Aila Luzia Pinheiro de Andrade
Doutora em teologia bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Membro do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Fernanda Lemos
Professora Associada do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba. Mestre e doutora em Ciências Sociais da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo - UMESP. Coordena o Núcleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e de Gênero do Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da Universidade Federal da Paraíba
Resumo
O objetivo geral do artigo é mostrar que o texto de Mc 7,24-30 é fruto de uma memória coletiva de retóricas de conflito cujo reflexo está no diálogo entre Jesus e uma mulher estrangeira, duplamente vítima de preconceitos, por sua condição de mulher e por não pertencer ao povo da aliança. Tentar-se-á mostrar como a hermenêutica, ao longo da história, ignorou as retóricas em conflito nesse relato. Para isso, serão percorridos os seguintes passos: primeiro será feita uma aproximação geral ao texto bíblico. Segundo, por meio de uma hermenêutica de gênero, são mostradas as relações de poder que eclodem dessa narrativa, dentro de um ambiente conflituoso que constitui o primeiro século do cristianismo. Terceiro, mostra-se que mesmo em situação conflitiva, os indivíduos criativamente construíram mecanismos de refazimento das práticas sociorreligiosas, e como a categoria gênero contribui para a compreensão das relações de poder vivenciadas pelas mulheres das primeiras comunidades cristãs.
Palavras-chaves: Teologia. Evangelho de Marcos. Siro-fenícia. Memória social. Hermenêutica de Gênero.
Abstract
The general objective of the article is to show that the text of Mc 7,24-30 is the result of a collective memory of rhetoric in conflict that is reflected in the dialogue between Jesus and a foreign woman. The Syrophoenician woman is the target of prejudice for her condition as a woman and because she isn’t a member of the covenant people. The article intends to show that hermeneutics throughout history have been ignoring the rhetoric in conflict in this narrative. To accomplish this will be covered the following steps. First a general approach to the biblical text will be made. Second, through a feminist hermeneutic, are shown the power relations in the first century of Christianity, that the text of Mk 7,24-30 underlie. Third, it is shown that even in a conflictive situation, individuals creatively built mechanisms for re-creating socio-religious practices, and how the gender category contributes to the understanding of the power relationships experienced by women in the first Christian communities.
Keywords: Theology. Gospel according to Mark. Syro-Phoenician woman. Social memory. Gender Hermeneutics.
O reconhecimento que o Evangelho conforme Marcos é o primeiro de todos os evangelhos é fato incontestável entre os modernos exegetas. A consideração de seu texto a partir do ambiente vital das regiões da Galileia e Síria no século I leva à questão sobre quão influenciado pode ter sido seu autor por um contexto cultural pautado por estruturas patriarcais de organização da sociedade, que relegava as mulheres “à condição de marginalizadas e oprimidas dentro das tessituras daquele contexto” (REIMER; SOUZA, 2012, p. 208).
Também os ambientes marcados pelas culturas helênicas e romanas não proporcionavam às mulheres um ambiente de equidade nas relações sociais de sexo, contribuindo assim para a manutenção geral de formas patriarcais de organização da sociedade naquela época. Dever-se-ia, portanto, considerar que em um ambiente marcadamente influenciado pela lógica patriarcal o texto de Marcos assumiria os mesmos moldes de seu contexto sócio histórico. Talvez a resposta para esta problemática não seja tão simples, como destaca Monika Ottermann (2009, p. 9), porque “esse evangelho não foi anunciado por arautos de imperadores, mas pelo porta-voz anônimo de uma turma de gente perseguida e marginalizada que costumamos chamar de ‘Marcos’”. Segundo Ottermann (2009, p. 9), “Marcos” desde o início deixa claro o caráter altamente subversivo de sua narrativa. Também Reimer e Souza (2012, p. 210) sinalizam que se deve ter cautela ao afirmar que a narrativa de Marcos é marcadamente patriarcal. Portanto, a perícope analisada nesse artigo considera tanto os ecos da memória coletiva quanto as relações de poder que eclodem da narrativa, a partir de um ambiente conflituoso que constitui o primeiro século do cristianismo.
Primeiramente, é importante levar em conta que o relato sobre o encontro de Jesus com a mulher siro-fenícia se enquadra dentro do contexto geral do Evangelho conforme Marcos. Ao ler o relato sobre a mulher siro-fenícia, os leitores já viram que Jesus anunciava o Reino de Deus, que foi seguido por multidões pela região da Galileia, que fez curas e exorcismos, discutiu com os líderes judeus e exortou os discípulos que não entendiam sua mensagem. Os leitores já ficaram surpresos com os mistérios do Reino e experimentaram o suspense de saber quem é Jesus. Somente sob o peso total da narrativa anterior é que se começa a compreender o propósito desse relato. O relato sobre a mulher siro-fenícia se encaixa perfeitamente na narrativa integral do evangelho, particularmente em relação à apresentação do Reino de Deus. Pois o estabelecimento do domínio de Deus sobre o mundo inteiro é a força que impulsiona o enredo total da perícope (RHOADS, 1994, p. 345).
Outro aspecto que deve ser considerado são os paralelos entre o Evangelho conforme Marcos e o ciclo de Elias-Eliseu. O evangelista apresenta Jesus, primeiramente, como um profeta semelhante a Elias ou a Eliseu. Esses profetas foram importantes para a época em que atuaram, tanto por demonstrarem abertura para com os povos estrangeiros, quanto por suas atividades taumatúrgicas envolvendo mulheres. O texto sobre a mulher siro-fenícia é uma alusão à narrativa inicial do ciclo de Elias que ocorre em Sarepta (1Rs 17,8-24), uma cidade que “pertence a Sídon” (1Rs 17,8; Mc 7,24). Ali acontece uma alimentação milagrosa. Mais tarde, o filho da mulher adoece e morre, e a mulher confronta o profeta (1Rs 17,18). Ao encontrar-se com a mulher siro-fenícia, Jesus estava na região de Tiro, próxima do lugar onde o profeta esteve, em um passado longínquo. Por isso, alguns manuscritos do texto marcano adicionam no início da perícope “e Sídon”, que é bem mais ao norte de Tiro (GOMES, 2017, p. 128-130).
Há também alusão a um relato semelhante no ciclo de Eliseu, quando se dá a restauração da vida do filho da mulher sunamita (2Rs 4,18-37). A mulher manifesta a mesma iniciativa e preocupação persistente da mulher siro-fenícia (2Rs 4,28-31). A narrativa sobre Eliseu é seguida por um relato de uma alimentação milagrosa (2Rs 4,38-44) análogo ao que acontece no Evangelho conforme Marcos, com as multiplicações dos pães (Mc 6,30-44; 8,1-10). Esses ecos das narrativas de Elias e Eliseu, nos evangelhos, fundamentam a missão da igreja para as “nações” como parte do ministério de Jesus[1].
Atualmente há uma discussão entre os exegetas sobre o que significam alusões e ecos do Antigo Testamento em passagens do Novo Testamento. Neste artigo se assume a posição de Beale porque é a mais equilibrada e que mostra maior consenso entre os estudiosos:
Pode se definir “alusão” como uma expressão breve deliberadamente pretendida pelo autor para ser dependente de uma passagem do AT. Diferentemente de uma citação do AT, que é uma referência direta, a alusão é indireta (a redação do AT não é reproduzida diretamente como na citação) ... A chave para identificar uma alusão consiste em observar se há um paralelo incomparável ou único de redação, sintaxe, conceito ou conjunto de motivos na mesma ordem ou estrutura. Quando se encontram tanto uma redação (coerência vocabular) quanto um tema singulares, a alusão proposta ganha maior probabilidade (BEALE, 2013, p. 55-56).
A perícope começa depois de um debate relativamente longo com os fariseus sobre as leis alimentares judaicas, Jesus começa sua viagem ao norte, deixando a Galileia para se dirigir ao território fora de Israel. Portanto, os leitores de Marcos devem interpretar o pronunciamento de que todos os alimentos são puros (v. 19b) como um mandato de aceitação dos gentios, os quais eram tratados como impuros por grande parte dos judeus daquela época, devido ao longo tempo que estes sofreram sob dominação dos grandes impérios estrangeiros. Marcos faz questão de retratar Jesus abandonando definitivamente as leis alimentares, enfatizadas pela hermenêutica farisaica, em seu comentário redacional no v. 19: “E, portanto, ele considerou puros todos os alimentos”. A questão não se trata simplesmente de um problema alimentar, o foco é o princípio da declaração sobre o puro e impuro, pois sobre esse mesmo fundamento se construía a visão em relação aos gentios como sendo impuros. O limite que divide os alimentos é o mesmo que divide as pessoas em puros e impuros. Esta questão teve grande relevância para as primeiras comunidades, pois era determinante nas relações entre judeu-cristãos e gentio-cristãos (cf. At 10, Gl 2,11-14).
A região ao redor de Tiro, na fronteira, tinha sido a antiga terra dos fenícios com uma grande população mista, e estava sob a mesma jurisdição de Herodes. Flávio Josefo esclarece que seus habitantes eram inimigos dos judeus (Contra Apion 1.13; Guerras Judaicas 2.478), com isso Marcos está alertando os seus leitores que Jesus entrou em território não apenas gentílico, mas também potencialmente hostil (DONAHUE; HARRINGTON, 2002, p. 232). É um risco que Jesus corre porque sua fama tinha alcançado os gentios e por isso ele não consegue ficar no anonimato (Mc 7,24). Após o versículo introdutório (v. 24) para mostrar a mudança de cenário que favorece a compreensão teológica, a perícope propriamente enfoca o diálogo entre Jesus e a mulher siro-fenícia (v. 26-30). Esse diálogo está envolto por molduras nas quais o narrador explica a situação inicial e final das personagens: a mulher e a filhinha dela. O centro do diálogo é a questão se o pão dos filhos deve ser dado aos cachorrinhos (v. 27-28).
O diálogo começa afirmando que uma mulher siro-fenícia, tendo ouvido a respeito de Jesus veio prostrar-se aos seus pés. O Evangelho conforme Mateus acrescenta que a mulher gritava para Jesus pedindo compaixão, chamando-o de “filho de Davi”, um título messiânico. No texto mateano, também se acrescenta que o estado da filha dela é grave (Mt 15,22). No texto marcano, o narrador menciona que a “filhinha estava possessa de espírito impuro” [2]. O vocábulo “impuro” para designar o espírito não deve ser entendido no sentido de impureza moral, pois no pensamento bíblico “impuro” é o que contrasta com o Reino do Santo ou do “puro”, que é Deus. O termo “impuro” serve para chamar a atenção dos leitores do texto marcano a respeito da questão se alguns alimentos ou se os membros de outras nações podem ser considerados impuros.
A mulher era grega, siro-fenícia de nascimento, isto não significa que era etnicamente grega, pois se trata de um termo genérico para definir um não-judeu, sugere também alguém que assimilou a cultura e a língua gregas. Marcos a descreve como siro-fenícia, talvez para distingui-la dos libo-fenícios, termo comumente usado para designar os fenícios do norte da África, como os cartagineses (DONAHUE; HARRINGTON, 2002, p. 233). Em Mateus não se menciona a origem siro-fenícia da mulher, mas que é uma mulher cananeia da região de Tiro e Sidon (Mt 15,21-22). Neste ponto, antes do diálogo que virá a seguir, Mateus acrescenta que Jesus não respondia aos rogos da mulher e que os discípulos pediram ao Mestre que a despedisse, porque ela estava gritando atrás deles (Mt 15,22). Isso torna a cena ainda mais dramática e deixa o leitor envolto em suspense. Outro aspecto do texto mateano que causa estranheza no leitor é esse diálogo entre Jesus e os discípulos. Jesus diz que não foi “enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15,24). O que significa tudo isto? Parece-nos que se encaixa e explicita o texto marcano: preserva a noção de prioridade e de sequência em se tratando de história da salvação, pois as alianças e promessas foram dadas primeiramente a Israel, mas celebra a inclusão dos gentios, juntos a judeus, na era messiânica.
Em resposta ao pedido de ajuda da mulher, Jesus diz que “não é lícito tirar a comida dos filhos e lançá-la aos cachorrinhos” (Mc 7,27). Neste ponto, o evangelista apresenta Jesus encarnando a posição conservadora que contrasta com seu modo de agir até então. A questão que devemos analisar aqui, de modo mais acurado, é se o evangelista Marcos pretende mostrar uma imagem conservadora de Jesus, justamente em um contexto de cruzamento de fronteiras geográficas, culturais e religiosas; ou se a proposta do evangelista é despertar nos leitores uma revisão de conceitos a respeito da evangelização dos gentios e da situação da mulher na comunidade cristã no tempo em que o evangelho está sendo escrito. Isso fica mais claro quando, em Mc 8,14-21, Jesus confronta os discípulos sobre o significado desses eventos: “não compreendestes? Tendes o coração endurecido?” (8,17). “Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não ouvis?” (v 18). “Não compreendeis ainda? (v. 21)”. Não se trata de uma discussão sobre alimento como pode parecer numa leitura superficial. O evangelista convida os leitores a perceber que o ensinamento de Jesus é a verdadeira fonte de alimento, o qual está em oposição ao fermento dos fariseus e de Herodes. O alimento oferecido por Jesus é um dom para Israel e para os gentios (LOADER, 1996, p. 45-46).
Não se deve, portanto, entender a atitude de Jesus como a de um judeu preconceituoso a respeito dos gentios nem como uma forma de testar a fé da mulher com uma observação deliberadamente racista. Vê-se que a intenção do evangelista, numa leitura menos superficial e mais atenta, é corrigir o leitor que ainda esteja discordando da evangelização dos gentios ou que os entenda como cristãos de segunda categoria, além de rever seus conceitos sobre o papel da mulher na comunidade cristã. Essas eram questões fundamentais no primeiro século de nossa era. A resposta que Jesus deu à mulher foi excepcionalmente dura, nenhum outro suplicante nos evangelhos é tratado dessa maneira. Para entender melhor a rispidez da resposta, é necessário considerar que em algumas passagens bíblicas os adversários da fé ou hereges são chamados “cães” (2Pd 2,22; Fl 3,2, Ap 22,15). Embora Jesus tenha usado o diminuitivo “cachorrinhos” a resposta ainda é dura para quem se prostra diante dele, pois o diminuitivo de cães era usado pelos judeus para designar os cães de casa em contraste com os da rua (DONAHUE; HARRINGTON, 2002. p. 233). Em contrapartida, a menção a Israel como filho de Deus é frequente nas Escrituras (Dt 32,20.43; Sl 82,6; Is 1,1; 17,9; 63,8; Os 11,1).
Além disso, o pão mencionado na resposta de Jesus parece não ter nenhuma conexão com o pedido, implícito, da mulher que é presumivelmente um pedido de exorcismo. Mas se observarmos como Marcos está desenvolvendo a narrativa pode-se perceber uma conexão. Como foi mencionado acima, a perícope que ora analisamos está entre duas multiplicações dos pães: Mc 6,30-44 (para judeus) e Mc 8,1-10 (para gentios). A terminologia “pão”, “comer” e “ser satisfeito” aparece em ambas as narrativas da multiplicação (Mc 6,42; 8,2). Seu uso no relato da mulher siro-fenícia ecoa a primeira narrativa e prefigura a subsequente. Inclusive, a resposta da mulher confirmará isto, pois os termos “alimentar” e “comer”, neste contexto, servem como metáfora para uma dimensão mais ampla da aceitação do outro e uma reivindicação de direito dos gentios aos benefícios de Deus.
Jesus aponta para a mulher que “primeiro deixe que os filhos sejam saciados” (v. 27a), ou seja, a necessidade mais urgente é que Israel receba o pão dos ensinamentos de Jesus, somente depois é que o poder do evangelho chegará até os gentios. A resposta inicial e recusa de Jesus incluiu um forte contraste entre a sua prática que não excluída nenhum tipo de pessoa e a recusa dessa prática por alguns membros da comunidade pós-pascal. A mulher argumenta com Jesus que seu status de gentia na ordem da história da salvação não deve impedir de receber o que precisa. “Mas os cachorrinhos, sob a mesa, comem as migalhas das crianças” (v. 28). Ela compreende melhor a proposta de Jesus e, através dela, o evangelista pode orientar o leitor implícito, esclarecendo-lhe sobre a inclusão dos gentios no reino do messias.
A mulher responde à metáfora insultante de Jesus com uma contra-metáfora, comparando-se (e implicitamente os gentios) com os animais domésticos que na cultura grega estavam frequentemente presentes nas refeições (DONAHUE; HARRINGTON, 2002, p. 234). O tema do exorcismo é interrompido e continua com um debate entre Jesus e a mulher cujo foco se torna a questão sobre a extensão do poder (reino) de Deus aos gentios. A resposta da mulher adapta a metáfora de Jesus à sua própria situação. Em contraste com a declaração de “justiça”[3] de Jesus, a mulher evoca o costume das crianças gentias de alimentarem os cachorros. Sua metáfora contrapõe o direito exclusivo dos filhos à comida pela imagem das crianças que compartilham seus alimentos até mesmo com os animais domésticos. Assim como a resposta inicial de Jesus é excepcionalmente dura, a resposta da mulher é o único lugar onde Jesus é “superado” numa réplica (DONAHUE; HARRINGTON, 2002, p. 234).
O diálogo de Jesus com a mulher siro-fenícia aborda diretamente questões sobre pureza e impureza e usa diretamente a imagem de alimentos. Devemos ter presente que as imagens de alimento e alimentação aparecem ao longo de um contexto narrativo mais amplo. A narrativa sobre a mulher siro-fenícia é uma continuação da discussão com escribas e fariseus sobre o puro e impuro (Mc 7,1-23). Mas a resposta que a mulher dá a Jesus possibilita celebrar a inclusão de judeus e gentios, os filhos e os cachorrinhos, homens e mulheres no banquete do Reino. A manifestação da autoridade do Reino sobre a filha da mulher é uma consequência da resposta que a siro-fenícia deu a Jesus. E é exatamente por isso que Jesus realiza o exorcismo (Mc 7,29), isto é, a mulher somente é atendida depois que venceu Jesus: “Por causa desta palavra, podes ir; o demônio já saiu de tua filha” (v. 29). O exorcismo ocorre apenas depois que a mulher supera Jesus na réplica verbal. A ação de Jesus em favor da criança e o uso do verbo no tempo perfeito para dizer que o demônio já havia saído (ἐξελήλυθεν), descrevem uma ação completa, terminada. A comunidade de Marcos pode estar expressando com isso a chegada do evangelho ao mundo dos gentios.
Nesse relato, Jesus cruza a fronteira, concorda com o argumento da mulher e legitima o que, no tempo de Marcos, se tornou uma realidade: a comunidade de fé é composta tanto por judeus quanto por gentios. Aliás, o Jesus de Marcos está constantemente em um ir e vir ao território gentílico (LOADER, 1996, p. 46). “Ela encontrou a filha sobre a cama, pois o demônio a deixara” (v. 30). A constatação que o “demônio a deixara” serve como confirmação, própria do gênero literário “narrativa de milagre”, e refere-se ao versículo anterior, enfatizando o poder da palavra de Jesus (DERMIENCE, 1977, p. 15-29).
Podemos concluir que, apesar de a restauração da saúde da menina ter características formais de um exorcismo, esse não é o gênero literário da perícope. Conforme Cássio Murilo da Silva (2000, p. 286-287), apesar de o gênero literário exorcismo ter uma estrutura um pouco parecida com o de milagres, é preferível analisá-lo como gênero diferente, pois tem várias características que lhe são particulares. De uma maneira geral sua estrutura possui os seguintes elementos (SILVA, 2000, p. 286-287): indicações de um quadro mórbido (1), tentativa de defesa ou resistência do espírito impuro e o reconhecimento do poder de Jesus ou do apóstolo que realiza o exorcismo (2), pergunta pelo nome do espírito impuro/demônio (3), palavra autoritativa de expulsão ou exorcismo (4), saída do demônio ou entidade mediante demonstração de seus poderes (5), êxito do exorcismo (6), reação dos espectadores (7).
Diferente de outros exorcismos, nessa perícope marcana não há a maioria dos elementos indicados acima, nem mesmo o comando explícito do exorcista que confronte o espírito impuro com autoridade. Portanto, é mais provável que se trate de uma controvérsia em vez de exorcismo. Seguindo o esquema proposto por Cássio Murilo da Silva (2000, p. 208), é possível perceber que o diálogo dentro desse relato se adequa ao gênero literário controvérsia:
- pergunta dos adversários: neste caso específico é um pedido da mulher (v. 26b);
- uma contra-pergunta de Jesus: nessa perícope não uma pergunta, mas uma afirmação de Jesus sobre não tirar o pão dos filhos (v. 27);
- a (não-)resposta dos adversários: como neste caso específico a mulher vence Jesus, então há uma réplica por parte dela, afirmando que os cachorrinho comem as migalhas (v. 28);
- a contra-resposta (ou a não-resposta) de Jesus: “por causa de tua palavra...” (v. 29).
Já que se trata de uma controvérsia na qual a mulher vence Jesus, é necessário concluir, em um primeiro plano, que a mulher siro-fenícia é apresentada como o protótipo dos gentios que estão para além das fronteiras de Israel e que responderão à missão da comunidade cristã. E, como o texto afirma que Jesus realizou o exorcismo à distância, isto indica a atividade missionária realizada pela comunidade pós-pascal que levou o evangelho e o poder do Cristo ressuscitado aos gentios. Embora não haja menção de ensino e nem de discípulos nesta passagem, o contraste que se vê no diálogo entre Jesus e a mulher siro-fenícia mostra que não se trata somente de um conflito entre Israel e os gentios, mas de um contraste entre a práxis de Jesus que instaura o Reino universal e a dificuldade de aceitação do ingresso de gentios na comunidade pós-pascal (BURKILL, 1967, p. 161-177).
Marcos nos havia informado na introdução do relato (7,24) que Jesus buscava privacidade e se retirara em uma casa. A mulher rompeu as barreiras da propriedade e invadiu a privacidade dele; ela fez isso como mulher, pediu ajuda como mãe e contra-argumentou como gentia. Esse é o foco principal da atenção de Marcos. O episódio não foi narrado pelo motivo com o qual começou, mas por causa do desfecho ao qual o evangelista quis chegar. O que estaria subjacente ao texto? Para responder adequadamente a esta pergunta temos que recorrer, primeiramente, ao significado de memória coletiva e ao uso desse conceito nas recentes abordagens exegéticas aos textos bíblicos.
O conceito de memória social é relativamente novo para a exegese bíblica e se baseia em desenvolvimentos teóricos recentes da história, sociologia, antropologia, crítica literária e psicologia. Memória social ou coletiva é um conceito usado por essas ciências para explorar a conexão entre identidade e eventos históricos e chama a atenção para os contextos sociais nos quais as pessoas moldaram suas identidades de grupo e debateram suas percepções conflitantes do passado. É o estudo de como grupos de pessoas e organizações selecionaram e interpretaram as memórias de identificação para atender às necessidades de mudança. Memória coletiva é quando as pessoas procuraram por memórias comuns para atender necessidades presentes, como elas reconheceram tal memória e então concordaram, discordaram ou negociaram sobre seu significado e, finalmente, como preservaram e absorveram seu significado em suas preocupações presentes, para dar sentido ao mundo à sua volta e para assegurar um futuro no qual a identidade do grupo não destoe dos eventos fundantes. O conceito de memória coletiva nas novas abordagens da exegese bíblica faz um retorno à importância das testemunhas oculares e à consideração dos Evangelhos como somente como experiência interpretada, mas como memórias coletivas (HUEBENTHAL, 2020, p. 75).
Na Antiguidade, a memória coletiva criava a consciência de grupo. Nas primeiras comunidades cristãs, a memória coletiva era, acima de tudo, o resultado da expressão sobre o passado manifestada por meio das narrativas (orais e depois escritas) a respeito da vida de Jesus, reinterpretada à luz das experiências de fé do povo de Israel presentes no Antigo Testamento e da experiência com Jesus ressuscitado. Naquelas comunidades, como nas Escrituras, a memória tornou-se um baluarte para manter a tradição viva por meio da transmissão oral da própria identidade. Os autores do Novo Testamento recorriam à memória coletiva das testemunhas oculares para recriar tradições do Antigo Testamento reinterpretado à luz do mistério de Cristo. A memória coletiva nas comunidades tem seu ponto de partida nos últimos acontecimentos vividos pelas pessoas que conviveram com Jesus e seu último elo nas mais antigas tradições bíblicas. Para Huebenthal (2020, p. 71)
Se o ponto não é mais o Jesus histórico, mas um Jesus relembrado, é lógico que não esqueceremos de quem é a memória que está sendo discutida em primeiro lugar. É óbvio que não pode ser a memória dos evangelistas, se eles forem entendidos como redatores ou editores, mas sim de testemunhas oculares, que podem de alguma forma receber uma palavra por escrito[4].
Para as primeiras comunidades, a memória coletiva começa com o olhar para suas próprias tradições a partir da nova situação em que se encontram. A partir daí reinterpretam a vida e as palavras de Jesus. O evento da cruz e da posterior destruição do Templo obrigaram os membros das comunidades a relerem esses acontecimentos à luz da história de Israel. A comunidade pós-pascal estava convencida de sua eleição por parte do Deus de Israel, através da obra redentora Jesus Cristo, e a memória coletiva entrou em jogo para recriar a vida de Jesus projetando no passado o presente, a situação em que se encontravam. A revisão do passado a partir da perspectiva do presente que a comunidade enfrentava teve uma consequência inevitável, a ressimbolização dos elementos que no passado constituíram as palavras e ações de Jesus. A ressimbolização feita por aquelas comunidades consistia, acima de tudo, em conceder às palavras e atitudes de Jesus uma nova chave de interpretação. Como tal, a vida de Jesus teve que ser reinterpretada para dar sentido à existência das comunidades no presente. Parece óbvio que Mateus e Lucas não teriam usado o texto de Marcos como fonte se este não tivesse sua autoridade reconhecida. Para Huebenthal a questão é, se a autoridade é do autor ou do texto transmitido anonimamente.
A autoridade do texto dependia do autor ou do texto ser uma versão socialmente aceita? Os estudos bíblicos geralmente optam pelo primeiro, as abordagens cultural-científicas/teóricas da memória pelo segundo (2020, p. 73)[5].
Os Evangelhos como memória literária, tal como a tradição da memória coletiva, pretendem fazer uma revisão do passado para recuperar o sentido original. Como em qualquer processo de libertação ou recuperação de direitos, os grupos respondem com um processo de reivindicação de sua própria memória silenciada ou manipulada por um tempo. Logo, o que o grupo deseja é voltar ao passado até chegar ao momento da desconexão, para recuperar a união com o sentido original que iluminará as decisões no presente. A memória coletiva manifestada nos textos do Novo Testamento não só reflete a importância que a memória do passado tinha na comunidade como atividade pessoal e comunitária, era também garantia de fidelidade às tradições e a Jesus. Recuperar a memória do passado era garantir o futuro. Os textos refletem o medo da comunidade de se desviar da tradição. As primeiras comunidades olhavam para o futuro com os pés no passado. É aqui que a memória coletiva adquire sua razão de ser. Nesse sentido, o texto dos Evangelhos é como a ponta de iceberg e exige atenção redobrada dos leitores, para que percebam o que está subjacente aos relatos. Tanto o que é narrado por escrito “quanto o que é lembrado coletivamente são ambíguos e devem ser interpretados de forma consistente” (HUEBENTHAL, 2020, p. 75).
A memória como recurso que garante fidelidade às tradições, serve como um salvo-conduto para alcançar o futuro. É olhar para o passado a partir do presente para garantir o futuro. É o que fazem os membros da comunidade. A memória coletiva serve como meio para a obtenção de determinados fins que garantem a estabilidade e garantem o futuro. Surge da necessidade de projetar um sinal de esperança para o futuro e, ao mesmo tempo, orientar um presente repleto de dificuldades, dúvidas e incertezas. O Cristianismo foi um daqueles grupos com um conteúdo escatológico marcante, que orientou toda a sua doutrina para o anúncio do Reino de Deus, do mistério de Cristo e da ressurreição em Cristo. A memória coletiva tornou-se aliada da identidade e da fidelidade à tradição sobre Jesus. Um recurso para manter a fidelidade e recuperar tradições esquecidas.
O relato sobre o diálogo de Jesus com a mulher siro-fenícia reflete duplamente a memória coletiva: por um lado recupera o agir de Jesus que acolhia todas as pessoas, portanto, os gentios tem igual dignidade ao judeu no Reino de Deus; por outro, reafirma a dignidade da mulher no movimento de Jesus. No v. 28 quem discute com Jesus é uma mulher gentia, pertencente a um povo rival dos judeus. Somente considerando a memória coletiva é que se pode compreender a intenção redacional ao estabelecer um diálogo tão provocativo e subversivo como dessa perícope, inserindo uma mulher gentia em um enredo tão intrigante. Se de fato a sociedade em que está inserida a narrativa de Marcos é decorrente de uma estrutura patriarcal, o texto não retrata apenas a participação de gentios nas primeiras comunidades cristãs, mas também evidencia a atuação feminina naquele contexto.
O Evangelho reflete as realidades das primeiras comunidades, “suas percepções e concepções, bem como suas formas de construção de identidade e de organização eclesial dentro da sociedade mais ampla no final do século I” (REIMER, 2010, p. 44).
Uma leitura profunda de textos bíblicos deve buscar entender o cotidiano vivido pelas pessoas, pelo povo que protagoniza nessas narrativas, a fim de melhor entender a fé vivenciada e seu testemunho que chega até nós através desses escritos. Desse cotidiano fazem parte as construções das relações de gênero, das relações econômicas, políticas, culturais... (REIMER, 2006, p. 72).
Ou seja, além da compreensão do contexto sócio histórico no qual se insere a redação do Evangelho, faz-se necessário compreender como as narrativas corroboram para análise compreensiva do mundo em que vivem os sujeitos. O cotidiano seria, portanto, a expressão mais efetiva da realidade social dos sujeitos, haja vista que seria o resultado de forças estruturais e estruturantes da sociedade e da cultura em diálogo com as práticas interativas individuais e coletivas. Outrossim, destaca-se que mesmo em situação conflitiva, como é o caso de nossa perícope, os indivíduos criativamente constituem mecanismos de refazimento das práticas sociorreligiosas. Neste sentido, ao contrário das metodologias tradicionais, a categoria gênero pode contribuir para a compreensão das relações de dominação no contexto do mundo bíblico, bem como na percepção de elementos constitutivos das relações de poder vivenciados pelas mulheres das primeiras comunidades cristãs.
As tradicionais abordagens metodológicas e interpretativas de textos bíblicos demonstraram que ainda não conseguem alcançar a profundidade de mecanismos de opressão que principalmente mulheres e crianças, escravas ou não, enquanto minoria qualitativa, sofriam em seu contexto histórico-social ... As relações de gênero são um constructo sociocultural que ajudaram a sedimentar nossas identidades masculina e feminina. Essa construção de identidade pessoal e social é forjada num procedimento de dinâmicas de relações de poder dentro de estruturas sistêmicas patri-quiriarcais de subordinação (REIMER, 2010, p. 44).
Reconhecer o determinismo patriarcal do sistema greco-romano-judaico no primeiro século, como incisivo e definitivo, sufocaria a ‘voz’ e a força reativa das mulheres e dos homens em situação de exclusão presentes na memória coletiva. Destaca-se que a narrativa bíblica, com suas tramas, contos e mitos, tem muito a contribuir, desde que compreendida pelo viés das relações de gênero, no tocante a compreensão de como se organizavam as relações de poder nas primeiras comunidades cristãs. Portanto, a hermenêutica de gênero pode contribuir na análise e compreensão da literatura bíblica, tanto como referencial teórico quanto metodológico. No caso de nossa perícope, chama-nos atenção o poder persuasivo e a capacidade argumentativa da mulher siro-fenícia, prática não permitida no contexto sociocultural em que a mesma está inserida. No texto de Mateus, seus gritos incomodam os discípulos a ponto de solicitarem a Jesus que a mandasse sair.
O desconhecimento do nome desta mulher, por sua vez, talvez faça parte da intenção redacional de demonstrar que se trata não de uma voz, mas de várias vozes que compõem a memória coletiva. O problema dos estrangeiros e as questões de gênero teriam sido experienciadas pela comunidade de Marcos e teriam sido tratadas a partir da memória coletiva fundante.
O conflito de gênero seria a memória fundante que ilumina e serve de parâmetro para resolver o problema atual das comunidades de Marcos durante os anos 70 do primeiro século, sobretudo no que diz respeito a inclusão dos gentios à mesa. Possivelmente, foram as mulheres da região de Tiro que levantaram a discussão de gênero em suas próprias comunidades. A credibilidade destas mulheres, a forma de sua liderança e a consciência de seus argumentos ficaram guardadas na memória histórica. Marcos, ao propor a inclusão dos gentios no movimento cristão, retoma a memória de gênero e lhe dá um novo significado a partir de sua própria realidade (TEZZA, 2006, p. 6).
Ou seja, pelo fato de a comunidade já ter experienciado, anteriormente, situações conflitivas no tocante às relações de gênero, Marcos busca resolver os problemas étnicos por intermédio dessa memória coletiva. Talvez por isso, no desenvolvimento redacional da perícope bem como sua alocação estrutural, haja uma dialética que convence Jesus sobre tal demanda. Primeiro, a siro-fenícia se aproxima de Jesus impondo seu tom de voz, falando com Jesus como quem tem autoridade – o que nos leva a crer que sua voz, talvez não fosse de desespero materno, conforme apresentado por Mateus (15,22) segundo o qual a mulher gritava pedindo compaixão. Em Marcos não está registrada nenhuma fala da mulher, embora se narre que ela se prostou e pediu a Jesus que curasse sua filha. A única fala da mulher no relato marcano é na controvérsia com Jesus. A questão parece ser de legitimidade, de reinvindicação e de destaque do gentio e do feminino. Por isso, em um segundo momento, a lógica redacional, demonstra a capacidade argumentativa da mulher siro-fenícia. Estabelece-se um processo dialético que convence Jesus da importância de sua reinvindicação, que vai culminar no atendimento, por fim, de sua demanda.
O relato sobre a mulher siro-fenícia, como texto de memória coletiva constitutiva de identidade, apresenta uma autocompreensão da comunidade narrativa, dá voz a essa comunidade e convida os leitores a considerarem esses aspectos no labor interpretativo. A perícope reflete os esforços da comunidade para traçar sua identidade a partir das memórias daquele grupo de Jesus. Partindo do pressuposto de que o texto dá voz a uma comunidade que se compreende como portadora de memórias a respeito de Jesus, tornou-se necessário examinar não apenas a imagem de Jesus, mas também a imagem de si mesmo, que esse texto de memória apresenta.
Como a perícope está inserida em estruturas patriarcais de organização da sociedade, relegando a mulher à condição de marginalizada e oprimida, não seria estranho que o texto de Marcos assumisse os mesmos moldes de seu contexto histórico. No entanto, o evangelista é um porta-voz de uma comunidade de pessoas marginalizadas. E, por meio de uma hermenêutica adequada podemos concluir que há um caráter altamente subversivo nesse evangelho. Esse caráter subversivo começa a ser notado quanto o evangelista apresenta Jesus, como um profeta semelhante a Elias ou a Eliseu. Esses profetas realizaram suas atividades taumatúrgicas para além das fronteiras de Israel, em favor de mulheres estrangeiras. Ao associar Jesus com a figura desses profetas, o evangelista fundamenta a missão de evangelizar as nações como parte do ministério de Jesus e a participação ativa das mulheres nas primeiras comunidades. Ambos os aspectos não estavam previstos entre os discípulos de Jesus naquela época.
A questão em foco nessa passagem bíblica é o princípio da declaração sobre o puro e impuro, primeiramente a respeito dos alimentos e, em seguida, a respeito das pessoas. Pois, naquela época, o limite que dividia os alimentos em puros e impuros era o mesmo que dividia as pessoas em puras e impuras. Nesta última categoria estavam incluídos, principalmente, quem não pertencia ao povo de Israel e, na maioria dos casos, todas as mulheres por causa da menstruação e do sangramento após o parto. A mulher estrangeira era considerada duplamente impura, este era o caso da mulher siro-fenícia.
Primeiramente, o texto destaca que Jesus propositalmente entrou em território não apenas estrangeiro, mas também potencialmente hostil. Nesse caso, Jesus e seus discípulos fazem a experiência, não apenas de serem estrangeiros, mas de estarem à mercê dos nativos da região. Mas ao contrário da hostilidade esperada, apareceu-lhes uma mulher que pediu a Jesus uma ajuda para sua filha. E o que é mais impactante ainda, a resposta de Jesus à mulher foi excepcionalmente dura, nenhum outro suplicante nos evangelhos foi tratado da mesma forma.
Contudo, uma análise mais acurada do texto, mostra que a atitude de Jesus para com a mulher siro-fenícia é bastante paradigmática. A comunidade de Marcos apresenta a mulher siro-fenícia como o protótipo dos gentios que farão uma adesão ao evangelho, e a atitude de Jesus é uma representação da dificuldade dos judeu-cristãos de aceitarem o ingresso de gentios na comunidade, no final do primeiro século. No diálogo entre Jesus e a siro-fenícia, a resposta da mulher é o único lugar onde Jesus é “superado” numa réplica. Ao ser vencido pela palavra da mulher, Jesus corrige as posturas excludentes presentes na comunidade cristã posterior à sua ressurreição.
No entanto, uma hermenêutica de gênero mostra que o conteúdo metafórico utilizado não retrata apenas a participação de gentios nas primeiras comunidades cristãs, como também evidencia a atuação feminina neste contexto. O conflito de gênero e o conflito de etnias fariam parte da memória coletiva e estão presentes no texto do Evangelho para corrigir posturas contrárias às palavras e atitudes de Jesus. A passagem sobre a mulher siro-fenícia denuncia relações de poder e de patriarcalismo vivenciados pelas mulheres dentro das primeiras comunidades cristãs. O poder persuasivo e a capacidade argumentativa da mulher siro-fenícia, práticas não permitidas naquele contexto sociocultural, mostram que a liderança das mulheres e a consciência de seus argumentos ficaram guardadas na memória coletiva das primeiras comunidades cristãs.
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[1] Sobre os paralelos entre Jesus e Elias/Eliseu: “Essa forma não linear de apresentar sua mensagem [de Marcos] é própria do mundo semita e encontramos exatamente o mesmo na narrativa Elias-Eliseu. Só isso já nos deixa a possibilidade de pensar o tipo de relação existente entre esses dois escritos, e a possível influência da narrativa Elias-Eliseu na apresentação de Jesus como messias profético” (GOMES, 2017, p. 129).
[2] Em Mateus, no entanto, o narrador afirma que a filha da mulher está “gravemente atormentada por um demônio” (15,22), mudando um pouco a conotação que Marcos quer dar ao texto.
[3] Justiça como ajustamento à Lei ou vontade divina, a qual o judeu se vangloriava de ter.
[4] If the point is no longer the historical Jesus but a Jesus remembered, it stands to reason that we will not forget whose memory is being discussed in the first place. It is obvious that it cannot be the memory of the evangelists if they are understood to be redactors or editors, but indeed that of eyewitnesses, who might somehow get a word in edgewise.
[5] The question is, of course, whether the authority is that of the author or that of the text that has been handed down anonymously. To put it differently: Was the authority of the text dependent on the author, or was it dependent on the text being a socially accepted version? Biblical studies usually opt for the former, cultural-scientific/memory-theoretic approaches for the latter.