhol: El princípio-misericordia. Bajar de la cruz a los pueblos crucificados. Várias mulheres estrelam a ilustração: mulher que dá um copo d’água para o jovem com sede; mulher que acolhe três crianças com amor; mulher que com carinho vai se abaixando para colocar no chão uma planta; mulher assassinada e de seu corpo nascem novas margaridas e trigo. A arte evoca em cada cena sobreposta o ideal da misericórdia, tão cara para o Papa Francisco, para as Comunidades Eclesiais de Base, para as Pastorais Sociais, para os Movimentos Sociais, que desejam um outro mundo novo possível.

A obra integral foi publicada no Brasil pela Editora Vozes em 1992 com o título: O Princípio Misericórdia. Nesta reedição foram reproduzidos apenas a Introdução e o capítulo 2: A Igreja Samaritana e o princípio misericórdia. O objetivo da obra segundo Jon Sobrino é despertar do sono da inumanidade. Essa é a consequência de uma Igreja que assume o princípio misericórdia. O público alvo são os pobres, aqueles que têm contra si todos os poderes do mundo. Os pobres são os crucificados que devem ser descidos da cruz. A teologia da misericórdia é um movimento de reação no qual o sofrimento alheio é interiorizado, levando-o a uma práxis de cuidado que não tem outro motivo senão o fato de haver um ferido no caminho. A misericórdia é o caminho que leva ao encontro dos pobres!

Na Introdução – Despertar do sono da cruel inumanidade, Jon Sobrino confessa que ao regressar definitivamente a El Salvador, o mundo dos pobres, o mundo real, não existia para ele. Relata que em 1957, deparou com uma terrível pobreza, mas, mesmo vendo-a com os olhos, não a via, e esta pobreza, portanto, nada lhe dizia para a própria vida de jovem jesuíta e de ser humano. Não ocorria pensar ou que tivesse que aprender algo com os pobres. A teologia de Karl Rahner e o Vaticano II jogaram luz e um novo ânimo, pois a Igreja em si não é o mais importante, nem sequer o é para Deus e que Cristo não é outro senão Jesus, e que este teve uma utopia na qual não pensou antes: o ideal do Reino de Deus.

Ao voltar para El Salvador em 1974 o autor admite ter despertado do sonho da humanidade. Descobriu jesuítas que falavam de pobres, de injustiça e de libertação. Encontrou jesuítas, sacerdotes e religiosas, leigos, camponeses e estudantes, inclusive alguns bispos, agindo em favor dos pobres e se metendo em sérios conflitos por causa disso. Ficou claro que a verdade, o amor, a fé, o evangelho de Jesus, Deus, o melhor que os crentes e seres humanos temos, passava por aí, pelos pobres e pela justiça. Relata que nessa situação encontrou outros que já haviam despertado do sono da inumanidade: Inácio Ellacuría e, depois, São Oscar Romero, dois grandes salvadorenhos, cristãos e mártires, dois grandes irmãos e amigos. No encontro com os pobres, o encontro real, acabou de despertar e assim mudou radicalmente nas perguntas e nas respostas. Foi preciso mudar a forma de olhar o que estava diante dos olhos, durante anos e ver. Mudou o coração de pedra para um coração de carne, movido pelo cuidado, pela compaixão e pela misericórdia.

Em El Salvador, se não se reprime sua verdade, o mundo é uma imensa cruz e uma injusta cruz para milhões de inocentes que morreram nas mãos de verdugos, “povos inteiros crucificados”, como os chamou Inácio Ellacuría. E esse é o fato mais importante para Jon Sobrino no mundo, pois abarca dois terços da humanidade; é qualitativamente o mais cruel e clamoroso.

Para Jon Sobrino os pobres são os que têm contra si todos os poderes deste mundo. Existe um mundo crucificado e um mundo que é pecado; no entanto, não se quer reconhece-lo nem olhá-lo de frente; menos ainda se quer perguntar pela responsabilidade de se ter um mundo assim. Querer ocultar a realidade do mundo é a primeira forma de “oprimir a verdade com a injustiça”.

Com clareza o autor afirma que o mundo da pobreza é, de fato, o grande desconhecido.

O mundo dos pobres e das vítimas possibilita e exige a releitura da Escritura em suas passagens fundamentais. Em El Salvador descobriu-se como Deus olha esta criação sua posta na cruz.

Uma convicção: para conhecer a essência humana, é necessário fazê-lo desde e para os pobres que desde e para os poderosos. Porém, nos dias atuais, como é difícil colocar em prática tal convicção. Mas há pessoas e comunidades que continuam insistindo.

A partir dos pobres redescobrimos a necessidade de uma nova civilização: civilização da pobreza ou, pele menos, da austeridade e não da impossível abundância para todos; civilização do trabalho e não do capital, como dizia Inácio Ellacuría.

A bondade de Deus se concretiza em Deus estar a favor da vida dos pobres, amar com ternura os privados de vida, identificar-se com as vítimas deste mundo. Cremos, pois, num Deus bom e num Deus parcial. A misericórdia deve ser historizada de acordo com quem é o ferido no caminho.

Uma misericórdia que se torna justiça é automaticamente perseguida pelos poderosos, e por isso a misericórdia tem de ser mantida com fortaleza.

A misericórdia deve ser anteposta a qualquer coisa. É preciso ter a coragem de tirar os pobres do descarte imposto pela sociedade. O exercício da misericórdia dá a medida da liberdade, tão proclamada como ideal do ser humano. Ideal que devemos almejar todos os dias de nossas vidas.

Não há nada mais essencial para viver como ser humano do que o exercício da misericórdia diante de um povo crucificado, e que não há nada mais humano e humanizante do que a fé no Deus de Jesus.

No Capítulo A Igreja samaritana e o princípio misericórdia, Jon Sobrino faz uma pergunta fundante: Como é que uma Igreja se parece com Jesus? A resposta é que, parecer-se com Jesus é reproduzir a estrutura de sua vida. Segundo os evangelhos, isto significa encanar-se e chegar a ser carne real na história real. Significa levar a cabo um missão, anunciar a boa notícia do Reino de Deus, iniciando-o com sinais de todo tipo, denunciando a espantosa realidade do antirreino. Significa carregar o pecado do mundo, sem ficar somente olhando-o de fora – pecado, certamente, que continua mostrando sua maior força no fato de causar morte a milhões de seres humanos. Significa ressuscitar, tendo e dando aos outros vida, esperança e alegria.

Princípio misericórdia é um amor específico que está na origem de um processo, mas que além disso permanece presente e ativo ao longo dele, dá-lhe uma determinada direção e configura os diversos elementos dentro do processo. É o princípio fundamental da atuação de Deus e de Jesus, e deve ser também da Igreja.

Misericórdia, segundo Jon Sobrino, é o primeiro e o último; não é simplesmente o exercício categorial das chamadas “obras de misericórdia”, embora possa e deva se expressar também nestas. É algo muito mais radical: é uma atitude fundamental perante o sofrimento alheio, em virtude da qual se reage para erradicá-lo, pela única razão de tal sofrimento existir e com a convicção de que, nessa reação diante do não-dever-ser do sofrimento alheio, se decide, sem escapatória possível, o próprio ser.

Uma Igreja regida pelo “princípio misericórdia” terá sua fé numa fé no Deus dos feridos no caminho, no Deus das vítimas. Sua liturgia celebrará a vida dos sem-vida, a ressurreição de um crucificado. Sua teologia será intellectus misericordiae (justitiae, liberationis), e a Teologia da Libertação não é outra coisa. Sua doutrina e sua prática social se empenhará, teórica e praticamente, em oferecer e transitar caminhos eficazes de justiça. Seu ecumenismo surgirá e prosperará – e a história mostra que assim acontece – em torno dos feridos no caminho, dos povos crucificados, os quais, como o Crucificado, atraem tudo para si.

A misericórdia é uma bem-aventurança.

A misericórdia é “nota” da verdadeira Igreja de Jesus.


Concluo que o livro A Misericórdia, de Jon Sobrino, revela para nós, nestes tempos sombrios, intolerantes, intransigentes, que é vital a misericórdia diante dos povos crucificados, que são todos os povos privados de sua dignidade humana, que tiveram direitos sociais retirados, que os direitos humanos foram ameaçados, que é grande o descaso com a proteção da natureza. A misericórdia é doação humana e cristã para o povo crucificado. Esse povo é o brasileiro, é o latino-americano, é o africano, é o asiático; todo aquele que vive o peso de uma política econômica que não valoriza a vida, mas exalta a morte. A misericórdia é uma atitude que o ser humano deve cultivar todos os dias de sua vida, regando-a com a teimosa esperança. Lembrar que para Jesus, a misericórdia está na origem do divino e do humano. Que o lugar da misericórdia na Igreja é o ferido no caminho, o outro, o diferente. Ser misericordioso é levar às últimas consequências três virtudes: o respeito, o diálogo e o encontro.