Lúcia Pedrosa-Pádua
Doutora em Teologia Sistemático-Pastoral (PUC-RJ); Professora e Pesquisadora do Departamento de Teologia – PUC-RJ. Contato: lpedrosa@puc-rio.br
Resumo
O presente artigo oferece uma visão de conjunto da espiritualidade no magistério do Papa Francisco e desenvolve as suas linhas-força. Considera os principais documentos escritos pelo Pontífice até o momento. A abordagem se dá a partir da teologia espiritual, em diálogo com a antropologia teológica. Apresenta o desafiante tema das espiritualidades destrutivas, denunciadas pelo atual pontificado. Destaca cinco principais linhas-força do magistério de Francisco sobre a espiritualidade: (1) o Evangelho como fonte e caminho espiritual; (2) a formação de verdadeiros sujeitos na Igreja e na sociedade; (3) a articulação coerente entre as dimensões invisível e visível da espiritualidade; (4) o cuidado com a oração e a contemplação, que inclui a leitura da Palavra, do povo e da natureza; (5) a proposta de um caminho espiritual concreto, pautado pela reconstrução das relações fundamentais: com Deus, consigo mesmo, com os demais e com a natureza. Dentre estas, o artigo destaca especialmente aqueles vínculos esgarçados e rompidos no ambiente que gerou a crise cultural e socioambiental atual: comunitários, sociais e socioambientais. Finaliza com a perspectiva litúrgico-sacramental enquanto cura dos vínculos fundamentais. A espiritualidade do Papa Francisco se revela querigmática, integrada, relacional, encarnada e transformadora. Articula as dimensões existencial, mística, eclesial, ecológica e social. Por tudo isso, prepara a Igreja para uma reforma a partir de dentro, para ser Igreja em saída.
Palavras-chave
Espiritualidade – Antropologia teológica – Papa Francisco - vínculos fundamentais – reforma da Igreja
Abstract
This article offers an overview of the spirituality in Pope Francis' magisterium. Its key insights rely on the main documents the Pontiff has written. The article’s approach is based on spiritual theology, in dialogue with theological anthropology. It explores the challenging theme of destructive spiritualities denounced by the current pontificate. The article highlights five main lines in Francis' magisterium on spirituality, namely (1) the Gospel as source and spiritual path; (2) formation of true subjects in the Church and in society; (3) coherent articulation between the invisible and visible dimensions of spirituality; (4) care for prayer and contemplation, which includes reading the Word, the people and nature; (5) the proposal of a concrete spiritual path, guided by the reconstruction of fundamental relations: with God, with oneself, with the other and with nature. Among these latter, the article specially highlights those stretched thin and broken in the environment that created the current cultural and socio-environmental crisis: community, social, and socio-environmental bonds. It concludes with a liturgical-sacramental perspective as healing of fundamental bonds. Pope Francis' spirituality proves to be kerygmatic, integrated, relational, incarnate, and transformative. It articulates the existential, mystical, ecclesial, ecological, and social dimensions. For all these reasons, it prepares the Church for a reform from within, to be an outgoing Church.
Key Words:
Spirituality - Pope Francis – Theological anthropology - fundamental bonds – Church reform
A espiritualidade cristã oferece ao mundo uma novidade insuspeitada. Traz a noção de um Deus criador e salvador que, por amor, em Jesus Cristo habitou este cosmos e assumiu a fragilidade humana. A vida, morte e ressurreição de Jesus revelaram a solidariedade de Deus com a humanidade, especialmente com os pobres e abandonados. Mostraram os caminhos do seu Reino na luta contra o mal e pela vida em abundância. O Espírito do Cristo ressuscitado segue atualizando este amor no mundo e suscitando vida, até o fim dos tempos. No Espírito, é possível às pessoas e aos povos acolher e viver uma vida nova.
As cartas paulinas exortam os cristãos a serem conduzidos pelo Espírito (Rm 8,14), em toda a sua pessoa, espírito, alma e corpo inseparavelmente (1Ts 5,23) e a andar sob o seu impulso (Gal 5,16). Desta forma, a espiritualidade implica, por um lado, a experiência de deixar-se conduzir pelo Espírito, na integralidade pessoal e relacional. Por outro, supõe uma forma de modelar a existência concreta, um caminho. Resumindo, a espiritualidade cristã é vida integral no Espírito de Cristo.
O conjunto dos principais documentos do Papa Francisco, escritos até o momento, formam um verdadeiro guia da vida espiritual para o nosso tempo, se consideramos a espiritualidade na intencionalidade bíblica: integrada, relacional, encarnada e concreta. Toda a vida cristã é chamada a ser guiada pelo Espírito Santo, não uma parte dela. Igualmente, todos os vínculos humanos fundamentais se colocam sob a novidade do Espírito: vínculos com Deus, com os irmãos, com a natureza e consigo mesmo.
Enraizada no mistério da encarnação, a espiritualidade de Francisco articula dimensões distintas, como a existencial, mística, eclesial, ecológica e social. Constitui pilar consistente para uma reforma da Igreja e para uma mudança da humanidade. Traça um caminho de transformação, em direção a uma saída generosa do casulo egoísta e autossuficiente de si mesmo – um êxtase. Põe em marcha um dinamismo de missão na Igreja, “Igreja em saída”, chamada a deixar a autorreferencialidade e colocar-se a serviço no mundo.
O próprio Francisco escreve, na sua Exortação sobre a santidade, Gaudete et Exsultate (FRANCISCO, 2018, n. 28, p. 23), que ofereceu uma “espiritualidade da missão” na Evangelii Gaudium, uma “espiritualidade ecológica” na Encíclica Laudato sí, uma “espiritualidade da vida familiar” na Exortação Amoris Laetitia, como caminhos de identificação com Jesus Cristo e de sentido de nossos esforços. Podemos acrescentar que oferece uma espiritualidade da vida comum na Exortação Gaudete et Exsultate e da fraternidade na Encíclica Fratelli Tutti, com o mesmo objetivo. Trata-se de caminhos espirituais unificadores em seu magistério.
No presente artigo, não nos dedicaremos a desenvolver as características das espiritualidades acima mencionadas. Nosso objetivo é buscar uma visão de conjunto da espiritualidade no magistério do Papa Francisco e discernir algumas linhas-força do tema. Privilegiamos uma abordagem que parte do diálogo da teologia espiritual com a antropologia teológica. Após apresentarmos o desafiante tema das espiritualidades desintegradas que povoam a história e o tempo do atual pontificado, destacaremos as cinco principais linhas-força que, a nosso ver, caracterizam o magistério de Francisco sobre a espiritualidade: o Evangelho como fonte e caminho espiritual; a formação de verdadeiros sujeitos na Igreja e na sociedade; a articulação coerente entre as dimensões invisível e visível da espiritualidade; o cuidado com a oração e a contemplação; a proposta de um caminho espiritual concreto, pautado pelas relações e vínculos fundamentais. Esperamos, com este itinerário, traçar uma proposta coerente de interpretação da vigorosa espiritualidade do Papa Francisco, capaz de sustentar a Igreja em saída.
O tema da espiritualidade desintegrada e desintegradora não é novo. Infelizmente, tampouco está ultrapassado. Sabemos como, apesar do testemunho bíblico e de correntes espirituais integradoras, a noção de espiritualidade sofreu sérios reducionismos e foi vítima de tendências dualistas (PEDROSA-PADUA, 2014, p. 66-67). As práticas cristãs tenderam a se exteriorizar e concentrar nas orações vocais, participação em ritos e cerimônias. A observância centrou-se na moral individual, com a prática das virtudes e desenraizamento dos vícios. A vida espiritual foi identificada com algo imaterial e não corpóreo. A oração foi reduzida a um relacionamento afetivo com Deus. A santidade foi associada a fenômenos místicos extraordinários, reservados a pessoas igualmente extraordinárias. Na teologia espiritual, do fim do século XIX até o Concílio Vaticano II, a espiritualidade designou os múltiplos estágios interiores como a ascese, a mística, o desenvolvimento dos dons do Espírito, a direção espiritual, etc (SECONDIN; GOFFI, 1994, p. 13). Enfim, fortaleceram-se tendências dissociadoras entre o anúncio de Jesus Cristo e uma vivência cristã concreta e multidimensional.
A renovação da espiritualidade trazida pelo Concílio Vaticano II é recente, se consideramos os séculos de enraizamento da espiritualidade desintegrada. A convocação da volta às fontes da Sagrada Escritura, a associação da vida como um todo ao mistério de Cristo e a explicitação da santidade como vocação universal – associada ao amor, não aos fenômenos extraordinários – significaram verdadeira mudança de paradigma. Retornou-se ao fundamento evangélico, à intrínseca relação entre espiritualidade e Cristo, com uma proposta integradora da pessoa como um todo, em todas as suas relações (ESPEJA, 1994, p. 54).
As vozes do magistério, por maior integração na espiritualidade, fizeram-se necessárias no pós-Concílio. A força das tendências reducionistas foi sentida. A Exortação Apostólica pós-sinodal Ecclesia in America definiu a espiritualidade de maneira integral e integradora, como a vida, em sua integralidade, guiada pelo Espírito Santo, ao mesmo tempo em que adverte que não se trata apenas de uma parte da vida (JOÃO PAULO II, 1994, nº 27). Na mesma direção, a Carta Apostólica Novo Millenio Ineunte, assinada na entrada do segundo milênio, insistia na dimensão ético-social do testemunho cristão e exortava a “rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação [...]” (JOÃO PAULO II, 2001, nº 52).
Na América Latina, as Conferências Episcopais viram como dramática a separação entre fé e vida e enfatizaram a dimensão sociopolítica da fé. Fizeram ouvir, de forma solene, a opção preferencial pelos pobres (PUEBLA, n. 1134, p. 547) como algo substancial à vida da Igreja e dos cristãos, pois a causa dos pobres é a causa de cada um, é “a causa de Cristo” (PUEBLA, 2005, n. 3, p. 286). A exigência de justiça e de solidariedade concreta e estrutural com os pobres ressoou não só pela América, mas por outros continentes e pelo magistério universal. Foi posta em relação com a experiência cristã como um todo e com os “caminhos escolhidos para dar testemunho do Reino” (GUTIERREZ, 2000, p. 63). Ou seja, a opção pelos pobres é um caminho espiritual, atinge o coração do cristianismo em suas motivações profundas e em suas concretizações visíveis. É intrínseca à espiritualidade. O Documento de Aparecida fez ver que toda a missão dos discípulos missionários é uma “extensão testemunhal” da vinculação a Cristo e encontro vital com ele (APARECIDA, 2007, n. 144, p. 76).
As reduções dualistas do passado, no entanto, estão longe de desaparecer. A tendência à moralização da vida cristã, com redução à moral individual; a consideração unilateral da vida interior ou contemplativa (em oposição e exclusão à vida social em suas múltiplas expressões) e a redução ao imaterial (em oposição e exclusão à dimensão material e corpórea da existência) reaparecem continuamente na espiritualidade e na vida das comunidades. Buscam impor-se como verdades cristãs.
Trata-se, no entanto, de espiritualidades destrutivas, que tornam sem relevância o anúncio do Deus-amor revelado em Jesus Cristo, atuante pelo Espírito, comprometido com a vida humana integral e com toda vida sobre a terra. As consequências para a Igreja e para a sociedade se fazem sentir.
O atual pontificado de Francisco traz novas luzes para a compreensão de espiritualidades corrompidas, vividas no interior da vida cristã. Questiona a própria noção de Deus presente em suas vertentes. Alerta para o perigo de uma relação com Deus que não gera comunhão com a humanidade e com a natureza. Suas duras palavras contra o neo-pelagianismo e o neo-gnosticismo nas comunidades atingem o centro nevrálgico que fabrica espiritualidades não evangélicas e, por este motivo, destrutivas.
É o que veremos a seguir.
Francisco tem alertado para os perigos de uma espiritualidade destrutiva e desagregadora, não ancorada no mistério de Cristo encarnado e consequentes relações históricas: “o desafio que hoje se apresenta a nós é responder adequadamente à sede de Deus de muitas pessoas, para que não tenham de ir apagá-la com propostas alienantes ou com um Jesus Cristo sem carne e sem compromisso com o outro” (FRANCISCO, 2013b, n. 89, p. 59).
Sua preocupação teológica e pastoral o levou a duras críticas às espiritualidades pautadas por um novo pelagianismo e gnosticismo, em vários momentos e pronunciamentos. De forma especial, nas exortações apostólicas Evangelii Gaudium (2013), especialmente números 93 a 97 e Gaudete et Exsultate (2018), em que dedica ao tema todo o capítulo II. Além disso, solicitou e aprovou a Carta Placuit Deo (2018), documento da Congregação para a Doutrina da Fé, em que são contrastadas a noção cristã de salvação e a forma de pensar e agir do neo-gnosticismo e neo-pelagianismo.
O novo gnosticismo e pelagianismo são perigos sutis porque se desenvolvem no âmbito religioso e espiritual. Passam por posturas espirituais, mas se fecham à novidade do Espírito de Cristo! Fechados ao Espírito, são inimigos da santidade, impedem o desenvolvimento pleno de uma vida de fé e amor. Encobrem sob si um perigoso “mundanismo espiritual” ancorado na própria autossuficiência (FRANCISCO, 2013b, n. 93, p. 61) e num “imanentismo antropocêntrico disfarçado de verdade católica” mas que é, ao contrário, um fechamento nas próprias razões e sentimentos (FRANCISCO, 2018, nº 35, p. 27). Corrompem a novidade que o Espírito de Cristo pode trazer e são mais danosos para a Igreja do que o mundanismo moral.
No neo-pelagianismo, a pessoa deseja a salvação, mas esta está confiada às próprias forças ou a estruturas meramente humanas. Esta tendência “traz o que Jesus criticava nos fariseus, ou seja, uma atitude farisaica de auto-justificação” (FRANCISCO, 2013b, n. 93, p. 61). Onde esta tendência se encontra? Francisco dá exemplos.
O primeiro exemplo diz respeito à confiança na doutrina e na disciplina, não na novidade do Espírito:
No fundo [a pessoa], só confia nas suas próprias forças e se sente superior aos outros por cumprir determinadas normas ou por ser irredutivelmente fiel a um certo estilo católico próprio do passado. (FRANCISCO, 2013b, n. 94, p. 62).
Esta falsa confiança gera rompimento do vínculo de comunhão, sentimento de superioridade, segregação e controle:
É uma suposta segurança doutrinal ou disciplinar que dá lugar a um elitismo narcisista e autoritário, onde, em vez de evangelizar, se analisam e classificam os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar. (FRANCISCO, 2013b, n. 94, p. 62).
Outros exemplos, presentes no n. 95 da Evangelii Gaudium, identificam esse “obscuro mundanismo” escondido em atitudes que buscam o domínio do espaço da Igreja, como se ela fosse uma possessão de poucos. São apresentados:
cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja (...);
fascínio de poder mostrar conquistas sociais e políticas (...);
vanglória ligada à gestão de assuntos práticos (...);
atração pelas dinâmicas de auto-estima e de realização autorreferencial (...);
várias formas de se apresentar a si mesmo envolvido numa densa vida social cheia de viagens, reuniões, jantares, recepções (...);
funcionalismo empresarial, carregado de estatísticas, planificações e avaliações. (FRANCISCO, 2013b, n. 95, p. 62-63).
A descrição de quem vive este neo-pelagianismo é sombria. Há ruptura da comunhão, recusa das relações em Cristo – a começar da própria relação com Deus enquanto alteridade sempre surpreendente –, fechamento antropocêntrico que não se abre à alteridade e ao perdão. Quem busca sua salvação pelas próprias forças e em estruturas pretensamente protegidas, não aceita Jesus Cristo e a novidade do seu Espírito, que cria novas relações com Deus, com os outros, com a criação (CDDF, 2018, n. 4, on line). Francisco descreve a situação de forma plástica:
Quem caiu neste mundanismo olha de cima e de longe, rejeita a profecia dos irmãos, desqualifica quem o questiona, faz ressaltar constantemente os erros alheios e vive obcecado pela aparência. Circunscreveu os pontos de referência do coração ao horizonte fechado da sua imanência e dos seus interesses e, consequentemente, não aprende com os seus pecados nem está verdadeiramente aberto ao perdão. (FRANCISCO, 2013b, n. 97, p. 63).
A crítica ao neo-gnosticismo, por sua vez, faz ver como este consiste numa
fé fechada no subjetivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam. (FRANCISCO, 2013b, n. 94, p. 62).
O problema está no imanentismo na própria razão e sentimentos, num individualismo asséptico. Como a salvação é compreendida como algo individual, interior e mental, a espiritualidade neo-gnóstica não incorpora o corpo, a matéria, o cosmos, a história concreta. Em resumo, não aceita a “Encarnação de Jesus, a sua vida, morte e ressurreição no seu verdadeiro corpo” (CDDF, 2018, n. 4, on line). Os neo-gnósticos alimentam a espiritualidade desencarnada, cheia de respostas para tudo, sem compromisso histórico-social, sem deixar-se questionar pelo mistério da encarnação, pelo sofrimento do povo e do mundo. Em frase lapidar, a Gaudete et exsultate afirma que “preferem um Deus sem Cristo, um Cristo sem Igreja, uma Igreja sem povo” (FRANCISCO, 2018, n. 37 p. 29).
As espiritualidades destrutivas atentam contra o coração do querigma, contra o anúncio do Deus – amor e gratuidade – revelado em Jesus Cristo e experienciado, de forma integrada e multidimensional, na acolhida ao seu Espírito. Por isso, não trazem o selo de Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado. Pecam por falta de ardor evangélico, pois não se deixam conduzir por ele. Criam grupos e instituições desprovidas deste selo e aferradas ao poder e à importância pessoal, social e institucional. Não se preocupam com a real inculturação do Evangelho junto às comunidades e sociedades, não têm missionariedade e irradiação nas realidades de injustiça e descarte. Enfim, espiritualidades que atentam contra o Evangelho, contra a Igreja e contra a comunidade humana.
Os escritos do Papa Francisco nos colocam diante de uma proposta espiritual claramente inspirada pelo mistério da encarnação, pela articulação das diferentes dimensões humanas, pela interrelação entre os espaços existencial, comunitário e socioambiental e pela orientação missionária e transformadora. Como todas estas dimensões estão interligadas, nem sempre é fácil apresentar a espiritualidade no magistério do Papa. A proposta que fazemos articula os principais documentos de Francisco e prioriza uma abordagem a partir da teologia espiritual em diálogo com a antropologia teológica.
A primeira linha-força da espiritualidade de Francisco é estar situada no coração do Evangelho. Trata-se de uma espiritualidade querigmática, que nasce do encontro alegre com o amor de Deus em Jesus Cristo e é atualizada na abertura ao seu Espírito. A Exortação aos jovens, Christus Vivit, dedica o inteiro capítulo IV a este querigma central, em linguagem que observa os jovens como destinatários: Deus é amor; o Filho de Deus assumiu nossa existência na fragilidade, salvou-nos por sua vida, cruz e ressurreição; Cristo está presente, vivo e a oferecer vida a cada dia, no Espírito Santo.
As dimensões social, comunitária e ambiental são inerentes ao querigma, não alheias ou opostas a ele. O Evangelho é multidimensional. Francisco ressalta que ele confere um “sentido unitário e completo da vida humana” (FRANCISCO, 2013b, n. 75, p. 51). Cristo redime não apenas a pessoa individual, mas as relações sociais e “o Espírito permeia toda situação humana e todos os vínculos sociais” (FRANCISCO, 2013b, n. 178, p. 108). “Cristo redimiu o ser humano interior e deseja recompor em cada um a sua capacidade de se relacionar com os outros”; por isso do Evangelho brotam o amor, a busca de justiça, “um canto de fraternidade e solidariedade” (FRANCISCO, 2020b, n. 22, p. 22) para com todos, de todas as culturas. Por sua vez, as relações sociais e comunitárias são sempre cosmicamente enraizadas – por isso, a boa notícia do cosmo também é inerente ao querigma: “uma pessoa da Santíssima Trindade inseriu-se no universo criado, partilhando a própria sorte com ele até a cruz” (FRANCISCO, 2015, n. 99, p. 64); estabeleceu com ele relação concreta e amorosa; ressuscitado e glorioso, reconcilia consigo todos os seres e, no Espírito, orienta tudo à plenitude (FRANCISCO, 2015, n. 100, p. 64).
O anúncio do Evangelho, com todas as suas dimensões inerentes, faz Francisco afirmar que, criados à imagem da comunhão divina, “não podemos realizar-nos nem salvar-nos sozinhos” (FRANCISCO, 2013b, n. 178, p. 108). A salvação está relacionada ao modo como nos abrimos à ação do Espírito de Deus e, assim, aprofundamos a relação conosco mesmos, num processo de autoconhecimento e humildade que ajude a superar a ilusão de autonomia absoluta, autossuficiência e autossalvação. A salvação também diz respeito ao modo como nos vinculamos à comunidade próxima, à humanidade como um todo e à natureza, de forma interrelacionada. A acolhida do Evangelho prepara, convida e exige uma resposta multidimensional.
Uma segunda linha-força da espiritualidade de Francisco é a dinâmica processual de formação de sujeitos ativos. Esta orientação teve particular ressonância na Igreja do Brasil com relação ao laicato: que os cristãos leigos e leigas sejam verdadeiros sujeitos na Igreja e na sociedade (CNBB, 2016, n. 10, p. 14).
Nos documentos do Papa Francisco, o ser humano é chamado a construir sua vida de forma processual e livre. A palavra “processo” desempenha função importante. Na Exortação Evangelii Gaudium, por exemplo, aparece 24 vezes. Há uma particular valorização do amadurecimento das pessoas no tempo e na história, evita-se pensar o ser humano de forma abstrata.
A dinâmica do processo vale também para a experiência de fé e para a evangelização. Critério para o desenvolvimento tanto das pessoas quanto dos povos é que “o tempo é superior ao espaço” (FRANCISCO, 2013b, n. 222, p. 131). Isto significa que privilegiar o tempo dos processos é mais importante do que se ater aos espaços de poder e de autoafirmação que cristalizam os processos e pretendem pará-los. Daí a importância de estabelecer dinâmicas novas, acompanhar, esperar, escutar as pessoas em seus processos, sempre condicionados, mas dinamizados a um crescimento, a um progresso pessoal (FRANCISCO, 2013b, n. 151, p. 92-93), a um amadurecimento na capacidade de amar (FRANCISCO, 2019, n. 325, p. 198), e a uma ação expansiva do serviço evangelizador (FRANCISCO, 2013b, n. 169-173, p. 102-105).
Esta compreensão antropológica tem incidência importante na espiritualidade, compreendida como um caminhar inacabado, um processo de deixar-se conduzir pelo Espírito (Rm 8,14), o que exige ouvir e discernir os seus sinais, em cada momento. Neste caminho espiritual, o cristão vai se constituindo em sujeito ativo, em comunhão madura com outros sujeitos no caminho, na família, na comunidade eclesial e na sociedade. Não é objeto, alienado ou receptor passivo de doutrinas ou normas, por mais importantes que essas sejam. É sujeito de um caminho original, com Jesus, em comunidade, aberto ao mundo. Com suas limitações, mas chamado a desenvolver liberdade e criatividade: “o Senhor quer servir-se de nós como seres vivos, livres e criativos” (FRANCISCO, 2013b, n. 151, p. 93).
A vida espiritual deve desfazer-se da amarga e antropologicamente impossível pretensão de perfeição acabada e adotar a visão processual, do caminho, na humildade – “não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho” (FRANCISCO, 2013b, n. 151, p. 92). É possível perdoar e recomeçar, dons do Espírito (Jo 20,22-23): “ninguém pode ser condenado para sempre” (FRANCISCO, 2016, n. 297, p. 179).
Isto não tira a coragem de acolher e responder ao autor da fé, mesmo que as respostas sejam incompletas: “Deus convida sempre a dar um passo a mais, mas não exige uma resposta completa se ainda não percorremos o caminho que a torna possível” (FRANCISCO, 2013b, n. 153, p. 94). Como Maria, o “sim” e o desejo de servir podem ser mais fortes do que as dúvidas e dificuldades (FRANCISCO, 2019, n. 44, p. 23). No processo, “as coisas podem mudar” (FRANCISCO, 2015, n. 13, p. 16) para melhor. O dinamismo da fé se dá em direção ao “mais” porque é crescimento na acolhida do amor de Deus.
Processo exigente, mas único capaz de fazer sedimentar as convicções no profundo do coração e potencializar ações por elas sustentadas. Capaz de formar verdadeiros sujeitos, pessoas maduras no serviço evangelizador. Cada batizado é sujeito ativo e chamado a um novo protagonismo de uma nova evangelização, não é mero receptor (FRANCISCO, 2013b, n. 120, p. 75).
Mesmo em sua fragilidade, o sujeito ativo escuta com responsabilidade o chamado à santidade, atreve-se a discernir suas ações e não faz de sua fé uma composição de obediência moral e culpabilismos. Quando impera a acídia, que puxa para trás e para baixo, e a injustiça campeia, a parrésia – ousadia e ardor do Espírito, “selo do Espírito” – provoca mudanças a partir de dentro da experiência de fé e leva o cristão a deixar marcas do Espírito neste mundo (FRANCISCO, 2018, n.132, p. 83). Apenas sujeitos livres e conscientes serão capazes de superação de atitudes clericalistas no interior da Igreja, e de envolver-se como cidadãos em lutas conscientes pela justiça, por “terra, teto e trabalho” (FRANCISCO,2020a, n. 127, p. 91), em responsabilidade pessoal e coletiva.
A maturidade do sujeito leva a novas posturas na vida familiar e de casal. Ajuda a desfazer-se da onipotência, a deixar “de lado os idealismos, os normativismos e os perfeccionismos, para viver um amor de relação e comunhão”. Insere o sujeito em nova consciência de sua fragilidade, crises e fracassos; engaja-o em projetos possíveis, pequenos gestos, ações concretas, afetos verdadeiros (TORRE DÍAZ, 2018, p. 369).
A espiritualidade surge como caminho dinâmico de conversão, possibilitado pela acolhida do Espírito de Cristo. Atinge a pessoa em suas mais íntimas e poderosas motivações; ao mesmo tempo, impregna suas opções visíveis, que fazem do caminhar espiritual um testemunho do amor de Deus na história. Apenas com sujeitos ativos é possível discernimento e responsabilidades, amadurecimento e maturidade. A espiritualidade proposta por Francisco, mesmo naqueles documentos endereçados a todo o povo, com leitura ágil e linguagem propositiva, como Gaudete et exsultate, reforça um novo paradigma moral, em que o sujeito acolhe e assume, em primeira pessoa, o chamado à santidade, como antevisto pelo Concílio Vaticano II (VIDAL, 2018, p. 251). A espiritualidade, no magistério de Francisco, é caminho para formar sujeitos ativos da evangelização, adultos na fé e na atuação social.
A formação de verdadeiros sujeitos eclesiais e sociais está na base de uma reforma da Igreja e implica romper, efetivamente, com a forma mental do cristianismo como adesão a doutrinas e obediência moral externa. Na liberdade, o sujeito procede “segundo a própria consciência e por livre adesão, ou seja, movido e induzido pessoalmente desde dentro” (FRANCISCO, 2016, n. 267, p.161).
A reforma que Francisco deseja é eclesial, não apenas eclesiástica. Deseja passar da “eclesiasticalização ao cristianismo, da autopreservação à missionariedade” (ROS GARCIA, 2018, p. 383). Trata-se de uma revolução espiritual proposta a cada cristão, leigos e pastores, às igrejas particulares, a cada comunidade (FRANCISCO, 2013b, n. 27, p. 23). Implica superar a dicotomia entre clero e leigo (PASSOS, 2015, p. 244). Exige despertar da anestesia clericalizante, assumir o batismo, reinventar uma Igreja sinodal e de comunhão (CNBB, 2016, n. 274, p. 116). Implica assumir a estrada estreita da coerência evangélica, fonte de vitalidade, fundamento de jovialidade e missionariedade.
Na teologia espiritual, podemos falar de uma dimensão invisível e outra visível da espiritualidade, que devem ser coerentes e integradas. Embora Francisco não utilize esta linguagem, podemos dizer que a integração entre estas dimensões constitui a terceira linha-força da sua espiritualidade.
A dimensão invisível diz respeito às motivações últimas do coração e faz entender como a fé é uma experiência pessoal que convoca as melhores e mais poderosas forças do entendimento e do amor. O Evangelho nos lembra que o nosso coração está onde está o nosso tesouro (Mt 6,21). E apresenta o Reino de Deus como este tesouro (Mt 13,44) que catalisa as forças do coração. Por isso a qualidade da acolhida e da escuta da Palavra são imprescindíveis. Os evangelhos também nos dizem que nada pode substituir o diálogo sincero e transformador com Deus, realizado na intimidade do quarto, onde ninguém vê (Mt 6,6).
Por duas vezes, Lucas nos apresenta a figura de Maria como aquela que guardava os acontecimentos no coração (Lc 2,19.51); na primeira vez, acrescenta que Maria buscava o sentido dos fatos vividos. Podemos intuir como Maria necessitou de tempo para juntar as peças dos acontecimentos, ruminando-os em seu coração e buscando um sentido para eles. Mas, não temos acesso à intimidade invisível e inacessível de seu coração, à sua experiência. Temos, isso sim, o testemunho da comunidade cristã de que a mãe do Senhor escutou e observou o Palavra de Deus (Lc 11,28), traçou um caminho concreto e visível de fé, sinalizado pelo Espírito, como discípula.
A dimensão visível da espiritualidade é o caminho traçado de forma pessoal, comunitária e coletiva. As concretas pegadas deixadas na história. Os mesmos evangelhos, que valorizam a sinceridade e pureza do coração, são uníssonos: a escuta da Palavra (dimensão invisível) exige uma prática pluridimensional do que foi ouvido (dimensão visível), de forma interligada (Mt 7,26-27 e par.). Por isso, num texto contundente, vemos como o religioso que pratica a iniquidade (visível) está afastado de Deus e corrompe o Evangelho (Mt 7,23; Lc 6,46). A carta de João, por sua vez, reforça a articulação entre as duas dimensões: “quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20).
No magistério de Francisco fica claro que a experiência de fé – experiência mística fundante e sempre pessoal – é luz para o caminhar concreto e visível. A Encíclica Lumen Fidei apresenta essa coerência interior e exterior da fé através da figura de Maria, que entrou “no olhar próprio do Filho de Deus encarnado” (FRANCISCO, 2013a, n. 58, on line), viu com os olhos do seu filho, e ele foi luz para o seu caminhar. Experiência que representa este envolvimento progressivo com Jesus, que amadurece no cotidiano, no amor, na cruz, na alegria da ressurreição e conforma um estilo de vida que floresce e dá frutos (PEDROSA-PÁDUA, 2019, p. 152). A fé ilumina caminhos, faz caminhar.
Na espiritualidade integrada de Francisco, a oração, “pulmão” da Igreja, só pode ser concebida em íntima conexão com “vigoroso compromisso social e missionário”, e vice-versa (FRANCISCO, 2013b, n. 262, p. 149), evitando as propostas místicas incoerentes, desagregadoras e destrutivas.
A integração entre as dimensões invisível e visível da espiritualidade será aprofundada no desenvolvimento das próximas linhas-força.
Francisco tem dedicado os melhores esforços para, com seu magistério, convocar a uma profunda e determinante experiência do amor de Deus, capaz de transformar o coração e de provocar respostas a uma Igreja em saída, ao compromisso social com a justiça e a todas as formas de gerar vida. Neste sentido, oração e contemplação compõem a quarta linha-força da espiritualidade de Francisco.
Mas, de que oração tratamos aqui? A exacerbação do individualismo ou uma falsa piedade devem ser criticadas. “Poderá ser saudável um fervor espiritual que convive com a acédia na ação evangelizadora ou no serviço aos demais?”, pergunta o Pontífice em Gaudete et exsultate (n. 30, p. 24). Até a oração pode ser corrompida, quando aprofunda o individualismo ou acoberta omissão e interesses espúrios sob falsa piedade. Nessa situação, a preocupação exacerbada pelos espaços pessoais de autonomia sai vencedora; as pseudoespiritualidades neopelagianas e neognósticas são confundidas com espiritualidades evangélicas.
A verdadeira espiritualidade forma um coração missionário, que sabe que “deve crescer na compreensão do Evangelho e no discernimento das sendas do Espírito” (FRANCISCO, 2013b, n. 45, p. 34), e não se fecha ao novo de Deus em suas decisões. Faz-se preciso que o evangelho impregne a pessoa como um todo, “as opções mais profundas e sinceras que determinam uma forma de vida concreta” (FRANCISCO, 2013b, n. 80, p. 53). O coração impregnado de Evangelho evita o relativismo prático, que age como se Deus não existisse, decide como se os pobres não existissem, sonha como se os outros não existissem, trabalha como se aqueles que não receberam o anúncio não existissem (FRANCISCO, 2013b, n. 80, p. 53-54). O Evangelho impregna também a solidão e a intimidade, fazendo com que, na vida, “todos os momentos sejam degraus no caminho de santificação” (FRANCISCO, 2018, n. 31, p. 25).
No magistério espiritual de Francisco, encontramos uma proposta de formação do coração, com o fortalecimento das motivações interiores e profundas. A escuta da Palavra e, unida a ela, a escuta e contemplação do povo (enfatizadas na Evangelii Gaudium) e da natureza (Laudato sí) fazem parte desta proposta. Trata-se de cuidar da dimensão “invisível” da espiritualidade, como veremos abaixo.
A insistência em recuperar um espaço pessoal para realizar um diálogo sincero com Deus é clara em Francisco. É preciso deter a “corrida febril” (FRANCISCO, 2018, n. 29, p. 24) da cultura consumista, do divertimento e mil atividades que não deixam espaços vazios e impedem descobrir o sentido e a profundidade da vida. “Voltemos a escutar Jesus” e, ainda mais, “permitamo-lhe que nos desafie, que nos chame a uma mudança real de vida” (FRANCISCO, 2018, n. 66, p. 46). A escuta de Jesus personalizada pede um “coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade” (FRANCISCO, 2013b, n. 149, p. 91). Deixar-se impregnar, penetrar e trespassar pela Palavra é fundamental para que a Palavra transmitida possa também impregnar, penetrar e trespassar os outros, provocando transformação.
As palavras de Francisco sobre a leitura da Palavra, dirigidas aos pregadores, podem ser ampliadas a todos os cristãos que devem viver uma espiritualidade missionária. A escuta da Palavra não exclui o estudo, que evita fundamentalismos e leituras que simplesmente se ajustem à nossa forma anterior de pensar. Ela implica também sinceridade de um diálogo pessoal com a Palavra, um deixar-se transformar, de fato, pelo Espírito. A “leccio divina” é uma modalidade concreta de oração recomendada (FRANCISCO, 2013b, n. 154, p. 93) e o leitor de Francisco a vê enriquecida com um diálogo com Cristo que facilmente pode ser associado ao estilo dos abundantes “colóquios” dos Exercícios Espirituais Inacianos (SANTO INÁCIO DE LOYOLA, 1995, p. 47):
é bom perguntar-se, por exemplo: “Senhor, a mim que me diz este texto? Com esta mensagem, que quereis mudar na minha vida? Que é que me dá fastídio neste texto? Porque é que isto não me interessa?”; ou então: “De que gosto? Em que me estimula esta Palavra? Que me atrai? E porque me atrai?”. (FRANCISCO, 2013b, n. 153, p. 94)
É importante ouvir os passos que o Senhor convida a dar, com sinceridade, confiança no amor de Deus e sem fingimentos. O próprio Pontífice seleciona alguns textos bíblicos centrais e realiza uma leitura espiritual integral das mesmas, em seus documentos. Na Gaudete et exsultate, capítulo III, comenta as bem-aventuranças (Mt 5,3-12) e a grande regra de comportamento (Mt 25,35-36): “Pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e festes visitar-me”. Diante da força deste texto, vemos um Francisco pedindo aos cristãos “que as aceitem e recebam com sincera abertura, sine glossa, isto é, sem comentários, especulações e desculpas que lhes tirem a força” (FRANCISCO, 2018, n. 97, p. 61). A Encíclica Fratelli tutti é iluminada pela parábola do “estranho no caminho”, ou bom samaritano (Lc 10,25-37), à qual dedica todo o segundo capítulo. A Exortação Amoris Laetitia, em seu quarto capítulo, oferece rico comentário ao Hino à caridade, de 1Cor 13,4-7, através do qual comenta o amor matrimonial. A Encíclica Laudato sí, por sua vez, reúne textos do Antigo e Novo Testamento no capítulo intitulado “O Evangelho da criação”, reforçando a criação como boa nova salvífica de Deus. Um olhar a estes textos já nos traz a dimensão integradora da espiritualidade de Francisco.
A dedicação de tempo à oração é necessária enquanto experiência pessoal constantemente renovada. Saboreia-se a mensagem de Jesus e se renova a amizade com ele (FRANCISCO, 2013b, n. 266, p. 152). A Palavra não é uma letra, é Cristo vivo. Mas é preciso aprender, como Santa Teresa, a desenvolver esta amizade. Para ela, “a oração é ‘uma relação íntima de amizade, permanecendo muitas vezes a sós com Quem sabemos que nos ama’” (FRANCISCO, 2018, n. 149, p. 92).
Faz-se essencial colocar-se diante do Jesus dos Evangelhos, deixar-se olhar por ele, ouvir suas palavras, calar, olhar, ficar a sós, aprender a discernir. Desejar e sentir falta desta amizade, quando abandonada. Recuperar um espírito contemplativo que encontra nos Evangelhos uma fonte que nos humaniza e humaniza o mundo, pois é tesouro de vida e de amor. Contemplar a vida de Jesus em sua totalidade, “a sua forma de tratar os pobres, os seus gestos, a sua coerência, a sua generosidade simples e quotidiana e, finalmente, a sua total dedicação” (FRANCISCO, 2013b, n. 265, p. 151) e aprender com ele. Pedir-lhe que volte a cativar-nos a cada dia.
Unida à escuta da Palavra, a escuta do povo é também um exercício espiritual de transformação do coração. A mensagem pode ser ampliada a todos, embora dirigida aos pregadores: “um pregador é um contemplativo da Palavra e também um contemplativo do povo” (FRANCISCO, 2013b, n. 154, p. 94). Escuta e contemplação geram encontros verdadeiros.
Trata-se de habituar-se a relacionar a mensagem do texto bíblico com as situações humanas que precisam da luz da Palavra, ouvir a interpelação de Deus nas situações concretas de alegria, medo, dor, incerteza, preocupações... e, daí, perceber “apelos à conversão, à adoração, a atitudes concretas de fraternidade e serviço” (FRANCISCO, 2013b, n. 155, p. 95). Ou mesmo, encontrar a luz da Palavra em ações e religiosidade do povo (FRANCISCO, 2013b, n. 90, p. 59). Trata-se de um deixar-se interpelar pela vida – “somos chamados a viver a contemplação mesmo no meio da ação” (FRANCISCO, 2018, n. 26, p. 22). Assim, será possível ajudar a interpelar as situações no mundo e a transforma-las.
À escuta da Palavra e do povo, Francisco une a escuta da natureza. É pela escuta da natureza que se aprofunda no caráter simbólico da criação (FRANCISCO, 2015, n. 85, p. 56), pela qual se aprende, por mensagem silenciosa, algo sobre Deus e seu amor. Aprendemos também que somos relação com as outras criaturas, que há interligação entre tudo: “tudo está interligado” (FRANCISCO, 2015, n. 91, p. 60) e que “há um mistério a contemplar numa folha, numa vereda, no orvalho, no rosto do pobre”, ou seja, podemos contemplar Deus em todas as coisas (FRANCISCO, 2015, n. 233, p. 135). O ser humano é recolocado em seu lugar, sem pretensão do domínio absoluto da terra e no reconhecimento do direito de existir de todas as criaturas.
A escuta da natureza faz ver que sua destruição é também destruição da vida humana sobre a terra, especialmente a vida mais ameaçada, dos pobres, dos povos originários, dos que não têm como se defender diante do poder econômico e político dos grandes empreendimentos, nem da crueldade.
Enfim, Francisco pede maior qualidade na relação com Deus, aponta para um diálogo através do qual o Evangelho do Reino, que é também Evangelho do povo e da criação, impregna o orante e, com sua força irreversível, fecunda processos de conversão, expande fronteiras sociais, provocam respostas de amor concreto. Num movimento retroativo e simultâneo, o amor concreto qualifica e aprofunda a oração que encontra, na Palavra, no povo e na natureza, as interpelações do amor de Deus. Com isso passamos à quinta linha-força.
A quinta linha-força da espiritualidade no magistério de Francisco é a sua proposta de caminho espiritual concreto e visível. Por isso, este tópico será objeto de maior detalhamento. Trata-se da espiritualidade enquanto “forma de vida com o sabor de Evangelho” (FRANCISCO, 2020a, n. 1, p. 7), impregnada da “alegria do Evangelho” (Evangelii gaudium). Podemos identifica-la como um caminho de cura das relações e de reconstrução dos vínculos fundamentais rompidos, com as graves consequências para a Igreja e para a sociedade, especialmente para os pobres.
O ato de curar as relações e de refazer os vínculos é, ao mesmo tempo, resposta e alimento ao movimento orante. Interior e exterior humanos não se contradizem, mas são chamados à integração e fecundação mutuas. Invisível e visível coerentes conformam a pessoa espiritual.
Curar relações e refazer vínculos é projeto que deve receber a atenção e os melhores esforços espirituais, em resposta à ação divina, sempre primeira. Como já vimos na primeira linha de força, o Espírito permeia todas as situações humanas, todos os vínculos sociais e partilha a própria sorte do universo. Este caminho determina a qualidade da experiência espiritual, diz respeito ao próprio projeto de salvação de Deus em Jesus Cristo.
O magistério de Francisco se situa no interior da antropologia teológica atual, que vê o ser humano como intersubjetividade e relação. Não sobrevivemos sem os outros, sem a natureza, sem o cosmos, sem Deus – sendo esta última a relação fundamental. A filosofia da alteridade e a teologia, hoje, olham o ser humano em sua necessidade do “outro”, constitutiva e fundante da identidade (Gesché, 2015, p. 52). Por sua vez, a antropologia teológica latino-americana tem desenvolvido importante contribuição ao tema das relações fundamentais:
é o sujeito ou pessoa humana quem, no concreto, se realiza nas relações, consigo mesmo, com o mundo da natureza, com os outros seres pessoais e, na dimensão mais profunda, com Deus (GARCIA RUBIO, 2006, p. 312).
A preocupação com os vínculos originários está na raiz de temas caros a Francisco, como a “cultura do encontro”, a “construção de pontes e não de muros”, a “amizade social”, a afirmação recorrente de que “ninguém se salva sozinho”.
São Francisco é o modelo desta espiritualidade que se desenvolve na abertura a estas relações fundamentais, na tecitura e vivência dos vínculos harmônicos originários. É muito significativo que este modelo seja apresentado na abertura da Encíclica Laudato sí, como
um místico e um peregrino que vivia com simplicidade e numa maravilhosa harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo (FRANCISCO, 2015, n. 10, p. 14).
Na sequência do mesmo texto, o Papa pontua elementos essenciais no interior desta relação harmônica, dizendo que, em São Francisco, é possível perceber “até que ponto são inseparáveis a preocupação com a natureza, a justiça para com os pobres, o empenhamento na sociedade e a paz interior” (FRANCISCO, 2015, n. 10, p. 14).
Biblicamente, a existência humana se “baseia sobre três relações fundamentais intimamente ligadas: as relações com Deus, com o próximo e com a terra” e elas não se rompem apenas exteriormente, mas também “dentro de nós” (FRANCISCO, 2015, n. 66, p. 45). “Esta ruptura é o pecado”, clarifica a Laudato sí ((FRANCISCO, 2015, n. 66, p. 45). Ora, esta ruptura dentro de nós aponta para o fato de que há que se desenvolver também uma quarta relação fundamental: consigo mesmo, no desenraizamento da autossuficiência e abertura humilde ao amor de Deus e dos irmãos.
O drama do pecado é precisamente a ruptura destas quatro relações, como sugerem as narrações bíblicas. A interligação entre elas é expressa pelo Papa através do personagem bíblico Caim, que mata o seu irmão (Gn 4,9-12):
o descuido no compromisso de cultivar e manter um correto relacionamento com o próximo, relativamente a quem sou devedor da minha solicitude e proteção, destrói o relacionamento interior comigo mesmo, com os outros, com Deus e com a terra (FRANCISCO, 2015, n. 70, p. 48).
Por sua vez, a harmonia é cura destas rupturas, e deve ser vista no conjunto destas relações. Por isso não é possível sanar a relação com a natureza sem também curar as relações sociais e a relação com a transcendência (FRANCISCO, 2015, n. 119, p. 75).
A espiritualidade diz respeito, então, a todas estas relações, sem separação. O neo-pelagianismo, que deseja uma salvação a partir das próprias ações ou da pertença a uma instituição, mostra aqui sua debilidade teológica e espiritual. Revela sua potencialidade empobrecedora e, mais do que isso, destrutiva do humano e das relações, a começar pela relação fundamental com Deus, caracterizada pelo fechamento à novidade do Espirito.
Francisco tem insistido na espiritualidade que signifique uma reação às formas de eliminar ou ignorar os outros (FRANCISCO, 2020a, n. 6, p. 10) e real ajuda na reconstrução das relações, e o tem feito de forma contundente. A espiritualidade é vida no Espírito, ela “subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade (...), quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade” (FRANCISCO, 2020a, n. 87, p. 65) e, ao contrário, “não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo” (FRANCISCO, 2020a). Já foi observado como, no magistério de Francisco, há o primado do Espírito na evangelização e na construção de sociedades mais justas (AZCUY, 2017, p. 570), o que nos leva a perceber a evangelização e a doutrina social, construtoras de relações, como verdadeiros caminhos espirituais.
Desenvolvemos, a seguir, a importância espiritual-salvífica das relações fundamentais, as ênfases no atual pontificado e a liturgia como cura e restabelecimento dos vínculos, no magistério do Papa Francisco.
Quando falamos de relações com Deus, com os demais, consigo mesmo e com a natureza não falamos de uma cordialidade superficial; nem mesmo de algo circunscrito ao compromisso ético, embora o inclua. Falamos do acolhimento da oferta mais profunda de salvação e felicidade que nos vem pelas mãos de Deus. A salvação consiste na união com Cristo, que, por sua vida, morte e ressurreição, insere-nos numa nova ordem de relação com os outros, com o mundo criado e com Deus. Francisco tem escrito, repetidas vezes, que ninguém se salva sozinho, por suas próprias forças ou por uma instituição, como deseja a onipotente pseudoespiritualidade neopelagiana.
A salvação, como união com Cristo, significa abrir-se e assumir as suas relações, as relações de Cristo. Viver é conviver. A vida nova é uma nova convivência, segundo o Reino de Deus. A Carta Placuit Deo explicita claramente:
esta Carta pretende reafirmar que a salvação consiste na nossa união com Cristo, que, com a sua Encarnação, vida, morte e ressurreição, gerou uma nova ordem de relações com o Pai e entre os homens, e nos introduziu nesta ordem graças ao dom do seu Espírito. (CDDF, 2018, n. 4).
E ainda:
[...] entrando a fazer parte da família humana, [Cristo] ‘uniu-se de certo modo a cada homem’ e estabeleceu uma nova ordem nas relações com Deus, seu Pai, e com todos os homens, na qual podemos ser incorporados para participar na sua própria vida. (CDDF, 2018, n. 10).
O rompimento dos vínculos fundamentais, como já dissemos, caracteriza a situação que, teologicamente, chamamos pecado, que leva à morte. O magistério de Francisco tem ajudado a trazer à luz situações em que o pecado se faz estrutura e o mal se cristaliza. Assim, desmascara causas socioculturais e econômicas que reforçam novas formas de rompimento destes vínculos na sociedade contemporânea.
Dentre as características da globalização excludente geradora de rupturas das relações fundamentais, o magistério de Francisco tem enfatizado o individualismo anestesiante; o consumismo que solapa as dimensões mais solidárias da humanidade, gera isolamento e tristeza; o sistema financeiro e econômico regido pelas forças do mercado globalizado; a mentalidade tecnocrática que reduz o humano e a natureza à utilidade que possam oferecer.
Neste contexto, algumas relações tornam-se particularmente fragilizadas: o vínculo com a comunidade humana, com os pobres e com a natureza. Francisco as enfatiza em seu magistério, articulando-as – e nunca isolando-as – com as demais relações fundamentais, pois elas são, precisamente, sinais da ruptura com Deus e consigo mesmo. Elas sinalizam uma oração desintegrada, uma doentia autossuficiência, omissão e soberba.
A comunidade
Diante do enfraquecimento dos vínculos comunitários, muitas vezes com sua substituição pela tecnologia, a espiritualidade de Francisco propõe um “sim” às novas relações geradas por Cristo (FRANCISCO, 2013b, p. 58), aquelas que se encarnam na vida da outra pessoa. Isto significa aceitar caminhar juntos, oferecer o direito a que convivam conosco nesta terra (“o outro também tem direito a viver comigo nesta terra”, FRANCISCO, 2016, n. 92, p. 65). As novas relações são capazes de criar vínculos profundos, estáveis. Em seu interior, aprende-se a chorar e sofrer com o outro, a não se cansar da fraternidade, mesmo diante de ingratidões. A esta relação concreta que envolve rosto, contato direto, sentir a alegria do outro e a complexidade da sua experiência pessoal, Francisco denomina “mística de viver juntos”:
descobrir e transmitir a ‘mística’ de viver juntos, misturar-nos, encontrar-nos, dar o braço, apoiar-nos, participar nesta maré um pouco caótica que pode transformar-se numa verdadeira experiência de fraternidade, numa caravana solidária, numa peregrinação sagrada” (FRANCISCO, 2013b, n. 87, p. 58).
A “mística de viver juntos” é também a chama de “fraternidade mística”, porque ancorada na experiência do Deus de Jesus Cristo, que assumiu o rosto de cada um de nós:
“Nisto está a verdadeira cura: (...) uma fraternidade mística, contemplativa. Vê a grandeza sagrada do outro e a Deus em cada ser humano (FRANCISCO, 2013b, n. 92, p. 61).
Francisco apela à capacidade de, no dia a dia, alargar o círculo em direção àqueles que, “espontaneamente, não sinto como parte do meu mundo de interesses” (FRANCISCO, 2020a, n. 97, p. 71), embora estejam perto. Nessa expansão do círculo fechado, é possível reconhecer xenofobias e racismos dissimulados com quem está próximo e abrir-se à possibilidade da “amizade social” inclusiva (FRANCISCO, 2020a, n. 99, p. 72). Em algum momento da vida, é preciso um “dar-se conta de quanto vale um ser humano” (FRANCISCO, 2020a, n. 106, p. 77)!
Francisco não deixa de destacar a “potencialidade relacional” da religiosidade popular, por ser uma religiosidade encarnada, sempre relacionada com os rostos concretos de Jesus Cristo, Maria, os santos (FRANCISCO, 2013b, n. 90, p. 59).
A comunidade humana, a partir da opção preferencial pelos pobres
Refazer os vínculos com a comunidade humana é parte integrante do caminho espiritual concreto de Francisco. Um verdadeiro cisma acontece no nosso mundo, denuncia a Encíclica Fratelli Tutti. Trata-se da ruptura entre o indivíduo e a comunidade humana, dificultando e impedindo que haja projetos comuns (FRANCISCO, 2020a, n. 31, p. 28), enquanto se assiste à “globalização da indiferença” (FRANCISCO, 2013b, n. 54, p. 39).
A reconstrução do vínculo e encontro de projetos comuns têm nos pobres um ponto de partida. O apelo ao reconhecimento do rosto concreto dos pobres e a indicação de que ninguém pode se eximir da responsabilidade da opção preferencial pelos pobres são muito claros em Francisco: “ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (FRANCISCO, 2013b, n. 201, p. 122). Em seu magistério, ressoa o convite a ter olhos para ver e sensibilidade para reconhecer a precariedade da vida para a maioria da comunidade humana, que luta para viver e com pouca dignidade (FRANCISCO, 2013b, n. 52, p. 38). Uma massa de excluídos e sobrantes (FRANCISCO, 2013b, n. 53, p. 39) contrastam com a “indiferença acomodada, fria e globalizada” (FRANCISCO, 2020a, n. 30, p. 27) e uma cultura do bem-estar anestesiante.
O desafio do vínculo com os pobres é aprofundado pela crise antropológica do mundo globalizado, em que o ser humano não é mais prioridade para o mercado, é apenas um meio. A pessoa é reduzida à dimensão do consumo, na ditadura de uma economia sem rosto e sem objetivo realmente humano. Qualquer realidade frágil fica sem defesa diante da voracidade do mercado e do sistema social e econômico “injusto na raiz”. Nas estruturas sociais injustas há “um mal cristalizado” (FRANCISCO, 2013b, n. 59, p. 42) que privilegia os que são “considerados humanos” e descarta os “menos humanos” (FRANCISCO, 2020a, n. 39, p. 34).
A crise que alimenta a ruptura com os pobres é também espiritual. Na cultura individualista, é difícil aos cidadãos se “inserir num projeto comum que vai além dos benefícios e desejos pessoais” (FRANCISCO, 2013b, n. 61, p. 43). O relativismo prático aumenta e a fé é reduzida ao âmbito do íntimo e privado (FRANCISCO, 2013b, n. 64, p. 45), ao invés de tornar-se luz que ilumina cada cristão, os vínculos e as relações humanas neste mundo, das menores às maiores estruturas (CANTOS APARICIO, 2018, p. 423). Aqui, urgem processos de conversão que atinjam realidades macrossociais, estratégias para intervir nas dinâmicas sociais como parte da espiritualidade.
A fé ajuda a “fazer ressurgir nossa vocação de cidadãos, (...) construtores de um novo vínculo social” (FRANCISCO, 2020a, n. 66, p. 52). Ilumina a formação de uma cultura nova, em que seja concretizado o “amor político” e construída a “amizade social”. A força do Evangelho, como a que emana da parábola do samaritano (Lc 10,25ss), “manifesta a opção fundamental que devemos fazer para reconstruir nosso mundo ferido” (FRANCISCO, 2020a, n. 67, p. 52).
Nesse processo, é preciso ver o protagonismo dos povos nos quais o Evangelho foi inculturado, como “sujeitos coletivos ativos, agentes da evangelização” (FRANCISCO, 2013b, n. 122, p. 77) e a diversidade de agentes sociais, entre eles os Movimentos Populares (FRANCISCO, 2020a, n. 169, p. 121). O projeto vigoroso de Francisco, com suas indicações nas Encíclicas sociais Laudato sí e Fratelli Tutti e na Exortação Evangelli Gaudium conformam um guia de espiritualidade política e social, vinculada à experiência pessoal de Deus. A uma espiritualidade da fraternidade deve estar unida “uma organização mundial mais eficiente para ajudar a resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países pobres” (FRANCISCO, 2020a, n. 167, p. 118).
O discernimento das ações que visam o bem comum levam, de forma inevitável, à solidariedade e à opção preferencial pelos pobres. Diante da injustiça socioambiental e econômica, as convicções de fé não permitem pensar o bem comum ou a dignidade humana de forma abstrata:
nas condições atuais da sociedade mundial (...) o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres (FRANCISCO, 2015, n. 158, p. 97).
A natureza
Reconstruir os vínculos com a natureza faz parte do caminho concreto da espiritualidade proposta por Francisco. Para isso, a proposta passa pela consciência de que a crise ecológica é também social – não é possível separar a destruição do meio ambiente da destruição da vida dos pobres:
hoje, não podemos deixar de reconhecer que uma verdadeira abordagem ecológica sempre se torna uma abordagem social, que deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres (FRANCISCO, 2015, n. 49, p. 34)
Há raízes humanas nesta crise, afirma a Laudato sí. São ressaltados o domínio do paradigma tecnocrático, que reduz a natureza a objeto que pode ser dominado e o antropocentrismo moderno, que se esqueceu do verdadeiro lugar do humano no mundo cósmico. A falta de preocupação com os impactos ambientais das decisões reflete desinteresse em reconhecer a mensagem da natureza. Ora, se não se reconhece o pobre, o doente, fica difícil reconhecer os gritos da natureza, pois “tudo está interligado” (FRANCISCO, 2015, n. 117, p. 74).
Trata-se dos vínculos originários rompidos. Nesta crise, o planeta e a humanidade são vistos com as lentes do domínio ou da indiferença. Não há reconhecimento de um valor em si nestas realidades, com a consequência funesta do “relativismo prático” que torna tudo descartável, da pele de animais ao ar, do habitat dos pescadores à própria vida dos pobres (FRANCISCO, 2015, n. 123, p. 77). Outra vez, um problema espiritual, que atinge o humano e cria a ilusão de domínio e de estar separado na natureza e dos demais. A espiritualidade de Francisco é de profecia, denúncia e anúncio de uma possibilidade de mudança, na qual a cura dos vínculos originários gerados por um Deus criador de todas as coisas, passa por recolocar o humano em seu lugar de criatura convivente com outras criaturas, e que garanta a todas o seu espaço no mundo. Por isso, a espiritualidade ecológica é “comunitária e reconciliadora, dialógica e integral” (TATAY; DAELEMANS, 2018, p. 342).
A espiritualidade ecológica integral, proposta por Francisco (Laudato sí, cap. VI), com a conversão ecológica sugerida, é um deixar emergir, na relação concreta com o mundo e multidimensionalmente, as virtualidades do encontro com Jesus.
Os vínculos de Cristo são celebrados, curados e fortalecidos de forma simbólico-sacramental. A mais clara referência a este dom está na Encíclica Laudato sí, ao falar sobre a luminosidade que jorra da Eucaristia sobre nossas preocupações pela criação inteira:
A participação na Eucaristia é especialmente importante ao domingo. Este dia [...] é-nos oferecido como dia de cura das relações do ser humano com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o mundo. (FRANCISCO, 2015, n. 237, p. 138)
Os sacramentos, no magistério de Francisco, são postos em articulação com a vivência concreta das novas relações, possibilitadas por Cristo na nova criação. Reforçam o caráter mediador da vida simbólico-sacramental para uma vida nova efetiva, concreta, que se renova no dia da Ressurreição, “o ‘primeiro dia’ da nova criação, que tem as suas primícias na humanidade ressuscitada do Senhor, garantia da transfiguração final de toda a realidade criada” (FRANCISCO, 2015, n. 237, p. 138). Lembram que as relações de Cristo representam o vínculo originário que une cada pessoa, a humanidade, a natureza e Deus, em harmonia, sem exclusões e sem descartes.
O caminho de cura das relações e da conversão, de arrependimento e novo compromisso com as “relações de Cristo”, pautadas no amor incondicional aos pobres e na paixão pela justiça, conta com o dom da graça – Deus mesmo! – que se faz ação na liturgia. Do Batismo, entrada nesta novidade de vida, “deriva a transformação do nosso modo concreto de viver as relações com Deus, com os homens e com a criação (cf. Mt 28,19)” (CDDF, n. 13, on line). Por sua vez, o sacramento da Penitência, reintroduz o cristão “à ordem das relações inaugurada por Jesus, para caminhar como Ele caminhou” (CDDF, n. 13, on line). Os sacramentos são dons que refazem relações, e alimentam sujeitos eclesiais que caminham sinalizados pelos mesmos critérios com que Jesus caminhou, na concretude do corpo e em fidelidade às situações de sofrimento do cosmos e da humanidade.
Chegando ao final desta visão de conjunto da espiritualidade cristã no magistério do Papa Francisco, é possível perceber o fôlego e alcance do projeto espiritual proposto neste Pontificado.
Num contexto eclesial eivado pelas pseudoespiritualidades neopelagianas e neognósticas, Francisco reafirma o enraizamento da espiritualidade cristã no Evangelho, mistério do amor de Deus que se fez carne em Jesus Cristo e segue acompanhando seu povo, no Espírito. Esta fonte espiritual exige abertura sincera à novidade do Espírito de Deus, não engessamento em práticas e teologias que não respondem à sede de espiritualidade de nosso tempo. A encarnação traz o necessário reconhecimento da história e do corpo no caminho espiritual. Igualmente, valoriza as relações integradas com Deus, com os demais, consigo mesmo e com o ambiente.
Quanto às linhas-força da espiritualidade de Francisco, é possível apresentar algumas sínteses:
1) o Evangelho como fonte e caminho espiritual integrador, de tal forma que há um reconhecimento da muldimensionalidade do querigma;
2) a formação de verdadeiros sujeitos na Igreja e na sociedade, a partir da noção de conversão processual que gera liberdade e responsabilidade; aprofunda-se o caminho de amadurecimento de um laicato e de ministros ordenados capazes de romper com modelos clericais no interior da Igreja, viver relações de comunhão sem dominação e processos eclesiais sinodais; reforçam-se as capacidades do laicato assumir suas responsabilidades na sociedade em direção à construção da comunidade humana, opção pelos pobres e uma ecologia integral;
3) a articulação coerente entre as dimensões invisível e visível da espiritualidade, evitando que a experiência interior seja desarticulada da missão, ou indiferente a ela; ao contrário, que haja mutua fecundação e coerência;
4) o cuidado com a oração e a contemplação, que incluem e integram a leitura da Palavra com a contemplação do povo e da natureza; trata-se de impregnar-se profundamente da Palavra viva que é Cristo, com suas opções e sentimentos e perceber os nexos com a realidade do povo, com mensagens e gritos da natureza querida por Deus;
5) a proposta de um caminho espiritual concreto, pautado pela reconstrução das relações fundamentais com Deus, consigo mesmo, com os demais e com a natureza; algumas características específicas: celebração litúrgico-sacramental da cura dos vínculos e inserção litúrgico-sacramental nas novas relações de Cristo; atenção ao esgarçamento dos vínculos no ambiente que gerou a crise cultural e socioambiental atual; consideração teológica da salvação em termos das novas relações possibilitadas por Cristo; orientações de reconstrução das relações, particularmente as relações humanas comunitárias, de amizade social com os pobres, indígenas e descartados da sociedade, com a natureza.
Tudo isto evidencia a potencialidade transformadora e libertadora da espiritualidade do Papa Francisco. Ao articular as dimensões existencial, mística, eclesial, ecológica e social da existência cristã, podemos dizer que estabelece as bases para uma reforma a partir de dentro, para uma Igreja sinodal, menos autorreferencial e em saída.
Francisco faz, de cada cristão e cada comunidade um sujeito da reforma. Sabe que, sozinho, não a pode impor, mas que, pela força do Evangelho, no Espírito, os cristãos e as comunidades a podem buscar na noite, guiados pela promessa da nova criação em que todas as relações são curadas. Esta promessa é luz em seus olhos e em seus corações.
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