POR UMA REFORMA DO PAPADO: HISTÓRIA, APELOS E CAMINHOS À LUZ DO PONTIFICADO DO PAPA FRANCISCO
TOWARDS A REFORM OF THE PAPACY: HISTORY, APPEALS AND PATHS IN THE LIGHT OF THE PONTIFICATE OF POPE FRANCIS

Ney de Souza
Pós Doutor em Teologia PUC Rio. Doutor em História Eclesiástica, Gregoriana (Roma). Docente do Programa de Estudos Pós-graduados em Teologia PUC SP. Contato: 
nsouza@pucsp.br

Tiago Cosmo da Silva Dias
Mestrando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP. Contato: 
pe.tiagocosmo@gmail.com


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Resumo

Desde que o Papa Francisco subiu a Sé de Pedro, em março de 2013, muito tem se falado, na Igreja, de reformas em todos os âmbitos. A finalidade deste artigo é refletir acerca da urgência da reforma do papado, resgatando os elementos históricos que favorecem os dogmas da infalibilidade e do primado e, ao mesmo tempo, revisitando os apelos dos papas às mudanças, procurando apontar alguns caminhos por onde a reforma pudesse transcorrer.

Palavras-Chave: Igreja. Reforma. Papado. Papa Francisco 

Abstract: 

Since Pope Francis came up to the See of Peter in March 2013, much has been said in the Church about reforms in all areas. The purpose of this article is to reflect on the urgency of the reform of the papacy, rescuing the historical elements that favor the dogmas of infallibility and primacy and, at the same time, revisiting the popes' calls to change, trying to point out some paths through which the reform could take place.

Keywords: Church. Reform. Papacy. Pope Francis.

Introdução

Desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), a palavra reforma parece ser uma constante no vocabulário e na vida eclesial, ainda que com algumas resistências. Fala-se em reformar diversos âmbitos, seja a própria Igreja como um todo, seja algumas instâncias como a cúria, a liturgia e a eclesiologia, donde urge a importância da reforma do papado. De fato, já nos tempos de Paulo VI (1963-1978) que os próprios papas têm oferecido seu ministério para análises e discussões, ao mesmo tempo em que têm pedido ajuda para se pensar em como exercê-lo sendo mais fiel ao Evangelho e àquilo que é em si mesmo: uma referência para a Igreja.

No entanto, todo projeto de reforma é composto de dois elementos: o utópico, que é a fonte que alimenta permanentemente o segundo, sem deixar que a rotina o sugue quando as forças contrárias vêm com seus tradicionalismos ou racionalismos; e o estratégico, que está a serviço do primeiro e pretende concretizá-lo mediante ações planejadas e avaliadas. “É da utopia anunciada que nasce um projeto de mudança, desde onde fala um líder novo que atrai pela força que emana de si mesmo um grupo de adeptos e de companheiros colaboradores” (PASSOS, 2013, p. 90).

A questão é que no dia 18 de julho de 1870, sob o pontificado do papa Pio IX (1846-1878), o Concílio Vaticano I (1869-1870) promulgou a Constituição Dogmática Pastor Aeternus, que definiu como dogma de fé divinamente revelado a infalibilidade papal em matéria de fé e de costumes, quando o bispo de Roma fala ex cathedra. Se feitas nessas circunstâncias, as declarações do papa são irreformáveis ex sese, non ex consensu Ecclesiae – por si, não pelo consenso da IgrejaNão de menor importância, o documento também definiu o primado de jurisdição do bispo de Roma, realçando que “a ele estão obrigados, por dever de subordinação hierárquica e de verdadeira obediência, os pastores e fiéis de qualquer rito e dignidade” (COD n. 5 p. 814), acrescentando, ao mesmo tempo, que o poder do papa é diferente daquele dos demais bispos, já que é “confirmado, corroborado e vindicado pelo pastor supremo e universal” (COD n. 10 p. 814). 

Escrever, portanto, sobre a reforma do papado toca diretamente não só em tradição, mas também em dogmas que, na Igreja, são palavra definitiva. Extrapolando, assim, dificuldades práticas, como a própria cúria romana que se põe entre o papa e a reforma, é preciso refletir se, para além de meras palavras, haverá coragem suficiente para contextualizar os dogmas e realizar, efetivamente, a esperada reforma.

1. Revisitando o contexto dos dogmas papais

As definições do Concílio Vaticano I, acerca do papa, não surgiram aleatoriamente. Os primeiros testemunhos sobre uma primazia romana datam da época de Cipriano de Cartago (210?-258), que interveio corroborando a atitude do papa Cornélio (251-253) com relação aos lapsos, ou seja, os apóstatas da fé durante as perseguições. Cipriano foi o primeiro a falar de uma “cátedra de Pedro” em Roma (ESTRADA, 2005, p. 450). Ambrósio (334?–397) também escreveu que “onde está Pedro, aí está a Igreja”, e Jerônimo (347-419), dirigindo-se ao papa Dâmaso, registrou: “Não sigo a ninguém como cabeça, a não ser a Cristo somente, e por isso quero permanecer em comunhão contigo, isto é, com a Sé de Pedro. Eu sei que sobre este rochedo está fundada a Igreja” (JERONIMO apud SCHMAUS, 1983, p. 155). 

Esta compreensão progrediu ao longo dos séculos, embora, em alguns momentos da história, tenha se tornado um “problema”; dois deles, por sinal, no século XI: o primeiro, em 1054, quando se consumou o cisma entre as Igrejas do Ocidente e do Oriente, cuja razão principal foi o primado de jurisdição do papa; o segundo, em 1075, quando o papa Gregório VII (1073-1085), no contexto da Reforma Gregoriana, escreveu o Dictatus Papae, um conjunto de 27 afirmações que está registrado ao final de uma carta do seu catálogo de cartas que, contudo, não foi divulgado. No texto, o papa dizia que o mundo tinha dois braços: o temporal e o espiritual – aquele sujeito a este! -, e ambos tinham uma só cabeça: o papa (HARTMANN, 2012, pp. 237-238). Este documento representou o ápice do desenvolvimento da ideia do primado e gerou sérios conflitos com o então imperador do Sacro Império Romano Germânico, Henrique IV (1056-1106). Em síntese, até o século XIX o primado de jurisdição era uma autocompreensão por parte dos papas, não um dogma do corpus Ecclesiae. 

A definição aconteceu somente no Concílio Vaticano I não por acaso: já desde a Revolução Francesa (1789-1799), com os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, a Europa começara a se transformar. As influências chegaram na Igreja, e nesta surgiu um grupo que ficou conhecido como católicos liberais[1], que se opôs radicalmente ao grupo dominante da época, hoje chamado de católicos intransigentes[2].

Naquele contexto, o papa Gregório XVI (1831-1846), na encíclica Mirari Vos (MV), condenou os princípios do liberalismo político e religioso, e considerou um ultraje qualquer ideia que tentasse expor que era necessária uma reforma na Igreja.

Sendo, portanto, máxima infrangível — para valer-nos das palavras dos padres tridentinos — que a Igreja foi ‘instruída por Jesus Cristo e seus apóstolos, e é dirigida pelo Espírito Santo, o qual diariamente lhe sugere todo tipo de verdade’, parece claro quanto seja absurdo e sumamente ultrajante para a mesma Igreja o propor certa restauração e regeneração como necessária para prover sua salvação e seus progressos, como se fosse possível entendê-la sujeita a defeito, ou a obscurecimento, ou a outros inconvenientes do gênero. Tudo isso são maquinações e tramas dirigidas pelos inovadores, tendo em vista seu desafortunado fim de lançar os fundamentos de um recente empreendimento humano, onde surja aquilo que tanto detestava são Cipriano, ‘que a Igreja se tornasse uma realidade humana’, ela que é inteiramente divina. Mas aqueles que vão meditando tais desígnios, considerem que, pelo testemunho de s. Leão, somente ao romano pontífice ‘é confiada a dispensa dos cânones’, e que somente a ele compete, e a nenhum outro homem, definir qualquer coisa “a respeito das regras de paternas sanções’, e, como escreve s. Gelásio, ‘sacudir em tal maneira os decretos dos cânones e comensurar os preceitos dos predecessores de modo tal que, após diligentes reflexões, traga conveniente renovação àquelas coisas que a necessidade dos tempos requerem dever-se prudentemente rever para o bem das Igrejas’ (EE - MV, 33, grifos e tradução nossos).

Na mesma linha, o papa Pio IX, que sucedeu a Gregório XVI, não via os ideais do liberalismo com bons olhos. Apesar de no início de seu pontificado ainda se acreditar que ele havia recebido influxos liberais, o desenrolar dos acontecimentos mostrou o inverso: em 1864, como uma espécie de comemoração pelo décimo aniversário da proclamação do dogma da Imaculada Conceição, Pio IX publicou o Syllabus e a Encíclica Quanta Cura, que listou 80 erros modernos e representou o cume do fechamento da Igreja aos novos tempos que começavam a despontar.

Num cenário em que as doutrinas eram questionadas, o poder papal era ameaçado não só em âmbito eclesial, mas também político, devido ao movimento de unificação do território que, hoje, é conhecido como Itália. Numa trajetória de idas e vindas a partir de 1848, que envolveu tensões partidárias e até a fuga de Pio IX, no dia 20 de setembro de 1870 os italianos ocuparam Roma, pela Porta Pia, e o papa perdeu o poder temporal sobre os Estados Pontifícios – fato que, inclusive, interrompeu o Concílio Vaticano I (MARTINA, 2005, pp. 279-280).

Aliás, quando se começou a cogitar a possibilidade de um Concílio, em 1869, já havia um grupo de cardeais franceses que acreditava que a reunião dos bispos deveria fazer uma proclamação solene do Syllabus e, ao mesmo tempo, forçar que a infalibilidade papal fosse aprovada por aclamação – uma tentativa de reforçar o poder do papa, transformando textos de encíclicas papais em documentos conciliares. 

Além disso, naquele contexto a devoção em torno da pessoa do papa alcançou níveis extremos. John Quinn, então arcebispo de São Francisco (Califórnia, USA- 1977-1995) e presidente da Conferência Episcopal Estadunidense (1977-1980) narra o caso do bispo suíço que, num sermão no início do Vaticano I, falava da “encarnação do filho de Deus no ancião do Vaticano” (2002, p. 49). A questão é que quando se apresentava a extrema exaltação do magistério papal, chegando mesmo a dizer que no papa há uma espécie de encarnação do Cristo, significava também dizer que havia quase duas “presenças reais”: a presença do Cristo silencioso e escondido na Eucaristia, e a presença do Cristo, mestre visível no papa. Ainda que não tenha conseguido uma aceitação significativa, esse ponto de vista teve uma influência silenciosa em vários níveis (QUINN, 2002, p. 83). De fato, até aquele momento, o motivo tradicional de peregrinação a Roma era a oração nos túmulos dos apóstolos Pedro e Paulo. Agora, um motivo para ir a Roma era ver o papa.

Portanto, é nítido, a rigor, que todo o contexto histórico-eclesial favoreceu a definição do dogma da infalibilidade papal e as afirmações acerca do primado, o que, se levado devidamente em consideração, “atenua” a força dos dogmas, por mais que, na Igreja, estes sejam soberanos.

2. Os apelos à reforma do papado

As definições do Concílio Vaticano I acerca do papado passaram a compor o corpo dos dogmas de fé e, aos poucos, a Igreja se abriu para novas realidades: com Leão XIII (1878-1903), à questão social, com a publicação da Carta Encíclica Rerum Novarum, em 1891; com Pio X (1903-1914), à ampla reforma interna, da cúria às questões litúrgicas e canônicas, esta última encerrada com Bento XV (1914-1922); com Pio XII (1939-1958) e a Carta Encíclica Divino Afflante Spiritu, em 1943, ao reconhecimento da importância das outras ciências para o estudo e a interpretação das Sagradas Escrituras; e assim sucessivamente. Nesse interim, houve também atitudes de fechamento, como foi o caso da Encíclica Mortalium Animos, de 1928, do Papa Pio XI (1922-1939), que demonstrava a desconfiança da Igreja com relação ao movimento ecumênico (SOUZA; GONÇALVES, 2013, pp. 99-112). 

O giro copernicano definitivo aconteceu somente em 1959, quando o papa João XXIII (1958-1963) anunciou seu desejo de convocar um Concílio para toda a Igreja, que aconteceu de 1962 a 1965 e, sem dúvida, tornou-se o grande marco histórico-eclesial do século XX. À época, a convocação de João XXIII teria causado um certo escândalo, visto que, se o papa havia sido proclamado infalível em matéria de fé e de costumes quando falasse ex cathedra, muitos interpretaram que concílios não seriam mais necessários, já que a palavra dos papas, a partir de então, seria soberana. Fato é que embora João XXIII não tenha visto a conclusão do Concílio, “seu ato de coragem procurou tirar o “mofo” acumulado atrás dos muros do Vaticano por mais de um século e anunciou uma nova fase para o catolicismo como sendo de alegria para a Igreja” (SOUZA; GOMES, 2014, p. 12). 

O Concílio começou, oficialmente, no dia 11 de outubro de 1962. O primeiro período foi encerrado no dia 8 de dezembro daquele mesmo ano. Alguns meses depois, no dia 3 de junho de 1963, João XXIII faleceu. Com sua morte, muito se discutiu se seu sucessor daria continuidade ao Concílio ou se o interromperia. O novo papa, porém, que assumiu o nome de Paulo VI, disse: “Poderíamos nós abandonar um caminho tão magistralmente desenhado por João XXIII, visando inclusive o futuro? Temos razões para acreditar que não” (ALBERIGO, 1995, p. 409). A Igreja se propunha ao aggiornamento, ou seja, à atualização e ao diálogo com o mundo moderno. E assim o fez: ao todo, o Concílio promulgou 4 Constituições, 9 Decretos e 3 Declarações.

O curioso é que, segundo Aurélio (2016, pp. 63-64), o termo “papado” não consta nos textos conciliares, enquanto “papa” aparece seis vezes (três vezes em LG 22c; 23a e 23c; duas vezes em “nota prévia”; uma vez em CD 4b). Há também o termo “romano pontífice” (20 vezes em LG; 9 vezes em CD); “sucessor de Pedro” (11 vezes em LG; uma vez em CD); “sumo pontífice” (9 vezes em LG e 6 vezes em CD) e “cabeça do colégio” (três vezes em LG) e “supremo pastor” (uma vez em LG). Como “bispo de Roma”, aparece uma só vez, num inciso histórico (LG 22a). Essa designação, de acordo com o autor, é importante porque, com ela, o papa não se apresenta mais como o bispo de toda a Igreja Católica ou como o bispo dos bispos, mas sim como bispo de uma Igreja local e a partir da qual “preside as demais no amor”.

Com o término do Concílio, Paulo VI continuou, no seu pontificado, insistindo na questão do diálogo, já acenando à necessária reforma do papado. No dia 10 de junho de 1969, por exemplo, pela primeira vez na história um papa visitou, em Genebra, a sede do Conselho Mundial das Igrejas (CMI), órgão de colaboração entre as igrejas e comunidades eclesiais ortodoxas, anglicanas e protestantes. Tomando a palavra, Paulo VI disse: “Eis-me, portanto, entre vós. Nosso nome é Pedro”. A afirmação petrificara a assembleia, mas Paulo VI estava, no fundo, reconhecendo que o seu ministério era um dos grandes impasses no caminho da unidade entre as igrejas. Por isso, acrescentou: “O primado se oferece na sua plena afirmação, não como um domínio orgulhoso, mas como condição de serviço à unidade” (PAULO VI, 1969).

Com a morte de Paulo VI, em 1978, foi eleito papa o cardeal Albino Luciani (1912-1978), que permaneceu no ministério somente por 33 dias, de 26 de agosto a 28 de setembro daquele mesmo ano. Apesar do curto período, o novo papa, que escolhera o nome de João Paulo I, também teve a oportunidade de realizar gestos que contribuíram para salientar a necessidade da reforma: recusou ser coroado com a tiara tríplice, rompendo com uma tradição de mais de mil anos, e abandonou a sedia gestatoria. No dia 3 de setembro, foi investido apenas com o pálio em uma cerimônia descrita como “investidura em seu ministério como pastor supremo” (MCBRIEN, 2013, p. 389). Estes pequenos gestos de João Paulo I puseram em realce que, antes de ser um líder político e, como tal, chefe de uma nação, o papa é sucessor de Pedro. Logo, sua principal responsabilidade é para com a Igreja.

Com a morte repentina de João Paulo I, foi eleito papa o cardeal polonês Karol Wojtyla (1920-2005), que adotou o nome de João Paulo II (1978-2005). Na linha do que já assinalara Paulo VI, o papa polonês, em 1987, numa homilia na Basílica Vaticana diante de Dimitrios I, então patriarca de Constantinopla, pediu a luz do Espírito para que se encontrasse uma forma de exercer seu ministério no serviço e no amor, palavras que ele repetiu em 1995 quando afirmou, na Encíclica Ut Unum Sint, a magnitude e a importância da reforma no exercício de sua missão: 

Dirigindo-me ao Patriarca Ecumênico, Sua Santidade Dimítrios I, disse estar consciente de que ‘por razões muito diferentes, e contra a vontade de uns e outros, o que era um serviço pôde manifestar-se sob uma luz bastante diversa. Mas [...] é com o desejo de obedecer verdadeiramente à vontade de Cristo que eu me reconheço chamado, como Bispo de Roma, a exercer este ministério [...]. O Espírito Santo nos dê sua luz, e ilumine todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros’. Tarefa imensa, que não podemos recusar, mas que sozinho não posso levar a bom termo (UUS 95-96).

Essa discussão se torna atual para a Igreja quando se pensa, em primeiro lugar, na renúncia do Papa Bento XVI (2013), que destacou o aspecto humano do ministério papal. Em sua declaração de renúncia, o papa afirmou que para governar a Barca de Pedro e anunciar o Evangelho era necessário o vigor do corpo e do espírito, algo que sentia haver diminuído de tal modo a ponto de ter que reconhecer sua incapacidade para administrar bem o ministério (BENTO XVI, 2013). 

A renúncia de Bento XVI é por si mesmo delatora da necessidade de reforma na Igreja. Mas o próprio papa anunciou explicitamente essa necessidade em sua retirada ao despedir-se do clero de Roma, dizendo que a “Igreja deveria renovar-se”. [...] O fato histórico é inédito, por tratar-se de renúncia voluntária, feita com plena consciência da gravidade e assumida como responsabilidade eclesial: para ao bem da Igreja, pelo futuro da Igreja. A renúncia reparte a história da Igreja Ocidental em passado e futuro e deixa um recado implícito de que a Igreja pode ser mudada em suas práticas institucionais, de que nenhum modelo é eterno e de que o papado é um serviço e não um poder sagrado intocável e imutável (PASSOS, 2013, p. 85).

Intimamente relacionada a este fato, está a eleição do Papa Francisco, considerado, em si mesmo, um projeto de reforma. Muitos teólogos, leigos e clérigos, viram em Bergoglio um “ar de mudanças” já em sua primeira aparição na sacada da Basílica de São Pedro, na noite do dia 13 de março de 2013, e por alguns pequenos detalhes: ele aparecera usando a mesma cruz peitoral que havia levado de Buenos Aires e que o acompanhara durante todo o conclave; e não chegara usando nem a tradicional mozeta e nem a estola, esta última colocada apenas na hora de dar a bênção.

As primeiras palavras do papa latino-americano e jesuíta mostravam, de antemão, sua simplicidade: “Irmãos e irmãs, boa noite! Vós sabeis que o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais foram buscá-lo quase ao fim do mundo… Eis-me aqui. Agradeço-vos o acolhimento: a comunidade diocesana de Roma tem o seu Bispo. Obrigado!” (PAPA FRANCISCO, 2013). Já da sua primeira fala, pelo menos duas realidades chamaram a atenção: primeiro, o fato dele referir-se a si como bispo de Roma, o que, segundo Hoornaert (2013, p. 153), assinalava que a primeira instituição do cristianismo é o episcopado, não o papado; segundo, dele dirigir-se primeiramente à comunidade diocesana de Roma, demonstrando que ele era um bispo como os demais, à frente de uma igreja local. 

Ao dirigir-se a todo o mundo e fazer o apelo para que exista uma grande fraternidade, Francisco retomou a expressão de Inácio de Antioquia, de que a Igreja de Roma é aquela “que preside todas as Igrejas no amor”. Em síntese, já na sua primeira fala Francisco apresentava sua intenção de ser o primus inter et cum pares, não um monarca soberano.

Os primeiros gestos vão pouco a pouco revelando seu perfil, como a inclinação diante da Praça de São Pedro e o pedido de uma oração abençoante dos fiéis sobre sua pessoa. Ou a recusa dos carros oficiais, do luxo dos mantos de arminho, mitras enfeitadas e casulas bordadas a ouro. Ou, ainda, o descer do altar para beijar e acariciar um enfermo na cerimônia de entronização. Ou o sorriso, não forçado, não congelado na face, mas espontâneo e constante (BINGEMER, 2013, p. 240).

Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (n.27), o Papa Francisco disse sonhar com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que “os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal mais proporcionado à evangelização do mundo atual que à autopreservação”. O papa foi incisivo ao dizer que era preciso mudar tudo, ou seja, que era necessário repensar a missão da Igreja nos dias de hoje. A este pedido, o papa acrescentou: “Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado” (EG 32). Neste sentido, Francisco colocou-se na linha de seus predecessores, fazendo, igualmente, apelos à reforma: 

[...] Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização. O Papa João Paulo II pediu que o ajudassem a encontrar uma ‘forma do exercício do primado que, sem renunciar de modo algum o que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova’. Pouco temos avançado nesse sentido. Também o papado e as estruturas centrais da Igreja universal precisam ouvir este apelo a uma conversão pastoral [...]. Uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e sua dinâmica missionária (EG 32).

Note-se que Francisco não só realçou o apelo de João Paulo II como o atualizou: se, em 1995, o papa polonês destacava a relevância da reforma sob a perspectiva da unidade, agora o pontífice argentino realça sua importância para a pastoral. 

Não se trata de reinventar a Igreja, mas de continuar a reforma a partir do governo central, descendo aos governos locais. Isso significa repensar o exercício do poder como serviço, sem arrogâncias pagãs do poder sagrado, sem as tiranias monárquicas e sem os pragmatismos dos governos modernos. [...] A Igreja peregrina na história não tem um modelo definitivo nem uma receita segura para si mesma. [...] Reforma é algo inerente à Igreja, atitude de espírito (audição e docilidade ao Espírito) que se torna ação em cada tempo e lugar; fidelidade à própria dinâmica da tradição, entendida como o que é transmitido através do tempo, e que rejeita, por isso mesmo, toda forma de conservadorismo. [...] A sintonia com a história exige discernimento e coragem por parte da Igreja, para que possa responder, no ritmo da história rápida e não da história lenta do mundo pré-moderno, àquilo que a fé tem que a fazer pelo ser humano (PASSOS, 2013, pp. 98-99).

De fato, não se pode se esquecer daquele princípio elementar de que, para qualquer mudança ou reforma, os líderes devem ser os primeiros a dar o exemplo. E este é um pontificado, o de Francisco, que é da revolução da misericórdia e o início de reformas da Igreja (cf. SPADARO; GALLI, 2017, 5-14). Para a reforma e reformas, “este é um pontificado, o de Francisco, que é da revolução da misericórdia...” (SOUZA, 2019, p. 10).

3. Alguns desafios

Efetivamente, o governo central da Igreja precisa ser repensado. Se, de certa forma, as palavras e os gestos dos papas, após o Vaticano II, já demonstraram essa necessidade, chegou o momento de agir. Para isso, antes de tudo, a Igreja necessitará de coragem para revisitar os dogmas papais e situá-los em seu respectivo contexto, visando verificar se, nestes tempos, são realmente necessários – ao menos nos moldes da definição.

Além disso, é preciso reconhecer que o papado não veio diretamente de Jesus, como se faz continuamente recuperando o texto de Mt 16,16, mas é, antes, o resultado de um longo processo, inclusive de conflitos e domínios. Na verdade, o papado tem suas origens não na pessoa de Pedro, mas sim no carisma petrino, e tocar no tema da reforma significa assumir suas configurações como construções e reconstruções permanentes, com a consciência de sua fidelidade ao carisma original e como um modo mais adequado de vivenciá-lo em cada tempo e lugar, o que significa dizer que o carisma petrino permanece, mas o papado muda.

Do ponto de vista prático, o fato de Francisco preferir ser chamado de bispo de Roma é um indicador de que ele, pessoalmente, sonha com uma Igreja menos centralizada, mais aberta e democrática; uma Igreja, de fato, Povo de Deus, na qual os carismas possam florescer sem medo e os ministérios possam ser exercidos livremente, sem a centralização excessiva de hoje. Aliás, a antiga prática da Igreja do primeiro milênio, de levar as questões mais importantes ao papa, embora manifestasse que o bispo de Roma tinha uma autoridade única e final entre a Igreja e seus bispos, não significa que o “poder papal” era exercido de modo arbitrário, mas sim rara e moderadamente, dimensionado para o bem maior das Igrejas. Nos primeiros milênios, inclusive, o uso da força do primado aparece de modo especial nos concílios ecumênicos, e com razão: se um dos principais objetivos do primado era a unidade dos bispos, era natural que ele viesse à tona nos momentos de crise doutrinal, quando a unidade era querida pela Igreja (QUINN, 2002, pp. 100-101).

Nesse aspecto, emerge a urgência da colegialidade dos bispos, que não é, como escreveu Quinn (2002, pp. 106-107), o resultado da decisão de um concílio ou a determinação de uma lei canônica, mas sim uma propriedade da natureza sacramental da função episcopal. Ou seja: o Colégio dos Bispos é constituído por Cristo que, enviado pelo Pai e agindo pelo Espírito, é o ministro do sacramento. Logo, na medida em que o papa é bispo pela ordenação sacramental, é irrevogavelmente membro do Colégio dos Bispos, e jamais pode ser colocado fora dele. Desse modo, “o Colégio não pode exercer seu poder a não ser que esteja em comunhão com o papa; por sua vez, o papa não pode anular a função colegial do episcopado, pois é papa somente enquanto é membro do colégio episcopal” (AURÉLIO, 2016, p. 70). A colegialidade “é um tema importante e um difícil legado pelo Vaticano II” e é uma ‘necessidade impreterível’” (JOSAPHAT, 2015, p. 149). 

Apesar disso, a reforma de Francisco não tem sido assumida como reforma da e pela Igreja. A maioria do episcopado parece esperar a ordem superior ou a norma a ser aplicada, ao invés de viver uma efetiva colegialidade. No atual modelo eclesial, no qual o “protagonismo” concentrou-se nas mãos da hierarquia, cuja origem primeira é o papa e a administração curial, vive-se um modo de ser eclesial pautado pela cultura da reprodução obediente, no qual qualquer protagonismo renovador é entendido como atrevimento e desobediência. Por sua vez, as reformas que Francisco propõe ocorrem dentro desse quadro, que se pauta pela conservação da “unidade” e pela integridade da tradição, entendida como preservação intacta do passado (PASSOS, 2018, pp. 14-15).

No entanto, como escreveu Miranda (2017, p. 199), “a reforma de Francisco não é só dele, pois nos convida a viver com maior profundidade e autenticidade o que professamos. E ele conta não somente com nossas orações, mas também com nossa ajuda. A missão de Francisco é também nossa missão”. O teólogo jesuíta afirma que o Papa Francisco insiste, corajosamente, “em concretizar uma Igreja sinodal, apesar das resistências de alguns, devidas a razões diversas: aversão a mudanças, medo de perda de poder e de prestígio, ceticismo pela complexidade da tarefa, sentimentos de insegurança...” (MIRANDA, 2018, p. 10). Importante frisar e aprender as lições históricas, portanto, como afirma a filosofa alemã Hannah Arendt (1906-1975): o poder não é pensado como algo que pode ser imposto através da vontade de um único indivíduo, mas deve surgir entre pessoas que chegam a um consenso (ARENDT, 1965, p. 181).

Enquanto, porém, a reforma do papado for considerada como uma heresia que atenta contra a Igreja, senão contra o próprio Cristo, ela não deixará de ser um projeto utópico. É próprio, porém, da fé, exigir que se busquem, por meio da razão, seus modos de expressão (cf. 1Pd 3,15). 

[...] Embora o papado já esteja modificado em muitos aspectos de seu modus operandi e refeito simbolicamente, qualquer reforma efetiva deverá ser traduzida em estatuto jurídico e, por certo, em última instância na revisão do próprio Direito Canônico. Do contrário, poderá ter a durabilidade do pontificado, mesmo que as reformas sejam promulgadas na figura usual de motu próprio, sujeito a uma contrarreforma posterior. Uma reforma do papado toca diretamente na trade na tradição ocidental instituída sobre o bispo de Roma e que se encontra legislada no Código de Direito Canônico em termos de bispo da Igreja universal (cf. cân. 331-333) (PASSOS, 2018, p. 266).

Em síntese, o ministério petrino deve se caracterizar como serviço na e para a Igreja, e não como poder sobre ela. E assim, sua “eleição (2013) parece evocar aquela visão de oito séculos atrás: ‘Vai Francisco, e restaura a minha Igreja em ruínas’” (SOUZA, 2016, p. 192). Essa missão foi conferida ao Papa Francisco pelos cardeais eleitores, que é de reformar, mudar a Igreja.            

Considerações finais

Ainda que a Igreja, sob os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, tenha vivenciado uma interrupção da reforma inaugurada pelo Vaticano II e um controle de seu carisma renovador, a renovação de Francisco começou com carisma e simplicidade, mesmo que exposto a dois vilões: a cúria romana e o espetáculo da mídia. A bondade, a proximidade, a naturalidade e a normalidade de um homem simples, que se despojou dos símbolos de poder e da sagrada distância que os papas anteriores adotavam, têm cativado milhões de cristãos. De fato, “a humanidade é aquilo em que todos nós, seres humanos, coincidimos. O humano é anterior ao religioso” (CASTILHO, 2013, p. 114).

Com Francisco, o papado deu sinais de mudança: a saída de Bento XVI demonstrou que o ministério do bispo de Roma não é eterno e existe como o de qualquer outro bispo, em relação à sua igreja particular; e a chegada de Francisco tem demonstrado um aspecto próprio do ministério petrino que, por vezes, acaba sublimado, que é o serviço aos mais pobres. De fato, “o papa Francisco tem se mostrado um fenômeno de resistência política e espiritual: líder hábil, reformador convicto e místico sereno” (PASSOS, 2018, p. 19). 

Agora é com a Igreja: permitir-se abrir à docilidade do Espírito que, a cada tempo, suscita quem quer para guiar a Barca de Pedro e abraçar o projeto de Francisco. Uma coisa, porém, é certa: a reforma é inadiável. É para já.

Referências

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Notas

[1] Para a leitura das convicções dos católicos liberais, ver: MARTINA, Giacomo. História da Igreja. De Lutero a Nossos Dias. III – A Era do Liberalismo. São Paulo: Loyola, 2005, p.182ss.

[2] Para as características dos católicos intransigentes, ver: MARTINA, Op. Cit., p.150ss.