Papa Francisco e o Projeto da “Transformação Missionária da Igreja” 
Pope Francis and the Project of a “Transformed Missionary Church”

Celia Maria Ribeiro
Mestra e Doutora em Ciências da Religião – PUC/SP; Pós-Doutoranda em Teologia – PUC/SP. Contato: 
cmariar@uol.com.br


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Resumo

É recorrente a preocupação da Igreja quando o assunto é a sua própria missão, sobretudo na sociedade contemporânea, não obstante os inúmeros desafios que vão da baixa participação dos agentes pastorais à resistência para a transformação de ações inexpressivas que já não dão conta da complexidade das relações humanas. Ao Papa Francisco é mais do que necessária a renovação do estilo missionário, cujo centro é a proximidade com a pessoa de Jesus Cristo, a partir do chamado misericordioso do Senhor. Diante de tão significativo encontro, é praticamente inevitável o impulso comunicativo para que outros também sejam alcançados pela alegria de fazer parte do mesmo “rebanho”. De forma análoga, a missão ganhará o contorno esperado, quanto maior o discernimento ao longo da caminhada evangelizadora, pois se trata de dar espaço ao entendimento inequívoco da mensagem salvífica, sem prejuízo à liberdade de escolha e principalmente ao acesso à boa nova oferecida sem distinção alguma. O reflexo será observado no presente artigo, sob o objetivo de dar clareza à incidência prática do projeto missionário.

Palavras-chave: evangelização, missão, Igreja, transformação, encontro.

Abstract

The Church's concern is recurrent when it comes to her own mission, especially in contemporary society, despite the innumerous challenges that range from the low commitment of pastoral agents to the refuse to transform actions that no longer account for the complexity of human relationships. It is more than necessary for Pope Francis to renew his missionary style, whose center is the closeness to the person of Jesus Christ, based on the Lord's merciful call. In the face of such a significant meeting, the communicative impulse is practically inevitable so that others can also be reached out by the joy of being part of the same “flock”. In a similar way, the mission will gain the expected contour, the greater the discernment along the evangelizing journey, as it is about giving space to an unambiguous understanding of the saving message, without prejudice to freedom of choice and, especially, granting access to the good news offered without distinction. The reflection will be observed in this article, in order to clarify the practical impact of the missionary project.

Keywords: evangelization, mission, Church, transformation, encounter.

Os frutos do “encontro” com Jesus Cristo

A chegada do então Cardeal Jorge Mario Bergoglio à cátedra de São Pedro, mediante tantos problemas institucionais e de natureza diversa, por menor que seja o grau de envolvimento dos fiéis cristãos e até mesmo de pessoas distantes do universo católico, trouxe algumas expectativas, e a reforma eclesial dificilmente estaria de lado. Os desafios para a sua concretização não são estranhos à respectiva liderança pontifícia, mas a hostilidade direta ou indireta observada no âmbito interno e a resistência de alguns setores em relação à “transformação missionária da Igreja” e às questões que lhe são adjacentes dão margem para inúmeras reflexões, entre as quais a que se coloca no presente texto que tem como base a crença de que o encontro com Jesus Cristo é capaz de encher o coração e a vida inteira da pessoa humana, conforme expresso no início da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, a primeira do Papa Francisco. Nesse sentido, nada mais inspirador do que a proposta de uma evangelização sob nova caminhada. O assunto, entretanto, já figura como ponto emblemático desde o primeiro ano do seu pontificado, diante do risco da “tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada”, ainda presente no mundo atual. Embora não seja a única dificuldade, trata-se de uma força contrária ao entusiasmado anúncio da boa nova; por vezes, suficiente para a derrocada de muitos fiéis, transformando-os em pessoas ressentidas e queixosas (EG nº 1). O que era para ser motivo de constante alegria, transforma-se em abatimento interior.

Palavra central tanto no documento quanto no exercício cristão, a alegria é lembrada desde o Antigo Testamento, quando os profetas[1] preanunciaram a alegria da salvação. Posteriormente, o Evangelho[2] faz o insistente convite à alegria, mediante a gloriosa Cruz de Jesus Cristo, seguido dos Atos dos Apóstolos[3] pela partilha comunitária, visita frutuosa, satisfação ainda que sob perseguição, ajuda aos necessitados. Essa vereda já está suficientemente percorrida, o que nos leva a fazer o mesmo, sem dúvida, no coração para transbordá-lo de alegria. Mesmo diante das tribulações, é necessário ter o cuidado de render-se cada vez menos à tristeza, abrindo espaço para a alegria da fé, pois é grande a fidelidade do Senhor misericordioso para conosco (EG nº 6). Outro agravante são desculpas e queixas diante das incontáveis condições para sentir alegria, como se tal condicionamento fosse indispensável. Às vezes, a alegria é experimentada nas situações mais simples, sob escassos recursos materiais, realidade que sinaliza para o fato de que a alegria brota do coração humilde, haja vista a consciência da pessoa humana sobre o risco da autossuficiência e a percepção de que o auxílio chega verdadeiramente das mãos do Senhor, que fez o céu e a terra e tem predileção pelo ser humano, criado à Sua imagem e semelhança. Por outro lado, há também “a alegria genuína daqueles que, mesmo no meio de grandes compromissos profissionais, souberam conservar um coração crente, generoso e simples”. O fato é que tais alegrias têm a mesma fonte como alimento que é o amor de Deus (EG nº 7).

Na mesma direção de quem preserva a confiança na misericórdia divina para o restabelecimento da alegria interior, a fim seguir em frente, quem sente o amor de Deus almeja levá-lo adiante a tantos quantos estiverem no seu caminho, pois o construtivo encontro – ou reencontro – que lhe dá sentido na vida é extraordinariamente contagiante para ficar aniquilado no egoísmo da existência humana (EG nº 8). O outro é parte fundamental no processo de comunicação; melhor ainda, de evangelização, cuja palavra visa o bem de quem se dispõe a recebê-la, sem qualquer tipo de distinção. Nesse ato de doação está, segundo o Papa Francisco, uma “profunda lei da realidade”, ou seja, “a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros” e “isso é, definitivamente, a missão” (EG nº 9). Por sua vez, quando se fala em “missão”, trata-se de algo relevante ao Papa Francisco, pois está entre os pilares da espiritualidade inaciana, a base de sua formação eclesial. Segundo Klein, “a missão é mais totalizante, abrangente, integradora e mobilizadora do que as tarefas, dando-lhes sentido e direção, impregnando-a de uma mística, constituindo a sua identidade” (KLEIN apud RIBEIRO, 2018, p. 40). Na condição de apóstolo de Jesus Cristo, Papa Francisco tem a missão junto ao povo que segundo as suas próprias palavras “não é uma parte de minha vida, ou um ornamento que posso pôr de lado, não é um apêndice ou um momento entre tantos outros da minha vida”. E elucida ainda mais: “É algo que não posso arrancar do meu ser, se não quero me destruir. Eu sou uma missão nesta terra, e para isso estou nesse mundo.” (EG nº 273).

Ao evangelizador espera que seja repleto do fervor de espírito, distanciando-se da tristeza, salvo a semeadura da palavra entre lágrimas, ainda que destas certamente colherá muitos frutos. O aprofundamento nas coisas de Deus faz com que a pessoa humana seja menos vulnerável às intempéries de qualquer natureza, pois quanto maior o engajamento na missão evangelizadora, mais apta estará para a compreensão daquilo que lhe escapa racionalmente, haja vista a presença criativa do Espírito Santo que “sopra” como e onde lhe apraz. Os esquemas enfadonhos perderão força gradativamente pela presença cuidadosa de Jesus Cristo, que sempre caminha ao lado de quem o busca de coração aberto, portanto, em constante renovação evangelizadora. Entretanto, a iniciativa é sempre de Deus, que faz o chamado sem reserva. De fato, o evangelizador presta alguma colaboração ao plano salvífico do Senhor, cujo propósito é considerado exigente e desafiador, sem dúvida nenhuma, aos fiéis e àqueles que dão tímidos passos nessa direção. Em quaisquer situações, não se trata de heroísmo pessoal, mas somente da ação amorosa do senhorio divinamente humano e humanamente divino. Ressalta-se também o elo histórico estabelecido a partir da fé dos nossos antepassados, cuja memória está cotidianamente reavivada na celebração eucarística. Na condição de crentes, é imprescindível “fazer memória” absolutamente agradecida da revelação divina “encarnada” no meio de nós, preservada ao longo da história da Igreja e transmitida pelos nossos pais ou pessoas simples próximas de nós (EG nº 13).

O desafio não se restringe ao revigoramento espiritual, mas é extensivo aos três âmbitos da nova evangelização, oportunamente recordados por ocasião da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, no período de 7 a 30 de outubro de 2012, sobre o tema “A nova evangelização para a transmissão da fé cristã”: o primeiro é o âmbito da pastoral ordinária, que se refere à manutenção do ânimo de todos os fiéis sedentos da Palavra de Deus e “Pão de vida eterna”, reunidos semanalmente na celebração eucarística, da qual também faz parte quem ainda não é frequente, mas conserva a “fé católica intensa e sincera”; o segundo diz respeito ao âmbito das pessoas batizadas, porém, sem a vivência das exigências desse sacramento, devido à falta do sentido de pertencimento à Igreja e à desolação da fé, oportunidade para a presença real de evangelizadores que lhes “restituam a alegria da fé” e o compromisso evangélico; por fim, o âmbito da proclamação do Evangelho àqueles que desconhecem Jesus Cristo ou que sempre O recusaram durante a caminhada, porque a Igreja preserva a compreensão de que todos têm o direito ao Evangelho, anunciado sem proselitismo ou obrigatoriedade no cumprimento literal de sua mensagem, mas sob a confiança de que se trata verdadeiramente do “horizonte estupendo” que se abre à sua vista (EG nº 14).

A realidade descrita até o presente momento toca, portanto, no ponto sensível e principalmente tenso que é o “anúncio”, do qual não se prescinde em hipótese alguma, mesmo sob as inúmeras dificuldades, pois se trata da “ação missionária”. Esse é o âmago da Igreja, à luz do Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas 15,7: “Haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se converte do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão” (EG nº 15). Esse cenário e os coirmãos no episcopado têm significativo papel na questão ora tratada, levando o Papa Francisco a deter-se entre outros temas sobre “a reforma da Igreja em saída missionária” (EG nº 17). 

A evangelização missionária ao alcance de todos

A missão que se almeja está subsidiada também pelo Concílio Ecumênico Vaticano II, que faz declarado convite à renovação, dirigindo-se aos indivíduos e a toda Igreja. Mas, é conveniente que já se diga que por renovação entende-se a “emenda dos defeitos” que “a consciência aprofundada de si mesma” denuncia e rejeita em observância ao que Jesus Cristo propôs de si para nós. A reforma que se vislumbra a longo prazo tem essa característica, segundo a qual nenhuma pessoa minimamente consciente do seguimento cristão está isenta de responsabilidade; muito menos o corpo eclesial. O espelho é sempre a segunda pessoa da Santíssima Trindade, que se fez humano para em tudo estar próximo de nós. Assim, o espírito evangélico autêntico afasta o risco de corrupção na renovação eclesial, já considerada inadiável. Esta ainda pressupõe clareza missionária, a partir da conversão pastoral, mas cujo foco institucional infelizmente está mais voltado à autopreservação do que à evangelização propriamente dita. Quando se fala em “reforma das estruturas”, a missão leva em conta a comunicatividade junto ao Povo de Deus, mantendo a abertura necessária para ouvi-lo em suas aspirações e dificuldades temporais, mediante o desafio da constante “saída” na direção do outro, facilitando-lhe o encontro com a pessoa de Jesus Cristo (EG nº 26, 27).

É importante que se tenha em vista também as diferentes formas de evangelização, por vezes, restrita à paróquia, pelo equivocado entendimento de que esta seja a principal fonte de comunicação entre a Igreja e as famílias e demais segmentos sociais. Obviamente que a paróquia tem a sua contribuição, na medida em que está territorialmente instalada para a escuta da Palavra de Deus, a participação na adoração e celebração eucarística, o convívio comunitário regado pelo diálogo, a partilha fraterna, o exercício da caridade etc., porém, grande parte da população urbana (e principalmente rural) está fora desse círculo, às vezes, proclamado como grupo de eleitos olhando sempre para si, aumentando o risco da introversão eclesial, relembrado pelo Papa Francisco (EG nº 27). No âmbito paroquial, as exigências missionárias também são referidas nos termos de “saída” e todas as suas implicações, pois o Povo de Deus é chamado à missão e por esta, orientado. Outra parte significativa é a Igreja particular, guiada pelo respectivo Bispo, a qual também é chamada à conversão pastoral, e de quem é esperada a expressão concreta do seu rosto local, sobretudo em relação às periferias do seu território e a outros contextos socioculturais carentes da presença missionária ou reativos ao anúncio da mensagem cristã (EG nº 30).

O aspecto missionário da evangelização passa ao largo de quaisquer decisões impetuosas ou critérios elitistas; de outro modo, leva em consideração a necessidade constante do discernimento da comunicação de Jesus Cristo aos seus que “estavam no mundo” e para todos os fiéis ou pessoas de boa vontade que estão na sua trilha misericordiosa. Então, o discernimento é de suma importância para a Igreja na medida em que a potencializa a chegar ao conhecimento do que diz respeito ao ser humano em todos os aspectos de suas relações, inclusive naquilo que já não condiz com a proposta do Evangelho, a exemplo de alguns costumes, por vezes, radicados no curso da história, mas sob nova interpretação hodierna, portanto, divergente do que era habitual. Essa realidade precisa de elucidação, pois há os preceitos da Igreja e os preceitos de Jesus Cristo e dos apóstolos, estes em menor número, conforme ressaltado por Santo Tomás de Aquino de que “são pouquíssimos” aqueles dados pelo Mestre e o Grupo dos Doze. A questão dos preceitos dados pela Igreja precisa de “moderação”, completava o Presbítero e Doutor da Igreja fazendo alusão à palavra de Santo Agostinho, cuja advertência era para que não houvesse sobrecarga aos fiéis, e que a religião não se transformasse em escravidão, quando “a misericórdia de Deus quis que fosse livre”. Papa Francisco é categórico ao afirmar que essa admoestação é “tremendamente atual” e precisa ser levada em conta quando se pensa na “reforma da Igreja e da sua pregação” a fim de alcançar todas as pessoas (EG nº 43).

Obviamente que há muitos pontos aguardando as devidas análises para as providências cabíveis quando se trata de reforma eclesial. Aqueles momentaneamente assinalados aqui têm alguns aspectos instigantes que dão ênfase ao respectivo fio condutor da almejada transformação ad intra ou ad extra. Primeiramente, o de que “a história da evangelização tem início com uma busca apaixonada do Senhor, que chama e quer estabelecer com cada pessoa, onde quer que esteja, um diálogo de amizade” (Jo 15,12-17).  O exemplo dos apóstolos e os seus respectivos testemunhos de encontro com a pessoa de Jesus Cristo dão prova real de quão importante é tal experiência. A partir desse fato marcado pela proximidade amorosa do Senhor, e cada qual ao seu tempo e de forma específica, ressalta-se que essa força impulsiona outra ação que é a própria missão. Esse segundo aspecto relevante põe a pessoa em marcha rumo ao anúncio de tão grande acontecimento: “Encontramos o Senhor.” (Jo 1,41). Isso significa mais do que a simples ideia de sua presença, mas a convicção fideísta do bem sentido pela mensagem repleta de esperança ao nosso coração, sob a lembrança daqueles três âmbitos para a nova evangelização, observados anteriormente.

O desempenho harmonioso da atividade missionária precisa de alguns requisitos circunstancialmente adquiridos ou aprendidos ao longo da jornada. Não obstante a existência de outros, o discernimento é fundamental nesse almejado percurso de mudança. Inicialmente, sobre esse terceiro e decisivo aspecto, não se trata de submetê-lo às imposições decorrentes do processo de transformação, sobretudo diante das exigências da modernidade, mas de usá-lo para o entendimento real das situações postas, ora do ponto de vista espiritual, ora pastoral. O discernimento espiritual tem o objetivo de identificar a vontade de Deus, no caso, diante da missão evangelizadora; já o pastoral – e aqui se recorda o modo jesuíta de proceder – de evitar tanto quanto possível o imobilismo ou a indisponibilidade missionária. Por fim, mas cioso da mesma representatividade dos demais, está o valor da vida humana, cuja mensagem própria do carisma cristão, figura acima de quaisquer supostas reformas ou “modernizações”. Trata-se de uma questão sobre a qual a Igreja preserva a posição, ou seja, a eliminação da vida humana não é opção para a resolução de problemas, embora reconheça o baixo empenho eclesial no acompanhamento de mulheres para as quais o aborto soa como solução rápida para as suas angústias profundas sobretudo quando a vida gerada nos seus ventres fora resultado de violência ou se encontra em estado de extrema pobreza (EG nº 214).

Papa Francisco, sempre em sintonia com a respectiva questão, reafirma que “a cultura da vida é patrimônio que os cristãos desejam compartilhar com todos. Cada vida humana, única e irrepetível, constitui um valor inestimável. Isso deve ser sempre anunciado novamente com a coragem das palavras e ações” (@Pontifex_pt, 6 de janeiro de 2021). A postagem está na contramão do projeto de lei que descriminaliza o aborto, no seu país de origem. Aprovado pelo senado argentino, em 30 de dezembro passado, o texto assegura a interrupção da gravidez de até 14 (quatorze) semanas, fato comemorado pelos movimentos feministas e sociais. As gestações que estiverem fora desse período serão extirpadas em casos de estupro ou perigo à saúde da gestante, dentro de dez corridos a partir da solicitação, além da assistência pós-procedimento nos serviços do sistema de saúde argentino. Entretanto, a lei promulgada pelo presidente Alberto Fernández, em 14 de janeiro do corrente ano, foi suspensa por medida liminar proferida pela juíza do 19ª tribunal da província do Chaco, Marta Aucar, a qual acolheu “a medida cautelar requerida” de que a nova lei “restringe, menospreza, violenta, limita e altera a existência, o exercício e o gozo do direito à vida da criança por nascer, protegida pelo nosso ordenamento jurídico desde a concepção”, segundo a parte da alegação.

A suspensão está temporariamente vigente, pois há a possibilidade de que a medida liminar seja anulada pelo fato de a Argentina ser uma federação, prevalecendo o interesse nacional. De toda forma, o que se destaca é a indiscutível posição da Igreja sobre a preservação da vida humana, diante da qual o Papa Francisco é absolutamente honesto em sequer colocá-la em revisão durante quaisquer encaminhamentos da reforma eclesial, salvo nas questões diretamente vinculadas à precariedade no acompanhamento das gestantes em situação de risco ou vulnerabilidade já indicadas anteriormente, portanto, no sentido de prestar auxílio às mulheres em perigo, sem prejuízo às suas ou às vidas dos seres humanos trazidos circunstancialmente em seus ventres, cuja observância está ao alcance desde a paróquia, porção expressiva da ação evangelizadora. São medidas eclesiais voltadas à configuração pretendida por Jesus Cristo, levando em consideração o rosto real da Igreja no tempo presente. Não se trata de fuga aos fatos, mas vê-los sob o discernimento pastoral. Assim, a missão será tanto mais harmoniosa quanto promissora diante da realidade.

O desafio da interpretação dos “sinais dos tempos”

Papa Francisco, sempre alinhado ao propósito do Vaticano II, recorda a influência exercida pela novidade da inesgotável riqueza do Evangelho de Jesus Cristo, cuja substância perene tem linguagem própria; porém, mediante constante atualização, daí a sua característica sempre nova, pois a Palavra alcança o hoje da caminhada do ser humano. No discurso de inauguração do respectivo concílio, Papa João XXIII afirmava que no depósito da doutrina cristã “uma coisa é a substância (...) e outra é a formulação que a reveste”. Quando comparada ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo, a linguagem passada aos fiéis apresenta divergência na medida em que, sob a reta intenção de comunicar-lhes “a verdade sobre Deus e o ser humano”, os próprios responsáveis pela evangelização dão-lhes “um falso Deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão”. Nesse sentido é que se observa a fidelidade à formulação e menos ou nada à substância. Isso é grave. Então, é necessária a renovação da linguagem à medida que o foco seja a transmissão da “mensagem evangélica no seu significado imutável” (EG nº 41). Pouco a pouco, o sentido de renovação ganha o formato pretendido desde aquele fato histórico, pois são muitas as visões, por vezes concorrentes, a respeito dessa questão.

A percepção efetiva da transformação missionária pretendida entre nós leva em consideração a capacidade sempre vigilante de “estudar os sinais dos tempos”, vista como uma responsabilidade grave pelo Papa Francisco, pois há o risco do desencadeamento de processos desumanizantes, por vezes, irreversíveis, caso aqueles sejam mal interpretados ou estejam na contramão no projeto divino. Daí, a necessidade de distinção do que seja o fruto do Reino e daquilo que atenta contra o plano de Deus. Para tanto, lança mão indiretamente de outra significativa característica da espiritualidade inaciana que é o reconhecimento e a interpretação das moções do espírito bom e do espírito mau, mas sobretudo a escolha daquelas procedentes do espírito bom, rejeitando as do espírito mau (EG nº 51). Nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, “há muitos textos correspondentes e elucidadores a respeito da distinção entre os espíritos”. No texto básico, sob o título “Regras de discernimento dos espíritos” consta o sentido do uso da palavra moções, importante para o entendimento de sua articulação no âmbito pessoal e social; já no texto sob o título geral “Exames” e mais especificamente “Exame geral de consciência...” nota-se o significado da palavra espírito (RIBEIRO, 2018, p. 218). Guardadas as devidas especificidades do assunto, Papa Francisco recorda as análises oferecidas por outros documentos do Magistério universal e as propostas pelos episcopados regionais e nacionais; porém, no documento a que se refere o presente artigo, Evangelii Gaudium, trata somente de alguns aspectos da realidade para justamente pôr às claras aquilo que ocasionalmente detém ou enfraquece os dinamismos de renovação missionária da Igreja (EG nº 51).

Ater-me-ei a dois pontos considerados pertinentes à discussão posta, sem a pretensão de esgotamento de outras possibilidades viáveis. O primeiro diz respeito à inculturação da fé, haja vista a tentativa de ignorar a expressiva importância da cultura marcada pela fé cujos recursos são maiores do que os ataques do secularismo atual (EG nº 68). Trata-se de uma “necessidade imperiosa de evangelizar as culturas para inculturar o Evangelho”. Papa Francisco dá a nítida orientação para que se prossiga a missão da ecclesia, o que suscita no mínimo coragem para seguir em frente sob tão indiscutível desafio especialmente na sociedade contemporânea. Atenta para que se fortaleça, com o acompanhamento e cuidado, a tradição católica onde esta já existe, e onde ainda não é encontrada que se vislumbre novo processo de evangelização da cultura, mesmo que suponha projeto a longo prazo. No caso de fragilidade na vivência da fé católica, sobretudo na cultura popular, por questões de alcoolismo, machismo, violência doméstica, escassa participação na Eucaristia, crenças fatalistas ou supersticiosas que põem as pessoas junto a outras práticas como a bruxaria etc., Papa Francisco recomenda que se valorize a piedade popular, que é distinta da devoção popular (EG nº 69, 70). Esta caracteriza-se mais pelas formas exteriores de expressão da fé cristã católica, enquanto a piedade popular observa os aspectos da experiência junto aos seus elementos constitutivos e sobretudo à pessoa de Jesus Cristo e personagens ligados a tal universo. O campo da espiritualidade popular, devido às inconsistências fideístas, é às vezes alvo de ações mal intencionadas exercidas por quem pretende obter benefícios econômicos ou algum poder sobre outras pessoas, desvirtuando a autêntica “piedade popular”, conforme realisticamente advertido pelo Papa Francisco.

O segundo ponto destacado é o que se refere à espiritualidade missionária, haja vista a crescente onda individualista presente em boa parte de agentes pastorais e mesmo em pessoas consagradas. Lamentavelmente, a preocupação pelos espaços de autonomia e relaxamento estão colocando os deveres em segundo plano, como se fossem apêndices da cotidianidade da caminhada, cujo alvo é a realização do projeto divino. A espiritualidade, que antes de outra coisa faz parte da própria identidade e cristã, às vezes é exercida como momento de tranquilidade sem nenhuma alusão ao outro, à responsabilidade de estar no mundo ou à evangelização missionária. O individualismo exacerbado, a crise de identidade e o declínio do fervor são os três males descritos pelo Papa Francisco que se dão como alimento entre si (EG nº 78). Não obstante, a cultura midiática e alguns ambientes intelectuais dão baixa ou nenhuma credibilidade à mensagem da Igreja o que gera complexo de inferioridade na comunidade de fiéis levando-os à tibieza de espírito e consequente enfraquecimento do testemunho cristão, pois as suas convicções evangélicas são relativizadas diante do que a maioria está buscando para si, geralmente na contramão dos valores do reino oferecido a nós. A evangelização missionária fica prejudicada pelo pouco esforço em favor das atividades que lhe são próprias e tempo destinado ao respectivo trabalho (EG nº 79). Em se tratando de relativismo, Papa Francisco ainda alerta para outro que é mais grave do que o relativismo doutrinal, pois está ligado às opções de vida da pessoa. Nesse caso, as seguranças são basicamente as econômicas ou os espaços de poder e de glória humana, usando quaisquer meios para obtê-los (EG nº 80).

Os “sinais dos tempos” estão atrelados ao contexto historicamente experienciado e às suas particularidades geográficas haja vista as diferenças culturais e fideístas entre territórios. A “Igreja em saída” certamente reunirá maiores condições de conhecê-los e identificá-los para ser em si mesma canal da presença divina e humana entre nós, sem prejuízo à atividade missionária. Para tanto, é necessário ter discernimento para a leitura fidedigna da mensagem veiculada pelo Evangelho de Jesus Cristo, que jamais se cansa de vir ao nosso encontro, quanto mais ao de quem o busca de coração contrito e humilde. Diferentemente da práxis dos teóricos da suspeita ou sociedade em geral, o ideal cristão sempre faz o convite para a superação da desconfiança permanente, do medo de alguma invasão da privacidade, de atitudes defensivas, tudo isso comumente praticado (EG nº 88). O objetivo é a liberdade na abertura de coração, por vezes, escravizado pelo fechamento em si mesmo e o corrosivo incentivo cultural, econômico e midiático ao egoísmo.

Conclusão

A configuração pessoal, comunitária ou social ao projeto de transformação missionária da Igreja se dá de forma gradual e mediante a colaboração dos agentes pastorais envolvidos nos respectivos trabalhos e sob o humilde reconhecimento de que a iniciativa é sempre de Deus, por sua misericórdia para conosco, conforme assinalado pelo Papa Francisco na mensagem do dia mundial das missões do corrente ano: “Tudo em Cristo lembra-nos que o mundo em que vivemos e a sua necessidade de redenção não lhe são estranhos e também nos chama a sentirmo-nos parte ativa desta missão.” A prova vemo-la, por exemplo, em Mt 22,9: “Ide às saídas dos caminhos e convidai todos quantos encontrardes.” Isso significa que o amor repleto de compaixão do Senhor é extensivo a todas as pessoas, portanto, ninguém está de fora. Uma vez contagiado pelo encontro, o indivíduo é surpreendido pela vontade de comunicá-lo aos demais, porque se trata da resposta de gratidão por tão significativa presença em nossa caminhada.

O olhar misericordioso do Senhor desconhece limite, exceto aquele imposto pelo orgulho humano cujas consequências vão do afastamento voluntário de nossa parte ao abatimento ressentido pelo sofrimento que se passa conosco. De fato, é o círculo vicioso gerado pela insatisfação consigo próprio e as respectivas atividades, marcada pela ausência do sentimento de identificação com a missão evangelizadora, o que prejudica a entrega sob a convicção na fé cristã. A atividade missionária torna-se pesada porque realizada simplesmente pelo protocolo, até a ruptura; e o trabalho inconcluso passa novamente pela mesma carência observada no início do percurso. Ainda que seja constante, a missão evangelizadora tem o passo a passo para o seu desenvolvimento construtivo. Nesse sentido, o que lhe diz respeito precisa da atenção contínua, pois o processo já está instalado; uma vez interrompido, outro poderá ou não ser aberto para dar-lhe continuidade, ainda que sob nova orientação, porém, sempre focada no objetivo da alegria do encontro com a pessoa de Jesus Cristo.

É necessário lembrarmo-nos também de que a pessoa humana, seja no laicato ou seguimento religioso consagrado, embora ciosa da intervenção divina, às vezes, foge da atividade evangelizadora pelo receio de que lhe seja “roubado” o tempo livre. Por isso, a espiritualidade missionária tem papel crucial no combate à acédia egoísta, como se a busca por espaço de autonomia fizesse parte do centro de sua atividade. Quando há advertência sobre essa prática já é também o sinal da debilidade do compromisso assumido. Todavia, a evangelização está ao alcance de todos, desde aquele momento em que alguém precisa da sabedoria da palavra, por consequência do anúncio, para seguir em frente. A solidão da pessoa humana diz muito ao missionário, pois o vazio está presente de alguma forma naquele ser; às vezes, é a solidão da Epifania do Senhor, cuja eficácia aguarda a nossa feliz participação.

Referências

ESCRITOS de Santo Inácio. Exercícios Espirituais. São Paulo: Edições Loyola, 2000. 

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium. Exortação Apostólica do Santo Padre sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. Vaticano, nov. 2013.

FRANCISCO, Papa. Mensagem para o dia mundial das missões de 2021. Roma, 6 de janeiro de 2021.

RIBEIRO, Célia Maria. O Espírito do Pastor. A Espiritualidade Inaciana no Ministério do Papa Francisco. Tese de Doutorado em Ciências da Religião, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2018.

Consultas em sites da Internet

G1. Juíza suspende lei do aborto em província da Argentina. Disponível em <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/01/29/juiza-suspende-lei-do-aborto-em-provincia-da-argentina.ghtml> Acesso realizado em 30/01/2021. 

UNIVERSA. Juíza suspende lei do aborto em província da Argentina. Disponível em <https://www.uol.com.br/universa/noticias/afp/2021/01/29/juiza-suspende-lei-do-aborto-em-provincia-da-argentina.htm> Acesso realizado em 30/01/2021.

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Notas

[1] Is 9,2; 12,6; 40,9; 49,13; Zc 9,9; Sf 3,17; são os destacados (EG nº 4).

[2] Lc 1,28; 1,41; 1,47; 10,21; Jo 3,29; 15,11; 16,20.22; 20,20; apenas alguns exemplos (EG nº 5).

[3] At 2,46; 8,8.39; 13,52; 16,34; na primeira comunidade (EG nº 5).