Carisma e missão renovados:  A recepção do Vaticano II no instituto dos irmãos maristas
Renewed charism and mission: The reception of Vatican II at the institute of the marist brothers

Marcial Maçaneiro
Doutor em teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Docente de teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR) e na Faculdade Dehoniana (Taubaté, SP). Contato: marcialscj@gmail.com

Alison Humberto Furlan
Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR). Contato: 
iralison@grupomarista.org.br



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Resumo: 

O Concílio Vaticano II foi um evento que modificou o caminhar da Igreja. Como disse o Papa João XXIII na abertura, era necessário um aggiornamento, deixar bons ares circular na Igreja. A Vida Consagrada não ficou fora dessa revisão e precisou passar por uma renovação, concretamente desenvolvida no documento Perfectae Caritatis que, somado aos demais documentos conciliares e do pós-concílio, suscitaram um novo jeito de ser à Vida Consagrada. É deste cenário que surge o Irmão Basílio Rueda, eleito no pós-Concílio como Superior Geral do Instituto dos Irmãos Maristas, para a recepção da teologia dos carismas da Vida Consagrada e sua pertinência ao Instituto Marista. Alguns de seus métodos são destaques como as Cartas Circulares e os retiros de renovação, que o possibilitaram visitar todas as províncias do mundo.  Iniciando assim, a recepção e a renovação dos Irmãos Maristas às propostas Conciliares. 

Palavras-Chave: Concílio Vaticano II; Vida Consagrada; Irmãos Maristas;  Irmão Basílio Rueda

Abstract: 

The Second Vatican Council was an event that changed the way of the Church. As Pope John XXIII said at the opening, there was a need for aggiornamento, to leave a good air circulating in the Church. The Consecrated Life was not left out of this review and had to undergo a renewal, concretely developed in the document Perfectae Caritatis which, added to the other conciliar and post-council documents, gave rise to a new way of being to Consecrated Life. It is from this scenario that Brother Basilio Rueda emerged, elected in the post-council as Superior General of the Institute of the Marist Brothers, to receive the theology of the charisms of Consecrated Life and its relevance to the Marist Institute. Some of his methods are highlights such as Circular Letters and renewal retreats, which allowed him to visit all the provinces of the world. Thus, beginning the reception and renewal of the Marist Brothers to the Conciliar proposals.

Keywords: Vatican Council II; Consecrated Life; Marist Brothers.;Brother Basílio Rueda


Introdução

Este trabalho surge do reconhecimento do quanto o Concílio Vaticano II foi, e tem sido, um marco para a Igreja Católica na contemporaneidade e, a partir daí, para a renovação da Vida Consagrada. No amplo espectro das fundações monásticas e/ou congregacionais, abordamos aqui o Instituto dos Irmãos Maristas; mais especificamente, como tal renovação transcorreu nos mandatos de Irmão Basílio Rueda, no período do pós-Concílio (1967-1985).

Na literatura do Irmão Basílio, como suas Cartas circulares e documento emitidos, percebe-se a insistência e a recorrência de alguns temas que fazem referência direta as renovações e proposições à Vida Consagrada do Vaticano II, dos quais elencamos sete: a oração, a vida comunitária, a caridade, Maria, o apostolado, os votos religiosos e o testemunho, que são utilizados como que um plano de governança. 

Com esses elementos e documentos acima citados, próprios da tradição Marista, somados aos documentos Conciliares que impactaram profundamente a Vida Consagrada, vislumbramos o que mais marcou o período pós-Concílio, bem como os momentos em que se debateu, de forma direta, sobre os Religiosos e a Vida Consagrada nas primeiras fases de recepção do Vaticano II. 

A recepção do Vaticano II no instituto dos Irmãos Maristas, tem seu marco inicial na pessoa do Irmão Basílio Rueda. Desde jovem, seu itinerário intelectual e religioso demonstrou abertura aos sinais dos tempos, como verifica-se em sua dissertação de mestrado em filosofia sobre Ser y Valor e na sua participação no Movimento Por Um Mundo Melhor, fundado pelo jesuíta Ricardo Lombardi, que lhe permitiu viajar por muitos países e estar em contato com muitas culturas. Rueda colaborou ativamente neste Movimento, com retiros, encontros e palestras, sendo reconhecido por sua profundidade e metodologia. 

Em 1967 é eleito Superior Geral, com vistas à implementação do Concílio Vaticano II no Instituto dos Irmãos Maristas; tarefa em que se destacou, alcançando a reeleição em 1975, para consolidar o processo iniciado. O segundo mandato do Irmão Basílio Rueda concluiu-se em 1985, quando entregou o Instituído em plena renovação, aberto às novas perspectivas do Concílio. 

É importante ressaltar que toda a Vida Consagrada teve que se adaptar, se renovar, segundo as novas perspectivas do Vaticano II, e cada instituto religioso teve a sua forma própria, e o tempo próprio. Especificamente pela atuação do Irmão Basílio Rueda veremos como os Irmãos Maristas iniciaram esta recepção, e como esta impactou a Vida Consagrada como um todo e a Igreja na fidelidade ao Vaticano II. A recepção do Concílio teve, à época de Rueda, um tempo desafiador e pioneiro, entre acolhida e/ou resistência, marcando um percurso que alcança os dias de hoje, passados já os cinquenta anos do evento. 

1. Os carismas e a vida consagrada

A Vida Consagrada “tem sua pátria espiritual na revelação bíblica” (RODRÍGUEZ; CASAS, 1994, p. XXI), com raízes remotas na profecia e na esperança do Messias. Dada a encarnação do Verbo e o cumprimento das promessas ao Povo de Deus, inaugura-se a nova e definitiva Aliança em Jesus Cristo, o Ungido de Deus.

Após a Páscoa de Jesus, dá-se o derramamento ou dom do Paráclito, o Espírito da Promessa segundo João 20,22. Em Atos dos Apóstolos, Lucas relata o evento de Pentecostes (At 2), no qual a comunidade cristã primitiva vê o cumprimento da profecia de Joel (3,1) sobre a efusão do Espírito de Deus sobre todo o povo. Trata-se do “grande dom escatológico, reservado para os últimos tempos (At 2, 16-22), e que se efunde plenamente a partir de Jesus Cristo ressuscitado (Jo 20, 21-23; Ap 5,6)” (ALONSO, 1994, p. 238). Há ainda outros “pentecostes” (manifestações do Espírito Santo) relatados nos Atos dos Apóstolos, que abrangem também aos gentios, como o caso dos moradores da casa de Cornélio (At 10, 44- 45) e dos discípulos em Éfeso (At 19, 5-6), os quais atestam o derramamento do Espírito, com seus carismas, como Dom universal para a Igreja de judeus e de gentios.

Graças para servir:

A palavra grega carisma (carisma) é composta pelo radical charis – em português, graça – que compõe o núcleo de compreensão desta realidade espiritual e eclesial. É pela efusão do Espírito Santo que a graça se manifesta no mundo de maneira efetiva; e é do mesmo Espírito que provêm os dons e os carismas: diversos entre si, os carismas servem ao bem comum, sob o primado do amor (cf. 1Cor 12 – 13). Falvo observa a continuidade de missão, entre Jesus e os discípulos, mediante os carismas:

Os carismas foram dados a Jesus, não como indivíduo, mas como chefe do corpo místico. Sua missão, que se iniciou no Jordão, não chegou a seu fim com a ascensão, pois, alguns dias depois, ele enviou o Espírito Santo para que a continuasse em seu nome. Iniciada com a pregação e o poder dos milagres, a missão de Cristo só pode ter continuidade adotando o mesmo estilo e os mesmos meios de que ele mesmo se valeu. (FALVO,1976, p. 24). 

Os carismas são dons concebidos aos que creem, na comunidade discipular; e servem para a edificação da Igreja e o testemunho do Evangelho, nas suas variadas manifestações como diz Paulo em Romanos 12 e 1ª Coríntios 12. Como ressalta Mühlen, os carismas são essencialmente graças para servir – desde a comunidade cristã, mirando à humanidade toda – na perspectiva do Reino de Deus (MÜHLEN, 1980, p. 214). Ao que Codina (2010) acrescenta:

Esses carismas, que recebem em Paulo diversos nomes (dons do Espírito, energias ou operações, diaconias ou serviços, carismas ou dons da graça), são para ele fatos de ordem pneumática, através dos quais se manifesta o poder divino a serviço da comunidade. Esta efusão do Espírito está intimamente ligada com Jesus glorioso, tal como experimentou Paulo em Damasco: são dons do Ressuscitado a serviço da Igreja. (CODINA, 2010, p. 134).   

Depois do período apostólico, o Espírito não parou de distribuir seus dons à Igreja: “onde está o Espírito, aí também estão seus carismas [...] os carismas são perenes por que a presença do Espírito na Igreja também é perene” (ROMERO, 1994, p. 91). De expressão diversificada, os carismas se operam como profecia, ensino, serviço, obras de misericórdia e exortação (cf. Rm 12,3-8), tomando a forma eclesial do martírio, da consagração ao serviço do Reino, do monacato primitivo, dos movimentos espirituais e missionários como as beguinas e os mendicantes, até as formas recentes da Vida Consagrada, antes e depois do Concílio Vaticano II. Neste horizonte carismático se incluem as comunidades ecumênicas de vida, os teólogos da libertação, as diferentes diaconias na comunidade, as fundações missionárias e os movimentos leigos, além da renovação carismática – que hoje está em processo de revisão, sob o magistério recente de Papa Francisco.

Assim se manifesta a vitalidade carismática do Povo de Deus, em abertura aos sinais dos tempos e aos impulsos da Trindade:

O Concílio Vaticano II retomou a teologia dos carismas, ressaltando que o Espírito Santo não apenas santifica e dirige o Povo de Deus por meio dos sacramentos e dos ministérios, mas distribui graças carismáticas entre seus fieis (1 Cor 12, 7.11) que são importantes e úteis para a Igreja, quer se trate de dons extraordinários, quer de dons mais simples, deixando a quem preside a Igreja a competência de os discernir (LG, n.12; cf. AA, n.3). Como afirma a LG em outro lugar, o Espírito dirige e enriquece a Igreja “com diversos dons hierárquicos e carismáticos”. (CODINA, 2010, p. 136)

Os “dons hierárquicos” (LG, n. 4) se explicitam nos ministérios ordenados, no serviço diaconal, presbiteral e episcopal: dizer que são “dons” significa que não se reduzem ao exercício funcional, mas que brotam da Unção messiânica e sacerdotal de Jesus, comunicada pelo Espírito Santo aos ministros do Povo de Deus. Já os “dons carismáticos” (LG, n. 4) incluem grande variedade, como dissemos antes, com expressões pessoais e grupais, muitas vezes de alcance missionário. Neste rol desponta a Vida Consagrada, compreendida entre a santidade e a apostolicidade de toda a Igreja: “embora não pertença à estrutura hierárquica da Igreja, [a vida consagrada] está, contudo, firmemente relacionada com sua santidade” (LG, n. 44), pela “profissão dos conselhos evangélicos” (PC, n. 1 e 2) e pela “doação de si” dos(as) religiosos(as) que “enriquece a vida da Igreja e “desenvolve vigorosamente seu apostolado” (PC, n. 2). Sendo assim, o Concílio situa a Vida Consagrada no organismo carismático da Igreja: “um dom do Espírito, sinal para a Igreja, dos valores evangélicos e transcendentes do Reino de Deus, vividos no seguimento de Jesus” (CODINA, 2010, p. 139). 

Portanto, a Vida Consagrada é dom para toda a Igreja, na sua mais íntima configuração de comunhão orgânica e missionária. Como tal é acolhida, incentivada, discernida e promovida, em dinâmica de amadurecimento e contínua renovação, nas suas variadas expressões. Ainda que muitos religiosos participem da Ordem presbiteral, é preservado o caráter fraterno (e sororal) como núcleo identitário da Vida Consagrada, qual irmãos e irmãs congregados em torno de Jesus. 

Nesta perspectiva o religioso e a religiosa buscam tornar presente o rosto de Cristo-Irmão pobre, casto e obediente. Fraternidade e sororidade evidenciam o fundamento batismal de toda Igreja, do qual os religiosos querem ser um sinala e uma memória explícita. E para sinalizar na Igreja a radicalidade do Batismo, “o Espírito suscitou, ao longo da história, fundadores que destacaram o caráter laico de suas fundações” (IMRII[1], n.9), valorizando o serviço ao e com o Povo de Deus, inclusive para fora da Igreja, sendo sinal profético e testemunhal de Cristo nas mais variadas esferas da sociedade. Esta presença carismática em meio ao mundo, em caráter fraterno e sororal, é traço essencial da Vida Consagrada, enraizado no Batismo. 

Outra constatação é o fato de que, se a Vida Consagrada deixa de ser testemunho de oração, de missão, de evangelização, de experiência espiritual, de educação cristã, de docência teológica, de trabalho nas comunidades eclesiais de base, entre outros tantos serviços, acaba perdendo seu sinal e tende a ir desaparecendo, pois perde seu brilho, deixa apagar o fogo do Espírito que nela ardia. 

O carisma marista:

Com essas coordenadas de fraternidade, testemunho e serviço, na constante busca de não perder seu encantamento original, nos aproximaremos a seguir da Vida Consagrada marista, especificamente do Instituto dos Irmãos Maristas, fundado por Marcelino José Bento Champagnat (1789-1840: MASSON, 2000)[2]

Somamos ao apanhado geral sobre os carismas na Igreja o texto inicial das Constituições dos Irmãos Maristas:  

Guiado pelo Espírito, Marcelino Champagnat foi cativado pelo amor de Jesus e Maria para com ele e para com os outros. Tal vivência, como também sua abertura aos acontecimentos e às pessoas, está na origem de sua espiritualidade e de seu zelo apostólico. Torna-o sensível às necessidades de seu tempo, especialmente à ignorância religiosa e às situações de pobreza da juventude. Sua fé e desejo de cumprir a vontade de Deus revelam-lhe sua missão: ‘Tornar Jesus Cristo conhecido e amado’. Dizia muitas vezes: ’Não posso ver uma criança, sem sentir o desejo de ensinar-lhe o catecismo, sem desejar fazer-lhe compreender quanto Jesus Cristo a amou’. Neste espírito fundou nosso Instituto para a educação cristã dos jovens, particularmente os mais necessitados. (C, n. 2[3]).

Não se pode desconsiderar que o mandato do fundador foi configurando-se com o passar dos anos. Ele foi tomando corpo e funcionalidade diferente, conforme as exigências das sociedades em que o carisma estava presente, sem se esquecer do impulso fundacional e da missão da Igreja. 

Fundado em 2 de janeiro de 1817, o Instituto dos Pequenos Irmãos de Maria transcorreu seus mais de 150 anos: imbuído na história, fundado dentro do período histórico do Concílio de Trento sentia-se impulsionado, juntamente com toda a Igreja, de uma renovação. Tal renovação vem com a abertura do Concílio Vaticano II (1961) que emitiu dois documentos que nos ajudarão, de forma basilar, a entender a recepção da teologia dos carismas no Instituto Marista: a constituição dogmática sobre a Igreja, Lumen Gentium (LG) e o decreto para a Vida Consagrada intitulado Perfectae Caritatis (PC), que solicitou uma renovação singular e profunda:

A conveniente renovação da vida religiosa comporta uma volta constante às fontes de toda a vida cristã, à inspiração original de cada um dos institutos religiosos e a sua adaptação às condições dos tempos que mudaram. Essa renovação deve ser feita sob o impulso do Espírito Santo e sob a orientação da Igreja. (PC, n. 2)

Por sua proposta, esse documento foi recebido como uma diretriz, originando processos de renovação (espiritual, formativa, canônica e missionária) que empenhava a todos os religiosos e religiosas, cada qual em seu Instituto. Em 1971, o Papa Paulo VI publica a Exortação Apostólica Evangelica Testificatio (ET), sobre a renovação da Vida Consagrada segundo os ensinamentos do Concílio. Este documento aborda os desafios e riscos da renovação pautados nas exigências de uma vida centrada no Cristo e no Evangelho, mas que também estivesse aberta ao diálogo e ao testemunho de vida no mundo moderno.   

2. Recepção do vaticano ii no instituto marista

Nesse período de recepção do Concílio Vaticano no terreno da vida consagrada, o Instituto Marista contou com o empenho e a sabedoria peculiares do Irmão Basílio Rueda, eleito Superior Geral no pós-Concílio (1967), com um caminho, literatura e estilo de governança próprios.

Desde o impulso fundador de Marcelino Champagnat, tocado pelo Espírito para o serviço de Deus na Igreja em 1817, fazia-se necessária uma releitura do carisma, à luz dos sinais dos tempos como solicitava o Concílio (cf. GS, n. 11). Sobre isso escreve Rueda em uma das suas cartas Circulares:    

Renascimento – Termo usado em certas ocasiões pelo Senhor e em seus discursos e por São Paulo ao falar das Igrejas- talvez seja este o mais adequado para descrever o estado atual da vida religiosa. Não sei se os Padres Conciliares e os próprios redatores do Capítulo VI da Constituição dogmática Lumen Gentium e do Decreto Perfectae Caritatis teriam previsto as consequências eclesiais da metamorfose que iam desencadear na vida religiosa. Hoje, a poucos anos de distância do encerramento do Concílio, podemos afirmar categoricamente: estamos assistindo a mudança tão profunda que, pela dinâmica das coisas, ultrapassa o conteúdo do mandato conciliar. Exprimindo esta afirmação, não pretendo de maneira alguma formular juízo favorável ou desfavorável sobre o fato, limitando-me simplesmente a registrá-lo. (IRMÃOS MARISTAS DAS ESCOLAS. 1971, p.334). 

Convém ressaltar que o Irmão Basílio Rueda foi responsável por motivar e liderar essa reforma; uma verdadeira renovação no Instituto, a qual ele animou não só através de documentos, mas com seu luminoso testemunho pessoal, promovendo deste modo o tão solicitado aggiornamento. Se o Espírito Santo suscitou o Vaticano II, não deixaria de inspirar pessoas que o levassem a bom termo. De fato, o Irmão Rueda foi uma pessoa de disponibilidade e discernimento, aberto ao que o Espírito suscitou na Igreja mediante o Concílio: imbuído do carisma fundacional, ele soube acolher os sinais dos tempos, promoveu uma significativa revisão da vida marista e contribuiu de modo singular com a renovação da Igreja na perspectiva do Vaticano II: 

Basílio Rueda é um daqueles homens que Deus coloca no meio de nós com a finalidade única de nos mostrar que, de tempos em tempos, Ele se manifesta no meio de nós enviando verdadeiros profetas, homens que por sua delicadeza ao Espírito conseguem enxergar além do tempo presente. (GRUPO MARISTA, 2015, p. 8)

Para explicitar melhor a metodologia deste texto, na atenção aos documentos frutos do Vaticano II e na análise dos escritos do Irmão Basílio Rueda, destacam-se sete elementos, que são utilizados como “óculos de leitura”, ou numa análise mais aprofundada, o plano de governo do Irmão Basílio enquanto Superior Geral: a oração, a comunidade, a caridade, Maria, o apostolado, os conselhos evangélicos e o testemunho. Para essa adequação, o Irmão Basílio fez inúmeras viagens, durante as quais sempre atendia os Irmãos, ou seja, queria falar, olhar, e ajudar a cada um na sua individualidade.   

A conveniente renovação da vida religiosa comporta uma volta constante às fontes de toda a vida cristã, à inspiração original de cada um dos institutos religiosos e à sua adaptação as condições dos tempos que mudaram. Essa renovação deve ser feita sob o impulso do Espírito Santo e sob a orientação da Igreja. (PC, n. 2)

Além do mais, foi Irmão Basílio quem deu encaminhamento à renovação das Constituições pedidas pelo Concílio, e esteve à frente dos trabalhos desde os primeiros ensaios, até a aprovação pela Santa Sé. Ele escreve na apresentação das novas Constituições: 

As Constituições que os apresentamos, são, pois, um resultado excepcionalmente importante do Capítulo Geral, e a maneira de simbolizar a renovação que o Instituto pretende pôr em prática, sob a nova luz. (IRMÃOS MARISTAS DAS ESCOLAS, 1979, p. 10) 

Traçando um paralelo entre os documentos conciliares Lumen Gentium e Perfectae Caritatis com as circulares do Irmão Basílio sobre a oração, vida comunitária e a Carta Circular sobre o Espírito do Instituto, é possível constatar como se deu a recepção dessa teologia carismática junto aos Irmãos Maristas, que, não sendo alheia à Igreja, sofria dos mesmos males, ou semelhantes, e das mesmas alegrias. Irmão Basílio precisava responder à altura ao que a Igreja e o seus Irmãos esperavam do cargo para o qual fora eleito no pós-Vaticano II:

A renovação eficaz e a adaptação conveniente não se podem obter sem a colaboração de todos os membros do Instituto. Estabelecer, porém, as normas e dar as leis desta renovação, assim como das possibilidades para uma suficiente e prudente experiência, pertence somente as autoridades competentes, sobretudo aos Capítulos Gerais, salva a prorrogação da Santa Sé ou dos Ordinários de lugar, quando for necessária segundo as normas de direito. Todavia, os superiores, nas coisas que dizem respeito a todo Instituto, consultem e ouçam os seus súditos de modo conveniente. (PC, n. 4)

O Irmão Basílio insistia, seja nos escritos ou em conferências: “Lembrem-se todos de que, na renovação, deve-se esperar muito mais da fiel observância da Regra e das Constituições do que a multiplicação de novas leis” (cf. PC, n.4). E foi nesta perspectiva que, juntamente com seu Conselho Geral, o Irmão Basílio fez sua viagem à África. Posteriormente, visitou as demais províncias, na intenção de ouvir e recolher o maior número de sugestões possíveis, visto que o decreto não subtrai aos Superiores o papel que lhes é próprio. 

A metodologia de visita às Províncias valoriza a realização de retiros espirituais, que, além de cumprir o objetivo da sua visita, facilitavam sua agenda, pois todos os Irmãos da província eram convocados e participavam. Os retiros favoreciam a comunhão fraterna, a escuta comum da Palavra de Deus e a avaliação conjunta da vida e da missão dos Irmãos, no encontro com o Superior Geral. Pode-se dizer, de maneira geral, que todos os Irmãos do Instituto, na época, tiveram contato com o Superior Geral. Como a renovação iria ocorrer prioritariamente pela vida espiritual e não por leis, “os religiosos deveriam haurir das fontes autênticas da espiritualidade cristã e assiduamente cultivar a oração e seu espírito” (cf. PC, n. 6), os retiros vieram a calhar de maneira significativa e deram muitos frutos. 

 Segundo Flores (2003, p. 579), o retiro compunha basicamente de duas partes, uma pelo que é fixo e constituinte do Instituto e da renovação que se inicia, e a outra parte, mais extensa que a primeira, é composta a partir da realidade local. Os cinco primeiros dias sucediam-se em total silêncio, para aprofundamento e oração, e os três últimos dias eram de ações concretas e construção de resoluções. 

Outra metodologia utilizada, bem mais que os seus antecessores, foi a publicação periódica de cartas para os Irmãos: as Circulares. As circulares chegavam a todas as províncias e tornaram-se um grande “jornal” com informativos sobre andamentos, decisões, os resultados de pesquisas, sensos, a avaliação das viagens, mas também se tornaram uma “biblioteca” com troca de conhecimento. Algumas de suas Circulares viraram livros, pois ajudaram não só aos maristas, mas também outras congregações e a Igreja.     

Se passarmos rapidamente sobre o panorama das circulares, é claro que algumas visam à mudança de coração: Entretenimento sobre a oração; A meditação, A obediência, Um novo espaço para Maria, O espírito do Instituto; outras levam a reflexão sobre a vida Comunitária: A vida comunitária, O projeto comunitário, O projeto de vida comunitária; outras fazem tomar consciência sobre a Igreja, do mundo e dos apelos do Fundador para que nosso apostolado se adaptem às mudanças que se produzem: é o sentido da primeira Circular de 2 de janeiro de 1968. A Circular sobre a Fidelidade. (BIGOTTO, 2003, p. 17) 

Todas as circulares apontam para o que sonhava o Irmão Basílio para a vida marista. Eram ensinamentos que derivavam de coragem, segurança, e claro, de uma rica doutrina. Os nove anos como Superior Geral passaram rapidamente. Foram tantas as viagens, tantos os encontros, tantos os escritos que chegou o momento de convocar o XVII Capítulo Geral dos Irmãos Maristas. Na Circular de Convocação, o Irmão Basílio escrevia: 

Certo de que um Capítulo Geral constitui, por si mesmo, um fato importante na vida da Congregação, o que lhes anuncio reveste, ademais, a seguinte peculiaridade: nele vai ser avaliada nossa experiência atual de vida religiosa... Os canais pelos quais ela transcorreu dentro da fidelidade ao Concílio Vaticano II e aos impulsos do Espírito. (FLORES, 2019, p. 583)

Este novo Capítulo Geral foi marcado por muitas propostas e desafios, com vistas à revisão e renovação da vida marista, à luz do Concílio. Abriam-se processos exigentes, que demandavam tempo e dedicação. Apesar de suas reticências pessoais, o Irmão Basílio, com seus 52 anos de idade, é reeleito Superior Geral dos Irmãos Maristas. Acolhendo o fato como vontade de Deus, ele aceita mais este período com a melhor disposição em servir.

Pode-se dizer que o primeiro mandato do Irmão Basílio se deu de forma mais construtiva, com o exercício de coleta de dados dos temas propostos para o XVI Capítulo Geral, e divulgação de conteúdo levando a adequação do Instituto ao Vaticano II.  

Nas reuniões prévias ao XVI Capítulo Geral realizadas na Espanha e presididas pelo Irmão Teófilo, provincial de Levante, e moderadas pelo Irmão Basílio, foram tratados os seguintes temas: Fidelidade ao Instituto, Governo, Instituto religioso ou leigo? Centros de formação permanente, Testemunho coletivo de pobreza, Sacerdócio, Oração etc. (FLORES, 2019, p. 574)  

 No segundo mandato, buscou-se uma devolutiva para saber o que estava sendo implantado (cf. PC, n.3) e o que ainda não estava caminhando. Para suprir as dificuldades, era preciso investir mais energias para que se desenvolvesse a implementação do Vaticano II, e aos temas que ainda não haviam sido tocados suficientemente, fosse dado o devido tempo e a devida divulgação. Foi neste segundo mandato que o Irmão escreveu a Carta Circular sobre Maria, reeditada posteriormente como livro de publicação aberta.

No primeiro período de superior geral o Irmão Basílio tinha feito um “mea culpa”  por não ter falado ainda mais nos retiros de renovação sobre a Santíssima Virgem, na linha do Vaticano II, para apresentar a devoção solidamente fundamentada nos seguintes aspectos: a) bíblico, já que Maria, a Mãe de Cristo, está presente na dinâmica da História da Salvação; b) patrístico, quer dizer, ver o rosto de Maria como apresenta os padres da Igreja, na mais autêntica tradição e mais pura ortodoxia; c) litúrgico, tomando como base a Constituição Sacrosanctum Concilium. A Lumen Gentium e o documento Marialis Cultus convidam os fiéis a que busquem Maria, sobretudo na liturgia ecumênica e missionária, apresentando-a como “a Mulher Nova”, modelo e ajuda, num humanismo cristão e numa autêntica libertação humana. (FLORES, 2019, p. 582)

O Irmão Basílio estava inquieto com algumas províncias que estavam tardando em aderir aos processos e às normativas de renovação que a Casa Geral, com muito esforço, vinha elaborando, com base no Concílio. A propósito disso, ele escreveu: “Não podemos permitir-nos o luxo de semelhante desperdício de tempo [em relação ao primeiro mandato]. Sem demora, teremos de descobrir e amar o que produzimos” (FLORES, 2019, p. 584). 

Outros legados que valem muito explicitar são os seguintes: a abertura aos pobres e às missões; a estruturação da Casa de l’Hermitage como santuário marista e centro de formação no espírito do fundador; a abertura do Ano da Espiritualidade de Champagnat (1980) para animar e reacender a figura de Marcelino na congregação, torná-lo, novamente, espiritualmente presente, comemorando os 25 anos da beatificação do fundador; a estruturação dos centros de formação integrada da África (em Nairóbi), e para a Ásia e Oceania (em Manila), para a formação dos jovens Irmãos destes continentes, numa nova perspectiva de missão, de inserção e multiculturalidade, em perspectiva global (cf. PC, n. 2).  

Ademais, convém registar a participação de Irmão Basílio Rueda no Sínodo sobre a Família (1981). Consultado com antecedência, foi convidado pelo Papa João Paulo II para dirigir uma palavra aos bispos, em virtude da importância da escola Católica dentro do tema da família. Flores nos escreve um trecho de sua fala: 

Neste momento formulo meu desejo e minha vontade de sensibilizar, quanto possível, minha Congregação, as instituições e os demais educadores com que tenho contato, a fim de responder especificamente à tarefa de uma reta educação para a vida familiar e, de modo especial, orientar esse serviço para aqueles que, por provirem de famílias incompletas ou esfaceladas, ou por carecerem  de amor ou de qualidades relevantes, por serem pobres em dinheiro, na ordem social, em qualidades intelectuais ou físicas, necessitam mais vivamente que nossa ação lhes torne tangível o rosto paterno de Deus e a ternura da Igreja, mãe e educadora. (FLORES, 2019, p. 587)

Deve-se a ele, ainda, como Superior Geral, ter supervisionado os trabalhos para a redação final e emissão das Constituições, de forma definitiva, aprovadas em 07 de outubro de 1986, no XVIII Capítulo Geral e publicada no governo do Irmão Charles Howard; que estavam ad experimentum[4] nos 18 anos de seus mandatos:

Essas Constituições são um verdadeiro presente do Espírito Santo, são muito evangélicas: expressão de uma Congregação que se renovou muito; são uma Regra de Vida que forma religiosos segundo o desejo do Concílio, por forte retorno ao Evangelho, às origens e por uma resposta mais apropriada ao mundo de hoje. (BIGOTTO, 2003, p. 19) 

Outra questão a ser definida era a opção ou não pelo presbiterado, entre Irmãos do Instituto (cf. PC, n.10), decisão esta que não deveria tardar mais, pois era uma decisão que poderia afetar a identidade laical do Instituto e distorcer o princípio fundador de Marcelino Champagnat. Entre o primeiro mandato e o segundo, aproximadamente 30 Irmãos teriam entrado em seminários, e muitos ainda esperavam a oficialização ou não para buscarem a vida sacerdotal. Então, já no XVII Capítulo Geral, ficou definido que: 

Depois de ter estudado a sondagem feita pelo Conselho Geral, depois de ter ouvido amplamente os prós e os contras da introdução do sacerdócio em nosso Instituto, e depois de ter rezado em um clima de serenidade...O XVII Capítulo Geral decidiu que o Instituto permaneça, por enquanto, com seu caráter leigo sem nenhum sacerdote. (FLORES, 2019, p. 586)

Nessas percepções se deslumbram os primeiros 20 anos do Instituto Marista depois do Concílio. A disposição em servir, de horizonte largo e internacional, para que cara Irmão realizasse sua missão em continuidade com a inspiração fundacional, foi o dom oferecido à Igreja pelo Irmão Basílio, a partir do Instituto Marista. Após seu primeiro mandato com início em 1967, foi reconduzido ao cargo, permanecendo até 1985. Irmão Basílio morreu em 1996, cumprindo sua missão, como ele mesmo dizia: era preciso “queimar a vida por Cristo” (BIGOTTO, 2013, p.24). Ajudar a aurora nascer!” (BIGOTTO, 2013, p. 13). Assim sendo, o Instituto Marista chega aos seus 200 anos numa constante de adaptação e de abertura aos sinais dos tempos. 

CONCLUSÃO

Ao finalizar este trabalho, percebe-se que toda a história vivida para esse acontecimento que foi o Concílio Vaticano II, ajudou na efetivação e implementação dele, da mesma forma que toda a história de vida do Irmão Basílio o constituiu e possibilitou todo o trabalho prestado à Igreja pelo Instituto Marista.

A renovação e a pertinência histórica do Concílio Vaticano II são indiscutíveis, bem como os meios para a sua realização nas amplas esferas da Igreja. Documentos foram publicados, os quais, como dizia João XXIII, ventilaram a Igreja em todas as suas esferas. Em algumas dessas, o Concílio foi recebido com significativa abertura, mas nem por isso a renovação deu-se por acabada. Em outras houve resistência, o que fez tardar a adaptação da Igreja à sociedade e à modernidade. 

Na Vida Consagrada, as mudanças também tiveram que ser profundas, desde sua auto-compreensão e lugar na Igreja, até as formas de apostolado, espiritualidade, vivência comunitária e inserção na vida social cotidiana. O sentido do ser religioso teve uma nova perspectiva: volta às fontes, superação do juridicismo, a retomada da inspiração evangélica no seguimento de Cristo pelos votos religiosos, o viés apostólico, entre outras. 

No Instituto Marista, também foram verificadas essas duas respostas aos apelos do Concílio, a da recepção e da resistência, mesmo com um Superior Geral que acreditava numa Igreja renovada e que se empenhou para que todos os novos elementos entrassem na vida marista e renovassem seu modo de ser. O Irmão Basílio cobrou de seus Provinciais a facilitação da abertura das províncias ao Vaticano II, e o quanto o preocupava essa demora. Na sua concepção, não havia motivos convincentes que explicassem a demora e a morosidade para as mudanças propostas. 

Não foram tempos calmos, mas, de maneira visível, o Irmão Basílio demonstrou que acreditava naquela proposta e que não mediria esforços para torná-la melhor conhecida e vivível. Por sua experiência eclesial ampla, ajudou também outras congregações na recepção do Concílio por livros, conferências e na pregação de retiros. 

Depois de analisados o Concílio e os documentos conciliares, o generalato do Irmão Basílio e suas obras, numa busca da recepção imediata da teologia dos carismas vinda do Concilio, é imprescindível olhar do tempo atual para o tempo estudado e encontrar os frutos deste período. Não é buscar o produto acabado daquele período, pois lá foi o início do processo, mas o que aquele período possibilitou que se avançasse nos anos que sucederam. A recepção e a adaptação não estão concluídas, pois o Espírito é dinâmico, e para aqueles que se abrem a sua inspiração, coisas novas vão surgindo para a efetivação da missão de Cristo no mundo. 

Referências 

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FLORES, José. Irmão Basílio Rueda – 9º Superior Geral (1967-1985). In: Nossos superiores gerais: biografia dos superiores do Instituto dos Irmãos Maristas, de 1839 a 1993. Memorial Marista. Curitiba: PUCPRESS, 2019. p. 554-617.

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ROMERO, Antonio. Carisma. In: RODRÍGUEZ, Angel; CASAS, Joan. Dicionário teológico da vida consagrada. São Paulo: Paulus, 1994. p. 89-99. 

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Notas

[1] IMRII: Identidade e Missão do Religioso Irmão na Igreja.

[2] O carisma Marista é dividido em quatro ramos, denominado Sociedade de Maria: Os Padres Maristas, as Irmãs Maristas, as Irmãs Maristas Missionárias e os Irmãos Maristas. Unidos pelo carisma fundacional, sem ligações jurídicas. 

[3] C: Constituições e Estatutos dos Irmãos Maristas. 

[4] Seguindo a normativa da PC n. 4 – que pedia a revisão das Constituições dos Institutos de vida consagrada – o XVI Capítulo Geral teve a função de adequá-las a tal mandato. Durante o primeiro período capitular os projetos do novo texto não puderam ser aprovados por falta de tempo. Foi nomeada uma comissão, para entre os períodos, elaborar um novo e único projeto. No segundo período foi entregue, e de artigo em artigo, se obteve a adesão unanime dos Capitulares. Assim se chegou ao texto que ficou em experimento e adequação até o XVIII Capítulo Geral.