NA ECCLESIA SEMPER REFORMANDA A TERRA É IRMÃ, MÃE E CASA 
IN ECCLESIA SEMPER REFORMANDA THE EARTH IS SISTER, MOTHER AND HOME

Solange Aparecida Novaes
Doutora e Mestra em Teologia moral pela Pontifícia Universidade Laterenense de Roma (Academia Afonsiana); leciona no Centro Universitário Salesiano de São Paulo. E-mail: 
solnovaes@gmail.com


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Resumo: 

O presente artigo se justifica e se alicerça na convicção de que a teologia cristã possui a capacidade de olhar, em profundidade, para o mistério da criação, de modo amplo, para considerar, à luz do Evangelho de Cristo, o homem, em relação constitutiva e fecunda com tudo o que está ao seu redor. A vitalidade da Igreja, guiada pelo Espírito, é fonte de constante renovação e suscita pessoas que apontam caminhos. Francisco de Assis e Papa Francisco são exemplos de pessoas que souberam ler os sinais dos tempos e colher, em profundidade, a relação constitutiva do ser humano com a Terra, irmã/mãe e casa de todos. Pretende-se, assim, em uma perspectiva teológica, mostrar a importância da opção pela Terra, porque hoje, mais do que nunca, cuidar da Terra e dos pobres é uma opção profética da Igreja, que se renova constantemente e se abre para ser testemunha do Evangelho, boa nova para o universo inteiro.

Palavras-chave: reforma, relação, irmã Terra, mãe Terra, casa comum, mudança, pobres.

Abstract: 

This present article is anchored in the belief that the Christian Theology is capable of looking in-depth at the mystery of creation, in a broad way, to consider, in the light of the Gospel of Christ, the man in a constitutive and fruitful relationship with everything that surrounds him. The vitality of the Church, guided by the Spirit, is a source of constant renewal and it arouses people that indicate paths. Saint Francis and Pope Francis are some of those who could read the signs of the times and deeply retrieved the strict relationship between humankind and the Earth, Sister / Mother and home to us all. It is intended to show, from a theological perspective, the importance of valuing the Earth, caring for her and her poor people for it is the Church’s prophetic option which is constantly renewed and opened to be the Gospel witness, Good News for the entire universe.

Keywords: revival, relationship, sister Earth, mother Earth, common home, change, poor, the poor

INTRODUÇÃO 

Pensar a totalidade é uma das características mais marcantes no Magistério de Papa Francisco: “o enorme desafio de proteger a nossa casa comum inclui a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar” (Laudato si’ 13,15). Para ele, é preciso estarmos atentos à dimensão global, sem perdermos de vista o local, um equilíbrio desafiador, mas que nos conduz à motivação que dirigia o agir de Jesus. De fato, o Evangelho narra o objetivo da missão de Jesus: “eu vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10). Esse anúncio mostra como a vida trazida por Jesus fecunda todas as dimensões da pessoa humana e de toda a criação de Deus.

A presente reflexão colhe alguns elementos dos recentes ensinamentos do Magistério na busca pela reflexão sobre a Igreja de portas abertas (EG 46), voltada para o futuro e que habita o Planeta Terra juntamente com todas as outras criaturas.

A renovação eclesial, a partir do Concílio Vaticano II, é marcada pela lucidez na leitura dos acontecimentos e pela intensidade e abertura na busca por respostas evangélicas. São mudanças que colocam em evidência as novas maneiras de entender a vida como um todo, a pessoa humana e toda a criação. O homem de hoje, imerso no neoliberalismo, precisa de uma nova experiência de Deus vivo em nossas culturas, e uma nova teologia ecológica pode nos ajudar nisso. 

Este artigo tem como objetivo refletir sobre como a atual renovação da Igreja, apontada por Papa Francisco, focaliza a relação fundamental e imprescindível dos seres humanos com o Planeta Terra inteiro. Tal renovação integra um processo de vitalidade histórica da Igreja, que teve como auge a novidade de São Francisco de Assis, que continua atual, trazendo vigor e esperança à relação de proximidade e acolhimento do humano e da Terra, que é irmã, mãe e casa.  

Depois de fundamentar a escolha de colocar no centro da reflexão teológica a Terra como irmã, mãe e casa comum, este texto analisa o estado de saúde do Planeta. Nesse ponto, São Francisco de Assis e Papa Francisco oferecem a motivação para o cuidado evangélico da Terra. Em seguida, a escolha da Terra e dos pobres é lida como uma opção profética em sintonia com a teologia da Terra. A reflexão, portanto, explicita a aliança entre a Terra e todo ser criado, como proposta de renovação da Igreja e abertura e acolhimento das realidades humanas atuais em perspectiva evangélica. 

1. OPÇÃO FRATERNA PELA TERRA

Vemos atualmente, em especial nas gerações mais jovens, a consciência da responsabilidade pelo cuidado com o Planeta, mas ainda temos um longo caminho a percorrer, como nos diz Papa Francisco, para nos contrapor a um certo tipo de sociedade tecnocrática (LS 101). 

As mudanças climáticas, os estragos produzidos pelo efeito estufa, a devastação das selvas e dos bosques, o declínio das condições de vida e o desequilíbrio econômico, agravados pela atual pandemia, afligem a vida no Planeta inteiro. São fenômenos que apelam à nossa responsabilidade em promover atitudes de compromisso pessoal e coletivo para encontrar caminhos que coloquem a dignidade humana, o bem comum e o cuidado pela vida na Terra como principal atenção e solidariedade. 

Essa constatação nos chama ao esforço de compreendermos e de nos relacionarmos com a natureza de um modo novo, assim como colher uma nova imagem de ser humano, não como dominador (LS 65,67), mas em relação harmoniosa homem – natureza, em uma nova experiência de Deus. Algumas indicações para essa nova conexão nos são sugeridas pela relação de São Francisco com a “irmã”, “mãe” Terra e pela “casa comum” de Papa Francisco. 

Habituados a ver a Terra como possuidora de recursos inesgotáveis, de matéria-prima e fornecedora de tudo o que precisamos, com lentidão, abrimos os olhos para perceber que este é o único Planeta em que podemos habitar e cujos recursos naturais estão se exaurindo. Cientistas, filósofos e pensadores alertam sobre a grave situação do Planeta, questionam nosso estilo de vida e afirmam que, se não mudarmos a rota, acontecerá um grande colapso na sobrevivência da humanidade.

Constituídos por Deus para proteger a Terra, falhamos em nossa missão (FRANCISCO, 2020b). Basta olhar em torno para nos darmos conta do estado de saúde da Terra, constatando como a poluição do ar, o desmatamento, a extinção das espécies, a diminuição da água, o aumento de emissões de gases e a degradação do solo levarão à destruição.

Estamos em plena crise pandêmica, que é a parte visível de uma crise sistêmica bem mais complexa. As crises sanitária, a climática e a econômico-social estão profundamente interconectadas, porque, no bem e no mal, tudo está em relação. Todas essas crises são as diversas manifestações de um mundo doente e, ao mesmo tempo, uma ocasião única para percebermos que é necessário agir para limitar o impacto que estamos causando no meio ambiente.

Esta crise é expressa na Carta Encíclica Laudato si’ como uma crise socioambiental: “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS 139). O fundamento dessa crise é antropológico: como o homem está vivendo e deixando sua marca no Planeta?

Papa Francisco examina e descreve as condições atuais do Planeta e o consequente empobrecimento das populações. Com o olhar sistêmico que caracteriza suas análises, ele especifica a atual crise ecológica e social: ritmo acelerado da exploração da Terra em descompasso com a lenta dinâmica dos ecossistemas (n. 17-19); poluição, mudança climática e cultura do descarte (20-22); o clima como bem comum (n.23-26); a questão da água, incluindo as extensões marítimas (n. 27-31); a perda da biodiversidade (n.32-42); a deterioração da qualidade de vida humana e a degradação social (n. 43-47); a desigualdade social das populações planetárias (n. 48-52); a fraqueza das reações em face da crise ecológica e seus fatores (n. 53-59); a diversidade de opiniões no debate dessa crise e suas soluções (n. 60-61).

Cabe a todos os habitantes do Planeta e às Instituições afrontarem cada uma das crises socioambientais com lucidez, coragem e empenho. Por exemplo, sobre a crise climática, a estrada que devemos percorrer para o futuro é aquela da conversão ecológica (LS 216): curar a causa das constantes e diárias agruras que o Planeta enfrenta, deixando de remediar os sintomas, mas assumindo nossas responsabilidades em relação à casa comum. É necessário fazer as pazes com a natureza. Enquanto isso não acontecer, outras tentativas de colocar fim aos conflitos, às instabilidades sociais, às desigualdades e a outros problemas de natureza social e econômica serão vãs.

Não se pode deixar de lado a questão da necessidade de um equilíbrio consciente entre o avanço tecnológico e a satisfação das necessidades básicas de todos os homens, como comer, beber, respirar, gozar a vida. A Campanha da Fraternidade de 2016 acusa que “mais de 4.000 crianças morrem por ano por falta de acesso a água potável e ao saneamento básico. Na América Latina, as pessoas têm mais acesso aos celulares que aos banheiros. 120 milhões de latino-americanos não têm acesso aos banheiros. O Brasil está entre os 20 países do mundo nos quais as pessoas têm menos acesso aos banheiros” (CF 2016, no 46). Nós precisamos da Terra até mais do que ela de nós. A Terra nos mantém em vida: “O nosso corpo é constituído pelos elementos do Planeta; o seu ar permite-nos respirar, e a sua água vivifica-nos e restaura-nos” (LS 2). 

São Francisco de Assis, em seu cântico de louvor, composto dois anos antes de sua morte, celebrou a fraternidade de todas as criaturas, considerando-as de grande importância e chamando-as de irmão, de irmã (FONTES FRANCISCANAS, 2020, p. 122).

O cântico, em suas duas partes, celebra diversos elementos “do macrocosmos ao microcosmos, do alto ao baixo” (LEHMANN, 1993, p. 338). Primeiro, considera os elementos naturais: Sol, Lua, estrelas, vento, ar, água, fogo, Terra. Depois, dirige a atenção para a humanidade, que, mesmo suportando discórdias, doenças, sofrimentos, recebe de Deus a força para superar e perdoar.

Chama a atenção a presença implícita do homem na primeira parte do cântico. Todas as criaturas são vistas na perspectiva humana: o Sol ilumina o dia para nós, a água é útil, a Terra nos sustenta e nutre, etc. Assim, a Terra é vista em uma estreita relação com o ser humano. Cada um, nessa orquestra, tem seu lugar e função.

O cântico das criaturas é um louvor a Deus, ao seu operar e à vida. “O cosmo é uma grande família” (LEHMANN, 1993, p. 340), a natureza, descrita com amor e gratidão, reflete a imagem do Criador. Outro fator por demais relevante é o reconhecimento da fraternidade entre todos os outros elementos e criaturas do universo. Com sentimento de humildade e reconhecimento, Francisco de Assis agradece ao Senhor por toda a Criação, sem esquecer as criaturas que vivem, os elementos naturais e os fenômenos meteorológicos.

O cântico se conclui com a celebração da morte corporal como meta não negativa, mas através da qual se pode ressuscitar para a vida eterna. Para São Francisco, a morte é complemento do ciclo vital, ato supremo de abandono e confiança no Criador. Assim, ele realiza uma impensável fraternidade até com a própria morte.

Tudo aquilo que Francisco de Assis colhe do Evangelho sobre a fraternidade humana é vivido por ele como relação harmoniosa do homem com a natureza, com o universo e com Deus. A mais bela expressão da harmoniosa relação do ser humano com o ambiente é expressa na oitava estrofe da poesia, explicitando a relação familiar dos seres humanos com a Terra: 

“Louvado sejas, meu Senhor, 

pela nossa irmã, a mãe Terra,

que nos sustenta e governa

e produz frutos diversos

e coloridas flores e ervas”.

A originalidade de São Francisco está em considerar, ao mesmo tempo, a Terra como mãe e irmã, recordando Gênesis 1, 1-11: somos criaturas de Deus e também filhos e filhas da Terra (Cf Gn 2,7). A palavra criadora gera harmonia e equilíbrio entre todos os seres.

Para Francisco de Assis, a Terra é como uma irmã. Deus Pai é Criador de tudo o que vive e respira, de tudo o que está debaixo dos céus. A criação é o liber creaturae, aquele livro aberto que revela a Verdade, a Bondade e a Beleza de Deus. Não se pode contemplar a criação sem perceber os vestígios do Criador (Cf. Sb 13,5). Essa contemplação da obra maravilhosa da criação fez com que Francisco de Assis se sentisse inserido na harmoniosa beleza da irmandade cósmica, dando a cada criatura o nome de irmã, como um convite a louvar a Deus. 

A Terra é como uma mãe. Antigas representações da mãe existem sob a forma daquela que nutre e que é abundante. Reconhecer a Terra como mãe é perceber a sincronicidade com a natureza dentro de nós e com a natureza abundante fora. A mãe Terra sustenta tudo o que existe, todo ser vivo, com diferentes cores, sabores, texturas, odores e formatos e em todas as estações. A Terra é como uma mãe fecunda e que nos alimenta. A Terra recebe a luz, o calor e o carinho do irmão Sol, da irmã Lua e do irmão fogo. É fecundada pela irmã água e, por sua vez, fecunda o irmão vento, ar em movimento. 

A Terra é mãe cuidadosa da vida. Embora não seja um ser vivo como nós ou como os outros animais, ela se constitui como uma espécie de organismo vivo que respira e é capaz de colher a relação que temos com ela. Da mãe Terra, recebemos nutrição e acolhimento; ela é o nosso lar. O ser humano é chamado a amar e a proteger a Terra como irmã e mãe: “isto implica uma relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza” (LS 67). 

As primeiras palavras da Laudato si’ retomam as palavras de São Francisco: “Neste gracioso cântico, recordava-nos de que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços: «Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe Terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras” (LS 1).

O Documento de Aparecida, Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe de 2007, no qual o Cardeal Bergoglio foi um dos principais relatores (BRIGHENTI, 2007, p. 784), já nos apresentou a Terra como nossa “casa comum”. 

Junto com os povos originários da América, louvamos ao Senhor, que criou o universo como espaço para a vida e a convivência de todos seus filhos e filhas e nô-los deixou como sinal de sua bondade e de sua beleza. A criação também é manifestação do amor providente de Deus; foi-nos entregue para que cuidemos dela e a transformemos em fonte de vida digna para todos. Ainda que hoje se tenha generalizado uma maior valorização da natureza, percebemos claramente de quantas maneiras o homem ameaça e inclusive destrói seu ‘habitat’. “Nossa irmã, a mãe Terra”, é nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a criação. Desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus estabeleceu entre as realidades criadas é uma ofensa ao Criador, um atentado contra a biodiversidade e, definitivamente, contra a vida. O discípulo missionário, a quem Deus encarregou a criação, deve contemplá-la, cuidar dela e utilizá-la, respeitando sempre a ordem dada pelo Criador (DAp., no 125).

No louvor pela nossa irmã e mãe Terra e por todos os que promovem uma ecologia que resgate o plano do criador e os direitos das pessoas e do ambiente, Papa Bergoglio foi buscar Francisco de Assis como inspiração, para comunicar ao mundo esse olhar atento e amoroso, para ensinar-nos que a Terra é nossa casa: “Francisco é o exemplo por excelência do cuidado pelo que é frágil e por uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade […]. Nele se nota até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior” (LS 10).

A reflexão teológica da Terra como irmã, mãe e casa sugere decisões de grande alcance e tomadas de responsabilidade em favor da diversidade da vida, que compete a cada pessoa que habita o Planeta.

2. CUIDAR DA TERRA E DOS POBRES: OPÇÃO PROFÉTICA

O ano de 2020 ficará marcado na História como uma interrupção do ritmo frenético em que estávamos vivendo; é o início de um tempo de suspensão, de isolamento social em todo o Planeta Terra, devido a um vírus que já causou milhares de vítimas e está mudando nosso estilo de vida. Esse acontecimento se torna marco do início de uma nova etapa na História da humanidade, uma mudança de época, como há algum tempo afirmou Papa Francisco.

O Pontífice, durante o momento extraordinário de oração em tempo de pandemia, celebrado na Praça de São Pedro, no dia 27 de março de 2020, convidou-nos a “colher este tempo de prova como um tempo de decisão. Não é o tempo do teu juízo, mas do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é. É o tempo de reajustar a rota da vida rumo a Ti, Senhor, e aos outros. E podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que, no medo, reagiram oferecendo a própria vida”. (FRANCISCO, 2020a)

Estamos, portanto, no tempo de tomar decisões que vão ao encontro do que realmente conta, decisões que incluam todos os seres criados em condições de vida. Tais decisões devem mirar, inequivocadamente, os pobres e a Terra.

A Exortação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia nos lembra que “O Senhor, que primeiro cuida de nós, ensina-nos a cuidar dos nossos irmãos e irmãs e do ambiente que Ele nos dá como presente a cada dia”. (QA 41). No centro da atenção do Papa, estão os mais abandonados e desfrutados da Terra: os pobres e a própria Terra. E são esses que ele quer que nos decidamos a colocar no centro. A teologia de Francisco deriva da realidade da injustiça, da pobreza e da destruição da natureza.

Papa Francisco se faz paladino em defesa do cuidado com a casa comum e propõe uma ecologia integral, que articula “tanto o grito da Terra como o grito do pobre” (LS 49). Assim, convoca a Igreja a cuidar de tudo o que existe, em um abraço, como expressão de coragem de abertura, de escuta ou resposta aos sinais dos tempos.

No mundo atual, em que a conexão com o senso de mistério foi amplamente perdida, onde se nega a transcendência, Papa Francisco apresenta o Deus humanizado. Jesus não está longe da vida cotidiana de todas as pessoas, mas age sempre mostrando proximidade aos mais necessitados de acolhimento e proteção. Entre esses necessitados, encontra-se a Terra. Ele não identifica ecologia com meio ambiente, mas realiza uma guinada no discurso ecológico, ampliando a compreensão, propondo a ecologia integral como maneira de ler as inter-relações entre todos os seres criados.

A ecologia não pode se reduzir à vicissitude de militantes e ativistas... mas deve ser uma “atitude vital” (CARBAJO, 2016, p. 17) de todo cristão que se coloca em posição de respeito e valorização da inseparabilidade e integração entre o mundo, a pessoa humana e o Criador. A ecologia é um novo estilo de viver e de habitar a casa comum de modo que todos tenham espaço nela. Eticamente, cada ser tem direito à sua integridade, cada pessoa tem, como vocação primeira, o cuidado e a promoção da vida.

Hoje, porém, observamos que, ao nosso redor, existe uma total submissão de tudo o que é natural ao desejo de realização de projetos sempre mais sofisticados. Isso evidencia claramente a necessidade de “saber e poder” que caracteriza o homem moderno: “a luta pelo poder é hoje cada vez mais uma luta pelo acesso aos conhecimentos, sobretudo na área da biotecnologia, que muitas vezes conduz à eliminação do debate sobre questões centrais na vida humana e, em última análise, acabam sendo decididas por uma elite tecnocrática” (OLIVEIRA, 2016, 140). Essa mentalidade de conquista da natureza está esgotando as riquezas naturais e alerta sobre a necessidade de outro tipo de relação que considere o cuidado, em vez do domínio e do controle, de um olhar contemplativo que descubra a harmonia e a sabedoria contidas na criação.

A reflexão teológica, que sempre exaltou a centralidade antropológica, é chamada a ampliar sua abordagem, acolhendo a vida como categoria maior onde toda a criação tem o seu lugar. A Terra, mãe cuidadora da vida, hospeda tão gentilmente o homem transeunte, que nela encontra o seu lugar e seu valor. Essa inter-relação é uma das marcas da vida no Planeta. Tudo o que existe, animado ou não, está em relação, todas as partes estão entrelaçadas para formar o todo e, em cada uma das partes, está presente o todo nessa teia da vida. (Cf. WILSON, 2002)

A teologia atual, portanto, considerando o fenômeno ecológico, possui a tarefa de nos ajudar a ver o mundo de forma integrada, buscando a presença harmoniosa do Criador. Isso significa pensar teologicamente a relação entre todas as criaturas e com os seres não-vivos, procurando sempre compreender o ser investigativo fundamental da teologia: Deus. Assim, a reflexão teológica pode desenvolver novas maneiras de percorrer esse caminho de integração a partir das atuais inquietações dos habitantes do Planeta.

Nessa perspectiva de reflexão, a Terra se configura como locus theologicus, lugar a partir do qual nos aproximamos às fontes da fé. Um lugar social que Papa Francisco coloca em grande evidência em seu ministério petrino. Sua leitura atenta às questões humanas e planetárias coloca o problema em seu contexto histórico e sabe dar nome às suas causas: a modernidade tecnocrática (LS 106) e uma certa leitura teológica (LS 66-68). 

A criação é dom amoroso e gratuito de Deus entregue ao Filho, que recria, com sua vida doada, na força geradora do Espírito. A ecologia integral abraça o cuidado por todo ser nesta Terra e contempla a ação criadora de Deus.

Essa abordagem integral da questão ecológica significa admitir, do ponto de vista da fé, a beleza e a dádiva da Terra, na qual se manifestam a glória e a bondade daquele que a criou. Assim, Francisco segue a teologia clássica que reconhece a Criação como manifestação do Criador. Mais do que isso, ele opera uma gradação nessa perspectiva quando contempla o conjunto cósmico das criaturas para apontar, de maneira contundente, a Terra em suas condições atuais. Há, pois, em Francisco um olhar que desce, da Criação cósmica à natureza fenomênica; e da natureza fenomênica ao Planeta Terra, habitado pela humanidade, compreendido como ‘nossa Casa comum’ (MAÇANEIRO, 2018, p. 262).

Esse olhar integral e integrador corrobora a ênfase dada à Terra como lugar teológico, porque é nela que se compreende e que se vive a fé cristã, no reconhecimento dessa dádiva do Criador, que espera nossa resposta de cuidar e fazer florescer. A ressurreição de Cristo é a garantia da esperança cristã dos novos céus e nova Terra, que poderemos entrever quando começarmos a viver uma relação de justiça com a Terra.

Na catequese do dia 22/04/2020, Papa Francisco afirmou: “Ao celebrar o Dia Mundial da Terra, somos chamados a redescobrir o sentido do respeito sagrado pela Terra, porque não é apenas a nossa casa, mas também a casa de Deus”. O Pontífice aproveitou a ocasião para falar das oportunidades que temos para “renovar o nosso compromisso de amar a nossa Casa comum e cuidar dela e dos membros mais frágeis de nossa família” (FRANCISCO, 2020b).

A nossa existência é coexistência e codependência entre nós e com a Terra, que é fonte de vida, alimento e sustento. O livro do Gênesis nos diz que nós mesmos somos Terra (Cf. Gn 2, 7). Essa integração indissociável entre a vida humana e o bem-estar de toda a Terra, a casa comum, é a condição para que ocorra um desenvolvimento sustentável, considerando a interdependência que há entre todos os elementos da Criação. 

Assim, “tanto a experiência comum da vida quotidiana como a investigação científica demonstram que os efeitos mais graves de todas as agressões ambientais recaem sobre as pessoas mais pobres” (Fratelli tutti 48). Não se pode deixar de considerar que, estando no mesmo Planeta, essas consequências não tardam a pesar sobre os ombros de todos e, rapidamente, iniciam os processos de degeneração e crise do Planeta onde todos habitamos.

Trazer a Terra ao centro da reflexão teológica é uma escolha motivada pela urgência dos problemas ambientais e climáticos. É uma escolha que aponta a necessidade de criar uma cultura da ecologia integral, como categoria que está em comunhão com as inúmeras manifestações da fé em Jesus Cristo, vinculada ao cuidado da vida em todas as suas expressões. O atual Pontífice afirma: “Hoje, a análise dos problemas ambientais é inseparável da análise dos contextos humanos, familiares, laborais, urbanos e da relação de cada pessoa consigo mesma” (FT 141). E ressalta: é “fundamental buscar soluções integrais que considerem as interações dos sistemas naturais entre si e com os sistemas sociais. Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social, mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (FT 139).

A questão da justiça ambiental é parte integrante da justiça social, como, por exemplo, quanto mais pessoas têm acesso ao saneamento básico, mais são beneficiadas com qualidade de vida e o ambiente recebe os cuidados necessários. Obviamente, a injustiça estrutural se combate cultivando valores de justiça social e ambiental, valores contrários àqueles que a provocam.

Cuidar da fragilidade da Terra e da vulnerabilidade dos mais desfavorecidos é uma opção profética. “O movimento ecumênico está marcado pela ação e pelo desafio de construir uma Casa Comum (oikoumene) justa, sustentável e habitável para todos os seres vivos. Essa luta é profética, pois questiona as estruturas que causam e legitimam vários tipos de exclusão: econômica, ambiental, social, racial e étnica” (CF 2016, no 4).

Comprometer-se com os pobres é uma opção que a Sagrada Escritura nos apresenta com clareza, quando Deus se pronuncia diante do sofrimento do seu povo: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso, desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra de que emana leite e mel” (Ex 3,7-8b). É uma opção que Deus faz ao longo da História a ponto de mandar seu Filho, que se identifica com os mais frágeis e desamparados. Jesus viveu inteiramente dedicado aos pobres e marginalizados (cf. Mt 9,35-36; Lc 4,16-21; Mt 11,2-6; Lc 7,18-23).

Seguindo os passos de Jesus, o Concílio Vaticano II se caracteriza pelo seu desejo de reforma da Igreja, tornando-se referencial para toda a Igreja e não menos para a Igreja da América Latina. A opção pelos pobres, inspirada pelo Vaticano II, continua sendo a pedra angular do processo de evangelização, pois “a opção pelos pobres é uma das características que marcam o rosto da Igreja latino-americana e caribenha” (DAp., no 391).

Essa opção feita de modo essencial pelos mais desfavorecidos tem sua razão na realidade de pobreza em que vive a maioria da população latino-americana. Tal realidade que se propaga é gerada pela injustiça social e pela injustiça que atinge também o meio ambiente. É o seguimento de Jesus de Nazaré que nos coloca em profética defesa da vida. Muitos são os mártires latino-americanos que, por amor aos irmãos, derramaram seu sangue em favor da vida de todos. A Igreja percorre esse caminho de opção profética pelos pobres e pela Terra, nutrindo a esperança de mudanças estruturais, acreditando em um outro mundo possível onde se realiza mais plenamente a palavra do Senhor de vida em abundância (Cf Jo 10,10), não só para o ser humano, mas para toda a Terra. 

3. ECCLESIA SEMPER REFORMANDA E DE PORTAS ABERTAS

O processo de renovação passa por uma nova aliança com a Terra. Iniciaremos refletindo sobre o significado desse processo no qual a Igreja está inserida. A expressão latina Ecclesia semper reformanda est, que foi usada por vários teólogos (Karl Barth, Agostinho, Hans Küng, para citar alguns) e pelo Magistério, significa que “a Igreja precisa reformar-se constantemente”, estar sempre em processo de mudança, atenta às alegrias, esperanças, tristezas e angústias dos homens em cada tempo (Cf. Gaudium et spes, no 1). A expressão latina reformanda não sugere que se derrube até o chão, ou quase, para construir de novo, como quando alguém quer reformar a própria casa, mas diz respeito à convicção de que a Igreja deve continuamente se questionar, a fim de manter a originalidade da doutrina e da prática. Ela deve mudar e adaptar-se aos tempos, respondendo aos novos desafios, mas mantendo o vigor da fé em Jesus Cristo.

O Decreto sobre o Ecumenismo do Concílio Vaticano II Unitatis redintegratio afirma: Toda a renovação da Igreja consiste essencialmente numa maior fidelidade à própria vocação [...]. A Igreja peregrina é chamada por Cristo a essa reforma perene. Como instituição humana e terrena, a Igreja necessita perpetuamente desta reforma, uma renovação que precisa ser compreendida como constante tensão de fidelidade à sua própria razão de ser e de existir. A Igreja se reforma para ser mais ela mesma (Cf UR 6).

Falar de “mudança” é falar de dinamismo e novidade. Para nós, é o Espírito do Senhor que “faz novas todas as coisas” (Ap 21,5) e está em ação “aqui e agora”, pois os sinais da sua presença operam no mundo, em nossa vida e, constantemente, surpreendem-nos. Falamos então da novidade que o Espírito do Senhor realiza, modelando a vida de cada um, porque o Espírito é contínua novidade que faz desabrochar na pessoa a “fantasia da caridade” (Novo millennio ineunte, no 50).

Momentos de grandes reformas sempre existiram na História da Igreja. Depois dos Apóstolos e dos Padres da Igreja, tivemos períodos escuros, mas Deus suscitou homens e mulheres que testemunharam o Evangelho de Jesus para as pessoas do seu tempo.

Sem a intenção de fazer uma descrição histórica, mas focando a atenção em Francisco de Assis e em Papa Francisco, desejamos ver como a Ecclesia semper reformanda encontra momentos de grande expressão na convicção de que a reforma da Igreja consiste na “evangelica vivendi forma, que não depende tanto da vontade dos homens, mas da ação do Espírito” (VITALI, 2017, 48). A Igreja precisa continuamente de uma reforma interior nas convicções e atitudes. Isso se identifica com o conceito teológico de conversão, com a forte consciência de que as mudanças começam por cada um de nós. 

O teólogo Yves Congar, em seu livro Verdadeira e falsa reforma na Igreja vê em Francisco de Assis um claro exemplo de reforma na Igreja pelo caminho da santidade (CONGAR,1972, p. 194). O início da conversão de São Francisco é narrado por ele mesmo no seu Testamento:

O Senhor deu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência assim: como estivesse em pecado, parecia-me demasiadamente amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles e fiz misericórdia com eles. E, afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo converteu-se em doçura da alma e do corpo; e, em seguida, detive-me por um pouco e saí do mundo (FF, p. 82).

Francisco afirma que a sua conversão não é motivada, em primeiro lugar, pelos pobres ou pela pobreza. A sua escolha radical foi aquela de não pertencer mais a si mesmo, mas a Deus. Essa profunda motivação da sua conversão não é de natureza social, mas evangélica. “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida a perderá, mas o que perder sua vida por causa de mim a salvará” (Lc 9, 23-24). Francisco entende que o Senhor o conduziu entre os leprosos. O Senhor havia preparado o seu coração e, naquele momento, os leprosos representam Jesus. “Tudo o que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Portanto, o motivo principal do seu amor pelos leprosos, pelos pobres, os mais pequeninos, é o amor por Cristo. Quando não é essa a motivação, corre-se o risco de instrumentalizar os pobres e aumentar a injustiça.

No seu tempo, mesmo sendo um fato que a Igreja institucional mostrava profunda necessidade de mudar seus costumes, Francisco de Assis entende, de um modo modesto, as palavras do crucifixo: “Francisco, vai e restaura a minha Igreja” (FF, p. 447). Ele restaura materialmente algumas Igrejas, mas, sobretudo, aprofunda seu caminho interior de adesão ao Evangelho de Jesus.

Ele não quis ser um reformador, mas cresceu na convicção expressa por ele mesmo: “E depois que o Senhor me deu Irmãos, ninguém me mostrou o que deveria fazer, mas o próprio Altíssimo me revelou que eu deveria viver segundo a forma do Santo Evangelho. E eu o fiz escrever com simplicidade e com poucas palavras e o senhor Papa mo confirmou” (FF, p. 83). Francisco alude ao momento em que escutou as palavras do Senhor no Santo Evangelho pedindo para não levarem nada consigo ao anunciarem o Reino (Cf. Lc 9,2-3) E aquela foi a orientação da sua vida: restaurar no mundo a forma e o estilo da vida de Jesus e dos discípulos. Francisco escreve na Regra bulada: “A Regra e a Vida dos Frades Menores é esta: observar o Santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” (FF, p. 61).

Portanto, a reforma de Francisco de Assis consistiu em aproximar-se novamente do evangelho e, por isso, aproximar-se dos homens e, em particular, dos humildes e dos pobres, estando em profunda comunhão com a Igreja.

A vida de São Francisco de Assis nos apresenta uma atitude alternativa e de restauração do cristianismo: uma atitude fraterna que se enche de compaixão e respeito diante de cada criatura cósmica e planetária. Francisco de Assis resgata a centralidade do sentimento e a importância da ternura nas relações humanas e cósmicas. Ele se torna paradigma para nossa vida na casa comum e para que possamos bem viver nossa relação com os humanos e com todas as outras criaturas.

A capacidade de não absolutizar a própria intuição, mas encontrar o seu lugar dentro do todo, permanecendo em sintonia com a tradição da Igreja, é uma característica de Francisco de Assis que encontramos também em Francisco de Roma. Em sua primeira exortação apostólica, Evangelii gaudium, o Pontífice reafirma a convicção de que “o todo é superior à parte” (EG 234), por isso, qualquer tentativa de reformulação na Igreja deve ser vista dentro dessa ótica.

O desejo de um retorno ao Evangelho transparece nos escritos de Papa Francisco, uma Igreja em saída e de portas abertas. Papa Francisco quer nos mostrar que nós somos Igreja e que, à medida que nos transformamos interiormente, mostramos o verdadeiro rosto da Igreja. Para isso, temos necessidade de cristãos abertos à renovação.

Cada pontífice contribuiu de modo diferente ao caminho da Igreja e do mundo. Obviamente, como todos os outros, Papa Francisco se sentiu chamado a manifestar o seu olhar sobre o mundo e sobre a Igreja. Mesmo que não tenha estado presente, ele é um Papa do Concílio Vaticano II, porque sabe colher em profundidade o seu espírito de releitura do Evangelho à luz da experiência contemporânea. Ele sonha uma “Igreja samaritana”, “hospital de campanha”, “casa para todos”.

Quando fala de reformas, o Pontífice não está pensando em primeiro lugar nas reformas externas, como a Reforma da Cúria romana, que, sem dúvida é muito importante. Ele pensa em uma reforma interior, profunda da Igreja (Cf. SPADARO, 2013, p. 449-477): colocar Cristo sempre mais ao centro, porque é Ele quem realiza qualquer reforma. Por isso, ele sabe que seu pontificado está buscando iniciar processos, um passo depois do outro, não pretende ver imediatamente o resultado do que está sendo semeado.

A Carta encíclica Evangelii gaudium apresenta o programa do seu pontificado, fruto de um amadurecimento e de experiência pastoral. Seguindo o pensamento do Papa Bento XVI, ele afirma que “a Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração” (FRANCISCO, 2013, no 14) e, por isso, os cristãos devem ser fascinados pelo Evangelho. De fato, “todos somos discípulos missionários” (EG 19), uma Igreja “determinada a ‘mover-se e sair’ preferencialmente em direção às periferias” (HUMMES, 2017).

Na Laudato si’, Papa Francisco expressa a grande proposta de viver o Evangelho em fraternidade com toda a Criação, especialmente a Terra. A Laudato si’ inicia o grande esforço na luta comum pela Terra. A emergência planetária que estamos vivendo nos faz ver cada vez mais nitidamente os problemas. A Terra “não é um depósito de recursos a explorar. Para nós, crentes, o mundo natural é o ‘Evangelho da Criação’, que exprime o poder criador de Deus” e nós “poluímo-la, saqueamo-la, colocando em perigo a nossa própria vida” (FRANCISCO, 2020b). 

A reforma de Francisco passa, portanto, pela conversão interior: “a crise ecológica provocada pelo modelo de progresso, pela perda de valores e dos horizontes de uma vida digna para todos exige profunda conversão espiritual e material. O respeito pela pessoa humana e o respeito pelo mundo natural devem caminhar de braços dados” (SUESS, 2017, p. 46). Papa Francisco pensa em um projeto em colaboração para salvarmos a nossa Casa comum. A Carta encíclica Fratelli tutti faz uma síntese das linhas principais do seu pontificado e se apresenta como uma atual proposta de vida evangélica acessível a todos, um convite à fraternidade aberta e sem confim. O Papa sempre deixou claro seu desejo de uma Igreja em contínua conversão pastoral e missionária.

O atual Pontífice se move sempre buscando o equilíbrio entre o pessoal e o social. A responsabilidade pelo cuidado da Terra é de cada um e de todos, dos indivíduos e das Instituições. Só nesse diálogo é possível que se mudem também as estruturas.

Em sua última Carta Encíclica, o Papa confirma uma importante mudança, já iniciada na Laudato si’. Ele não só dialoga com os cristãos, mas com todo o povo, todos os povos, com a natureza, os animais, o cosmo, a casa comum que devemos construir juntos. A fraternidade é completa com todas as criaturas. Cada elemento do cosmos está entrelaçado positivamente com todos os outros. Nesse sentido, não é possível dar atenção à pessoa humana sem cuidar também da natureza, do clima e do Planeta todo.

Essa Ecclesia semper reformanda e de portas abertas é anunciadora da vida, porque seguidora de Jesus Cristo. A Igreja vive uma mudança contínua, porque está em caminho com a História dos homens. Enfim, é uma Igreja em constante renovação, porque animada pelo Espírito Santo, que faz novas todas as coisas (Cf Ap 21,5).

Reforma, renovação fazem parte do processo histórico da Igreja, como em todas as organizações humanas. Todos somos chamados a percorrer caminhos de reencontro, de “reconciliação e reconstrução da grande família cósmica” (CARBAJO, 2016, 213), caminhos que nos permitirão reconhecer a presença de Deus em cada pessoa humana e os seus vestígios nos seres criados por ele.

Renovar e “recomeçar, sempre há de ser a partir dos últimos” (FT 235), todos a serviço da fraternidade e da amizade social com o objetivo de incentivar a esperança e o compromisso com a cultura do encontro e do diálogo, pois “cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo, extinguindo o ódio em vez de o conservar, abrindo caminhos de diálogo em vez de erguer novos muros” (FT 284).

CONCLUSÃO

Na Ecclesia semper reformanda, a Terra é irmã, mãe e casa. A Igreja em processo de mudança, que caminha com a História, está aberta para o esforço de inculturar o Evangelho às realidades nas quais se encontra, pois tem “um coração aberto ao mundo inteiro” (FT, no 128). Por esse motivo, não poderia deixar de ouvir o grito dos pobres, juntamente com o grito da Terra. Essa abertura cordial caracterizou profundamente o pobrezinho de Assis. Para ele, todos podem realizar o bem, guiados pelo Criador de todas as coisas, de quem procede todo bem.

O espírito da Ecclesia semper reformanda caracteriza o Magistério do Francisco de Roma, que convoca a todos para o cuidado da Terra, uma ecologia humana em favor do convívio social para proteger, de forma responsável, a vida de todos com justiça, equidade e ternura. Enfim, convoca a um novo estilo de vida, pautado pelas relações humanizadoras, pela inclusão social e pelo cuidado da casa comum.

Vivemos em tempos históricos difíceis - mas também repletos de oportunidades – nas quais se faz necessário um olhar atento e abrangente, totalizador, que coloque a vida no Planeta Terra e as inter-relações em primeiro lugar. Habitar a Terra não significa simplesmente desfrutar os bens que nos foram dados, mas é uma tarefa que o Criador nos confiou para que cuidássemos dela e a fizéssemos frutificar.

A experiência da pandemia - que tem colocado em evidência a fragilidade da saúde planetária, ou seja, esta relação da saúde da civilização humana e a qualidade dos sistemas naturais aos quais ela depende - está liberando a possibilidade de reflexões mais amplas e de novos caminhos, que, sustentados na experiência do mistério, podem nos levar a criar um relacionamento total entre nós e a nossa casa comum. É hora de mudar determinados hábitos já consolidados em cada um de nós e nas sociedades. Tudo tem início com a vontade de rever e de criar atitudes (adequadas às nossas realidades) que promovam a sustentabilidade e comportamentos que vão assinalando essa mudança, capazes de mostrar a importância dessa transformação.

Acolher a Terra como irmã, mãe e casa é ceder lugar a um estilo de vida que garanta equilíbrio, comunicação, reciprocidade entre as pessoas e o Planeta, solidariedade social, com as gerações futuras e com o meio ambiente, e uma justa distribuição dos bens da criação, para que todos e todas nós, sem excluir ninguém, possamos “ter vida e vida em abundância” (Cf Jo 10,10).

Papa Francisco afirma que a fraternidade humana e o cuidado da Criação são o caminho para o desenvolvimento e a paz. A Igreja aponta esse caminho quando internamente vive a profecia, está em processo de renovação e de portas abertas, alimentada pela mística e pela espiritualidade, centrada no mistério que faz a Igreja ser o que é: “a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente e leva-nos a ser guardiões da criação inteira” (LS 237).

Para um mundo doente, onde “tudo parece se dissolver e perder consistência”, o desafio de construir fraternidade é possível quando reconhecemos um Pai: todo o ministério do Papa Francisco visa narrar a misericórdia do Pai, no mundo, que torna possível viver a fraternidade por todos. Fazemos parte da grande família cósmica. “Nós mudamos, a Igreja muda, a História muda, quando começamos a querer mudar - não os outros, mas a nós mesmos, fazendo da nossa vida um dom” (FRANCISCO, 2019).

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