A renovação da “Igreja em saída” e suas contribuições para o ecumenismo
The renewal of the “outgoing Church” and its contributions to ecumenism

Elias Wolff
Docente no Programa de Pós Graduação em Teologia da PUCPR. Líder do Grupo de Pesquisa "Teologia, Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso".


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Resumo

O papa Francisco entende que a igreja necessita de mudanças, renovação e reformas que possibilitem “a saída” de si mesma para ir ao encontro do “outro” social, cultural e religioso. A proposta do papa Francisco de uma “Igreja em saída missionária” (EG 17) precisa, então, superar elementos e situações que dificultam o cumprimento da sua missão de anunciar o Evangelho ao mundo atual, o que exige corajoso e profético redimensionamento teológico-pastoral que tenha incidência nas suas estruturas organizacionais. Essa proposta pode ser um importante impulso para o ecumenismo na medida em que “saída” seja um processo de “conversão pastoral” e de “estado permanente de missão” para as diferentes tradições eclesiais. Cada uma precisa “primeirear” nas mudanças internas que favorecem o encontro e a cooperação mútua no testemunho comum do Evangelho. 

Palavras-chave: Papa Francisco. Igreja em saída. Renovação. Ecumenismo.

Abstract 

Pope Francis understands that the church needs changes, renovation and reforms that make it possible to “get out” of itself to meet the social, cultural and religious “other”. The proposal of Pope Fracis of a “outgoing Church to mission” then needs to overcome elements and situations that hinder the fulfillment of its mission of announcing the Gospel to the current world, which requires a courageous and prophetic theological-pastoral redimensioning that has an impact on its organizational structures. This proposal can be an important impulse for ecumenism insofar as "going out" is a process of "pastoral conversion" and "permanent state of mission" for different ecclesial traditions. Each one needs to “first” in the internal changes that favor the encounter and the mutual cooperation in the common witness of the Gospel.

Keyword: Pope Francis. Outgoing church. Renovation. Ecumenism.

Introdução

Em seu ministério episcopal na Argentina, Jorge Bergoglio deixou-se plasmar pela “teologia del pueblo” (SCANNONE, 2017), uma recepção específica do Vaticano II, base da eclesiologia do Povo de Deus. E nesse mesmo horizonte teológico e eclesiológico continua hoje, como Francisco, em seu magistério pontifício, propondo a “Igreja em saída” (EG 20s). Esta é uma expressão paradigmática do seu magistério, justificando as necessárias mudanças que melhor situam a igreja no mundo atual. O objetivo é tornar a igreja seja cada vez mais “com-forme” o Evangelho, “o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viverem segundo a vida boa do Evangelho” (EG 114). E mudanças se fazem sentir na ênfase de uma concepção bíblica da igreja povo de Deus, do sacerdócio comum e da igual dignidade de todas as pessoas batizadas, de modo que a igreja não se concentra na hierarquia; na afirmação da corresponsabilidade na missão, criticando duramente o clericalismo como “o pior mal que a igreja pode ter hoje” (FRANCISCO, 2017) e abrindo espaço para a presença e ação das mulheres; na relação com a sociedade, as igrejas e as religiões. 

Constata-se nesse processo um grande impulso para o ecumenismo, afirmando na igreja e no mundo a autoridade de Cristo e do Evangelho da graça acima de qualquer outra autoridade. Muitas das aspirações por uma “igreja em saída” sintonizam com as aspirações que estão na raiz da organização de outras tradições eclesiais. É importante verificar como se expressa essa ecumenicidade da “igreja em saída”, de modo a tornar as diferentes igrejas capazes de responder juntas às interpelações que o mundo atual apresenta para o Evangelho. 

1 A proposta por renovação eclesial

Desde o início do pontificado de Francisco (13/03/2013) o catolicismo mundial vive grandes expectativas por reformas, renovação, mudanças. Esses termos fazem parte do seu vocabulário cotidiano, quase como sinônimos, construindo uma nova linguagem eclesial, na qual a expressão “igreja em saída” tornou-se um paradigma eclesiológico. A linguagem é fundamental na expressão do universo semântico no qual o Evangelho é compreendido. E não é uma questão meramente teórica. A linguagem explicita o contexto sociocultural e religioso no qual se organiza a vivência concreta da fé nas comunidades. Sobre isso, Francisco tem consciência que “As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir dum confronto com o contexto atual no que este tem de inédito para a história da humanidade” (LS 17).

Uma igreja “em saída” (EG 24.46) requer renovação, mudança, reforma, conversão, em todos os níveis. Essa proposta não é facilmente assimilada no catolicismo, mas aos poucos gera aberturas em instâncias e ambientes católicos, gerando um clima positivo para o diálogo ad intra muito diferente daquele de pouco tempo atrás, quando conceitos como “reforma” e “mudança” soavam como “coisa de protestante” e levantavam suspeitas de toda ordem, inclusive impondo o obsequioso silêncio a quem utilizasse tais conceitos questionando o status quo da igreja. Os fatos são bem conhecidos. Agora, retomando o ensino do Vaticano II de que a igreja precisa de uma “reforma perene” (UR 6), é o papa mesmo quem afirma: 

Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilos, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual do que à autopreservação. A reforma das estruturas exigida pela conversão pastoral, só se pode entender nesse sentido: fazer que todas elas se tornem mais missionárias, que a pastoral ordinária em todas as instâncias seja mais comunicativa e aberta, que coloque os agentes de pastorais em atitude constante de “saída” e, assim, favoreça a resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece sua amizade (EG 28) 

Quanta diferença de pontificados anteriores e, para muitos, quanta ousadia! Mas trata-se da parresia da fé, que orienta para um verdadeiro discernimento evangélico da realidade eclesial. O texto da Evangelii gaudium acima citado é paradigmático, mostra a amplitude das reformas propostas: na organização estrutural da igreja, na mentalidade, na linguagem teológico-pastoral, no agir do clero e do laicato, na espiritualidade. É preciso favorecer a emergência de “uma igreja-sujeito e uma igreja de sujeitos” (ROUTHIER, 2016p. 239). Todos e tudo na igreja precisa ser “um canal proporcionado mais à evangelização”, capacitados para responder às interpelações atuais do mundo em que vivemos e às pessoas “a quem Jesus oferece sua amizade”. Afinal, “a igreja não é um ‘para si’, mas um ‘para os outros’” (VELASCO, 1996, p. 429). Tal processo reformador exige “saída”, movimento ou passagem de algo que já não mais condiz com as necessidades da evangelização. Só assim o Evangelho encontra plausibilidade de acolhida no mundo atual. Muitos meios utilizados na evangelização apresentam à mensagem do Evangelho o risco de ser “mutilada ou reduzida a alguns dos seus aspectos secundários, que embora relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo” (EG 34). Claro, não se trata de buscar uma nova igreja, mas uma igreja nova, renovada em seu ser e agir, “em estado permanente de missão” (EG 25). Como diz Walter Kasper, a proposta de Francisco “Não se trata de uma nova Igreja, mas de um novo modo de ver a Igreja, que deve levar a um novo modelo eclesial” (2015, p. 56). E isso acontece por uma “conversão pastoral” que tenha real incidência nas estruturas, na teologia, na espiritualidade, em toda “maneira de comunicar a mensagem” (EG 34) do Evangelho do Reino. Desse modo, a igreja revela ao mundo Cristo como “rosto da misericórdia do Pai” (MV 1). E também ela assume atitude misericordiosa, pois “sua credibilidade passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo” (MV, n. 10) de modo que na comunidade eclesial “qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de misericórdia” (MV, n. 12).

2 Razões da renovação eclesial

O discurso feito à cúria romana (22/12/2016) explicita as razões dos esforços por renovação e reforma, que podem ser aplicadas à igreja como um todo: 

antes de mais nada, torná-la con-forme à Boa Nova que deve ser proclamada jubilosa e corajosamente a todos, especialmente aos pobres, aos últimos e aos descartados; con-forme aos sinais do nosso tempo e a tudo o que de bom alcançou o homem, para melhor atender às exigências dos homens e das mulheres que somos chamados a servir (FRANCISCO, 2016a). 

Deixar a igreja mais com-formada ao Evangelho e aos sinais dos tempos que interpelam por novos e atualizados modos de compreender, pregar e viver a Boa Nova do Reino, tal é a finalidade da renovação eclesial no magistério do papa Francisco. Isso significa que a igreja não é uma realidade pronta e imutável como se em nada precisasse mudar para se aperfeiçoar, imaginando já ter atingido o máximo da sua realização enquanto instituição mediadora da vivência da graça de Cristo e sinal do Reino no mundo. Pelo contrário, a igreja é chamada a ser sempre mais perfeita em graça e santidade, numa profunda comunhão de amor entre as pessoas, que expresse a comunhão no amor que existe em Deus Uno e Trino. Em sua natureza frágil, a igreja percebe que não pode se estagnar no caminho já percorrido em dois mil anos de história. Há muita estrada a percorrer ainda para chegar à perfeição na vivência do Evangelho. E existe um dinamismo próprio de mudanças que se fazem necessárias na caminhada, para fielmente cumprir a sua missão de ser sinal e instrumento do Reino nos diferentes tempos e contextos da história humana. Reforma, renovação, mudança e conversão nesse sentido, é algo próprio da igreja enquanto organismo vivo, dinâmico, criativo, a caminho do Reino. 

Alguns elementos merecem destaque: 

a) não há temor em provocar a todos na igreja - sobretudo quem atua diretamente nas estruturas - a um dinamismo de saída da zona de conforto, de romper com uma “pastoral de conservação” e viver “uma necessidade generosa e quase impaciente de renovação” (EG 26). Essa renovação atinge também tudo: a paróquia (EG 28), as várias instituições eclesiais, comunidades de base, pequenas comunidades, movimentos e associações (EG 29), as igrejas particulares (EG 30), o ministério do bispo (EG 31) e o próprio papado (EG 32). Mudanças se fazem necessárias também na linguagem teológica (EG 27) e na espiritualidade (EG 78-80). Francisco retoma o ensino conciliar da hierarquia das verdades na doutrina católica, considerando o diferente nexo de cada uma delas com o fundamento da fé cristã (UR 11; EG 36). A mensagem do Evangelho precisa ser relacionada de forma harmoniosa com as atitudes, as diferentes doutrinas e a moral da igreja. Aqui o papa recorda também o ensino de Tomás de Aquino sobre a moral da igreja, na qual “há uma hierarquia nas virtudes e ações que delas procedem” (EG 37), onde o que mais conta é “a fé que atua pelo amor” (Gl 5,6). Enfim, a todos e a tudo serve a exortação para “serem ousados e criativos nesta tarefa de repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores das respectivas comunidades” (EG 33). 

b) A razão das necessárias transformações na igreja, já acenadas, é a consciência dos novos contextos e das novas interpelações que daí emergem para a compreensão e a vivência do Evangelho. Em cada contexto e época surgem modos próprios de afirmar que “O Evangelho propõe a caridade divina que brota do Coração de Cristo e gera uma busca da justiça que é inseparavelmente um canto de fraternidade e solidariedade, um estímulo à cultura do encontro” (QA 22). Num tempo de mudanças e mais do que isso, numa mudança de época, como é comum dizer, a igreja não pode se estagnar em estruturas, formulações conceituais e modelos de agir que talvez, outrora, tenham sido válidos, mas no presente exigem revisão e aggiornamento - e se necessário for, abandono mesmo (cf., EG 43). Com olhar esperançoso e profético diante das dificuldades para isso, Francisco afirma que “A esperança convida-nos a reconhecer que sempre há uma saída, sempre podemos mudar de rumo, sempre podemos fazer alguma coisa para resolver os problemas” (LS 61). Trata-se de buscar a melhor forma de manter a igreja fiel ao conteúdo da fé de sempre, mas vivida nas condições socioculturais e religiosas de hoje. 

c) A fonte das renovações na igreja é o próprio Evangelho. A Evangelii gaudium fala da “eterna novidade do Evangelho ... frescor original do Evangelho” (EG 11), ressaltando a “absoluta novidade” de Cristo que renova o ser humano (EG 11-13) e todas as coisas (Ap 21,5; 14,6; Hb 13,8). Isto está em sintonia com a proposta de reforma do Vaticano II, tanto para o fiel quanto para a igreja inteira (UR 6; EG 26). Francisco afirma que “sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais eloquentes, palavras cheias de significado para o mundo atual” (EG 11). No núcleo da fé cristã, “o que sobressai é a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado” (EG 36). Esse é o centro da mensagem que precisa ser anunciada pela igreja, a sua verdade maior.  

d) Cabe enfatizar que a finalidade das renovações é afirmar uma “igreja em saída missionária”. A saída da igreja de si mesma é uma “absoluta prioridade” (EG 179), o que exige abandono da “auto-referencialidade” e coragem para enfrentar o risco de “primeirear” no encontro das pessoas e das diversas situações em que vivem. O papa entende que “uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas”, é preferível a “uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49). Assim, “reforma” e “missão” estão intrinsecamente vinculadas no pontificado de Francisco. A missão da igreja exige reformas e a reforma deve acontecer em perspectiva de saída missionária. 

3 Entre resistências e fidelidades 

As mudanças na igreja não podem ser parciais ou periféricas. E os impactos de algumas medidas se fazem sentir. É o caso da reforma na cúria; na revisão de dispositivos canônicos que desburocratizam os processos de declaração de nulidade do matrimônio (FRANCISCO, 2015a-b); ou que concedem aos presbíteros a faculdade de absolver o pecado do aborto (FRANCISCO, 2016a); da revisão dos motivos que impossibilitavam a comunhão eucarística para pessoas recasadas (AL 300.305. Nota de rodapé n. 351 de AL); ou ainda a concessão do leitorado e acolitado às mulheres (FRANCISCO, 2021); na revisão do número 2267 do Catecismo, declarando “inadmissível” a pena de morte (FRANCISCO, 2018); a revisão no processo de beatificação e canonização de fiéis que livremente doam a própria vida a favor da vida dos outros (FRANCISCO, 2017);  no debate sobre do ministério ordenado aos viri probati, o estudo sobre o diaconato feminino e o lugar das mulheres “na estrutura íntima  da igreja” (QA 101), de modo que, no seu estilo próprio, “as mulheres tenham uma incidência real e efetiva na organização, nas decisões mais importantes e na guia das comunidades” (QA 103) entre outros.  

Emerge com frequência a questão se uma efetiva renovação eclesial, como quer o papa Francisco, é possível em nossos tempos. Ele é ciente dos limites, tanto pessoais quanto estruturais, para a implementação de suas propostas. E as resistências se fazem sentir em diversas instâncias e ambientes eclesiásticos, nos mais variados modos. Numa tradição eclesial na qual muitos confundem tradição com tradicionalismo, estabilidade estrutural com estagnação ou centralização institucional (LEGRAND, 2001, 461s) convicção doutrinal com imobilismo dogmático, ética e rigidez moral (THOMASSET, 2011, p. 31s), clareza de linguagem com terminologia fixista e uniforme, a consciência da atual realidade eclesial não permite ufanismo, idealismo ou ingenuidade diante das propostas renovadoras e transformadoras. São conhecidas as resistências de muitos segmentos “para aceitarem a custosa evolução dos processos” (EG 82). O papa enfrenta duras, e desrespeitosas, oposições por parte de eclesiásticos e de leigos/as em todo o mundo. Em geral, esses/as fazem uso permanente das mídias sociais e digitais, como Youtubers, pelos quais divulgam uma marcada, estreita e imprecisa interpretação dos pronunciamentos e documentos de Francisco. O espírito conservador e fundamentalista com o qual esses segmentos alimentam suas convicções, não poucas vezes expressa mais que dissenso teológico-doutrinal. Trata-se de uma verdadeira falta de comunhão espiritual, uma carência no sentire cum ecclesia os novos caminhos do mundo e do Evangelho. 

Contudo, o papa não se atém às oposições. Com maturidade cristã e eclesial, ele permite, e promove, toda liberdade para aceitar ou não sua proposta. Sabe que metanoia exige mudanças de mentalidade como um exercício complexo (LONERGAN, 1973, p. 238). Mas Francisco tem consciência da sua responsabilidade de buscar meios para superar os limites que dificultam “uma renovação eclesial inadiável” (EG 27-33), visando possibilitar à igreja uma maior coerência e fidelidade à sua missão evangelizadora. O significado teológico de conceitos como mudança, renovação, e reforma eclesial ganha concretude numa palavra-chave: “conversão”. É a chave para superar as resistências. O papa não impõe mudanças, mas propõe. E sabe que apenas um processo de conversão possibilitará colocar a igreja em processo de saída. Essa conversão se dá em três diferentes níveis ou âmbitos: pessoal, numa reconfiguração do modo de ser cristão/ã no coração, na mentalidade e nas atitudes; o que influencia para uma conversão estrutural em vista de uma nova organização da vida das comunidades; e conduz à conversão pastoral, com novos meios, novas práticas e novas linguagens na evangelização. E para além disso, urge também uma conversão ecológica global, como serviço à criação (LS 216-221). Os diversos âmbitos da conversão se implicam mutuamente. É importante enfatizar que a chave para isso está no primeiro âmbito da conversão, o pessoal, que implica numa opção não apenas por querer ser uma pessoa cristã e uma igreja diferente, mas que faça a diferença no presente da história. Essa opção ganha dimensão missionária e nessa dimensão é que os projetos de renovação eclesial podem ser realizados. Urge, para isso, “criar espaços apropriados para motivar e sanar os agentes de pastoral” (EG 77), com a urgente conversão para a superação das “tentações” (EG 76-77) que impedem viver uma “igreja em saída”.  

Desse modo, constata-se que algo se move no catolicismo atual. E impõem-se três fidelidades para avançar na direção de uma renovação consequente: 

1) Fidelidade ao Evangelho do Reino: é a razão do discipulado de Cristo, razão da fé e da missão da igreja. O Evangelho mostra ambiguidades da instituição eclesial a qual, ao mesmo tempo que serve à mensagem do Reino, também pode dificultar a explicitação clara dessa mensagem. É à luz do Evangelho que se compreende como deve ser a igreja que do Reino é sacramento e sinal no mundo. Consequentemente, a mensagem do Reino presente no Evangelho indica o que precisa ser mudado na igreja para que haja coerência entre o seu modus essendi e o seu modus operandi

2) Fidelidade ao processo conciliar: o Vaticano II afirmou que a igreja tem necessidade de “reforma perene”, mudança, conversão (UR 6; LG 8). Ao assumir o espírito do Vaticano II, o papa Francisco surpreendeu a muitos que pensavam ser esse um concílio de outros tempos (RICCARDI, 2014). Na fidelidade conciliar de Francisco destaca-se: a eclesiologia do Povo de Deus, fortalecendo as iniciativas de valorização da missão de leigos e leigas, com “um novo protagonismo de cada um dos batizados” (EG 120); a valorização das Igrejas Locais, como “sujeito primário da evangelização” (EG 30), tendo bispos que governam por meio de organismos de participação e o diálogo pastoral (EG 31); consequentemente, a subsidiariedade, colegialidade e sinodalidade“O caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja no terceiro milênio” (FRANCISCO, 2015c); a “cultura do encontro e do diálogo” com o mundo e o ensino social da Igreja (GS), o ecumenismo (UR) e o diálogo inter-religioso (NA). A renovação eclesial deve acontecer no horizonte conciliar e o papa argentino expressou, muitas vezes que “estamos muito atrasados nisso”. Assim, a proposta de transformações na igreja atual é de mudanças na continuidade do Vaticano II, tendo como chave a igreja “em saída” e a “conversão pastoral” (EG 25-26). 

3) Fidelidade ao tempo presente: condição para colher as interpelações ao Evangelho e à igreja, exigindo coragem e sabedoria da fé para “discernir os sinais” que no hoje se manifestam como desafios para a vivência no Reino de Deus que a igreja anuncia e do qual é “como que um sacramento” (LG 1.8). O processo de renovação eclesial precisa corajosamente redimensionar o pensar teológico, a ação e a linguagem evangelizadora como forma de responder às exigências que no tempo atual se apresentam para a fé cristã. Aqui a igreja expressa a sua fidelidade ao ser humano, em suas “alegrias e esperanças, tristezas e angústias” (GS 1) vividas no cotidiano. E com a humanidade inteira a igreja vive a solidariedade e a caridade que concretizam a sua fidelidade ao Evangelho de Jesus Cristo. Destacam-se:  o apelo à construção de uma “fraternidade aberta” (FT 1), no mundo inteiro (FT cap. VIII); a solicitude para com as questões ambientais, como “urgente desafio de proteger a nossa casa comum” (LS 13), que exige à igreja “entrar em diálogo com todos” (LS 3); pois “Todos podemos colaborar, como instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada pessoa a partir da sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades” (LS  14); a interculturalidade e multirreligiosidade que exigem construir a “cultura do encontro” e “cultura do diálogo” para a realização do “sonho de fraternidade e amizade social (FT 6); e a secularização, que propõe novos horizontes do Fim Último e conduz a novos modos compreender os “santos ao pé da porta” (GE 7), para além do estilo clássico de santidade na qual se tinha uma espécie de exclusividade do testemunho e sinal evangélico no mundo. 

Essas três fidelidades são expressam as razões fundamentais das mudanças que o atual pontificado acena para o catolicismo. Trata-se de superar toda tendência que enclausura a igreja em si mesma, como auto-idolatria e autorreferencialidade. A igreja não tem luz própria, mas irradia no mundo a luz que recebe de Cristo, o que a torna mysterium lunae, que irradia a luz do sol. É por essa própria natureza que a igreja precisa estar sempre “em saída”, convertida, renovada, transformada.

4 Implicações ecumênicas para uma igreja em saída 

Das propostas de reformas na Igreja Católica emerge a questão sobre suas implicações para a relação com as diferentes culturas, igrejas e religiões. Francisco sabe que vivemos num universo no qual “podemos descobrir inumeráveis formas de relação e participação” (LS 79). Em que medida o atual processo reformador do catolicismo pode favorecer o diálogo intercultural, a busca da unidade cristã e a cooperação entre os diferentes credos? Como a eclesiologia da igreja em saída pode ser construída no horizonte de uma teologia ecumênica, intercultural e inter-religiosa? Responder a essas indagações, entre outras, é fundamental para compreender como as mudanças no catolicismo contribuem para com a humanidade inteira, aproximando os povos, suas culturas e suas formas de crer. E em tempos de fortes ameaças à vida de toda a criação, essa aproximação mostra que “A humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum (LS 13).  Seria oportuno abordar conjuntamente aqui o diálogo intercultural, inter-eclesial e inter-religioso, mas o espaço deste artigo não possibilita tanto. Trataremos do ecumenismo cristão, remetendo a outro estudo que amplia a proposta do diálogo na igreja em saída (WOLFF, 2016, p. 41-50.73-96). 

4.1 Renovação, reforma e conversão como processo ecumênico

Todo processo de renovação eclesial causa tensão, mas também enriquece por abrir possibilidades para novas compreensões dos mistérios da fé cristã e aprofundar a comunhão ad intra e ad extra ecclesia. Assim foi com o Vaticano II e assim é agora no pontificado de Francisco. Ao afirmar que a renovação é uma necessidade da igreja, o Vaticano II deixou claro que o ecumenismo visa atender a essa necessidade (UR 6), de modo que a renovação eclesial inclui o ecumenismo, e vice-versa. Entende-se com isso que as mudanças na igreja precisam possibilitar uma identidade relacional, que se expresse concretamente em estruturas que ampliam a sua capacidade de aproximação, diálogo e cooperação com diferentes tradições cristãs. O que se busca é a comunhão na fé, “comunhão plural” (WOLFF, 2007), construída através das especificidades das tradições eclesiais. O movimento ecumênico dá passos nessa direção, sincronizados com os passos das igrejas que o constituem. Claro que o ecumenismo não se resume nas igrejas. Mas no sentido que aqui utilizamos esse termo, como testemunho comum do Evangelho, ecumenismo diz respeito a algo que é constitutivo da natureza da igreja. E nesse sentido, há uma relação identitária entre ecumenismo e igreja, como ensinou o papa João Paulo II: “querer a unidade significa querer a igreja” (UUS 9). Assim, é na dinâmica do desenvolvimento e da renovação da própria identidade cristã e eclesial, com base no Evangelho, que o ecumenismo vai ganhando força na meta de unir as tradições eclesiais numa só fé, num só Batismo e num só Senhor (cf. Ef 4,5). Outras organizações e outras formas de propor o ecumenismo, legítimas e necessárias, não excluem as igrejas desse compromisso ecumênico.

Disso pode-se concluir que os anacronismos verificados na igreja são entraves para a unidade cristã. Tais anacronismos se expressam de diversas formas, como o imobilismo dogmático, o conservadorismo institucional, os espiritualismos fundamentalistas. Em muitos ambientes de formação teológica não se renovam epistemologias e hermenêuticas que possibilitariam a assunção da ecumenicidade da fé cristã e, consequentemente, uma eclesiologia dialogal. Critérios como a hierarquia das verdades, a evolução do dogma, a distinção entre conteúdo e formulação da doutrina, tão afirmados nas pesquisa teológica pós-conciliar, ainda recebem suspeitas no labor teológico. Avery Dulles há tempos mostrou que “A teologia pós-conciliar questiona, ao menos, quatro dos traços fundamentais da noção neoescolástica de dogma: a) sua identidade com a Revelação; b) sua objetividade conceitual; c) sua imutabilidade, e, d) sua universalidade” (DULLES, 1968, p. 397-416). Mas o confessionalismo fechado não faz tais questionamentos. Não dialoga consigo mesmo, não se entende num horizonte dinâmico e evolutivo. E, também, não incorpora nas pesquisas teológicas os resultados dos diálogos que há dezenas de anos são realizados entre diferentes igrejas. Esses resultados possibilitam renovar a hermenêutica bíblica, a teologia dos sacramentos, a teologia moral, a eclesiologia e a história da igreja, os ministérios, a espiritualidade, a pastoral. Dever-se ia, ao menos, assumir os resultados já oficiais desses estudos, como o mútuo reconhecimento do Batismo; a hospitalidade eucarística; a doutrina da graça por justificação e fé, entre outros. Consequentemente, com uma teologia anacrônica, agentes de pastoral de uma igreja, não desenvolvem a “cultura do diálogo” e não exercem o “ministério da reconciliação” (2Cor 5,18). Ao contrário, aumentam o distanciamento entre as igrejas, com afirmações e acusações mútuas que expressam total desconhecimento das verdades de fé. Violenta-se a identidade cristã e eclesial do/a outro/a com afirmações gratuitas, infundadas e historicamente preconceituosas. A igreja em saída, ao exigir uma conversão ecumênica requer também uma conversão teológica de seus agentes de pastoral, tornando-os “ministros do diálogo” (WOLFF, 2004), por uma renovação da forma mentis através de uma teologia atualizada que incorpora os resultados das pesquisas teológicas que igrejas diferentes realizam conjuntamente. A título de exemplo, citamos a Declaração Conjunta do papa Paulo VI e o Primaz Anglicano Frederick Donald Coggan, assinada em 1977:

Desde que a Igreja católica de Roma e as Igrejas que constituem a Comunhão anglicana têm buscado crescer na mútua compreensão e no amor cristão, chegaram a reconhecer, valorizar e dar graças por uma fé comum em Deus nosso Pai, em nosso Senhor Jesus Cristo e no Espírito Santo; por nosso batismo comum em Cristo; pelo patrimônio partilhado das Sagradas Escrituras, os símbolos apostólico e niceno, a fórmula doutrinal de Calcedônia e as doutrinas dos pais; pelo comum e plurissecular legado cristão, com suas tradições vivas na liturgia, a teologia, a espiritualidade e a missão (PAULO VI; COGGAN, 1977).

Não é dito que o processo de reconfiguração eclesial desencadeado pela proposta da igreja em saída leve automaticamente ao fortalecimento dos compromissos ecumênicos da igreja católica. Mas cria as condições necessárias para isso, e seria contraditório não fazê-lo. A proposta de reforma eclesial na perspectiva da igreja em saída tem um altíssimo alcance ecumênico e é na medida em que isso for explorado que se vinculam “igreja em saída” e “ecumenismo”. Não desenvolver a dimensão ecumênica da igreja em saída é não possibilitar que a igreja realize a saída de si mesma para “primeirear” no encontro das diferenças que enriquecem a beleza do Evangelho e da graça de Deus no mundo.   Sem a ecumenicidade da igreja não se desenvolve seu verdadeiro significado eclesiológico. A igreja exige e se concretiza num processo de reformas que possibilitam e requerem o fortalecimento da causa ecumênica. Esta é a esperança dos ecumenicistas que observam atentamente as iniciativas do Papa Francisco: “uma expectativa em torno às reformas da Igreja católica preconizadas pelo papa Francisco é que o ecumenismo passe a ocupar no dia-a-dia administrativo desta Igreja um lugar tão destacado como o que teve o Vaticano II” (ALTMANN, 2013, p. 136-137).

4.2 Implicações para o papado

Afirmando que “Também as estruturas centrais da Igreja universal precisam ouvir esse apelo a uma conversão pastoral” (EG 32), o Papa Francisco busca contribuir para a superação das históricas relações burocráticas, hierárquicas e friamente calculadas, com protocolos rígidos que não expressam relações comunitárias e fraternas. E entre as “estruturas centrais”, está o ministério petrino, que por muito tempo é exercido com superpoderes, por vezes com aura de divindade. Rever o exercício do ministério petrino é algo que diz respeito às aspirações por reforma na igreja durante toda a sua história. Desde os tempos de Constantino (séc. IV) a autoridade na igreja universal vem se concentrando na igreja local de Roma e, nela, tudo depende do papa. Com Inocêncio III (1160-1216) o papa se declara o representante direto de Cristo na terra, seu vicarius; Bonifácio VIII (1235-1303) exige submissão de todo outro tipo de autoridade existente no mundo (Bula Unam sanctam); e o Vaticano I definiu a autoridade papal infalível em questões de fé e de moral (Constituição Dogmágica Pastor aeternus). Analisando esse histórico, estudiosos concluem que é praticamente impossível entender o exercício da autoridade do papa no espírito da colegialidade e da sinodalidade evangélicas: 

Aquilo que agora falta é uma integração, não só eclesiológica, mas também cristológica e teológica num sentido lato, um novo modo de interpretar, à luz do dado evangélico, seja teologicamente seja praticamente, o ministério petrino. De fato ... (ao interpretar) a doutrina da igreja (sobre esse ministério) ... não se devem contudo desconhecer as carências a ela latentes: todo o seu modo de pensar e de se exprimir não se inspira na autoridade entendida biblicamente do discípulo, apóstolo e pastor, mas no modelo “profano” da suprema auctoritas (KASPER, 2016p. 301).

Francisco revê essa questão e “primeireia” na conversão das “estruturas centrais”: “Dado que sou chamado a viver aquilo que peço aos outros, devo pensar também numa conversão do papado” (EG 32). Continua, do seu jeito, a reflexão que o papa João Paulo II expressou para encontrar um modo de tornar esse ministério um serviço à unidade cristã (UUS 95): “Compete-me, como Bispo de Roma, permanecer aberto às sugestões tendentes a um exercício do meu ministério que o torne mais fiel ao significado do que Jesus Cristo pretendeu dar-lhe e às necessidades atuais da evangelização” (EG 32). Não é apenas um novo papa, mas um novo papado. Outras sugestões são dadas para a reforma do primado petrino, como “tomar as suas decisões no âmbito de um consistório”; dar às conferências episcopais o direito de apresentar questões na ordem do dia do sínodo dos bispos, com “autoridade de decisão neste sínodo em algumas circunstâncias”; consultar os bispos antes de tomar decisões importantes; permitir que “um número qualificado de bispos” possam convocar um concílio; permitir o recurso à Santa Sé “contra uma sentença do romano pontífice” (LEGRAND, 2016p. 188). Talvez não sejam caminhos possíveis de serem percorridos por ora. Mas podem ser traçados. 

É importante verificar os alcances ecumênicos dessa mudança. O primeiro é que certamente não cabem ao papa de hoje as críticas dos reformadores, principalmente de Lutero e Calvino, sobre o estilo burocrático, legalista e concentrador do bispo de Roma. Segundo, mesmo reconhecendo que o ministério petrino é um dos principais problemas nas relações entre as igrejas, elas dialogam com seriedade e sem a apologia conflitiva de outrora. O diálogo católico-anglicano dedicou importante atenção a esse tema, expressando claramente divergências e convergências (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA ANGLICANA, 1999), o que se constata também em outros diálogos bilaterais. Destacam-se as convergências na compreensão da necessidade de um ministério de governo na igreja como elo de comunhão universal. O dissenso está: no sujeito que exerce esse poder (luteranos e anglicanos entendem que tal ministério pode ser exercido por um colégio ou um concílio geral) (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA-LUTERANA, 1986, n. 73); na forma do seu exercício (primacial, para os católicos; conciliar para as outras igrejas); e na distinção entre o poder pastoral/espiritual e o poder de jurisdição desse governo. Luteranos concluem que, não obstante as dificuldades, não está 

não está necessariamente excluída a possibilidade que da parte luterana o ministério petrino do bispo de Roma seja um sinal visível da unidade de toda a igreja, desde que o primado seja subordinado, através de uma reinterpretação teológica e uma reestruturação prática, ao primado do Evangelho (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA-LUTERANA, 1986, n. 73).  

O diálogo continua.

4.3 Implicações para as Igrejas Locais 

Importante é que na igreja em saída observa-se mudanças nas diversas instâncias eclesiásticas. As reformas visam aproximar a cúria e o sínodo dos bispos, o sínodo e todo o colégio episcopal, os bispos e os presbíteros, os presbíteros e toda a comunidade paroquial. De forma realista o Papa diz que “não se deve esperar do magistério papal uma palavra definitiva ou completa sobre todas as questões que dizem respeito à Igreja e ao mundo” (EG 16). A cúria romana, continuará certamente como lugar de referência e de decisões na igreja. Mas ao “agir com uma autoridade real sobre os bispos” o faz com um significativo melhoramento das relações com o colégio episcopal (LEGRAND, 2016p. 180). O ganho pastoral disso é imenso para o planejamento e a realização de projetos comuns na missão. 

Um ganho importante é para as Igrejas Locais. O papa tem consciência de que é papa porque é “bispo de Roma”, uma Igreja Local. E a igreja universal não existe sem as Igrejas Locais. Não é a mera soma dessas, mas a comunhão entre elas é o que mostra a catolicidade da fé. Francisco tira significativas consequências jurídicas dessa eclesiologia. Uma delas é o seu potencial de descentralização do poder na igreja: “Não convém que o Papa substitua os episcopados locais no discernimento de todas as problemáticas que sobressaem nos seus territórios. Neste sentido, sinto a necessidade de proceder a uma salutar ‘descentralização’” (EG 16).

Isso toca diretamente nas conferências episcopais. Com aguçado senso de realismo, Francisco sabe que as conferências episcopais foram, ao longo da história, destituídas dos meios que lhes permitem agir com autonomia e, simultaneamente, na comunhão com Roma. Atualmente, elas apenas com dificuldades se fazem ouvir em suas solicitações e contribuições às instituições centrais da igreja. Por isso, as conferências episcopais praticamente não possuem nenhum poder de decisão sobre questões cotidianas das igrejas por elas representadas. O papa entende muito bem a razão disso: é que “ainda não foi suficientemente explicitado um estatuto das conferências episcopais que as considere como sujeitos de atribuições concretas, incluindo alguma autêntica autoridade doutrinal” (EG 32). Para superar tal situação, retomando o n. 23 da Lumen gentium Francisco afirma que “as conferências episcopais podem aportar uma contribuição múltipla e fecunda, para que o sentimento colegial leve a aplicações concretas” (EG 32). 

O que de fato se propõe é fortalecer o espírito de colegialidade e de sinodalidade na igreja, pela prática de um real intercâmbio, diálogo e cooperação. O Vaticano II fala que o bispo deve promover uma corresponsabilidade entre as dimensões local e universal na igreja (LG 23). Afinal, unidade/unanimidade, comunhão/colegialidade constituem o ministério do bispo ontologicamente no sacramento da Ordem. Como diz Cipriano, “O espiscopado é um e indiviso ... O episcopado é um só e cada bispo participa dele solidariamente” (Apud, KASPER, 2016, p. 631). Nisso se expressa concretamente a comunhão eclesial. Para que tal aconteça, é fundamental acolher a “contribuição múltipla e fecunda” que cada igreja local e as conferências episcopais oferecem à compreensão e à vivência do Evangelho. Trata-se de retomar algo da igreja patrística, onde cada patriarcado tinha considerável autonomia para a condução do processo de evangelização e, inclusive, definição de verdades de fé. Desse modo, devolve-se às igrejas particulares a condição de sujeitos de direito e de iniciativas que contribuem para a igreja universal.

A valorização da Igreja Local tem forte dimensão ecumênica. Ela dialoga de forma mais direta com a eclesiologia protestante, que desenvolve a compreensão da Igreja de Cristo que se expressa localmente. As igrejas oriundas das reformas dos séculos XVI e XVIII elaboram a sua eclesiologia centradas na igreja que acontece num determinado lugar, onde os cristãos se reúnem para ouvir a Palavra e celebrar os sacramentos (Confissão de Augsburgo, art. VII; Instituição da Religião Cristã, IV, 1,9). Ali Cristo e o seu Espírito está presente, fortalecendo a fé, a caridade e o testemunho do Evangelho. O conteúdo de fé de cada igreja é a fé de todas as igrejas, de modo que a fé local é, simultaneamente, universal. No Conselho Mundial de Igrejas, entende-se que a unidade da igreja se realiza em “cada lugar” onde essa fé é professada, de modo que cada igreja torna-se, em seu próprio contexto, uma expressão da Igreja de Cristo (Conselho Mundial de Igrejas, Assembléia de Nova Delhi, 1961). Isso não significa que a comunidade local exaure a igreja universal, mas é sua concretude. O diálogo católico-anglicano concluiu:

A interdependência mútua de todas as Igrejas é essencial para a realidade da Igreja como Deus quer que seja. Nenhuma Igreja local que participe na tradição viva pode ver-se a si mesma como auto-suficiente... A comunhão destas entre si se expressa mediante a incorporação de cada bispo a um colégio episcopal. Os bispos estão, pessoal e colegialmente, a serviço da comunhão (COMISSÃO INTERNACIONAL CATÓLICA ANGLICANA, 1999, n. 37). 

Assim, as comunidades locais dos cristãos estão unidas entre si pela catolicidade da fé vivida na diversidade presente em “cada lugar”. A doutrina católica ajuda a compreender isso ao afirmar que “a universal comunidade dos discípulos do Senhor ... se torna presente e operante na particularidade e diversidade das pessoas, grupos, tempos e lugares” (Congregação para a Doutrina da Fé, 1992, n. 7). Vivendo desse modo, na pluralidade de formas e contextos, está aberto o caminho para progredir na mútua aceitação das diferentes formas de ser igreja “em cada lugar”. 

5 Uma unidade missionária

A renovação eclesial proposta por Francisco deve acontecer em perspectiva missionária, tornando sempre mais a missão a sua razão de ser. Tudo na igreja é missão, e a igreja precisa de “um processo de reforma missionária ainda a ser cumprido” (LS 3). É visível que essa proposta tem dimensão ecumênica, pois o ecumenismo se expressa de um modo privilegiado pela missão. A igreja católica não é uma realidade isolada do cristianismo mundial, de modo que o que nela ocorre tem algum tipo de repercussão no conjunto das igrejas, e vice-versa. A proposta missionária da igreja em saída é uma forma de favorecer o desejo de Cristo: “Que todos sejam um” (Jo 17,21). A missão da igreja tem como finalidade favorecer a unidade dos fiéis em Cristo (EG 244), e desse modo o melhor poderá melhor acolher e crer no Evangelho que os cristãos vivem. Assim, a missão da igreja tem uma vinculação direta com o movimento ecumênico. Foram os missionários que deram origem ao movimento ecumênico moderno, propondo-lhe como objetivo central favorecer a unidade das igrejas na pregação do único Evangelho “para que o mundo creia”.  O ecumenismo é missionário, em sua origem, sua natureza e seu fim.

Assim, as igrejas não buscam se unir para fecharem-se em si mesmas e oporem-se com mais força às realidades que as ameaçam. A unidade é para fortalecer a missão de testemunhar o Evangelho no mundo, como afirmou o papa Francisco no discurso à Delegação da Comunhão das Igrejas Reformadas: 

Há urgente necessidade de um ecumenismo que, juntamente com o esforço teológico em vista de recompor as controvérsias doutrinais entre os cristãos, promova uma comum missão de evangelização e de serviço. Indubitavelmente, já existem numerosas iniciativas e boas colaborações em vários lugares. Mas todos nós podemos fazer ainda mais, juntos, para dar um testemunho vivo “a todo aquele que nos perguntar a razão da nossa esperança” (cf. 1 Pd 3, 15): transmitir o amor misericordioso do nosso Pai, que recebemos de graça e, generosamente, somos chamados a dar de graça (FRANCISCO, 2016, b).

Fundamental para isso é as igrejas terem a capacidade de desenvolver projetos comuns de missão. A proposta de reforma eclesial em perspectiva missionária, visto acima, tem essa dimensão ecumênica. Diante dos desafios socioculturais, as igrejas são chamadas a caminharem juntas para melhor superá-los, como propôs o papa Francisco em seu discurso à delegação da Igreja Luterana da Finlândia: “Num mundo frequentemente dilacerado pelos conflitos e marcado por secularismo e indiferença, todos unidos somos chamados ao compromisso de confessar Jesus Cristo, tornando-nos cada vez mais testemunhas críveis de unidade e artífices de paz e de reconciliação” (FRANCISCO, 2016c). O lema poderia ser: não mais fazer separadamente aquilo que já é possível fazer juntos, sem ferir a consciência cristã de cada fiel. As igrejas podem buscar juntas as respostas aos questionamentos que o mundo atual apresenta à verdade cristã; podem contribuir conjuntamente para diminuir o sofrimento das pessoas que vivem nas periferias geográficas e existenciais; podem favorecer para que haja maior integração, paz e relações de justiça entre as pessoas, povos e culturas. Dessa forma, “o ecumenismo é uma contribuição para a unidade da família humana” (EG 245). A base para isso é o reconhecimento dos elementos já comuns na fé cristã, que impulsiona a caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de testemunho. Por isso, o esforço por uma unidade que facilite a recepção de Jesus Cristo deixa de ser mera diplomacia ou um dever forçado para se transformar num caminho imprescindível da evangelização (EG 246).

Conclusão

Pode acontecer que, estruturalmente, nada mude na igreja durante o magistério de Francisco. Mas o projeto por reformas eclesiais não é um sonho, é uma utopia profética. O papa Francisco sabe que é mais importante “iniciar processos do que possuir espaços” (EG 223) e busca “adotar os processos possíveis e a estrada longa” (EG 225). Constata-se um novo clima na igreja, favorável para atualizá-la aos tempos atuais; há esforço de discernimento dos “sinais dos tempos”, buscando entender o melhor modo de pregar e viver o Evangelho. Espera-se a continuidade desse processo, sustentado na consciência que a igreja tem necessidade de “sair” de si mesma, provocando rupturas com toda tendência à “autoreferencialidade”. E esse é um projeto ecumênico, convoca todas as tradições eclesiais à conversão pastoral e à missão por um testemunho comum da fé cristã. Assim, todas as igrejas precisam de mudanças e de reformas no intento de primeirear no encontro das diferenças que enriquecem a vida cristã e eclesial como serviço ao mundo.   

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