A tecnologia: criatividade e poder. Uma reflexão ético-social à luz da Laudato si’
Tecnology: creativity and power. An ethical-social reflection in the light of Laudato si

Rogério Gomes
Doutor em Teologia Moral pela Accademia Alfonsiana, Roma. Atualmente é professor convidado da Accademia Alfonsiana, Roma. Contato: 
rogergomescssr@gmail.com


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Resumo:

O artigo visa refletir sobre o pensamento do Papa Francisco acerca da técnica, no capítulo terceiro da encíclica Laudato si’. Para isso, o autor apresenta a visão de alguns documentos do Vaticano II e de algumas encíclicas sociais para demonstrar como este assunto é compreendido pela Igreja que reconhece os benefícios do e as ambivalências do progresso tecnocientífico. É dessas bases que o Papa reflete, no âmbito da casa comum, sobre os benefícios da tecnologia como facilitadora da vida humana, o paradigma tecnocrático e o reducionismo antropológico e suas consequências. A reflexão considera o conceito de desenvolvimento na óptica da Doutrina social da Igreja. Desses elementos, o artigo busca aprofundar esse discurso a partir de algumas chaves de leituras que advém do próprio mundo da técnica e como isso interfere na vida humana. 

Palavras-chaves: técnica, paradigma tecnocrático, imperativo técnico, horizonte antropológico, poder, ambivalência, ecologia integral.

Abstract:

The article’s objective is to reflect on Pope Francis’s thought about technology as referred to in the third chapter of the encyclical Laudato Sí. For this, the author presents the vision of some Vatican II documents and social encyclicals to demonstrate how this subject is understood by the Church while recognizing the benefits of and ambivalences in technoscientific progress. From these bases, the Pope reflects, in consideration of our common home, the benefits of technology as a facilitator of human life, the technocratic paradigm and anthropological reductionism, and its consequences. The reflection considers the concept of development from the perspective of the social doctrine of the Church. From these elements, the article seeks to deepen this discourse based on some key readings from the world of technology itself and thus better understand how this interferes with human life. 

Keywords: technique, technocratic paradigm, technical imperative, anthropological horizon, power, ambivalence, integral ecology.

Introdução

Este artigo visa analisar o pensamento do Papa Francisco, acerca da técnica, na encíclica social Laudato si’, assinada no dia 24 de maio, solenidade de Pentecostes de 2015, na qual ele reflete sobre o cuidado da casa comum. O texto é estruturado em seis capítulos, sendo objeto desta análise, alguns aspectos do capítulo terceiro. Intitulado a raiz da crise ecológica, nele o Papa aborda a tecnologia como criatividade e poder, o paradigma tecnocrático e sua globalização, a crise do antropocentrismo moderno e suas consequências, tais como o relativismo prático, a exclusão do trabalho e a inovação biológica a partir da pesquisa. Desse modo, o discurso sobre a tecnologia é tecido considerando a relação entre ser humano, seus pares e sua casa comum e como este a administra responsavelmente (Cf. Laudato si’, 2015, n. 101-136). 

Para adentrar em tal análise é fundamental considerar que o pensamento da Igreja em relação à técnica deve ser compreendido no âmbito do progresso integral dos povos. Por este conceito, a doutrina social da Igreja entende toda a capacidade do ser humano com as diferentes facetas antropológicas que o caracteriza: somaticus, vivens, sapiens, volens, socialis, culturalis, faber, ludens, religiosus, axiologicus, rationalis, pictor, loquax, oeconomicus, cyberneticus, symbioticus (Cf. MONDIN, 1993, p. 30-323; MORA, 2004, p. 1680; VON ZUBEN, 2006, p. 23), inserido no âmbito cultural, histórico, científico, econômico, político, antropológico, natural, moral, espiritual e produtor de bens e de sentido para realizar-se  humanamente. Evidencia-se, então, que o progresso da humanidade não é uma realidade abstrata simplesmente derivada da mera ação humana, como capacidade de produzir algo, instrumentalizá-lo e torná-lo eficiente, dando a ideia de que isso constitui evolução em si mesma, mas na dimensão criativa enquanto realização humana ao produzir bens que favorecem o desenvolvimento humano na terra e a sua aplicabilidade concreta com suas decorrências e ambivalências. Assim, a técnica no pensamento social da Igreja, encontra-se nesse conjunto de interfaces interconectadas que devem estar a serviço da humanidade e em favor da dignidade humana. Portanto, o progresso técnico-científico, humano e ético deve caminhar juntos, embora nem sempre isso ocorra.

É importante considerar que a técnica não é somente um conjunto de engenhos refinados frutos da evolução científica e econômica. No seu bojo também envolve questões filosóficas e éticas. Ela não é neutra, uma vez manipulada por interesses e, na medida que proporciona uma série de benefícios, também influencia o ser humano que é afetado e instrumentalizado por ela, a partir de grupos de poder (Cf. Laudato si’, 2015, n. 107). Para Galimberti

A técnica não é neutra, porque cria um mundo com determinadas características que não podemos evitar de conviver, e convivendo contrair hábitos que nos transformam inevitavelmente [...]. A técnica não é mais objeto de nossa escolha, mas é o nosso ambiente, onde fins e meios, objetivos e idealizações, condutas, ações e paixões, até mesmo sonhos e desejos são tecnicamente articulados e têm necessidade da técnica para exprimirem-se (GALIMBERTI, 2007, p. 34).

Postas tais considerações preliminares, o pensamento de Francisco sobre o progresso tecnológico, seguindo o magistério conciliar e dos seus predecessores, é fundado nos princípios da doutrina social da Igreja: bem comum, subsidiariedade, destinação universal dos bens, participação, solidariedade e na sua leitura dos “sinais dos tempos”, o que lhe permite atualizar a reflexão no contexto hodierno com suas problemáticas, superando certas visões hermenêuticas já ultrapassadas. 

A visão sobre o progresso tecnocientífico em alguns documentos da Igreja

Fazendo um recorte teórico, a partir dos documentos do Vaticano II, a visão que emerge dos documentos eclesiais é a de que o progresso técnico transforma todos os âmbitos da vida na terra bem como o conhecimento do espaço e o domínio do mundo material. O desenvolvimento com a ciência aumenta o domínio humano sobre a natureza. As mudanças sociais e culturais e a nova época da história humana são assinaladas por grande evolução das ciências naturais, humanas, sociais e pelo progresso das técnicas e em todos os campos do saber. Evidencia-se a dificuldade de harmonizar tal progresso e para fazê-lo é necessário educar a inteligência segundo as diferentes tradições e por meio dos estudos clássicos. O progresso científico deve ser compreendido na lógica da sabedoria. Ressalta-se ainda que o avanço tecnocientífico é útil para prolongar a longevidade biológica, porém essa não consegue cessar a ansiedade do ser humano. (Cf. Gaudium et spes, 1965, n. 5, 15, 18, 20, 33, 54, 56). 

Na linguagem conciliar o ser humano atual está muito ligado à ciência e à tecnologia do mundo moderno. A autonomia absoluta e o sentido de potência que o progresso hodierno inculca no ser humano pode fazê-lo perder o contato com a realidade e favorecer o ateísmo (Cf. Gaudium et spes, 1965, 20; Ad gentes, 1965, n. 11), uma vez que a excessiva confiança no progresso das ciências naturais e na técnica se inclinam à idolatria das coisas temporais, de modo a favorecê-lo (Apostolicam actuositatem, 1965, n. 7).

Em nível das encíclicas sociais se verifica que o avanço da técnica é resultante da inteligência humana, subordinada à divina (Pacem in terris, 1963, n. 257). Nesse processo, evidenciam-se o conflito geracional decorrente da tensão entre conservar as tradições e renunciar ao progresso e abrir-se às técnicas. A tecnocracia pode ser fonte dos males quando não está a serviço do progresso humano (Populorum progressio, 1967, n. 10, 33). O aprimoramento da técnica deve ser colocado num plano com perspectivas universais e autenticamente humanístico para não ameaçar o ambiente natural do ser humano. Tal progresso tecnocientífico e civilizatório exigem um proporcional avanço também da vida moral e da ética (Redemptor hominis, 1979, n. 15). O progresso técnico tem levado ao domínio e à submissão da terra, à mecanização e a perda do trabalho (Laborem exercens, 1981, n. 5).

A Mater et magistra assinala algumas problemáticas sobre o progresso tecnocientífico e também a sua contribuição aos poderes públicos para reduzirem as desigualdades sociais entre as nações, nos diferentes níveis das relações sociais, econômicas e no mundo do trabalho (Mater et magistra, 1961, n. 47, 54).

Em Caritas in veritate, Bento XVI afirma que a técnica tomada por si mesma é ambivalente. Absolutizá-la ou querer voltar ao estado natural são modos opostos de compreender o progresso. A confiança nos prodígios da tecnologia esvazia o desenvolvimento dos povos. A técnica está ligada à autonomia, à criatividade, à liberdade e às melhorias da condição de vida em todos os sentidos. Ela livra o ser humano de seus limites e amplia seus horizontes. Insere-se no mandato divino de cuidar da terra. Ela é um aspecto do agir humano com todas as suas consequências e pode induzir à ideia de autossuficiência, transformar-se em um poder ideológico à medida que a humanidade se fecha em si e à procura pelo ser e pela verdade. Assim, todas as realidades da vida seriam decididas pelo horizonte cultural tecnocrático. A mentalidade tecnocrática faz coincidir a verdade com o factível, com critérios de eficiência e utilidade negando o desenvolvimento integral. É fundamental a formação para o uso da técnica para que se possa recuperar o verdadeiro sentido de liberdade. No contexto atual as respostas às questões sociais, até mesmo a paz, partem do horizonte técnico. Absolutizar a técnica é confundir fins e meios. A técnica trouxe avanços na área da comunicação social e também problemas para a bioética que deve refletir sobre as questões do absolutismo técnico e a responsabilidade moral do ser humano. Esse absolutismo da técnica pode levar à eugenia, ao reducionismo neurológico perdendo a consistência ontológica da alma e tantas outras formas de exclusões. Tal absolutização exclui tudo o que não se pode explicar a partir do material e da análise dos fenômenos. Diante disso, é importante considerar a técnica como bem da ação humana desde os fundamentos antropológicos e dos valores, do bem comum, do desenvolvimento integral, da dimensão transcendental da pessoa e formar a consciência para que tenha coerência moral (Cf. Caritas in veritate, 2009, n. 14, 68-77).

Postos este quadro, nota-se que os diferentes documentos eclesiais evidenciam o progresso como bem humano e as suas ambivalências, um ponto de crítica dos adeptos da tecnofilia, que veem no pensamento eclesial sempre em sentido negativo. Pode-se afirmar, a partir do exposto, com Hans Jonas que “a nova forma do agir humano exige uma ética da prevenção e da responsabilidade adequada, tanto nova quanto os problemas que deve afrontar” (JONAS, 1991, p. 55). É nessa ótica que se compreende a reflexão social da Igreja e não como contraposição ao saber tecnocientífico.

O paradigma tecnocrático

Francisco reconhece o avanço da técnica em todos os setores da vida humana, seus benefícios e o empoderamento que traz ao ser humano, quando bem orientada (Cf. Laudato si’, 2015, n. 103). Entende-se por isto valores antropológicos que consideram o ser humano na sua totalidade e o seu agir dentro de parâmetros éticos. Entretanto, faz notar que esse poder não é para todos, sim “àqueles que detêm o conhecimento e sobretudo o poder econômico para desfrutá-lo, um domínio impressionante sobre o conjunto do gênero humano e do mundo inteiro” (Laudato si’, 2015, n. 104). Relembra as consequências disso: a bomba atômica e os regimes totalitários que usando recursos da técnica exterminaram milhões de pessoas. Francisco reconhece que “‘o homem moderno não foi educado para o reto uso do poder’, pois o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência” (Laudato si’, 2015, n. 105).

Francisco inicia a reflexão convidando seus interlocutores a se concentrarem “no paradigma tecnocrático dominante e no lugar que ocupa nele o ser humano e a sua ação no mundo” (Laudato si’, 2015, n. 101). O que se entende por paradigma tecnocrático? Antes de adentrar ao conceito, é importante conhecer o significado do termo “paradigma”. 

Por paradigma, tomando como referência Thomas Kuhn, entende-se “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante um tempo, fornecem um modelo de problemas e soluções aceitáveis a uma comunidade de profissionais” (KUHN, 1970, p. viii). Posto isso, a questão é verificar se há uma coincidência conceitual nesses dois modos de perceber a realidade, um da filosofia da ciência e outro da doutrina social, voltada no campo ecológico em seu sentido amplo, como reflexão sobre a casa comum onde vive o ser humano (Cf. HANBY, 2015, BELLVER, 2017).

É inegável que as realizações tecnocientíficas são, hoje, universalmente reconhecidas desde o momento em que o ser humano começa a transformar o seu entorno para sobreviver. Este fazer (teckne) e saber (logos) atingem um patamar revolucionário ao oferecer soluções para resolver as problemáticas que se apresentam decorrentes da própria ação humana enquanto fazer e ser. Nesse sentido, é possível esta leitura sob o prisma de paradigma. Ao afirmar que há um paradigma tecnocrático, afirma-se que há uma operação de kratos (Cf. LIDDELL; SCOTT, 1993, p. 391; ROMIZI, 2007, 738; LIDDELL; SCOTT, 1968, p. 992; MURRAY, 2005, p. 558). [1] que atua com força em tekne e logos. Assevera Francisco: 

[...] o modo como realmente a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento juntamente com um paradigma homogêneo e unidimensional. Neste paradigma, sobressai uma concepção do sujeito que progressivamente, no processo lógico-racional, compreende e assim se apropria do objeto que se encontra fora. Um tal sujeito desenvolve-se ao estabelecer o método científico com a sua experimentação, que já é explicitamente uma técnica de posse, domínio e transformação. É como se o sujeito tivesse à sua frente a realidade informe totalmente disponível para a manipulação. [...] Um paradigma de compreensão que condiciona a vida das pessoas e o funcionamento da sociedade. [....] Hoje o paradigma tecnocrático tornou-se tão dominante que é muito difícil prescindir dos seus recursos, e mais difícil ainda é utilizar os seus recursos sem ser dominados pela sua lógica [...]. O paradigma tecnocrático tende a exercer o seu domínio também sobre a economia e a política. A economia assume todo o desenvolvimento tecnológico em função do lucro, sem prestar atenção a eventuais consequências negativas para o ser humano (Laudato si’, 2015, n. 106-109).

Neste sentido, o paradigma tecnocrático é o narcisismo da técnica, quando essa deixa de ser uma realidade facilitadora do processo de transformação que o ser humano exerce sobre a terra, para ser arché do domínio nas quais todas as questões vitais da humanidade são tecnicizadas. Como relembra Jonas, “o homem é o artífice da própria vida enquanto humana; ele submete as circunstâncias à própria vontade e as próprias necessidades, exceto que frente à morte, nunca está desarmado” (JONAS, 2002, p. 5; Cf. JONAS, 1991, p. 44). O ser humano é artífice da vida e pode explorar todos os recursos da natureza em benefício de si, é alguém que está sempre pronto a agir. Por isso, “tornou-se anticultural a escolha dum estilo de vida, cujos objetivos possam ser, pelo menos em parte, independentes da técnica, dos seus custos e do seu poder globalizante e massificador (Laudato si’, 2015, n. 108). Essa automatização sedutora da técnica enquanto kratos fez com que o ser humano se tornasse perigoso para a sua própria espécie à medida que coloca em risco toda a dimensão de equilíbrio cosmo-biológico que são bases fundantes para a humanidade (Cf. DE SIQUEIRA, 2006, p. 66), como se observa no pensamento de Francisco. 

No conjunto desse poder operativo paradigmático da tecnocracia existe outra dimensão a ser considerada, o imperativo técnico e faz-se necessário compreendê-lo.

O imperativo da técnica

O paradigma tecnocrático carrega em sua essência o imperativo da técnica:  fazer tudo aquilo que pode ser feito e criar maneiras de consumir o que é feito. “O imperativo da técnica: ‘deve-se fazer tudo aquilo que se pode fazer’ encontra aqui o seu complemento: ‘deve-se consumir tudo aquilo que é produzido, tudo aquilo que foi feito’” (GALIMBERTI, 2007, p. 611; Cf. SALVINI, 1994, p. 157; HOTTOIS, 1990, p. 138; VON ZUBEN, 2006, p. 202). Significa dizer que a técnica passa a dominar todas as instâncias da vida humana e, aquilo que era dado como artificial ou instrumental, como o prolongamento do corpo humano ou adequação à natureza assume um caráter invasivo e torna-se um mercado onde os produtos são consumidos, especialmente por quem pode adquiri-los. Por trás dessa visão, está também a lógica do mercado. 

O imperativo da técnica, como o de Kant, conhece apenas o dever pelo dever, pelo qual se deve fazer tudo aquilo que se pode fazer, mesmo que não se conheçam os fins para os quais algo deve ser feito. Mas o imperativo que exige que se faça tudo que se pode, comporta que não se deixe nada em desuso de tudo aquilo que se pode usar, o que significa ver o mundo como pura matéria-prima, onde o homem está inscrito como um simples final do ciclo que da produção leva ao consumo, e do consumo à produção. Um ciclo onde as necessidades do homem não são o fim da produção, mas a máquina a ser alimentada para a produção (GALIMBERTI, 2007, p. 597).

Reside aí o perigo, uma vez que os limites são muito tênues e não se tem nenhuma antevisão ou certeza de onde se pode chegar. Exatamente aí, a técnica revela o lado vulnerável, o seu tendão de Aquiles. Essa vulnerabilidade caracteriza-se pelo descompasso originado entre o mundo técnico-tecnológico do poder fazer tudo, o mundo real e a condição antropológica do homem (Cf. GOMES, 2010, p. 75-85; GOMES, 2011, p. 109-118). É verdade, que na atual conjuntura, depara-se com o enorme acúmulo do saber humano que torna o homem mais competente, mas não isento de riscos. Nas palavras de Foucault o saber constitui

aquilo de que se pode falar em uma prática discursiva que venha a ser especificado deste modo: o campo constituído por diversos objetos que ganharão ou não um estatuto científico [...] é também o espaço onde o sujeito pode tomar uma posição para falar dos objetos com os quais tem que lidar no seu discurso [...] é também o campo da coordenação e da subordinação dos enunciados no qual aparecem, definem-se, aplicam-se e transformam os conceitos. [...] Por fim, um saber se define com base na possibilidade de utilização e aprovação oferecidas pelo discurso (FOUCAULT, 2006, p. 238).

Esta prática discursiva, associada aos diversos campos, constituídos dos múltiplos objetos e aplicada em nível técnico amplia horizontes e se estabelece como poder. Nunca o ser humano teve tanto poder em suas mãos. A fissão atômica, a clonagem humana, a inteligência artificial e todos os recursos das bioetcnologias revelam o poder das novas tecnologias e com elas o poder humano. Para alguns, é o pleno domínio da natureza, o máximo do empoderamento humano. É certo que há muito progresso tecnocientífico, porém o ser humano ainda permanece muito aquém na sua qualidade de vida, enquanto humanização é progresso ético.

O mundo da técnica criou uma mentalidade de domínio da natureza. Esta ideia é válida até certo ponto, enquanto se pode usar a técnica que manipula e transforma. Esta abordagem explorativa da natureza é possível enquanto essa encontra-se no processo de omeostase, isto é, no seu equilíbrio. Quando a técnica interrompe, pela sua ambiguidade, a omeostase ou a própria natureza, como processo dinâmico, refaz o seu ciclo homeostático, ou desiquilibra, o ser humano volta ao ponto zero de sua vulnerabilidade, torna-se o Prometeu acorrentado, enquanto ser, e busca o conjunto técnico para garantir sua permanência como ser. A técnica pode ser um elemento de prevenção em determinados aspectos, e neste caso da força terrível da natureza, revela a sua vulnerabilidade, porque não pode contrapô-la em suas forças. Por isso, na Laudato si’ a reflexão sobre a tecnologia é apresentada como um fator de desequilíbrio ecológico na originalidade do termo e tudo o que isso implica. 

[...] não deveria surpreender que, juntamente com a onipresença do paradigma tecnocrático e a adoração do poder humano sem limites, desenvolva-se nos indivíduos este relativismo no qual tudo o que não serve os próprios interesses imediatos se torna irrelevante. Nisto, há uma lógica que permite compreender como se alimentam mutuamente diferentes atitudes, que provocam ao mesmo tempo a degradação ambiental e a degradação social (Laudato si’, 2015, n. 122).

Além disso, a técnica como construção humana não é capaz de responder aos problemas de fundacionais do ser humano. Do ponto de vista material, traz importantes recursos, mas na perspectiva das questões existenciais permanecerá sempre o vazio que pode ser causado pela incapacidade da técnica em respondê-las ou porque o ser humano se aferra ao poder da mesma para a mediar sua relação com o mundo e com o outro. Portanto, a técnica, no seu conjunto, é como Aquiles, deve sempre esconder o calcanhar, uma vez que pode ser ferida mortalmente pela impossibilidade de responder aos desafios da ordem existencial do homem, bem como a todos os problemas que ela mesmo impõe no decorrer da sua aplicabilidade.

A mudança de horizonte antropológico

Francisco evidencia a crise do antropocentrismo moderno. É notável que o poder técnico em todos os seus sentidos – positivo e ambivalente – forjou a mudança de horizonte antropológico e cosmológico. Para os antigos gregos a realidade era algo a ser contemplada. O universo se apresentava diante do ser humano e tudo seguia o seu fluxo natural. O mundo parmenidiano estático e marcado pela indivisibilidade do ser, enquanto o heraclitiano mutável, cheio de transformações, em constante devir, no qual ninguém poderia banhar-se duas vezes no mesmo rio. Dessas duas cosmovisões, os antigos não estabeleceram uma relação instrumental com o mundo, tanto que se pode denominar, no decurso da filosofia grega, cinco grandes linhas de reflexão, divididas em períodos: a) cosmológico (pré-socráticos: a ordem do mundo e os problemas do conhecimento humano); b) antropológico (sofistas e Sócrates: o problema do homem como unidade em si mesmo); c) ontológico (Platão e Aristóteles: o valor do homem e a realidade do ser como tal); d) ético (estoicismo, epicurismo, ceticismo e ecletismo: problema da conduta humana); e) religioso (neoplatonismo: buscava verificar as relações homem-Deus) No geral, a preocupação estava centrada no ser humano que habitava a pólis grega e era livre (Cf. ABBAGNANO, 2007, p. 10, 20, 36-37).

Entretanto, os filósofos do mundo antigo conheciam a materialidade das coisas (fogo, terra, ar, água, átomo, números) e teorizavam sobre esta realidade. Platão e Aristóteles, no horizonte da pólis, dentre tantas coisas, refletiram sobre a técnica (poiésis), indicando que, embora não fosse uma preocupação primeira, fazia parte da vida humana (Cf. SCHARFF; DUSEK, 2003, p. 8-24).[2] Esta referência ao mundo antigo é importante, pois nele se encontram os gérmens das reflexões sobre o problema humano e da técnica, tão antigos quanto o aparecimento do homem na terra.

Com o advento da técnica, não como poiésis, mas como possibilidade de um desvelamento aproximativo e explorador da natureza, mudaram-se a noção de cosmo, da antropologia, da metafísica, da religião e da ética. Aqui cabe perguntar se, de fato, foi a técnica que mudou o sujeito humano ou se é esse sujeito que, com a técnica, muda o seu modo de relacionar-se com o mundo. Por que se diz que a técnica mudou o modo de percepção do ser humano? Será por que ela exerce uma força sobre o humano? E isto seria possível, uma vez que a técnica não tem vida própria? O ser humano forja a técnica, e quanto esta assume uma dimensão exterior, como conjunto de saber que envolve o mundo, passa a coagir o homem (Cf. SALVINI, 1994, p. 160-161) que não consegue mais relacionar-se com o mundo sem uma mediação técnica e, aos poucos, vai modificando os seus horizontes antropológicos até ao ponto de colocá-lo em crise ao perder a referência do humano, negando a verdade originária do seu próprio ser (Cf. HEIDEGGER, 1976, p. 21).

O horizonte da técnica transforma a realidade humana em todas as dimensões do viver. Acompanha o humano no seu processo existencial (JONAS, 1997, p. 7). O fogo de Prometeu e as sofisticadas técnicas de engenharia espacial, as descobertas do DNA e a inteligência artificial mostram duas coisas: a técnica e a história caminham juntas e a primeira exerce poder sobre a segunda. Como seria o mundo se não houvesse a indústria? Se não tivesse acontecido duas guerras mundiais? Sem a descoberta do DNA e suas implicações nas questões de saúde? A inteligência artificial que cada vez mais ocupa o espaço humano? Todos estes eventos trouxeram e trazem grandes mudanças de paradigmas, problemas éticos, políticos, sociais e seguramente sem eles, a geopolítica e a história seriam outras. O altíssimo grau de conhecimento a que o ser humano chegou e acumulou continuará sempre a provocar novas reflexões nos campos ético, político e social e, certamente, do ponto de vista ético serão mais perguntas do que propriamente respostas. Para von Zuben

Se a revolução industrial precisou de algumas décadas para transformar o mundo de modo mais radical do que milênios de história anterior, a nova revolução, inaugurada pela tecnociência, precisou de alguns anos para abalar radicalmente o modus vivendi do sujeito humano, desafiado por questões de ordem científica, mas, sobretudo ética, e por que não, política, entendida como modo de viver em sociedade (VON ZUBEN, 2006, p. 179).

Talvez o pior de todos os males resultantes da ambiguidade da técnica é o esvaziamento antropológico, causado pelo tecnicismo. A absolutização da técnica, de modo que essa se torna uma tecnocracia, cega o ser humano e despreza toda a dimensão ético-axiológica (Cf. PALUMBIERI, 2006, p. 311-312). Para o mundo pós-moderno, o conceito de desenvolvimento muitas vezes não está na capacidade real que uma nação tem de acolher os seus membros humanamente, e sim na quantidade de técnica, de tecnologias, de eficiência e de progresso. O antigo adágio de Protágoras “o homem é a medida de todas as coisas” (ABBAGNANO, 2007, p. 58), no atual século se modifica para “a técnica é a medida de todas as coisas”. Na mesma linha de raciocínio Jonas afirma: “se Napoleão disse: ‘a política é o destino’, hoje se pode dizer: ‘a técnica é o destino’” (JONAS, 1997, p. 12). Hoje, esse próprio conceito de desenvolvimento vem posto à prova de modo bastante crítico (Cf. SACHS, Wolfgang, 2017, p. 2573-2587).

A positividade da técnica, quando bem orientada, em relação ao dado antropológico está em contribuir à própria humanização do ser humano e melhorar sua qualidade de vida (Cf. Laudato si’: 2015, n. 103). Uma nova técnica empregada na agricultura significa mais alimento e mais saúde, mais força para produzir e maior durabilidade da vida. A técnica cirúrgica, com novos equipamentos e a anestesia, permitem maior durabilidade da intervenção, menos dor, menos risco e maior chances de sobrevivência. Uma simples penicilina representa a salvação para a humanidade em tempos de peste. A intervenção médica em um bebê ainda no útero para descobrir certas doenças neonatais e preveni-las traduz-se em menos mortalidade infantil. Inventar a roda e voar deu ao ser humano maior mobilidade e chances de conhecer outros povos, outras culturas. Nesse sentido, a técnica possibilitou a aproximação de mundo e de culturas diferentes. Fez o mundo humano mais habitável e possibilita ao ser humano um conhecimento melhor de si mesmo e de relacionar-se com um mundo sociocultural rico e complexo, mesmo com as ambivalências que a caracteriza.

A técnica transformou o horizonte antropológico do ser humano, trouxe-lhe um empoderamento outorgando-lhe cidadania, autonomia e liberdade e, ao mesmo instante, na cadeia de processos, no topo, fez dele senhor, dominador, um causador e fazedor do mundo. O modelo antropocêntrico antigo passa a ser antropo-tecnocientífico-artifical que traz consigo as mais diferentes implicações no horizonte humano. É importante não canonizar nem demonizar tudo isso, de modo a evitar tanto a tecnofilia quanto a tecnofobia. Deve-se ver seus benefícios a serviço da humanidade (VON ZUBEN, 2006, p. 66), bem como a sua ambivalencia, e sabe-se bem desta sua segunda face sombria. Nessa realidade há qualquer coisa que deveria libertar e aprisiona e uma deficiência do saber técnico incapaz de controlar a tragédia de Pandora (GALIMBERTI, 2007, p. 256). O lado fascinans da técnica pode se tornar terrível e vulnerabilizar o ser humano, fazendo-se necessário, portanto, conhecer quais são os mecanismos de vulnerabilização para poder responder objetivamente aos problemas que se colocam.

É verdade que toda técnica é ambivalente: traz benefícios e riscos. “A técnica, como presente de Prometeu, reflete, de fato, desde a aurora da civilização humana, a ambivalência como traço caraterístico: o bem misturado com o mal. Ao mesmo tempo em que ajuda os humanos, leva consigo a cilada da destruição, da dor, do sofrimento, da morte” (VON ZUBEN, 2006, p. 37; Cf. AGAZZI, 1992, p. 70). O automóvel, produto da técnica humana, reduz distâncias, é confortável e, no entanto, polui o ambiente e pode causar incidentes mortais. No campo das ciências biomédicas, por exemplo, “o crescimento do ‘bem-estar da humanidade’, do início da vida ao seu final, o crescimento da expectativa de vida com qualidade, numa lógica maldita, vêm sempre acompanhados pela exacerbação dos males infligidos a grande maioria da população, como a fome, as doenças, a carência do básico necessário para uma vida humana” (VON ZUBEN, 2006, p. 76).

A técnica com seus diferentes mecanismos poder tornar as pessoas vulneráveis, pois cria uma cadeia, produz um objeto, cria necessidade e desejos (JONAS, 1997, p. 11) e alimenta o consumismo. A velocidade em que as coisas mudam – tudo envelhece rapidamente, é descartável – garantia da vida do próprio sistema que sobrevive a partir da finitude do produto que introjetado na vida das pessoas, faz com que estas não possam sobreviver sem consumo (Cf. GALIMBERTI, 2007, p. 611; ELLUL, 2009, p. 66-67). O sistema técnico artificializa as pessoas e as transforma em bens de consumo e à medida que não podem mais corresponder à lógica mercadológica, são descartadas para garantir a sobrevivência do sistema técnico. Ele vulnerabiliza as pessoas, mas não suporta seres vulneráveis.

Algumas características da mudança de horizonte antropológico

A crise do antropocentrismo moderno constatada pela Laudato si’ é derivante de uma visão que exalta o ser humano como sujeito emancipado de si mesmo, autônomo e senhor absoluto de suas decisões, levadas as últimas consequências. “Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto, desmorona-se sua própria base existencial, pois ‘em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se ao divino, e deste modo acaba por provocar a revolta da natureza’” (Laudato si’, 2015, n. 117). Na medida em que essa mentalidade encontra ressonância no paradigma tecnocrático e seu imperativo o ser humano torna-se matéria a ser manipulada. No conjunto das reflexões da Laudato si’ sobre a influência da técnica sobre a vida humana, lê-se: 

O antropocentrismo moderno acabou, paradoxalmente, por colocar a razão técnica acima da realidade, porque este ser humano ‘já não sente a natureza como norma válida nem como um refúgio vivente. Sem se pôr qualquer hipótese, vê-a, objetivamente, como espaço e matéria onde realizar uma obra em que se imerge completamente, sem se importar com o que possa suceder a ela’. Assim debilita-se o valor intrínseco do mundo. Mas, se o ser humano não redescobre o seu verdadeiro lugar, compreende-se mal a si mesmo e acaba por contradizer a sua própria realidade (Laudato si’, 2015, n. 115).

É possível individuar algumas características muito sutis do fazer tecnocientífico e de alguns materiais existentes na natureza que nos dão, de certo modo, um horizonte da nova concepção antropológica hodierna. Dentre tantas, evidenciar-se-ão algumas delas a seguir. 

Para os antigos atomistas Demócrito e Leucipol o átomo era minúsculo, eterno e indivisível, e se dividido dissolver-se-ia no vazio (ABBAGNANO, 2007, p. 51). No ano de 1939, em Berlim, os físicos Otto Hahn e Fritz Strassmann descobrem a fissão nuclear e conhecem a divisibilidade do átomo. Essa concepção proveniente do mundo físico-químico se aplica antropologicamente. Enquanto ser vivo o ser humano é composto de átomos e pode ser reduzido em unidades cada vez menores.  Nesse sentido, constitui matéria a ser manipulada como as demais do meio ambiente. Ligada à atomização está a fragmentação. A indústria moderna para conhecer e produzir uma unidade parte do fragmento. Um avião, por exemplo, é um conjunto de fragmentos, que unidos por um saber técnico altamente especializado, forma uma unidade tecnológica funcional. O motor é fabricado num país, a estrutura metálica em outro, os componentes eletrônicos em outro continente e, ao fim, são reunidos (assemblage) numa sede para desvelar um ser. Não é diferente nas tecnologias médicas que atuam sobre um fragmento, o órgão, sobre o corpo fragmentado, ou sobre uma corporeidade despedaçada (Cf. ORTEGA, 2005, p. 246-253). O fragmento em si não desvela o ser. O homem da idade da técnica perdeu-se no fragmento e não tem encontrado a morada do ser. É visto somente como um executor ou conforme a linguagem anatômica, uma peça a ser averiguada, característica da especialização. “A especialização própria da tecnologia comporta grande dificuldade para se conseguir um olhar de conjunto. A fragmentação do saber realiza a sua função no momento de se obter aplicações concretas, mas frequentemente leva a perder o sentido da totalidade, das relações que existem entre as coisas, do horizonte alargado: um sentido, que se torna irrelevante (Laudato si’, 2015, n. 110)

Na atualidade a linguagem midiática das técnicas de propaganda usa o simulacro. “Por ‘simulacro’ se compreende uma réplica tão perfeita que a diferença entre o original e a cópia é quase impossível de perceber. A produção das imagens como simulacros é relativamente fácil, graças às técnicas modernas” (HARVEY, 1997, p. 353). No processo de reprodução há uma matriz (originária) da qual são produzidas cópias. Porém, o simulacro não é o verdadeiro, é uma sombra, um espectro, um retrato. A realidade do simulacro, na era das tecnociências e das altas tecnologias, traz como consequência o esvaziamento da originalidade do ser humano, porque o foco não está colocado sobre o sujeito como gerador de sentido e da transformação da realidade para que possa responder à sua condição existencial como plasmador de valores e do bem viver, mas simplesmente um produtor de artefatos que responde a um mercado sem regras no qual para se chegar ao produto desejado, paga-se, apropria-se, manipula-se e descarta.

A imagem vazia pode ser definida pela plastificação/plasticidade. A indústria moderna tem explorado todas as dimensões possíveis da matéria. Dentre elas, o plástico, uma também uma metáfora pós-moderna para representar o cientificamente transparente e acessível às manipulações técnicas (Cf. BRÜSEKE, 2007, p. 75). O plástico traz consigo a ideia da flexibilidade, da maleabilidade, da fragilidade, da descartabilidade, do utilizar-se e depois transformá-lo em outra criação. Não é difícil identificar no ser humano pós-moderno tais características. Pode-se produzir alguma coisa muito bela de plástico, todavia não é o real. Atualmente o processo relacional humano pauta-se por uma grande plasticidade, mobilidade e pela descartabilidade do outro. Segundo Gilbert Hottois, 

o homem se caracteriza em relação à tecnociência, por uma espécie de manipulabilidade em todas as frentes. No que diz respeito à sua essência e ao seu valor, a humanidade parece se tornar uma espécie de matéria cada vez mais plástica. Como poderá esta pretender ser a medida do que a modela e a transforma em sua própria essência? Com efeito há alguns decênios é basicamente com um homem fundamentalmente plástico desconstrutível, reconstruível e modificável que se confrontam as tecnociências (HOTTOIS, 1988, p. 90; Cf. GATTI, 2001, p. 72).

Se antigamente os objetos ocupavam-se grandes espaços, hodiernamente a lógica é reduzi-los. Surge a ideia de compressão. Na linguagem da informática a menor unidade é o BIT (Binary Digit), unidade representada entre 0 e 1. Essa minúscula unidade combinada, na verdade se caracteriza por carregar toda a possibilidade de dados e é uma fórmula comprimida. A compressão é uma característica das técnicas informático-eletrônicos, bem como das nanotecnologias. Uma pequena unidade carrega em si uma enorme quantidade de funções, informações e poder de execução (Cf. PIQUEIRA, 2004, p. 425-428). Cria-se o corpo telemático e desaparece o corpo físico, pois a pessoa passa a ser identificada não pela sua corporeidade em si, mas pelos seus dados (Cf. LYON, 2005. p. 18; LYON, 2007, p. 137; LYON, 2001, p. 19; STALDER, 2002, p. 120). Do ponto de vista antropológico, essa compressão vem traduzida como redução do ser humano à sua materialidade, bem como de seus espaços de uma verdadeira liberdade, excluindo a sua dimensão de transcendência. 

A técnica chegou ao ponto de forjar, nas grandes indústrias, o humanoide, que tem a sua expressão no robô e na inteligência artificial. O robô é um executor de funções de altíssima sofisticação tecnológica, possuidor de uma inteligência artificial, no entanto, sem a criatividade própria do humano. No contexto atual, as pessoas vivem um processo semelhante de robotização existencial. Tudo já é dado, unido ao princípio do prazer, e elas vivem para executar funções, perdendo a criatividade, a dimensão do lúdico, de um olhar contemplativo sobre a realidade, focando-se no fazer, esquecendo-se do ser.

Na linguagem cinematográfica ou literária, ficção é uma representação imagética que leva a pessoa a uma realidade, a um mundo imaginário (Cf. ORTEGA, 2005, p. 239-240). Há um texto, a dimensão real; a pessoa lê a metalinguagem e cria o seu pós-texto. No mundo da técnica significa a possibilidade escatológica do não realizável ao realizável. Antropologicamente, constitui a realidade de um ser humano que, no cenário cotidiano deve sempre representar, criar efeitos especiais para sobreviver no mundo da concorrência e da projeção dentro do sistema técnico. 

Se anteriormente identificou-se a categoria ficção, que não é simplesmente algo que não traduz uma verdade, a ilusão é um artifício utilizado, especialmente por aqueles que querem convencer os demais de que a técnica é salvífica para a humanidade “como o recurso principal para interpretar a existência” (Laudato si’, 2015, n. 110). Certas mensagens vinculadas a interesses de grupos econômicos utilizam-se deste artifício. O resultado é um ser humano que confunde aparência com a realidade, o falso com o verdadeiro, abrindo o caminho para o relativismo e o niilismo.

A era da técnica colocou um padrão importante no mercado: qualidade e seleção. Qualidade total é a meta. O melhor produto é aquele submetido aos padrões mais rigorosos de seleção e controle. Traz consigo a ideia de bondade e de perfeição. Tal lógica não é diferente no que diz respeito às indústrias ou às relações humanas na atualidade. Para garantir a qualidade de um sistema ou de artifícios técnicos privilegia-se a qualidade de saberes e seleciona-se as pessoas a partir de sua idade, produtividade, saúde, condição social e consumo (ZUBOFF, 2019), numa lógica perversa de exclusão tantas vezes. 

Finalmente, a estetização. A técnica moderna é preparada para fazer as criações mais belas possíveis. As indústrias de cosméticos e de equipamentos para academias de ginásticas, as técnicas de reprodução humana, todos os recursos utilizados para descobrir o melhor óvulo, o melhor espermatozoide e submeter aos critérios de inteligência, características físicas, possibilidades de contrair doenças, tendências e comportamentos desviantes ou não (Cf. FAGGIONI, 2000, p. 463-464) revelam essa realidade. No mundo da técnica, há o personal trainning ou o geneticista, o responsável para que a omeostase do corpo técnico se realize, dentro das mais sofisticadas seleções. Tudo deve seguir um padrão estético, porque a estética é uma porta para o mercado. Criou-se, então, uma cultura da bela imagem, da representatividade social e quem não se enquadra dentro destes padrões é excluído.

Esse quadro simbólico é uma amostra de uma crise antropológica ocasionada por uma visão reducionista do ser humano que conta apenas com os valores demonstráveis pela ciência e manipulados pela técnica. Não se trata de leitura negativa ou reducionista da técnica. É fundamental ler o mundo a partir de outros horizontes e a técnica, a serviço da humanidade, é apenas um deles. “A abertura a um ‘tu’ capaz de conhecer, amar e dialogar continua a ser a grande nobreza da pessoa humana. Por isso, para uma relação adequada com o mundo criado, não é necessário diminuir a dimensão social do ser humano nem a sua dimensão transcendente, a sua abertura ao ‘Tu’ divino” (Laudato si’: 2015, n. 119).

Ecologia integral como remédio à tecnocracia

É inegável que o progresso tecnológico é concebido, ao longo da história, a partir dos detentores do poder econômico, do mercado, do consumismo obsessivo como reflexo do paradigma tecnocrático (Cf. Laudato si’, 2015, n. 203) e do imperativo da técnica.  Esse modelo não inclui outros modos de pensar e dos pequenos, vistos apenas como consumidores de determinadas tecnologias, quando conseguem, e não como interlocutores de novos modelos tecnológicos que considerem uma ecologia integral. Para Francisco “Uma ecologia integral exige que se dedique algum tempo para recuperar a harmonia serena com a criação, refletir sobre o nosso estilo de vida e os nossos ideais, contemplar o Criador, que vive entre nós e naquilo que nos rodeia e cuja presença ‘não precisa de ser criada, mas descoberta, desvendada’” (Cf. Laudato si’, 2015, n. 225). Portanto, isso tem consequências bastante graves sobre o modus vivendi e operandi atual, exigindo uma verdadeira conversão no modo de pensar e de agir para que haja a globalização e progresso com um rumo comum, desde uma cultura do encontro, considerando as inovações científicas e tecnológicas correlacionadas à equidade e à inclusão social amplas (Fratelli tutti, n. 29-31).

A ecologia integral é o modo de se relacionar com o mundo e tudo o que nele existe, a partir do equilíbrio com o criado, no âmbito do cuidado, da responsabilidade e da justiça social, a fim de que esse seja um lugar onde o ser humano possa realizar-se plenamente em sua dignidade. Nesse sentido, a tecnologia não é somente pensada nos códices da instrumentalidade e da eficiência, mas como resultante da engenhosidade humana para possibilitar a transformação do ambiente em que se vive. Para realizá-la são necessárias outras ecologias: ambiental, econômica e social, cultural, da vida cotidiana, o princípio do bem-comum e a justiça intergeracional (Cf. Laudato si’, 2015, n. 137-162).

Ao menos em nível dos discursos da ONU, ONGs, grandes corporações há uma consciência de que o modo de conceber e usufruir as tecnologias hoje tem implicâncias sérias sobre o planeta e isso precisa ser revisto, corregido com boas práticas. Porém, em concreto, isso esbarra em interesses econômicos e corporativistas do próprio mercado, dos produtores das tecnologias e de grandes transnacionais que ainda estão pautadas no paradigma tecnocrático e no imperativo técnico e não estão dispostas à mudança de rota e inserir nas discussões e ações os vulneráveis de nosso tempo: o próprio planeta e os pobres, descartados das benesses do mundo tecnológico. A Laudato si’ oferece um caminho humanizado aos povos, desde a consciência profunda de cada ser humano que, motivados pelo bem comum, formam um mosaico de ações para que o planeta seja casa acolhedora para todos os seres vivos e local do bem-viver.

Conclusão

Francisco assevera que “ninguém quer regressar à Idade da Pedra, mas é indispensável abrandar a marcha para olhar a realidade de outro modo, recolher os avanços positivos e sustentáveis e ao mesmo tempo recuperar os valores e os grandes objetivos arrasados por um desenfreamento megalômano” (Laudato si’, 2015, n. 114). De toda a reflexão precedente se pode evidenciar alguns elementos: a visão de progresso tecnológico não é reducionista ao considerá-lo no conjunto do existir humano e seu agir em relação ao criado. Nesse sentido, não é simplesmente um fazer técnico, mas também um fazer-agir moral que deve ser pensado, considerando o oikos e as relações que se tecem dentro dele. Supera-se, assim, a lógica empírica, cartesiana, positivista e racionalista de ciência na qual o imperativo técnico junto ao paradigma tecnocrático se estabelecem como critérios hermenêuticos para pensar a ação humana. O progresso tecnológico responde a sua finalidade quando serve a humanidade e gera oportunidades para todos. Evidencia-se, a concepção louvável que a Igreja reafirma em seu magistério. No entanto, a realidade que se vê é a técnica ser incorporada na vida humana de tal modo a se tornar um produto de consumo que passa a mediar todas a relações, o fazer e o agir humanos. Vinculada a essa realidade estão as formas de poder que se constituem pelo saber enquanto domínio da técnica e do poder econômico que pautam as relações sociais e são ambivalentes, movidas por interesses, criando uma sociedade de classes daqueles que possuem e consomem os bens produzidos pela técnica e aqueles que não são contemplados pelo fogo de Prometeu. Nesse sentido, nota-se a preocupação de Francisco a refletir sobre a tecnologia como raiz da crise ecológica na medida que considera um determinado tipo de progresso: aquele que subjuga a natureza fazendo-a ser uma produtora de recursos para satisfazer uma minoria que concentra o poder e são consumidores vorazes dos recursos disponíveis, e são incapazes de compartilhá-los com os demais e nem pensar ações que facilitem a recuperação da natureza, a humanização e o progresso moral das pessoas. O caminho que ele apresenta está dado e apela à consciência e ao agir eticamente ecológico integral rumo à Agenda de 2030 das Nações Unidas. É isso que queremos? Estamos preparados? 

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Notas 

[1] O verbo krateo significa ser forte e poderoso, ser o senhor; ordenar e comandar. O substantivo krato remete à força, com a força, com todas as forças, potência, robustez, poder, domínio, comando, tornar forte, dominação, violência, exercer poder sobre. Portanto, trata-se de um poder que se impõe sobre outros a partir do uso da autoridade e da força, da coação e que explora alguma coisa em benefício próprio, ou em diversos aspectos da realidade. Na mesma linha, pode ser constatada como sendo potentia, nos seus significados de forçar, ser força, poder, eficácia e vigor. O termo potestas remete a poder, controle natural ou poder legal de controle, dominação, soberania, liberdade de ação, de coerção e dar oportunidade ou permissão.

[2] No texto “On dialetic and “techne” “há uma síntese da compreensão platônica de maneira dialética sobre o fenômeno da técnica, especialmente correlacionada ao mito da caverna, descrito seu livro a República VII e em “On “Techne and episteme” “alguns elementos epistemológicos a partir da Ética a Nicômaco VI e Metafísica I,1.