PAPA FRANCISCO E O ESPECÍFICO DA TEOLOGIA MORAL.  ANÁLISE DO DISCURSO À ACADEMIA AFONSIANA PELOS SEUS 70 ANOS DE FUNDAÇÃO
POPE FRANCIS AND THE SPECIFIC OF MORAL THEOLOGY. ANALYSIS OF THE SPEECH TO THE AFONSIAN ACADEMY FOR ITS 70 YEARS OF FOUNDATION

Andre Luiz Boccato de Almeida
Pós-doutor em teologia - PUC-PR e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Contato: 
a.l.boccato@gmail.com


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RESUMO: 

O presente artigo abordará a renovação da teologia moral no contexto do magistério eclesial do Papa Francisco. No atual pontificado, a reflexão em torno da questão moral recebe um impulso renovador, haja vista os vários posicionamentos do pontífice diante de questões referentes à criatividade da consciência na decisão dos sujeitos cristãos, ao papel do discernimento, à questão ecológica, às grandes linhas da moral social, à globalização, à economia, à educação, entre outros. O foco desta reflexão será o discurso proferido pelo Papa Francisco na Academia Afonsiana, por ocasião dos seus 70 anos de fundação. Por meio da apresentação de oito tópicos, Francisco coloca-se em continuidade com o ensinamento conciliar e estimula a um criativo labor teológico-moral. O artigo será desdobrado em três partes: num primeiro momento, serão apresentados alguns paradigmas históricos em teologia moral; em seguida, os elementos principais da renovação teológico-moral no Concílio Vaticano II; e, por fim, serão evidenciados alguns elementos do seu discurso na Academia Afonsiana. 

PALAVRAS-CHAVE: Francis; teologia moral; Academia Afonsiana; renovação eclesial.

ABSTRACT: 

This article will address the renewal of moral theology in the context of Pope Francis' ecclesial magisterium. In the current pontificate, the reflection on the moral issue receives a renewed impulse, considering the various positions of the pontiff in relation to questions regarding the creativity of conscience in the decision of Christian subjects, the role of discernment, the ecological question, the broad lines of social morality, globalization, economics, education, among others. The focus of this reflection will be the speech given by Pope Francis at the Afonsiana Academy, on the occasion of its 70 years of foundation. Through the presentation of eight topics, Francis puts himself in continuity with the conciliar teaching and encourages a creative theological-moral work. The article will be divided into three parts: first, some historical paradigms in moral theology will be presented; then, the main elements of theological-moral renewal in the Second Vatican Council; and, finally, some elements of his speech at the Academia Afonsiana will be highlighted.

KEYWORDS: Francisco; moral theology; Afonsiana Academy; ecclesial renewal.

Introdução

O presente artigo, pretende, analisar o discurso do Papa Francisco à Academia Afonsiana, na comemoração dos seus 70 anos. Primeiro, se apresentará alguns indicativos históricos ou modelos morais que marcaram a reflexão teológico- moral até o Vaticano II. Segundo, destacar-se-á a importância do Concílio Vaticano II enquanto evento de renovação e marco histórico para a abertura de uma nova metodologia em moral. Terceiro, à luz do discurso de Francisco aos professores e estudantes da Academia Afonsiana, será apresentado as características do fazer teológico-moral diante de alguns novos desafios.

Francisco, no evento ocorrido no dia 9 de fevereiro de 2019, na sala Clementina, do qual o Papa Francisco recebeu um grupo de professores e estudantes da Academia Afonsiana – Instituto Superior de Teologia – por ocasião dos 70 anos da fundação deste importante centro de Teologia Moral que em Roma formou e ainda forma muitos teólogos moralistas e bioeticistas para todo o mundo. Francisco enfatizou a particular missão do saber moral: “compete a difícil mais indispensável tarefa de fazer encontrar e acolher o Cristo na vida cotidiana concreta, aprofundando a vida sub lumine mysterii Christi” (FRANCISCO, 2020). Repropondo o proêmio da Veritatis Gaudium (VG), acerca das Universidades e Faculdades eclesiásticas, na esteira do Vaticano II, recordou que a continuidade na renovação da teologia moral deve levar em consideração a animada tensão missionária da Igreja “em saída”. 

Paradigmas históricos em teologia moral: o desafio da renovação 

O cristianismo nasceu em meio a várias pluralidades históricas, mas caminhou lentamente em direção a uma busca de identidade doutrinal e moral. Assumiu desde os inícios o contexto histórico social. Se inicialmente a mensagem querigmática em torno de Cristo tenha representado o centro da mensagem moral do Novo Testamento, não determinou, em consequência, um mesmo e único ethos comunitário. Ao mesmo tempo que a comunidade cristã se manteve fiel à memória do Mestre Jesus, buscou ainda viver esta experiência no seu próprio contexto (ZUCCARO, 2007, p. 35). 

Na reflexão teológico-moral, ao longo da história, percebe-se um complexo caminho de busca por uma fundamentação que considere a pluralidade hermenêutica como um indicativo central. Ora foi se acentuando uma perspectiva de caráter mais ‘identitário’, ora uma que emerge de forma antitética, segundo a antropologia assimilada dentro de determinado contexto histórico social. Esta realidade teve a sua gênese na nascente comunidade cristã com desenvolvimentos posteriores, caracterizando um fenômeno que exige uma rigorosa análise tanto do ethos bíblicos como o ethos correspondente às várias tradições culturais (CARLOTTI, 2016, p. 54). Considera-se que três referenciais marcaram a tradição histórica em teologia moral: a do dualismo corpo/alma; o da lei e o da centralidade da pessoa.

O primeiro, o do dualismo corpo/alma orientou-se mais numa perspectiva em que o corpo era assumido como uma dimensão negativa, fruto da assimilação do pessimismo antigo greco-romano. É verdade que hoje há uma hermenêutica crítica capaz de integrar este antigo dualismo, chegando ao ponto de não mais falar em corpo, mas em corporeidade. O corpo, num contexto anterior, precisava ser domado e dominado (COMBLIN, 2005, p. 14), já que era um rebelde e indisciplinado (GIRARD, 1990, p. 27). 

Salienta-se deste paradigma que uma separação absoluta entre o psiquismo e a corporeidade, entre o espírito e a matéria, entre o racional e o biológico (AZPITARTE, 1984, p. 245). Os sistemas ético-antropológicos posteriores ao dualismo foram influenciados pelo platonismo, gnosticismo, jansenismo e cartesianismo moderno. Essa visão recebeu críticas duras (FOUCAULT, 1992, p. 77). 

O segundo paradigma foi centrado na lei, isto é, em uma modelo deontológico, mais próprio de uma fase pós escolástica e na Baixa Idade Média. A teologia acadêmica e universitária, assimiladora das contradições pluralistas das universidades foi paulatinamente cedendo espaço a um referencial positivo de lei, em detrimento de uma perspectiva mais integral. 

As clássicas Sumas de Teologia e os Livros Penitenciais (VIDAL, 2003, p. 365) foram a expressão moral do regime de penitência individualizada que tinha neste modelo da lei, a obrigatoriedade externa com o objetivo de oferecer aos futuros sacerdotes certa instrução prática para desempenhar o ministério da confissão. A busca por uma identidade eclesial e organizacional na fase pós Trento, lançou as bases para uma perspectiva ética que lentamente perdia contato com a espiritualidade e o tratado da graça, fortalecendo o acento legalista. Com isto, se introduz uma interpretação legalista da ética cristã, alheia à Boa Notícia do anúncio de Jesus (KEENAN, 2013, p. 21). O referencial casuístico tradicional, devido à carência metodológica, tendeu a fundamentar o dever e a obrigação moral (TRENTIN, 1997, p. 848) diretamente na vontade de Deus, que se manifesta ao homem mediante a revelação ou a lei natural. 

O terceiro modelo é o da centralidade da pessoa que encontrou na corrente filosófica personalista uma mediação coerente. Esta visão tem em Bernhard Häring seu representante mais expressivo no sentido de ser um grande protagonista de uma cristologia centrada no encontro de Cristo com o homem (ANJOS, 2015, p. 426). A centralidade da pessoa, no contexto de uma ética cristã, justifica-se pelo fato de que a autonomia da vontade é o princípio único de todas as leis morais, assim como dos deveres que a elas se ajustam (QUEIRUGA, 2015, p. 94). 

No contexto do Concílio Vaticano II, a dignidade da pessoa é assumida como base para o diálogo entre a Igreja e as culturas modernas, entre a cidade celeste e a terrena. Assim, a realização e o empenho na busca pela resolução dos problemas constituem um valor fundamental (GAUDIUM ET SPES, 1998, nº 40), em sua relação com todas as instâncias que fazem parte da vida humana, tais como: o matrimônio, a família, a cultura humana, a vida econômico-social, a política, a comunidade internacional em busca de uma paz duradoura entre os povos (GAUDIUM ET SPES, 1998, nº 46). Os Padres Conciliares recorreriam ao personalismo ao afirmarem os direitos de liberdade, responsabilidade e racionalidade (GAUDIUM ET SPES, 1998, nº 28). Se do ponto de vista cristológico (vertical) a libertação plena da pessoa é um convite (Gl 5,13) proveniente do próprio anúncio do Reino, do ponto de vista humano (horizontal), é um itinerário que a própria pessoa é chamada a realizar, mediante o empenho dinâmico da liberdade de consciência rumo a um agir concreto. 

Esse triplo referencial em teologia moral (dualismo corpo/alma, legalista e o personalismo) convergirá no Concílio Vaticano II, e será provocado a uma mudança a partir diante dos avanços das ciências humanas e a renovação teológica iniciada alguns anos anteriores (LEONE, 2017, p. 12). Esses modelos teológico-morais ainda hoje continuam com suas marcas tanto na teologia moral como no magistério eclesial. Destarte renovação iniciada no Vaticano II e o seu novo impulso metodológico, a teologia moral recebeu um impulso a partir de uma assimilação de uma visão antropológica integral, em diálogo com os novos desafios do mundo moderno. 

A renovação da teologia moral no contexto do Concílio Vaticano II

O discurso inaugural do Papa João XXIII (Gaudet Mater Ecclesia) no dia 11 de outubro de 1962 dava uma perspectiva ao que tinha sido pensado e organizado para o evento eclesial. Contra uma atitude de condenação dos erros, o Papa sonhava uma Igreja misericordiosa que atualizasse a doutrina evangélica como uma boa nova nas novas condições dos tempos atuais, com o “remédio da misericórdia do que o da severidade” (JOÃO XXIII, 1962). Pode-se dizer que o sentido deste discurso foi acolhido nas sessões conciliares, sendo assumido, de modo particular na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS).

Do ponto de vista metodológico, no Vaticano II há uma ruptura com a tradicional abordagem dedutiva que julgava a realidade a partir da mera aplicação das verdades dogmáticas e universais à uma dada situação histórica particular. Foi propriamente com o Decreto Optatam Totius (OT) que a teologia moral recebeu uma atenção especial dos Padres Conciliares, principalmente no que tange à cristologia e à centralidade da pessoa (OÑA, 2013, p. 102-146). Sob uma perspectiva de sequela Christi, o cristão deveria encontrar na sua própria consciência a lei fundamental do amor que o liga a Deus e aos irmãos, e com base nela, é chamado a resolver muitos problemas novos que se colocam na sua vida, seja em nível pessoal ou comunitário (ZUCCARO, 2007, p. 72).

O grande impulso teológico proveniente das sessões conciliares foi promotor de uma nova metodologia na moral de inspiração cristã, justamente porque o decreto conciliar (OT, nº 16), insistiu no fato de que à teologia moral é confiada a missão, não de assegurar leis a serem seguidas ou um sistema a ser assumido, mas de produzir frutos de caridade para a vida no mundo. Portanto, a grandeza do chamado que os fiéis receberam de Cristo e a urgência de uma resposta a este chamado é a transformação da vida em experiência de caridade e santidade para o bem do mundo (DOLDI, 2004, p. 100). 

Um problema que despertou a atenção dos teólogos moralistas assim que terminou o Vaticano II foi a delicada tarefa de superar e ir além do jurisdicismo da ‘antiga moral’, sem cair no situacionismo da ‘nova moral’ (KENNAN, 2013, p. 126). Na nova moral, o homem é o sujeito e responsável de seu destino propriamente ético. Antes de seguir leis ou normas externas de sua vida, ele participa diretamente da vida nova em Cristo, na caridade do Pai e pela força do Espírito Santo. Nessa nova compreensão, a pessoa é chamada em sua consciência a orientar sua vida, em toda sua dinâmica existencial, colocando em movimento toda a sua complexa estrutura ôntico-dinâmica e personalista a partir de uma vida virtuosa, mediante o exercício prudencial da fé na prática (PARISI, 2013, p. 94).

Sabe-se que o Vaticano II falou pouco de moral, mas forneceu as diretrizes metodológicas que propiciaram a integração de uma hermenêutica da pluralidade como condição de superação de certa tendência tradicional ou fundamentalista de uma fase anterior (CARLOTTI, 2016, pp. 116-117).   A assimilação desta perspectiva plural adveio da necessidade de levar em consideração a análise dos problemas típicos do homem moderno em meio ao saber científico moderno (GRANDIS, 1994, p. 474), confrontando com a mensagem evangélica primordial.

O Concílio Vaticano II pode ser certamente considerado como o que ultrapassa uma visão pessimista do mundo, apresentando os aspectos positivos da cultura e do mundo, com um olhar de esperança. É verdade que ele pode ser considerado como portador de uma visão otimista, mas um otimismo realista que não se confunde como ingênuo ou perda de identidade, mas que admitiu a crítica (FOLLET, 1967, p. 257) como condição para um diálogo com as novas realidades humanas. O diálogo com a pluralidade legítima supõe o confronto positivo com os valores evangélicos que necessitam ser reconhecidos como a manifestação do ethos.

De fato, a grande missão da teologia moral é o de mostrar a altura e a grandeza da vocação que os fiéis receberam em Cristo, sendo importante para isso aprofundar a relação entre o ser humano e as suas várias perspectivas: o fundamento bíblico, a relação com a cristologia e a pastoralidade (LORENZETTI, 2013, p. 403-419). Esta opção do Vaticano II legitimou, de certa forma, uma mudança metodológica que levaria a um aprofundamento com a particularidade da experiência cristã. No Concílio, a centralidade de Cristo e uma visão personalista integral, passou a ser objeto de ricos e abundantes estudos, principalmente na exegese bíblica, nas ciências e com as novas abordagens antropológicas (BORDEYNE, 2010, p. 161).  

O enfoque metodológico presente na reorientação conciliar, além de buscar superar os dualismos e reducionismos próprios das perspectivas precedentes, também lançou um olhar de esperança e de diálogo com o complexo mundo moderno, ainda a ser mais bem aprofundado (DOLDI, 2004, p. 99-114). Pode-se, deste modo, dizer que há implicações para a teologia moral, ao menos em três campos da reflexão: a importância da autonomia em ética (tema levado a sério pelos modernos); uma teologia interpretativa da experiência humana (a hermenêutica à serviço da teologia e da vida concreta); uma nova forma em unir a vida moral, propriamente, e o teologal em seu sentido da revelação (GAZIAUX, 2010, p. 210).

Portanto, é no contexto deste rico impulso antropológico, teológico e metodológico que se pode compreender o sentido do discurso do Papa Francisco à Academia Afonsiana, convidando a uma retomada da inspiração conciliar de diálogo, com vistas a lançar propostas concretas à reflexão atual. Há um expresso convite do Papa a superar modelos ou sistemas do passado para reapropriar-se das profundas questões diante dos novos desafios e perspectivas que se colocam no hoje dos sujeitos eclesiais. O Concílio Vaticano II propiciou um processo renovador da teologia moral que encontra hoje no magistério de Francisco uma motivação.

Papa Francisco e o impulso renovador à teologia moral: desafios e perspectivas

No discurso do Papa Francisco à Academia Afonsiana pelos seus 70 anos de fundação, aos professores e estudantes, podem-se encontrar alguns elementos que explicitam um impulso renovador no fazer teológico-moral. Embora o discurso tenha sido considerado mais um no contexto protocolar do Vaticano, fruto de encontros e acolhimento, para um olhar atento, encontram-se elementos basilares para a sua missão de pensar a realidade com os seus desafios à ética de inspiração cristã. 

No discurso papal há uma consciência histórica das grandes marcas da moral cristã, embora ele insista no específico do saber moral a ser ainda aprimorado: “fazer encontrar e acolher Cristo na vida quotidiana concreta, como Aquele que, libertando-nos do pecado, da tristeza, do vazio interior e do isolamento, faz nascer e renascer em nós a alegria” (FRANCISCO, 2020). Recorda com insistência que “todas as estruturas acadêmicas hoje são chamadas a um compromisso mais decisivo de renovada planificação e renovação” (FRANCISCO, 2020) à luz da Constituição Apostólica Veritatis Gaudium, que em seu proêmio insiste em quatro aspectos centrais: o querigma; o diálogo sem reservas; a interdisciplinaridade e transdisciplinaridade; criar redes entre as instituições. 

O específico do saber teológico-moral, segundo Francisco, localiza-se dentro do contexto histórico que necessita ser confrontado diante das novas questões humanas que interpelam a fé cristã. Pode-se dizer que no seu discurso emergem algumas ideias que suscitam uma criatividade do viver a fé, diante dos novos desafios do tempo presente. Constata-se oito elementos centrais no seu discurso. São os seguintes:  

Primeiro. Uma teologia moral que acompanhe a perspectiva de uma Igreja “em saída”, assumindo as interpelações de hoje, sem se acomodar às posições de escolas ou juízos formulados do passado (FRANCISCO, 2020). Diante de uma certa tendência eclesial atual, marcada por um sectarismo cristão tribal, por um isolacionismo e até o retorno de um neognosticismo mascarado de meritocracia religiosa (GONZÁLEZ FAUS, 2015, p. 70), urge retornar a uma perspectiva de diálogo para superar uma busca de respostas simples diante dos problemas complexos emergentes. Nos inícios do cristianismo, a revelação foi compreendida pelos primeiros teólogos como uma realidade cuja expressão foi influenciada pela contingência histórica, exigindo discernir entre o conteúdo e a forma. Esta experiência será profundamente interpelada pela modernidade, abalando inclusive a capacidade que o ser humano possui de escutar a Deus (VERGOTE, 2002, p. 36). A modernidade, ao iniciar seu caminho interpelador dos fundamentos, no contexto da civilização cristã ocidental, promoveu também conjuntamente uma atitude de reação, o que pode gerar posturas rígidas diante das constantes desconstruções de sentido dentro do campo religioso (PASSOS, 2020, p. 54-55). Esse é um desafio profundo que exige uma nova postura na relação com o mundo. O Papa Francisco, motiva no seu discurso, a uma não idealização em “excesso” da vida cristã, por fuga ou refúgio dos problemas e questões do ser humano atual. Esta não seria uma postura compatível com uma escuta sincera da complexa realidade. Cabe, portanto, ao teólogo moralista, a árdua missão de repropor a mensagem cristã às pessoas para que estas produzam um juízo moral na sua situação concreta. O que Francisco pede aos moralistas é uma sábia prudência pastoral e pesquisa séria em tempos de mudança de paradigma.

Segundo. Uma teologia moral que seja capaz de ouvir a realidade e apresentar a ela respostas esperançosas à exemplo de Santo Afonso (FRANCISCO, 2020). Com o Concílio Vaticano II brotou o desejo da Igreja de dialogar com o mundo moderno, escutando as alegrias e esperanças das pessoas e dos cristãos. É crescente uma postura ou tendência de defesa e desconfiança, própria da crise de sentido niilista pós-moderna que atinge a raiz da questão moral (BOFF, 2014, p. 175). Para Francisco a realidade precisa ser ouvida com seriedade para que dela apareça o objeto a ser discernido e vivido, e mediante ela, se faça o sério labor teológico (BLANCO, 2020, p. 25). A experiência concreta na vida pastoral, deste modo, deixa de ser uma aplicação doutrinal do universal ao particular para se tornar o ponto de partida reflexão teológica. Na verdade, este elemento metodológico exprime uma tradição teológica latino-americana que centra na condição concreta da pessoa. Essa experiência do cotidiano, enquanto escuta da singularidade, embora não tenha sido muito valorizada na longa tradição de matriz europeia, por carregar consigo a desconfiança de um certo relativismo moral e espiritual (DUQUOC, 2006, p. 78), no pontificado de Francisco é uma orientação central, justamente por superar o dualismo entre o universal e o particular. Assim, à luz de Santo Afonso, intrépido doutor da escuta, os teólogos moralistas são chamados a seguir um corajoso caminho de escuta e reproposta ao ser humano hodierno.

Terceiro. Uma teologia moral que se deixe plasmar pela misericórdia, tendo sempre como centro a caridade (FRANCISCO, 2020). Para o Papa, o primado da teologia moral de inspiração cristã é o amor enquanto resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus ao humano e não o contrário. Ele próprio já tinha dito isso na exortação pós-sinodal Amoris Laetitia nestes termos, 

O ensino da teologia moral não deveria deixar de assumir estas considerações, porque embora seja verdade que é preciso ter cuidado com a integralidade da doutrina moral da Igreja, todavia sempre se deve pôr um cuidado especial em evidenciar e encorajar os valores mais altos e centrais do Evangelho, particularmente o primado da caridade como resposta à iniciativa gratuita do amor de Deus. Às vezes custa-nos muito dar lugar, na pastoral, ao amor incondicional de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de frustrar o Evangelho (...). Por isso, convém sempre considerar ‘inadequada qualquer concepção teológica que, em última instância, ponha em dúvida a própria onipotência de Deus e, especialmente, a sua misericórdia (FRANCISCO, 2016, nº 311). 

Francisco tem consciência de que no interior da tradição cristã a caridade possui uma centralidade inigualável, justamente porque existe outras expressões e tradições morais que foram equiparadas a ela. Outros paradigmas teológico-morais, como o do dualismo corpo-alma, do pecado e da lei, por motivos históricos e culturais (ALMEIDA, 2017, p. 151-171), ao ocuparem certa centralidade até em documentos do magistério, desenraizaram-se de uma reflexão cujo primado é a caridade. Esse processo foi gerador de uma assimetria teológica que desfavoreceu uma salutar busca da verdade, sem confundir o essencial no contexto da “hierarquia das verdades” (UNITATIS REDINTEGRATIO, 1998, nº 11). Assim, o teólogo moralista é chamado constantemente discernir, com análise crítica e metódica próprio do seu ofício, o essencial da lógica da caridade, nas suas várias expressões e acepções, com o devido cuidado de não perder a integralidade da doutrina moral e encorajando aos valores mais altos e centrais do Evangelho (PINCKAERS, 1991, p. 117). 

Quarto. Uma teologia moral chamada a experimentar “a lei do Espírito que dá vida em Jesus Cristo”, capaz de conduzir a pessoa à liberdade mediante um agir responsável (FRANCISCO, 2020). Francisco faz alusão à dimensão pneumática da experiência cristã, referência central na teologia paulina. É verdade que em Paulo o Espírito Santo ocupa um lugar privilegiado diante da controvérsia judaizante da lei enquanto categoria de afirmação dos valores legais e a nova lei do Espírito revelada por Jesus Cristo na comunidade cristã (WENDLAND, 1972, p. 99-104). Em Paulo, o Espírito favorece a criatividade inteligente no coração e consciência da pessoa pois todo aquele que foi salvo e redimido é capaz de pensar e viver para o alto (Rm 6,6.11; 13,14; Gl 3,17; 5,1.13), em detrimento de uma falsa segurança que a normatividade em si dá à consciência. A lei do Espírito, fonte de vida nova, é um indicativo de que o cristão, regenerado em Cristo, é um sujeito de possibilidades (VERDES, 1999, p. 91). Na ética teológica paulina se sobressai a capacidade criativa e dinâmica da pessoa que vive a experiência teologal em sua realidade concreta, mediante a constante busca pela sua opção fundamental, fonte dinâmica de sua vida moral. O Papa Francisco, deste modo, tem consciência que Cristo e a sua proposta misericordiosa, devem ocupar o centro da vida cristã e da reflexão dos teólogos moralistas. Embora na fundamentação da teologia moral haja ainda certo “esquecimento do Espírito Santo” (GONZÁLEZ FAUS, 2015, p. 149-163), diante da supervalorização legalista, a sua força no agir cristão é o dom maior de Deus na vida da pessoa de fé. Portanto, a lei do Espírito que dá vida em Jesus Cristo deve mover as propostas reflexivas dos teólogos moralistas no contexto de mundo e de Igreja.

Quinto. Uma teologia moral que supere uma ética individualista, própria de grupos particulares, com ânsia de competitividade e imersa na cultura do descarte (FRANCISCO, 2020). Este apelo do Papa coloca-se em continuidade com a proposta do Vaticano II (GAUDIUM ET SPES, 1998, nº 30), que já acenava para essa perspectiva nos anos sessenta. No contexto da “comunidade humana”, o Concílio aludia ao risco do fechamento diante do dever da justiça e da caridade, sem uma preocupação social. Considerava a necessidade de um cultivo individual e social das virtudes humanas para que houvesse uma unidade do mundo e a boa convivência entre todos. Esta sensibilidade conciliar, segundo Francisco, é ainda mais urgente nos dias de hoje, tornando-se uma das tarefas do teólogo moralista, principalmente porque impera uma “cultura do descarte” (FRANCISCO, 2013, nº 53), que promove a exclusão e a exploração das pessoas. O Papa sugere aos teólogos moralistas, com suas reflexões e produções, serem sonhadores no mundo, pelo desarmamento e desconstrução das sutis interfaces da competitividade e da necropolítica, incentivadora desta lógica anti-evangélica (ALMEIDA, 2019, p. 357-382), presentes no imaginário social e na consciência social. É um sonho ao mesmo tempo social, cultural, ecológico e eclesial (FRANCISCO, 2021) a ser cultivado no cotidiano por todos, para que a humanidade sobreviva diante da crise civilizacional. Deste modo, esta orientação de Francisco, depende muito de uma visão de alargamento da consciência individual para um compromisso social no horizonte de uma responsabilidade mundial (JOSAPHAT, 2010, p. 95). 

Sexto. Uma teologia moral que se preocupe com a dimensão ecológica e a consciência do cuidado da casa comum, mediante formas viáveis de desenvolvimento integral (FRANCISCO, 2020). Até pouco tempo o tema da ecologia e do meio ambiente era praticamente ausente nos manuais de teologia moral. Com a encíclica Laudato Si (FRANCISCO, 2015), a reflexão cristã passou a ter um protagonismo explícito acerca do problema ecológico e do cuidado com o destino do planeta, sendo considerado um “giro copernicano” (SORGE, 2017, p. 439-452) no diálogo com o mundo laico sobre o tema. No pontificado de Francisco a questão ecológica é assumida como central na moral social, exprimindo uma mudança paradigmática no modo de ler a teologia da criação em diálogo com outros saberes (MAÇANEIRO, 2016, p. 230-283). Esta importância dada ao tema, no horizonte da reflexão ética justifica-se pelo fato de que a civilização tecnocientífica, ao chegar a níveis de exploração e consumo desenfreado dos bens da natureza, atinge o cume de domínio nas relações no planeta, gerador de uma crise inimaginável. Francisco, sensível a essa gritante situação, também pede que os teólogos moralistas que promovam um desenvolvimento integral assumindo a dimensão ecológica e uma formação da consciência no cuidado com a casa comum enquanto uma missão própria e específica do saber moral. Para o Papa, o teólogo moralista deve ser o promotor de um processo educativo das consciências anestesiadas pela autorreferencialidade, pelo privatismo, pela exclusão dos pobres e o descuidado com a natureza (MATTOS, 2018, p. 350). Pede aos moralistas, uma postura de resistência profética e defesa da casa comum e que seja aprofundado uma teologia da criação e da redenção em relação ao tema ecológico. 

Sétimo. Uma teologia promotora do diálogo com as novas possibilidades que o desenvolvimento das ciências biomédicas põe à disposição da humanidade, defendendo a vida dos mais vulneráveis (FRANCISCO, 2020). Esta é uma questão que já vem sendo tratada por pensadores de várias vertentes (MORIN, 2001), onde se busca um diálogo em vista de uma valoração ética diante do avanço da tecnociência no campo do corpo humano com suas múltiplas possibilidades. A questão de fundo, que revela a preocupação de Francisco é dupla. Primeiro, com o avanço de uma bioética secular, fruto do lento processo de secularização, há um questionamento sobre o papel das tradições religiosas no debate sobre origem da vida e suas interfaces (TOMÁS, 2014, p. 74). Segundo a linguagem religiosa, no que se refere às questões científicas, poderia oferecer alguma contribuição, já que no debate público perdeu seu protagonismo (ALMEIDA, 2019, p. 152)? Estas questões fazem emergir o problema da religião, e em específico, da reflexão teológica no espaço público com suas plurais discursividades. Francisco pede aos teólogos moralistas que dialoguem e debatam as grandes questões éticas relacionadas à vida em seu início até o fim[1]. O diálogo coloca-se como condição irrenunciável para a ampliação dos pontos de vistas no alvorecer da civilização das pluralidades. Francisco tem consciência de que não é a autoridade única quem decidirá o limiar do caminho a ser percorrido, mas uma postura de abertura e discernimento diante das diversidades, reconhecendo a autonomia dos campos epistemológicos em questão. Frente a isso, portanto, há um incentivo na continuidade de diálogo e aprofundamento da questão sobre o pós-humano, em tempos de incertezas e possibilidades (PESSINI, 2010, p. 223-240). Mais que um apressado julgamento moral diante de questões novas, é conveniente um privilegiado fórum de debate onde as várias perspectivas sejam discutidas à luz das respectivas antropologias e a busca pela promoção da vida humana em todas as suas esferas.

Oitavo. Uma teologia moral que não hesite em “sujar as mãos” com a concretude dos problemas, do sofrimento e da fragilidade das pessoas (FRANCISCO, 2020). Este último indicativo do Papa pode ser considerado como uma síntese dos anteriores, orientador do pressuposto fundamental do ato teológico-moral. No bojo de seu convite há uma marca latino-americana, que por excelência faz-se solidária com o murmúrio das vítimas e o grito dos profetas (MENDONZA-ÁLVAREZ, 2011, p. 15). Eis porque a busca por mediações teóricas e antropológicas exige esse “sujar as mãos”, com a concretude dos problemas reais das pessoas, sendo esse uma missão específica do teólogo moralista, na medida em que coloca em movimento a sabedoria humana e a revelada. Sabe-se que três motivos levaram à separação da teologia com a vida: a aliança da Igreja com o poder; a incorporação da matriz cultural grega e a entrada e o aninhamento da teologia no mundo da universidade (BOFF, 1998, p. 613-614). Este realismo presente na máxima de Francisco explicita o desejo, não apenas de articular a teologia com a vida, como principalmente de superar um grande inimigo que ronda de tempos em tempos a fé cristã: o gnosticismo atual (FRANCISCO, 2018, nº 36-46). A dificuldade de muitos cristãos e teólogos em viverem a experiência cristã, mergulhados na concretude dos problemas, do sofrimento e da fragilidade das pessoas, dá-se pelo fato de que a tentação gnóstica é a de transformar o cristianismo numa doutrina teórica (GONZÁLEZ FAUS, 2015, p. 69-70), impedindo de assumir a missão de transformar o mundo de modo a acolher as imperfeições humanas. 

A missão do teólogo moralista, a partir da perspectiva de Francisco, quer iluminar a vida cristã, principalmente a dos mais pobres, centro da pregação do próprio Cristo. As oito indicações presentes no seu discurso ampliam o campo de irradiação da missão do moralista. A visão de Francisco, sobre a teologia moral, está em uma estreita relação com a atitude de saída missionária, deixando de ser autoreferencial, para fazer do outro, dos pobres e sofredores, a referência de sua missão. Para ele, cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus à serviço da libertação e da promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo (FRANCISCO, 2013, nº 187). Se a missão do teólogo moralista passa pela maior explicitação dos instrumentos e ferramentas da ciência teológica, cabe ao moralista centralizar seus esforços em ouvir o clamor dos pobres como um imperativo moral, colocando a causa dos pobres no centro das suas reflexões (FRANCISCO, 2013, nº 198).

Estes oito elementos indicadores do Papa Francisco, compreendidos em seu discurso aos membros da Academia Afonsiana, estão inseridos dentro de uma perspectiva teológica que busca superar uma falsa percepção de que a teologia é um labor que se faz distante da realidade dos sofrimentos e vulnerabilidade humana. O específico da teologia moral é uma tarefa ainda a ser levada em consideração por muitos teólogos. Assim, no discurso à Academia Afonsiana podemos encontrar um projeto formativo dentro de uma proposta, no qual Francisco orienta os teólogos a superar uma “moral fria de escritório” (FRANCISCO, 2016, nº 312) e promover uma profunda teologia do discernimento que leve a um cuidado pastoral que assume a verdade concreta das pessoas.

Conclusão

O discurso do Papa Francisco à Academia Afonsiana é marcado por um sugestivo impulso renovador diante do árduo trabalho reflexivo dos teólogos moralistas. Nele pode-se encontrar um direcionamento para o essencial da experiência da fé vivida e pensada, o Evangelho, em tempos de mudanças. Nas oito indicações de seu discurso, encontra-se um verdadeiro projeto teológico a ser levado em consideração pelas inúmeras mediações epistemológicas e antropológicas a serem assumidas no labor teológico-moral. Ao mesmo tempo que Francisco indica um caminho metodológico de elaboração, sem perder o rigor científico, priorizando a escuta, o diálogo, o respeito, o discernimento e a formação da consciência, também direciona campos de atuação ou horizontes emergenciais para uma ampliação epistêmica.

Francisco tem consciência que o saber teológico-moral é marcado por não poucas conflitualidades e desentendimentos diante da complexidade da vida real com suas demandas e interpelações, principalmente no que tange à difícil articulação entre o universal e o particular. A herança de sistemas morais de distintos mecanismos, explicitam o quão é árduo captar a totalidade e integralidade do fenômeno moral. No atual contexto de mundo, em que há uma orientação transdisciplinar, a experiência cristã é chamada a decodificar continuamente novas linguagens e expressões para um diálogo coerente diante das novas questões.

Nessa reflexão privilegiou-se apresentar, inicialmente, algumas características históricas que marcaram o modo de se elaborar a reflexão teológico-moral até a orientação do Vaticano II que estimulou uma abordagem mais personalista, diante do abandono de uma metodologia casuística e legalista. No discurso de Francisco à Academia Afonsiana salientou-se uma importante contribuição diante da missão do teólogo moralista hoje na Igreja e no mundo. Desta maneira, considera-se que a tarefa de todo pensador que estuda o ser humano, no contexto de busca de um sentido evangélico, é o de colocar-se na escuta sensível e amorosa das feridas das pessoas. Esta postura não é apenas uma renovação do vigor evangélico enquanto retorno às fontes, mas um ato epistêmico, já que a necessidade de diálogo constante exige uma escuta de interpretações distintas, propiciadoras de mediações novas. Para ele, se Jesus Cristo é o alicerce de toda reflexão moral, os mais variados métodos em moral devem aprofundar o “sub lumine mysterii Christi” em qualquer lugar que se encontre. Para isso, o “moralista” é chamado, pelo rigor de seu múnus, a superar linguagens e mediações que não exprimam a verdade da encarnação na dinâmica da cultura. 

O específico da teologia moral, segundo Francisco, é colocar-se sempre na busca e na pesquisa para apresentar a eterna novidade de Cristo ao ser humano de hoje, mediante uma postura de abertura, respeito, diálogo e discernimento frente à atual cultura de possibilidades e desafios. Isto posto, o Concílio Vaticano II, na visão do Papa, já tinha iniciado um desafiante caminho de orientação ao teólogo moralista no contexto da renovação eclesial e pastoral. Uma teologia moral que não parte de uma sincera e aberta escuta da história e da realidade, corre o risco de fechar-se em si mesma, em um círculo vicioso e se tornar um sistema ou doutrina que apenas julga de forma dramática e negativa o seu entorno, sem dela acolher os fenômenos mais profundos e invisíveis numa primeira aproximação. As várias incompreensões em questões referentes à teologia moral, provêm do fato de que a missão do moralista é exigente: deve-se articular a polissêmica linguagem do fato moral humano em relação com a verdade a ser interpretada de modo plural, acenando para a experiência de transcendência (VIDAL, 2003, p. 297-315).

Francisco tem consciência disso ao recordar a centralidade do discernimento ético e pastoral na análise das situações concretas. Não se trata, propriamente, de refutar apressadamente um modelo moral de princípios, desembocando em um situacionismo, como acusam muitos críticos, mas, antes “perder” tempo na análise da realidade, antes de elaborar um juízo moral. O específico labor da teologia moral dá-se na rigorosa busca por uma fundamentação do agir moral que assuma a tarefa de estudar a verdade do ser humano e a verdade de Jesus Cristo, sem cair em reducionismos ou improvisações. 

A busca pela verdade moral só pode ser sincera se for acompanhada por uma séria capacidade de rever as próprias posições diante da exigente formação da consciência crítica. Para Francisco, esta missão de confrontar a verdade revelada por Jesus Cristo e a condição concreta da pessoa, não pode se reduzir a uma simples recordação de juízos provenientes de sistemas morais passados, cujas mediações são marcadamente dualistas, legalistas e até, em alguns casos, jansenistas. Antes, deve passar pela capacidade de interpretar a realidade da pessoa, seguindo o caminho o Vaticano II, e precedido pelo movimento de renovação. É verdade que hoje brotam discursos, juízos e até reflexões eclesiais morais que não se deixam iluminar pela constante luz proveniente da inspiração conciliar. Deve-se, nesses casos, recordar que o específico do saber teológico-moral é o da busca pela verdade num caminho de docilidade e humildade.

Outro elemento específico que brota do discurso de Francisco é o grande serviço que o saber moral presta à pastoral. Para ele, toda reflexão teológica deve partir da pastoralidade e oferecer luzes para o acompanhamento das pessoas. Essa é uma chave de leitura assumida já no Concílio Vaticano II que faz referência à prática de Cristo Bom Pastor, cheio de misericórdia e ternura para com as pessoas. Uma teologia moral deve sempre estar enraizada numa pastoral que assuma as angústias das pessoas e as acolha suas interpelações reais. Deste modo, um dos serviços que a teologia moral pode oferecer à comunidade eclesial é o de interpretar fatos e situações analisados cientificamente e seus mecanismos de manipulação à consciência, sacrário secretíssimo onde a pessoa decide iluminada pela voz de Deus (GS, nº 16) rumo a um discernimento prudente.

Enfim, a teologia moral tem uma tarefa específica de promover o diálogo com as ciências, com os pobres – os descartados de hoje – que sofrem as consequências de uma exploração assustadora diante dos avanços contra a casa comum. Para Francisco, o moralista deve ser alguém capaz de propor uma reflexão teológica que supere a globalização da indiferença. Não basta, segundo ele, apenas refletir sobre os pobres, sem escutá-los e deixar-se ser tocado pelas suas misérias e o seu grito que clama aos céus. Eles são uma maioria que desafia profundamente a missão da Igreja e a sua própria saída de uma autorreferencialidade (FRANCISCO, 2015, nº 49).

Assim, analisar em profundidade a convivência do ser humano no contexto maior com outros biomas ecológicos é uma urgente e específica função a ser levada em consideração nos tempos atuais. Isso exige uma séria aproximação com as várias gramáticas e linguagens em torno da ciência ecológica. Portanto, no discurso de Francisco à Academia Afonsiana emergem esses elementos inspiradores para reorientar continuamente a missão específica da teologia moral na comunidade eclesial e no serviço à humanidade.       

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Notas

[1] Assim como Edgar Morin, em sua obra “Ciência com consciência” (MORIN, 1998), propôs um fórum de análise das grandes questões científicas e humanas, no contexto da mudança de paradigma civilizacional, Francisco parece propor aos teólogos moralistas um amplo diálogo entre fé e razão, mediado pelas questões éticas e a relação entre fé e ecologia.