Paulo Sérgio Lopes Gonçalves
Doutor em Teologia pela PUG (Roma, Itália), Pós-doutor em Filosofia pela EU (Évora, Portugal) e Pós-doutor em Teologia pela FAJE (Belo Horizonte). É docente-pesquisador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião e das graduações em Filosofia e em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (SP).
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RESUMO:
Objetiva-se neste artigo analisar a teologia desenvolvida no Concílio Vaticano II, denominada theologia mundi, e seus desdobramentos na produção teológica latino-americana e caribenha. Justifica-se esse objetivo ser a teologia conciliar um complexo teórico de recepção de um processo epistemológico de renovação teológica, de desenvolvimento da relação entre Deus e o ser humano, situado no mundo contemporâneo, e de impulso à produção teológica de diversas perspectivas. Essa theologia incidiu na América Latina e no Caribe mediante um processo criativo, tanto do magistério eclesial quanto de teólogos, em que a dialética conciliar entre mistério e história traduziu-se como articulação entre fé cristã e o locus historicus dos pobres. Para atingir esse objetivo, partir-se-á do contexto de pluralismo filosófico e renovação teológica recepcionado pelo Concílio Vaticano II. Em seguida, analisar-se-á a teologia conciliar como theologia mundi, em que Deus se relaciona com os seres humanos na contemporaneidade histórica do mundo, para então explicitar que o continente latino-americano recepcionou essa theologia articulando fé cristã e locus historicus dos pobres, tanto no magistério eclesial quanto na perspectiva libertadora de fazer teologia. Emerge então o conceito teológico de Deus libertador e da vida, de ser humano compassivo e solidário, e de Igreja dos pobres.
PALAVRAS-CHAVE: Concílio Vaticano II, theologia mundi, teologia da libertação, pobres.
ABSTRACT:
The objective of this article is to analyze the theology developed at the Second Vatican Council, called theologia mundi, and its consequences in Latin American and Caribbean theological production. This objective is justified to reconcile theology of a theoretical complex of reception of an epistemological process of theological renewal, of development of the relationship between God and the human being, situated in the contemporary world and of impulse to the theological production of different perspectives. This theology focused on Latin America and the Caribbean through a creative process, both of the ecclesial magisterium and of theologians, in which the dialectic snare so reconciled mystery and history was translated as an articulation between the Christian faith and the locus historicus of the poor. To achieve this goal, It will then be analyzed from the context of philosophical pluralism and theological renewal received by the Second Vatican Council. Then emerges the theological concept of god liberating and of life, of a compassionate and supportive human being, and of the Church of the Poor.
KEYWORDS: Second Vatican Council, Theologia mundi, Liberation Theology, poor.
Objetiva-se neste artigo analisar a teologia desenvolvida no Concílio Vaticano II e os seus desdobramentos na produção teológica latino-americana e caribenha. Esse objetivo é justificável por ser o referido Concílio um evento que epistemologicamente recepcionou a renovação teológica do século XX, fundada nas viradas antropológica e hermenêutica com incidência histórico-social. Essas viradas propiciaram a emergência de um pluralismo teológico denotativo de que havia necessidade de tornar a teologia uma scientia Dei efetivamente atual em relação à contemporaneidade histórica. Esse pluralismo esteve presente de forma a buscar superar tanto o fideísmo quanto o racionalismo e realizar articulações necessárias e epistemologicamente precisas, especialmente entre mistério e história, transcendência e imanência. Resultou importante que a teologia fosse formulada desde o seu olhar histórico e filosófico para o ser humano, a fim de que o assunto da teologia, que é Deus por excelência (TABORDA, 2009, p. 900), tivesse desenvolvimento plausível em termos epistemológicos. Por isso, a filosofia tornou-se mediação fundamental, seja no âmbito de uma metafísica do ser para pensar o transcendental como intrínseco à própria constituição existencial do ser humano, seja no âmbito de uma filosofia hermenêutica que propicia compreender e interpretar a realidade humana em seus mundos de textos, símbolos e ações. Da compreensão acerca da mediação filosófica, emerge a possibilidade, consagrada no Concílio Vaticano II, da teologia servir-se das mediações das outras ciências, visando compreender o que é Deus, através de sua relação com o homem situado em seu mundo e na contemporaneidade de sua história.
Em seu processo de renovação, a teologia – com todo o seu pluralismo – foi recepcionada no Concílio e tornou-se scientia capaz de teorizar sobre Deus em sua relação com o mundo, evidenciando que o mistério de Deus só pode ser revelado na história, concebida como espaço da revelação de Deus que se dá ao homem. Emergiu então, um theologia mundi¸ que reflete a presença ativa de Deus no mundo em sua contemporaneidade histórica, provocando o ser humano à comunhão com Ele, a ser realizada mediante as mais diversas formas históricas de justiça, de fraternidade e de paz.
Dessa theologia mundi conciliar emergiu um processo de “recepção criativa” na América Latina e Caribe, presente tanto em formas eclesiais de a Igreja apresentar-se no continente, estampadas em documentos eclesiais, que possuem caráter teológico, quanto no modo de produção teológica, efetivado na perspectiva libertadora. Essa recepção tornou-se uma forma de consolidar a theologia mundi do Concílio Vaticano II, ainda que tensões tenham ocorrido, principalmente na configuração da perspectiva libertadora da teologia e da Igreja.
Para atingir o objetivo descrito acima, tomar-se-á a theologia mundi do Concílio Vaticano II, em sua recepção à renovação teológica anterior ao próprio evento, ao desenvolvimento em seus documentos e sua incidência na teologia latino-americana e caribenha efetivada em perspectiva libertadora.
A teologia do Concílio Vaticano II emergiu a partir da recepção das viradas epistemológicas supracitadas, denotativas de que a modernidade, marcada pelo antropocentrismo, pelo cientificismo, pela substituição da religião pela moral e pela imposição da razão diante da revelação, tornou-se o maior desafio para que a teologia se afirmasse como scientia fidei ou propriamente sicientia Dei. Com essas marcas a modernidade possibilitou a emergência de uma filosofia sistêmica e dialética, que propiciou o surgimento de uma teologia filosófica, em que realçou o predomínio do Espírito Absoluto, identificado na religião cristã e no Estado moderno. No entanto, duas outras formas de filosofia se contrapuseram a esse modus operandi filosófico-teológico: a filosofia da existência e a filosofia antropológica. A primeira analisou a filosofia sistêmica, especialmente no âmbito de seu ensinamento moral, e apresentou a fé como instância de transcendência da moralidade e da religião institucionalizada historicamente, para priorizar o ser humano em sua existência e individuação singular na sua relação com Deus. Exaltou-se então um cristianismo que leva a cabo a fé, que possui a angústia como sua âncora, objetivando dar sentido à existência humana, ultrapassando formas sistêmicas que impedia a realização humana em sua existência (LÖWITH, 2013, p. 134-140). A segunda forma de filosofia de oposição à mencionada filosofia sistêmica possui centralidade antropológica, em que a questão de Deus, identificada com a religião, é concebida como projeção do desejo humano, cuja concretude se efetiva a partir da própria essência do homem, que é a unidade do homem com o homem, propiciando a constituição do Estado, que se tornou autônomo em relação a Deus e que é concebido como o homem divinizado, projetado por si e em si mesmo (LÖWITH, 2013, p. 84-99).
Nesse clima filosófico, em que a questão de Deus assumiu filosoficamente formas diversas, é que surge a sentença nietzschiana da “morte de Deus” (NIETZSCHE, 1993, p. 30), cujo sentido não é necessariamente o do ateísmo substancialista acerca da existência de Deus e tampouco o decreto do fim da religião. Trata-se de um “ateísmo hermenêutico” (VON HERMANN, 2004, p. 25), em que o “Deus que morreu” denota a crise da metafísica, principalmente concebida em seu objetivismo teórico, à medida que o próprio homem é autor dessa morte. Assim sendo, os conceitos sobre o humanum, o universo e o próprio Deus ficaram sem o fundamento oriundo da metafísica. Nesse sentido, essa sentença afirma que a notícia da “morte de Deus” ainda não é sabida pelos coveiros, evidenciando com essa metáfora que a metafísica é reconhecida como instância filosófica da tradição ocidental e que há de instaurar uma “filosofia da manhã”, que é interpretada como inauguração de uma filosofia pós-moderna (VATTIMO, 2002, p. 3-16).
Na esteira dessa sentença e apropriando-se da concepção kierkegaardiana de existência e da filosofia da história diltheyana, Martin Heidegger intuiu ter a metafísica se esquecido do ser, e, por conseguinte, o filósofo preocupou-se em recuperar a história do ser. Para isso, serviu-se da fenomenologia que havia apreendido de Edmund Husserl para elaborar uma ontologia fenomenológica de perspectiva hermenêutica, desenvolvida originariamente como faktische Lebenserfahrung, passando para o âmbito da analítica existencial e culminando na Ereignis, com a qual se ocupa propriamente com a história do ser e seu encontro com o homem na linguagem. Essa ontologia hermenêutica propiciou a formulação da concepção de “deus derradeiro” para indicar o novo início do homem, não mais marcado pela metafísica, também denominada de ontoteologia, mas por um pensar meditativo de cunho histórico e incisivo na vida humana (CAPELLE, 2012, p. 17-52).
Da esteira heideggeriana emergiu a ontologia hermenêutica gadameriana (GADAMER, 2003), constituída das dimensões estética, histórica e linguística. Desse modo, a hermenêutica ultrapassa a análise gramatical de textos clássicos, jurídicos e bíblicos e incide também na obra estética, constituída de um mundo próprio a ser colocado em diálogo com o mundo do intérprete, trazendo à tona a historicidade dos mundos envolvidos, cujo horizontes podem ser fundidos. A “fusão de horizontes” não é a simples adição de horizontes, concebidos como âmbitos de onde os sujeitos dos mundos envolvidos na hermenêutica possuem a sua respectiva visão de mundo, mas uma articulação entre ambos, denotativa de que a fusão é resultado do diálogo efetuado no círculo hermenêutico, em que compreensão e interpretação dos sujeitos se movimentaram, para que a verdade pudesse ser expressa na linguagem que a habita.
O filósofo francês Paul Ricoeur também desenvolveu um programa de filosofia hermenêutica (RICOEUR, 1969) em que, partindo da herança ontológica heideggeriana, apresentou uma perspectiva epistemológica da hermenêutica, definindo-a como a filosofia que possibilita a efetividade do processo de compreensão e intepretação, pelo qual se encontra o sentido das coisas e dos seres humanos. Essa filosofia hermenêutica é tripartida em texto, símbolo e ação. Desse modo, o autor traz à tona o “mundo do texto” a ser compreendido e interpretado, o símbolo “que dá o que pensar” e a ação que é a ética decorrente da operação hermenêutica, que somente se efetiva através de um processo comunicativo de diálogo entre os sujeitos envolvidos.
A ontologia hermenêutica incidiu diretamente no modo de produção teológica contemporânea, de modo que desenvolveu um intenso processo de renovação epistemológica na teologia protestante. Nesse sentido, destaca-se a teologia hermenêutica da revelação elaborada por Ernst Fuchs, cuja categoria principal é a de locus textual e de locus do intérprete. Na relação entre os sujeitos de cada locus, situa-se a pergunta pelo sentido da mensagem textual, que para o autor possui referência ao sentido daquilo que o texto há de transmitir a seus interlocutores. Resulta a relevância da linguagem que se torna a casa da fé para exprimir a sua substância no processo kerygmático de transmissão dessa mesma fé (FUCHS, 1968). Por sua vez, Gerhard Ebeling formulou uma teologia hermenêutica da doutrina da palavra de Deus, cujo processo de elaboração epistemológica remete a uma desconstrução de compreensões metafísicas, para instaurar um processo hermenêutico em que, considerando a centralidade do kerygma, faz a passagem do evento da revelação para a palavra expressa na linguagem. Por isso, a tarefa da hermenêutica na teologia é tornar a linguagem teológica autorizada para exprimir a fé revelada, para fazer com que essa mesma fé seja responsável em tornar crível a palavra de Deus para a contemporaneidade histórica (EBELING, 1969). Outra forma de fazer teologia que merece destaque é a teologia kerygmática de Rudolf Bultmann, que, amparado na ontologia hermenêutica de Martin Heidegger, efetivou um programa de desmitologização, em que buscou superar a proposta de historiografia positivada de Jesus, oriunda da teologia liberal do século XIX, concentrando-se na pertinência e na relevância do kerygma para a elaboração de sua teologia. Desse modo, o referido programa ocorre à medida que o autor efetua o seu círculo hermenêutico de compreensão, pelo qual exprime a pré-estrutura do ser-aí – Dasein tomado de Heidegger –, cuja pré-compreensão existencial determina a compreensão da fé revelada, que é anunciada na própria teologia. Configura-se então uma teologia kerygmática que se preocupa em apresentar como acontece o anúncio da fé revelada e como se efetiva eficazmente na existência dos seres humanos (BULTMANN, 1977, p. 1046-1061).
A filosofia hermenêutica incidiu também na teologia católica, especialmente no movimento francês Nouvelle Théologie, que se configurou em duas escolas teológicas, a de Saulchoir e a de Lyon, tendo como representantes fundamentais respectivamente Marie Dominique Chenu e Yves Congar, e Jean Daniélou e Henri De Lubac. Em ambas as escolas, a teologia foi concebida como scientia fidei prática e a hermenêutica foi apropriada para tornar a teologia fiel à revelação de Deus e sua atualidade histórica, já que se concebeu a história como espaço da revelação de Deus em sua relação com os seres humanos. Por isso, esses autores tiveram atenção com o mundo do texto da revelação de Deus e efetivaram um movimento de ressourcemment, retornando às fontes cristãs, tanto a Escritura quanto a Tradição – traduzindo para a língua francesa os padres da Igreja, com a coleção Source Chrétienne –, para tornar a teologia ainda mais vinculada à arché da fé. Fundamentados na arcaicidade da fé, em que trabalhos sobre o cristianismo primitivo e os padres da Igreja foram publicados com frequência, esses autores desenvolveram temas teológicos em consonância com a contemporaneidade histórica, especialmente o trabalho humano, o ecumenismo, o diálogo inter-religioso, o ateísmo, o humanismo e a relação da Igreja com o mundo contemporâneo (GIBELLINI, 1993, p. 160-270).
A virada antropológica possui incidência na teologia católica mediante o neotomismo emergente através da carta encíclica Aeterni Patris escrita pelo Papa Leão XIII em 1879, em que reconhecia o caráter contemporâneo de Tomás de Aquino em sua respectiva época histórica, tendo trazido à teologia o instrumental aristotélico por intermédio de seu diálogo com filósofos árabes, especialmente Averróis e Avicena. Desse modo, Tomás de Aquino fez da teologia uma scientia fidei em forma de edifício fundamentado, sólido e contundente para conceber a Deus, ao homem e ao mundo. Por isso, Leão XIII recomendou que a teologia fosse ensinada mediante a filosofia e a teologia desenvolvida pelo Aquinate para dar consistência formativa aos cristãos católicos. No pensamento tomasiano, tem-se de modo fundamentado a articulação entre natural e sobrenatural, graça e natureza, transcendência e imanência, evidenciando filosófica e teologicamente que o ser humano e o mundo possuem história e são escatológicos, historicidade e são transcendentes; são imbuídos de uma natureza perfeita porque são principiados pelo sobrenatural oriundo de Deus (LIMA VAZ, 2002, p. 239-268).
O neotomismo desenvolveu-se tanto na constituição de uma filosofia cristã quanto na elaboração de formas teológicas que realçaram a articulação entre imanência e transcendência, história e escatologia, cujos pensadores de destaque são Pierre Rousselot, Joseph marechal e Jacques Maritain. O primeiro era jesuíta e viveu até os 37 anos de idade, tendo sido morto durante a Primeira Guerra Mundial e deixado um legado importante com sua obra A Teoria da Inteligência segundo Tomás de Aquino (ROUSSELOT, 1999), além de ter desenvolvido o nível nocional da revelação mediante a análise da intelecção em si, a especulação humana na forma de conceito, ciência, símbolos, arte e história. Desenvolveu ainda a relação entre inteligência e ação humana, e o exercício do intellectus como filosofia religiosa e sua incidência na sociedade. O segundo pensador era também jesuíta que, unindo Tomás de Aquino e Kant, intuiu uma teoria do conhecimento que articula sujeito e objeto, inteligência e mística religiosa. O dinamismo intelectual denota a inquietude do homem ao procurar o ser, vindo a ser efetuado no horizonte desse mesmo ser. O ato intelectivo é, então, sintético e construtivo, marcado por tensões direcionadas à afirmação do ser, presentes na própria relação do sujeito com o objeto. Esse dinamismo intelectual se mostra como condição de possibilidade de conhecimento objetivo e da experiência mística, efetivando um movimento existencial do conhecimento, em que o ser é acolhido em sua forma mais íntima em relação ao homem. Por isso, o ser absoluto é concebido como princípio da abertura cognoscitiva, o que implica afirmar que o fundamento da mística é o sentimento direto da presença de Deus e seu dinamismo é o próprio princípio noético do dinamismo intelectual radicado na afirmação ontológica. Evidencia-se então o vínculo entre mística e metafísica, que propicia surgirem os vínculos entre o sentir e o conhecer, a graça e a natureza. Eis aqui um dinamismo tensional em que se realça a íntima conexão entre o transcendental e o Deus transcendental, tornando-se fundamental compreender o homem para compreender a Deus (DOTOLO, 1996). O terceiro pensador era agnóstico e se converteu ao cristianismo católico, tendo assumido o tomismo como filosofia perene, sólida, consistente, robusta e imbuída de grande vivacidade sinonímia de uma filosofia do ser, de analogia do ser e ontosofia. Por isso, assumiu a unidade orgânica, com preponderância da metafísica, entre natureza e graça, razão e fé, virtudes naturais e virtudes sobrenaturais, ética e metafísica, arte e conhecimento. Defrontou-se com a cultura moderna caracterizando-a como antropocêntrica e isenta de transcendência, por separar filosofia e teologia da ciência, identificar o absoluto com a história e com a ciência, e exaltar o efêmero, o praxismo o eficientismo. Nessa cultura, a teleologia antropológica é o homem em si mesmo. Para superar o humanismo e o antropocentrismo, Jacques Maritain conciliou humanismo e cristianismo, propondo um “humanismo integral”, cuja característica principal é buscar encontrar no cristianismo a crítica à absolutização das realidades terrestres em suas diversas expressões a fim de que essas mesmas realidades sejam vistas à luz da totalidade que constitui o ser humano. Esse humanismo propicia buscar o verdadeiro humanum na história, cuja possibilidade de efetivação se situa na inspiração cristã de práxis social e política, visando à construção de uma civilização mundial que esteja amparada em valores morais cristãos, plausíveis à realização da justiça, da fraternidade, do respeito, do amor, da verdade e da paz (MARITAIN, 1936).
A virada antropológica trazida pela filosofia neotomista possibilitou que Karl Rahner, que se aproximou de Joseph Maréchal e foi aluno de Martin Heidegger, se concentrasse no significado filosófico da presença do homem no mundo, remetendo-o à sua relação com Deus. Por isso, Rahner apropriou-se da categoria “transcendental”, compreendo-a como a priori infinito presente no espírito finito – ser humano – enquanto condição de possibilidade estrutural. O transcendental é, então, possibilidade intrínseca à própria estrutura do homem, colocando-o em posição de ouvir a palavra transcendental, uma vez que ele já se constitui fundamentalmente do transcendental. Utilizando-se de uma metafísica do ser ou propriamente uma filosofia transcendental que lhe possibilita conhecer o homem e o mundo na sua relação com Deus, Rahner articulou antropologia e teologia em perspectiva transcendental. O método transcendental rahneriano permite compreender a relação entre Deus e o homem a partir da concepção de Deus como mysterium absconditus et revelatus. Trata-se de um mistério de autocomunicação de Deus ao homem, que por ser constituído do transcendental é concebido como “ouvinte da palavra”, capaz de responder a Deus com liberdade e responsabilidade, em sua condição de pessoa e sujeito da revelação. Por ser livre, o ser humano pode responder negativamente à interpelação divina, e por amar o homem, Deus pode propiciar que o homem, sendo livre e responsável, reverta o não em sim, e faça a experiência de comunhão com Deus (RAHNER, 1973, p. 99-159).
A partir de seu método transcendental, em que o mistério de Deus se articula com a existência humana, Rahner construiu um edifício de diversos tratados teológicos – cristologia, eclesiologia, escatologia, protologia, pastoral, trindade e teologia da revelação, teologia da graça –, em que há a articulação entre antropologia e teologia, com fundamentação de uma filosofia transcendental. Desse modo, a filosofia assume o papel de compreender o ser humano e o mundo em sua integralidade, constituindo-se em um momento da produção teológica, para então haver possibilidade de inteligere a Deus e efetivar a teologia como scientia Dei.
A virada antropológica também incidiu na teologia da história dos pensadores do movimento Nouvelle Théologie, tendo se ocupado com o ecumenismo, em sua condição de movimento de unidade dos cristãos, e com o diálogo do cristianismo com outras religiões, ainda que em perspectiva de “teologia do acabamento”. Superou-se uma visão unívoca de que não há salvação fora do cristianismo católico e assumiu-se um caminho de compreender a verdade de Deus em outras expressões religiosas, denotando que o ser humano é complexo e manifesta de algum modo, em suas formas culturais diversas, a beleza de Deus. Ao aprofundar antropologicamente a relação do ser humano com Deus, Henri De Lubac protagonizou uma reflexão filosófico-teológica sobre a questão de Deus diante do humanismo ateu. Não obstante que sua detalhada análise tenha evidenciado a crítica marxista da religião, o ateísmo hermenêutico de Nietzsche, a ultrapassagem teísta de Kierkegaard e a ciência como nova religião na modernidade concebida por Comte, é em Dostoiévski que o teólogo francês encontra o “Deus do subsolo”, presente nas entranhas da existência humana. Deus é posto no bojo dos dramas da existência humana, denotativos de angústias e tristezas, dádivas e esperanças (DE LUBAC, 2016).
Na teologia protestante, a virada antropológica, conjugada à virada hermenêutica, foi incisiva na teologia desenvolvida por Wolfahrt Pannenberg, especialmente no âmbito de uma epistemologia teológica, em que uma abordagem sistemática sobre Deus torna-se possível somente quando a antropologia é concebida como espaço tanto para compreender o homem e o mundo quanto a revelação do próprio Deus. Por isso, esse autor serviu-se da filosofia para afirmar Deus em sua substância e pessoalidade, e para evidenciar a história humana como espaço ou palco da presença de Deus junto aos seres humanos. Desse modo, a teologia não pode ser produzida sem a história e a historicidade dos acontecimentos humanos, compreendidas mediante uma hermenêutica existencial conjugada a uma antropologia fundamental, em que o processo comunicativo da revelação se refere tanto a Deus quanto ao homem (PANNENBERG, 1999).
Esse movimento teológico, que se ampara nas viradas epistemológicas tanto da hermenêutica quanto da antropologia, tem acentuada presença na teologia produzida no Concílio Vaticano II, que será aqui intitulada uma theologia mundi, em que a scientia fidei, ou scientia Dei, se põe a pensar Deus na sua relação com o homem em sua contemporaneidade histórica.
A teologia do Concílio Vaticano II, ainda que com que diversos debates e incursões, perpassa todos as constituições, os decretos e as declarações, consolidando-se como uma theologia mundi. Isso significa que a epistemologia teológica subjacente no referido Concílio, por mais que mostrasse momentos de método dedutivo, tenha construído um método indutivo, em que a teologia haveria de olhar a realidade do homem e do mundo contemporâneo para pensar e falar de Deus. A intuição por esse método já se apresentava no próprio discurso de João XXIII, realizado no dia 11/09/1962, um mês antes da abertura do Concílio, em que apontava a necessidade de a Igreja olhar o mundo, constituir-se como Igreja de todos e, especialmente nos países subdesenvolvidos, ser a “Igreja dos pobres” (JOÃO XXIII, 1962, p. 681). Essa alocução apontava para uma epistemologia teológica que propiciaria à teologia que o seu discurso sobre Deus tivesse vínculo com a história humana, concebida a partir do locus dos pobres e em chave eclesiológica.
A compreensão da história como locus para fazer teologia já se apresentava em Melchior De Cano quando suscitou os dez loci theologici, mas a situação hermenêutica da história, concebida a partir dos dramas da humanidade – o que inclui suas dores e seus sofrimentos –, é o que de concreto o Concílio apontou para trazer à tona uma theologia mundi. No entanto, essa teologia também teve momento de método dedutivo ao considerar a tradição teológica, que amparada na metafísica do ser partia da fé como arché para fazer teologia, atingindo a história do homem e do mundo. Nesse sentido, visualiza-se um método teológico de característica dialética entre mistério e história, em que a transcendência se articula com a imanência e em que a teologia se torna passível de ser produzida mediante a sua relação com a antropologia e através de uma hermenêutica que a torne uma scientia Dei efetivamente contemporânea da época histórica em que está situada.
Para a efetividade dessa dialética, a teologia conciliar recepcionou as viradas antropológica e hermenêutica acima descritas, especialmente a considerar o patrimônio da philosophia perenne, as correntes filosóficas modernas e todas aquelas que podem colocar a teologia em diálogo com os seres humanos de sua respectiva época histórica. Mediante a filosofia, “os problemas reais e verdadeiros” (Optatam Totius, n. 15) da vida humana e cósmica podem ser examinados, com a profundidade própria da análise filosófica, recepcionada no Concílio Vaticano II, ainda que considerado pluralismo filosófico, como metafísica do ser e filosofia hermenêutica ambas de incidência histórica. Desse modo, a filosofia continua a ser partner da teologia ou momento interno da operação teológica (RAHNER, 1975, p. 95-118), mas a teologia possui também a colaboração da mediação das ciências humanas. Nesse sentido, a teologia, por ser uma scientia inserida nas esferas educacionais cristãs, há de fazer parte de um processo de diálogo entre as disciplinas científicas, e de promover o diálogo, sempre mantendo-se fiel à “Sacrae Reveletionis”, com as pessoas de outras religiões, a fim de se buscar responder “aos problemas emergentes do progresso cultural” (Gravissium Educationis, n. 11).
A utilização das mediações da filosofia e das ciências humanas para fazer teologia remete à compreensão da história do ser humano e do mundo contemporâneo, consolidando tanto a virada antropológica quanto a hermenêutica para fazer teologia. Desse modo, considerando que a fé é a arché da teologia, então o processo de produção teológica remete à tomada do mistério de Deus, de onde brota a própria fé. Por mistério, tem-se a compreensão de que não se trata de algo similar a um segredo que não pode ser revelado, mas ao mysterium absconditus et revelatus, que quando se revela se apresenta inexaurível e inefável. Por isso, o mistério de Deus tratado pela teologia é o mistério trinitário, no qual se afirma a única substância divina constituída de três pessoas divinas, que se distinguem em propriedade e missão e que se relacionam pericoreticamente. Resulta então que, em Deus, há diversidade apropriada e missionária, e comunhão de pessoas divinas que são da mesma substância. Esse mistério, que no âmbito ad intra denota unidade na diversidade e diversidade na unidade, é conhecido ad extra através da revelação divina mediada pelo Filho, por vontade do Pai e por ação do Espírito. Essa revelação possui caráter histórico à medida que se reconhece “etapas da revelação” identificadas com a historia salutis, descritas no antigo testamento e que encontra o seu ápice no novo testamento, em que Jesus Cristo é a revelação completa, perfeita, plena e definitiva de Deus (Dei Verbum, n. 2). Essa revelação denominada de “revelação fundante” encontra na tradição o processo de sua transmissão, marcado pela historicidade da comunicação entre emissores e receptores da mensagem do evangelho, visando à compreensão e interpretação – que é quando se encontra o senso da revelação transmitida. Nesse sentido, o mistério que se articula com a história, efetivo espaço da revelação de Deus ao homem, tem na cultura a mediação de sua própria revelação. A verdade revelada só pode ser recepcionada hermeneuticamente, sendo sua expressão linguística aberta às novas configurações que exprimam essa verdade de melhor maneira. Por isso, a tradição se identifica como “revelação continuada” (O’COLLINS, 1985, p. 126), denotativa de que a revelação, presente na Escritura e na Tradição – também escrita e oral –, possui historicidade e se torna atual em cada época histórica.
Para tornar atual o mistério revelado na história, a teologia conciliar se apropria das viradas hermenêutica e antropológica e se realiza como teoria do mysterium Dei in mundi revelatus, ou propriamente theologia mundi, à medida que se realiza como uma scientia que se apropria das mediações da filosofia e das ciências humanas para dialogar com outras teologias cristãs, com outras tradições religiosas e ser sensível aos problemas que afetam diretamente o mundo contemporâneo. Nesse sentido, a própria concepção de revelação como encontro entre Deus e os seres humanos que ocorre na história é compreendida mediante a operação da filosofia hermenêutica que possibilita entender a historicidade da revelação na Escritura e na Tradição, a articulação entre os dois testamentos bíblicos, respeitando o respectivo contexto vital de ambos e Jesus Cristo como chave hermenêutica de compreensão da revelação escriturística e de incidência na tradição cristã, considerando a sua respectiva historicidade textual e oral (GONÇALVES, 2020e, p. 98-102). Desse modo, tanto a Escritura quanto a Tradição se imbuem de historicidade vital da communitas fidelidum e constituem-se de história construída pelos seres humanos, que são os interlocutores da revelação divina (Dei Verbum, n. 9).
Ao desenvolver a historicidade da revelação, a theologia mundi articula a transcendência e imanência à medida que visualiza o mundo contemporâneo em sua realidade histórica na qual o mistério se corporifica. Por isso, a compreensão da revelação salvífica se abre para a liberdade religiosa, considerada desde a liberdade de consciência, concebida esta como o “santuário” do ser humano (Gaudium et Spes, n. 16), honrando uma antropologia fundamental em que o homem fora concebido como “ouvinte da palavra” por ser constituído do transcendental, que o torna sujeito, pessoa, livre e responsável. A liberdade religiosa denota então a dignidade do ser humano, compreendido em seu profundo mistério revelado pelo Verbo que se fez carne, que pensou com mente humana e trabalhos com mãos humanas, fazendo-se presente na história em toda a sua realidade dramática, exceto no pecado Gaudium et Spes, n. 22). A liberdade religiosa corresponde com a liberdade do ato de fé cristã, pois “o ato de fé é um ato de vontade por sua própria natureza, uma vez que o homem, redimido por Cristo salvador e chamado em Cristo Jesus a ser filho adotivo, não pode aderir a Deus que se revela, se o Pai não o impulsiona e se o homem não presta a Deus uma adesão de fé razoável e livre” (Dignitatis Humanae, n. 10). Tem-se então o acento à liberdade, que está contida na própria salvação operada em Cristo e testemunhada pelos apóstolos e pela Igreja ao longo de sua história, para legitimar o movimento de unidade dos cristãos e de relação de respeito e diálogo do cristianismo com outras religiões.
Ao impulsionar o ecumenismo e o diálogo inter-religioso, a teologia conciliar assumiu o pluralismo religioso, reconhecido na época contemporânea pré-conciliar Houve ainda o cuidado em evidenciar os princípios teológicos regentes, especialmente o caráter universal da salvação, visando a unidade de todo o gênero humano (Unitatis redintegratio, n. 2), e a “hierarquia das verdades da doutrina católica” (Unitatis Redintegratio, n. 11), visando à apresentação de efetivos caminhos de unidade e diálogo. Desse modo, a theologia mundi impulsiona a formação ecumênica, a cooperação entre os cristãos, principalmente junto os “irmãos separados” – esse era o termo referente às pessoas das igrejas orientais – e exorta os católicos à humildade para que apreendam e desfrutem do riquíssimo patrimônio litúrgico e da tradição teológica desses irmãos (Unitatis Redintegratio, n. 15-17), efetivando um processo de diálogo que torne a teologia uma scientia que efetivamente serve à verdade revelada de Deus. A constatar o pluralismo religioso, a theologia mundi compreende que Deus como fim último está no horizonte de todos os povos, que por sua vez, buscam pelas diversas religiões “a resposta acerca dos obscuros enigmas da condição humana que, ainda hoje tal como outrora, inquietam profundamente os corações dos homens” (Nostra Aetate, n. 1). Reconhece-se também que “junto aos vários povos se nota quase uma percepção daquela força arcaica presente no curso das coisas e aos acontecimentos da vida humana” (Nostra Aetate, n. 2). Essa força – visualizada na Hinduísmo e no Budismo – é concebida também como uma forma de conhecer a suprema divindade ou Pai, cuja percepção e conhecimento compenetrado na vida humana, denota um profundo sentido religioso. Por isso, tudo que há nas religiões de verdadeiro e santo não pode ser rejeitado pela Igreja católica, que por sua vez, reconhece a herança judaica em sua constituição histórica, cultural e teológica, possui estima pelos muçulmanos que “adoram o único Deus, vivo, subsistente, misericordioso e onipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens” (Nostra Aetate, n. 3). Por isso, ao dar reconhecimento histórico e teológico a essas religiões, a Igreja católica condena, “como contrária à vontade de Cristo”, toda discriminação entre os homens e toda perseguição perpetrada por motivos de raça ou cor, de condição social ou religião” (Nostra Aetate, n. 5).
Em sua identidade eclesiológica, a theologia mundi conciliar põe o seu olhar para o homem no mundo contemporâneo:
As alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, e nada há de genuinamente humano que não encontre eco no seu coração. De fato, a sua comunidade é composta de homens, os quais, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo em sua peregrinação rumo ao reino do Pai e receberam uma mensagem e salvação para propô-la a todos. Por isso, a Igreja se sente real e intimamente solidária com o gênero humano e com a sua história (Gaudium et Spes, n. 1).
A sensibilidade da Igreja à realidade dos seres humanos na contemporaneidade histórica está agregada à sua origem no mistério da comunhão trinitária (Lumen Genitumi, n. 1-4), fazendo-se sacramento universal de salvação (Lumen Gentium, n. 1), corpo de Cristo (Lumen Gentium, n. 7) e povo de Deus (Lumen Gentium, n. 9), com índole escatológica (Lumen Gentium n. 48), que peregrina na história para servir ao Reino de Deus (Lumen Gentium, n. 5). O serviço prestado ao Reino de Deus é efetuado mediante o serviço realizado junto à humanidade, visando à promoção do respeito à identidade social e cultural de cada povo e sua respectiva unidade, e “à salvação da pessoa, compreendida em sua singularidade, integridade de corpo e alma, de coração e consciência, de inteligência e vontade” (Gaudium et Spes, n. 3).
A concepção teológica de ser humano como pessoa, “imagem e semelhança de Deus” (Gaudium et Spes, n. 12), conduz a pensá-lo como sujeito livre e responsável, simultaneamente em sua singularidade e sociabilidade, imanência e transcendência, imbuído de historicidade e, por conseguinte, capaz de promover mudanças sociais, culturais, morais, psicológicas e religiosas. Nesse processo de mudanças, o ser humano se defronta com desafios de produzir história elevando a dignidade humana e buscando tornar o planeta – que faz parte do universo – um espaço de habitação em que as criaturas vivem em harmonia (Gaudium et Spes, n. 33-39). Nesse seu percurso, a pessoa humana se defronta com as tensões históricas nos âmbitos da família, da política, da economia, da cultura, do trabalho e do próprio sentido da existência humana (Gaudium et Spes, n. 46).
Ao defrontar-se com esses desafios e essas tensões, a theologia mundi concentra-se em pensar o que são essencialmente o homem e o mundo. Ao compreender o ser humano como “imagem e semelhança de Deus”, essa theologia desenvolve a categoria “pessoa humana”, superando o dualismo separatista para trazer à tona o dualismo de integração, em que o ser humano é concebido em sua singularidade e em sua sociabilidade, constituído de corpo e alma, histórico e escatológico (Gaudium et Spes, n. 14-15). Seguindo a esteira da teologia transcendental, o ser humano como pessoa é sujeito livre, responsável e, por conseguinte, capaz de suscitar interrogações acerca de sua própria existência?
O que é o homem? Qual é o significado da dor, do mal, da morte que, apesar de todo progresso continuam a subsistir? O que valem essas conquistas de tão alto preço alcançado? Que traz o homem à sociedade o que se pode esperar dessa? O que será depois desta vida (Gaudium et Spes, n. 10)?
As respostas para essas perguntas, por mais antropológicas que sejam, encontram na “cristologia integral” a sua chave de argumentação. Por isso, o homem há de olhar para Cristo, “imagem do Deus invisível, primogênito de todas as criaturas” (Gaudium et Spes, n. 10), “é o homem perfeito, que restituiu aos filhos de Adão a semelhança com Deus” (Gaudium et Spes, n. 22), pois se encarnou e assumiu a natureza humana, de modo a trabalhar com mãos, a pensar com mente, a agir com vontade, a amar com coração humanos. Tendo assumindo profundamente a realidade humana, confrontou-se com a morte e a venceu ressuscitando dos mortos e trazendo a esperança de vida nova para todos os seres humanos.
A esperança trazida por Cristo possibilita compreender que o homem é vocacionado à comunhão com Deus tanto em seu âmbito pessoal quanto social. Por isso, a categoria “pessoa humana” salienta a dignidade humana tanto na singularidade do ser humano quanto na constituição das relações sociais, na formação das instituições sociais, e no ordenamento jurídico-social. Projeta-se edificar a liberdade de cada pessoa, realçando sua responsabilidade e participação ativa na sociedade, visando à edificação de uma sociedade, em seus níveis diversos – local, nacional, continental e mundial – fundada na política que prima pelo bem comum, nas relações internacionais de cooperação entre as nações e de prevalecimento da justiça social, econômica e jurídica (Gaudium et Spes, n. 26-31). A realização da pessoa humana em sua dignidade singular e social é a própria afirmação da identidade da antropologia cristã, em que o ser humano é concebível em sua índole comunitária, já aperfeiçoada na pelo Verbo encarnado, cuja obra de redenção e salvação realça a fraternidade universal de todos os povos (Gaudium et Spes, n. 32).
Conforme o exposto, o Concílio Vaticano II apropriou-se do processo de renovação teológica do século XX e de modo criativo, articulou mistério e história para pensar a revelação de Deus na história dos seres humanos, e o modo como a Igreja se comporta como Ecclesia Dei, em sua relação com a humanidade e com o mundo criado por Deus. Por isso, emergiu uma theologia mundi que reflete a relação de Deus com o ser humano e o mundo contemporâneo, utilizando-se das mediações da filosofia e das ciências, efetuando um processo que possibilitava situar essa relação nos diversos contextos da humanidade. Resultou então a emergência de formas contextuais de pensar a revelação e a fé, seja no âmbito do magistério eclesial, seja no âmbito da ciência teológica. É nesse clima que se torna possível meditar os desdobramentos epistemológicos da theologia mundi conciliar na América Latina e Caribe.
Os bispos latino-americanos que participaram do Concílio Vaticano II decidiram, ainda em setembro de 1965, pela realização da segunda conferência geral do episcopado do continente visando à adaptação do Concílio na América Latina e Caribe, vindo a se realizar em Medellín no ano de 1968. A companha essa decisão, o fato de que o Papa Paulo VI assumiu o compromisso de levar a cabo a reflexão sobre a Igreja dos Pobres e, por conseguinte, escreveu a carta encíclica Populorum Progressio (1967), na qual apresentou a sua proposta de “desenvolvimento integral” dos seres humanos. O evento de Medellín possibilitou criar um clima de movimento de exercício da colegialidade episcopal, que desembocou na realização nas conferências gerais do episcopado latino-americano, realizadas em Puebla, Santo Domingo e Aparecida, nos anos de 1979, 1992 e 2007 respectivamente. Com essas conferências, o crescimento do conselho e episcopal latino-americano – CELAM – e das conferências episcopais nacionais, garantiu-se o espírito de colegialidade, um dos elementos e pertinentes e relevantes à efetividade da eclesiologia de comunhão. Assumiu-se a dialética do mistério e da história oriunda da teologia conciliar, com centralidade pastoral, e com a articulação entre fé e locus historicus, concebido desde o locus dos pobres. Desse modo, nas quatro conferências gerais a opção pelos pobres tem presença incisiva, ainda que de formas diferenciadas, em termos teológicos à media que se articula com a fé cristã e influi nos tratados de Deus, de antropologia e de eclesiologia.
A conferência de Medellín assumiu a articulação entre mistério e história, mediante o método indutivo, pelo qual realizou uma leitura filosófica, histórica, antropológica e sociológica do continente latino-americano, tendo interpretado essa realidade à luz da fé e buscado encontrar atitudes pastorais, assumindo os pobres em sua centralidade teórico-prática. Desse modo, tem-se uma Igreja dos pobres, já com as comunidades eclesiais de base como seu “tecido social”, capaz de denunciar a “violência institucionalizada” (Medellín, n. II/15), a injustiça social, a corrupção política e suscitar formas de libertação da situação de opressão que marcava o continente, e formas eclesiais de comunhão que evidenciassem o espírito de fraternidade na communitas fidelium (BRIGHENTI, 2018). Emergia cristologia soteriológica que fundamenta Igreja dos pobres, pois a salvação trazida por Cristo só é passível de compreensão e recepção à medida que se efetiva a “libertação integral” dos seres humanos, tendo os pobres como locus fundamentalis para que a libertação ocorra e se apresente como historicidade concreta da salvação cristã (MIRANDA, 2018).
A conferência de Puebla assumiu a esteira metódica deixada por Medellín, realizando a opção preferencial pelos pobres e pelos jovens, fazendo uma leitura da realidade latino-americana, tanto no que se refere à situação histórica e social quanto à situação cultural e religiosa, com realce à religiosidade popular e às formas históricas de libertação e seu caráter “integral”, evidenciando a referência à libertação do pecado. Ao realizar a opção pelos pobres, Puebla efetivou uma cristologia partir dos rostos diversos dos pobres – crianças, jovens, indígenas, afro-americanos, camponeses, operários, subempregados, desempregados, marginalizados urbanos e anciãos (Puebla, n. 29-39) que são oprimidos e vítimas da “injustiça institucionaliza” (Puebla, n. 562), a fim de servir de fundamento para elaborar uma eclesiologia de comunhão e participação que trouxesse à tona uma Igreja dos pobres. Essa formulação eclesiológica é a maneira eficaz de efetivar a Igreja como povo de Deus, sinal e serviço de comunhão na vida dos povos do continente latino-americano (FELLER, 2019).
A conferência de Santo Domingo foi realizada no clima da celebração dos quinhentos anos de evangelização da América Latina e Caribe, e na esteira da “nova evangelização” assumida pelo papa João Paulo II. Se nas duas conferências anteriores primou-se pelo método indutivo, em que se partia da realidade do homem latino-americano e caribenho, nessa conferência houve uma mudança metodológica de abordagem da evangelização no continente latino-americano. Trata-se de ter na “iluminação teológica” o ponto de partida do método teológico da conferência, em que se privilegiava a arché da fé, realçando principalmente a cristologia e aprofundando a categoria “pobres” como uma categoria de transversalidade de todo o texto. Desse modo, identificou-se o rosto de Cristo com os rostos dos pobres, em que não apenas havia a confirmação da descrição feita pela conferência de Puebla, mas também a aprofundava ao colocar novas realidades da pobreza: os rostos “desfigurados” dos famintos, os rostos dos desiludidos pelos políticos, os rostos dos humilhados culturalmente, os rostos “aterrorizados pela violência diária e indiscriminada, os “rostos sofridos das mulheres humilhadas e postergadas”, “os rostos cansados dos migrantes”, “os rostos do envelhecidos pelo tempo e pelo trabalho dos que não tem o mínimo para sobreviver dignamente” (Santo Domingo, n. 178). Dessa cristologia da dialética entre mistério e história dos pobres brota uma “nova evangelização”, em que a Igreja há de efetivar um processo de evangelização inculturada. O evangelho é, então, acolhido e vivido pela mediação das culturas autóctones do continente, pela promoção da vida humana em toda a sua integridade e na afirmação de Deus através de um testemunho que o mostre como Deus da vida de todos os povos deste continente.
A conferência de Aparecida, realizada em 2007, retoma o método indutivo, em que parte da análise da realidade do povo do continente latino-americano e caribenho, alargando epistemologicamente a categoria “pobres”, mediante a análise da incidência da globalização neste continente, abarcando tanto questões sociais quanto ecológicas, e principalmente trazendo à tona a pobreza como modus vivendi spiritualis que conduz à compaixão e à solidariedade para com os empobrecidos econômica, política, cultural, social e religiosamente (Aparecida, n. 3, 97-399). Também nessa conferência realçou-se uma cristologia que possui centralidade na opção pelos pobres e fundamenta uma eclesiologia missiológica, em que a Igreja de Cristo é constituída de discípulos(as) missionários(as), que irão evangelizar mediante o anúncio explícito de Jesus Cristo de modo inculturado e com espírito ecumênico e dialógico, e o testemunho em que se buscará, a partir da opção pelos pobres, promover a vida humana em sua integralidade e desenvolver uma espírito ecológico de relações com o patrimônio terrestre deste continente (Aparecida, n. 240-257).
A teologia do magistério eclesial latino-americano e caribenho apresenta a centralidade da opção pelos pobres em articulação com a fé revelada, a fim de que a Igreja transmita o evangelho em correspondência com a “realidade real” (ELLACURÍA, 1990b) do povo latino-americano e caribenho. Elemento importante no magistério é a articulação entre antropologia e teologia, para pensar Deus, ser humano e Igreja, com a utilização da filosofia, principalmente a metafísica da alteridade e a hermenêutica aplicada à “realidade do povo”, das ciências humanas e da Doutrina Social da Igreja, que ao lado da Escritura serve como espaço da operação hermenêutica, tão necessária para fazer teologia.
A teologia da libertação é um complexo teológico resultante epistemologicamente da theologia mundi conciliar, das teologias da práxis[1], da conferência de Medellín e dos nexos realizados entre a fé cristã e a realidade latino-americana. O seu surgimento se situa na obra pioneira de Gustavo Gutiérrez, intitulada Teologia de la Liberación e escrita em 1971 (GUTIÉRREZ, 1986), que analisa epistemologicamente a necessidade de um complexo teológico em que a fé cristã se articule com o locus historicus dos pobres para mostrar a realidade da revelação de Deus. Trata-se de um Deus que vem ao encontro do ser humano para libertá-lo integralmente das diversas realidades de opressão, mediante a efetividade da justiça social, da paz e da vida plena. Há também incidência na antropologia teológica, em que se busca resgatar teologicamente a dignidade humana e articular escatologia e política. Há ainda incidência na eclesiologia, principalmente na formulação da “Igreja dos pobres”, em que a Igreja se faz pobre com os pobres, se compromete com a justiça em todas as suas dimensões, se solidariza com os pobres e se movimenta na história para promover seu desenvolvimento integral.
Seguindo o pioneirismo do teólogo peruano, se situam os teólogos Hugo Assmann (1972) e Juan Luis Segundo (1976), que respectivamente levaram a cabo esse modo de fazer teologia como uma “teologia política latino-americana” e uma “teologia libertada” para ser libertadora. A primeira tem na filosofia marxista um importante instrumento de análise da realidade latino-americana, para então elaborar uma prática teórica de efetiva teologia da libertação, em sua condição de uma teologia da práxis política nesse continente. A segunda se desenvolveu como a preocupação epistemológica de tornar a teologia da libertação uma “teologia libertada” de um estatuto teórico em que o conceito se impõe à realidade e o complexo teórico se desenvolve como um discurso desvinculado do locus historicus, tornando a fé cristã inócua e isenta de eficácia em sua inteligência propriamente teológica. Por isso, o autor propôs a “libertação da teologia”, mediante a efetividade de um círculo hermenêutico, em que a compreensão da revelação e da fé cristã possui um processo em que teoria e práxis histórica se articulam, de modo que a teologia se torna uma prática teórica de eficácia na vida humana, concebida em sua realidade histórica.
Dessa tríade tem-se a epistemologia teológica libertadora que propiciou o surgimento de tratados teológicos em perspectiva libertadora, trazendo à tona uma cristologia do seguimento de Jesus, uma eclesiologia de comunhão a partir das comunidades eclesiais de base e a partir de uma nova proposta de estrutura eclesial, uma práxis da Igreja realizada a partir do reverso da história e capaz de estar articulada com uma cristopráxis libertadora e uma teologia fundamental efetivada desde a periferia do mundo. À medida que os tratados foram sendo publicados, a metodologia teológica libertadora passou a ser sistematizada como uma teologia constituída de três mediações: a socioanalítica, a hermenêutica e a teórica-prática. Desse modo, consolidava-se que a teologia da libertação haveria de ser elaborada constituída da análise da realidade dos pobres, da hermenêutica teológica em que se debruça sobre a Escritura e a Tradição e da prática teórica em que se visualiza as possibilidades da práxis histórica libertadora (BOFF, 1990; GONÇALVES, 2020a, p. 581-589).
Ao estar lançada no mundo teológico, a teologia da libertação passou por tensões epistemológicas, especialmente com a Congregação para a Doutrina da Fé, que publicou a Instrução Libertatis Nuntius (1984), em que afirmou existir pluralidade na teologia da libertação e que algumas de suas formas utilizavam o marxismo – concebido como uma filosofia marcada pelo ateísmo e pela defesa da luta de classes – como seu substrato teórico, propiciando o relativismo em relação a Deus e a violência entre as pessoas. Dessa forma, a referida Congregação suscitou tensões epistemológicas que puseram a pensar tanto a própria Congregação quanto os teólogos, emergindo reações epistemológicas do teólogo Juan Luis Segundo (1985) e a Instrução Libertatis Conscientia (1986), que confirmou a necessidade teológica de se “libertação integral”, a pontou a Doutrina Social da Igreja como mediação hermenêutica e abriu espaço para que o papa João Paulo II considerasse a teologia da libertação como “útil e necessária” (JOÃO PAULO II, 1986, p. 5).
Mesmo em meio a tensões, a teologia da libertação consolidou-se como sistema teológico, mediante o lançamento da coleção “Teologia e Libertação”, que se constituía em um projeto de 57 livros, denotativos de tratados teológicos que abrangeriam o todo de um sistema: epistemologia teológica, Deus, antropologia teológica, eclesiologia, teologia moral e teologia pastoral (GONÇALVES, 2020b, p. 191). Trata-se de um projeto lançado em 1982 com publicação iniciada em 1985, mas por conta dos conflitos supracitados com a Congregação para a Doutrina da Fé e por questões de ordem epistemológica acerca do modo de fazer teologia da libertação, a coleção atingiu a publicação de apenas 29 volumes até meados da década de 1990. Por isso, percebendo a necessidade de levar a cabo esse projeto, Jon Sobrino e Ignacio Ellacuría – que fora assassinado junto com outros teólogos e duas empregadas da casa dos jesuítas em San Salvador (El Salvador) em novembro de 1989 – sintetizaram a teologia da libertação como sistema teológico, mediante a publicação de dois volumes, intitulados Mysterium Liberationis (1990), que se estruturavam em 47 artigos e que abarcavam os tratados mencionados acima e apresentavam o sistema teológico libertador, marcado pela epistemologia teológica e pela afirmação de um Deus libertador, de um ser humano solidário e comunitário, de uma Igreja dos pobres, de uma ética teológica libertadora e de uma pastoral ecumênica e libertadora.
O sistema teológico libertador propiciou o aprofundamento dos tratados com novos investimentos epistemológicos, destacando-se a relação da libertação com a cultura, da teologia com a economia, e ainda reflete os temas da ecologia e das religiões. Ao relacionar libertação e cultura, elabora-se uma teologia libertadora da inculturação, em que se debruça sobre as culturas indígenas e afro-americanas para pensar a evangelização a partir das culturas autóctones, com efetividade do diálogo e da inferência de ethos que produz práxis histórica libertadora. A relação da teologia com a economia se efetiva na análise dos processos de economia e de política que provocam a “morte prematura dos pobres” ou “o sacrifício dos pobres” denotativo da idolatria sistêmica do mercado neoliberal. Emerge então um complexo teórico anti-idolátrico, que defende e promove a vida dos pobres, para que tenham vida em abundância (HINKELLAMERT – ASSMANN, 1989). A reflexão sobre a ecologia na teologia da libertação tem ocorrido, mediante a esteira da teologia ecológica efetivada na perspectiva da esperança (MOLTMANN, 1993), tomando o “grito dos pobres” como “grito da terra” (BOFF, 1996). A terra sofre e reclama de dores causadas por um processo de exploração e depredação, em que urge a categoria “cuidado”, visando a “ecologia integral”, em que a terra pode se libertar dos males que a aflige e ser espaço de convivência fraterna de todos os habitantes dessa “casa comum”. A meditação teológica libertadora sobre as religiões se situa na esteira epistemológica da teologia das religiões, em que se admite o pluralismo religioso, a relação da religião com a cultura, a religião como arché para configuração social e a possibilidade da relação entre as religiões, com a pretensão de estabelecer o diálogo inter-religioso e de impulsionar um movimento de compaixão e solidariedade com os pobres, visando à construção da fraternidade, da justiça social e da paz no continente latino-americano (TEIXEIRA, 2007).
A theologia mundi do Concílio Vaticano II foi recepcionada epistemologicamente na América Latina e no Caribe tanto em termos práticos quanto teóricos, incidindo no magistério eclesial e propiciando a formulação de um novo modo de fazer teologia, intitulado teologia da libertação. Trata-se de uma “recepção criativa” em que a articulação entre mistério e história tomou corpus theologicus na prática teológica efetuada desde a realidade latino-americana e caribenha, compreendida a partir do locus dos pobres (AQUINO, 2012, p. 15-38). Ao evocar a história como espaço da revelação de Deus aos seres humanos, a teologia conciliar propiciou a busca da “realidade real” da revelação divina, exigindo um movimento epistemológico de contextualização da ciência teológica.
O movimento de contextualização em teologia (WANDENFELS, 1987) é uma forma de tornar a teologia contemporânea em sua época histórica e em seu espaço de vitalidade real, em que os seres humanos e os outros entes estão em permanentes conexões. Por isso, a presença da categoria “história” na theologia mundi conciliar propiciou que sua adaptação à realidade latino-americana e caribenha tivesse as mediações da filosofia e das ciências sociais, visando compreender essa realidade a partir de um locus historicus efetivo. Nesse sentido, a categoria “pobres” é tomada como um locus historicus para fazer teologia, em articulação com a fé, que é a arché da teologia. No entanto, essa categoria não poderia ser fator de redução epistemológica da teologia e que impossibilitasse a integralidade da teologia em sua condição de scientia Dei. Por isso, a categoria “pobres” foi exame tanto do magistério eclesial quanto dos (as) teólogos (as), que se utilizaram da filosofia e das ciências como mediações para compreender e interpretar a realidade da história latino-americana e caribenha, edificando um “momento socioanalítico” ou um “momento interno de antropologia fundamental” necessário para fazer teologia.
A filosofia utilizada na teologia latino-americana assumiu duas perspectivas fundamentais: a metafísico-social e a hermenêutica. A filosofia de cunho metafísico-social, aliada à sociologia e servindo-se da vertente dialética que visualizava as contradições sociais e históricas, fundou a “teoria da dependência”, pela qual se negava a teoria do subdesenvolvimento do continente para afirmar que o continente foi marcado por um processo de colonização e exploração que o tornou dependente dos países ricos. Essa filosofia que teve no marxismo um instrumento de análise da sociedade foi articulada com a filosofia da alteridade tomada de Emmanuel Lévinas, para trazer à tona as dimensões erótica, pedagógica e política para nortear uma teologia da libertação. Trata-se de uma filosofia que busca afirmar o ser do homem latino-americano em sua dignidade de pessoa, identidade cultural, religiosidade própria e inter-relações humanas que apontam para uma sociedade libertada da opressão, justa, fraterna, compassiva e solidária (GONÇALVES, 2020a, p. 73-93).
A filosofia hermenêutica serviu como instrumento e perspectiva à compreensão da Escritura e da Tradição, efetivando uma leitura popular da bíblia, que teve nos pobres a sua chave de intepretação, e uma leitura da tradição eclesial que recuperou a religiosidade popular, reinterpretou os dogmas articulando mundo dos pobres e fé cristã. Trata-se operação hermenêutica de circularidade em que fé e mundo dos pobres se relacionam como em um círculo no qual se desenvolve um processo de compreensão por parte dos sujeitos envolvidos na elaboração teológica, cujo resultado é a intepretação concebida quando se encontra o sentido dessa relação (HAMMES, 2007). Por isso, em sua elaboração teórica, o(a) teólogo(a) se apropria das fontes da fé – Escritura e Tradição – e da articulação com a história concebida desde o locus dos pobres e com o auxílio da filosofia e das ciências, realiza o processo de compreensão, mergulhando nos mundos das fontes e dos pobres para encontrar o sentido da revelação de Deus em sua relação com os seres humanos. É esse processo realizado com espírito epistemológico de diálogo que torna a teologia eficaz e historicamente contemporânea ao continente latino-americano e caribenho (GONÇALVES, 2020d, p. 584-589).
A filosofia hermenêutica, especialmente por se constituir em tríplice dimensão de texto, símbolo e ação, se articula com a antropologia cultural para analisar a cultura e a religião do “povo”, visando a elaboração de uma “teologia do povo” (SCANNONE, 2017). Trata-se de compreender que o povo é nação e também sujeito histórico, capaz de construir os rumos dessa nação que constitui e é produtor de sua história. Esse povo possui cultura, concebida como totalidade de seus produtos que se tornam hábitos, costumes, modus vivendi de relações inter-humanas e sociais. No interior da cultura há religião, que também pode ser compreendida como cultura, e, por conseguinte, há seus ritos, suas narrativas, seus livros sagrados e seus mitos. Na estrutura da religião, situa-se a vida do povo narrada, celebrada, rezada, entregue ao divinum ou sacro, em suas diversas formulações religiosas, destacando-se o catolicismo popular e as religiões arcaicas de indígenas e afro-americanos (GONÇALVES, 2020c).
Com o auxílio dessas mediações, a categoria “pobres” é concebida em três dimensões na teologia latino-americana. A primeira é a dimensão histórico-social, em que os pobres são os explorados economicamente, marginalizados social e cultural, oprimidos politicamente e em gênero, discriminados religiosamente e vítimas de um sistema que os mata prematuramente. A segunda é a dimensão espiritual, em que a pobreza é compreendida como status spitirualis de kenosis, de humildade, de simplicidade que incide no convívio marcado pela compaixão, solidariedade, empenho pela fraternidade e paz, e pela alegria de viver em compartilhamento com outrem. A terceira é a dimensão de compromisso com os pobres, em que os próprios pobres, concebidos nas dimensões anteriores, se comprometem em superar a pobreza, efetivando a libertação integral na forma de realização da justiça social, de reações de fraternidade que superem preconceitos e discriminações e levem a cabo a inclusão social, religiosa e cultural, de estruturação da paz e de “ecologia integral”, levando em conta o “grito da terra” junto com o grito dos pobres (GUTIÉRREZ, 1990a, p. 15-32).
A teologia da libertação se consolidou como sistema teológico e se expandiu em sua configuração mundial tanto em sua relação com outras teologias quanto na sua epistemologia, em que a categoria “pobres” tornou-se mundial em sua configuração social e fundamental em sua configuração espiritual, em sua articulação com a fé cristã, à medida que possui incidência epistemológica para afirmação do Deus libertador, do ser humano libertado e da Igreja pobre, com os pobres e dos pobres (TAMAYO, 2017, p. 165-212).
A afirmação do Deus libertador se efetua mediante um processo epistemológico, em que é tecida a análise da realidade dos pobres no continente latino-americano e caribenho, uma operação hermenêutica na Escritura e na Tradição e a visualização do modo como Deus se revela na história concebida a partir dos pobres. Desse modo, o método teológico é indutivo e propicia compreender Deus desde a realidade marcada pela opressão, pelo sofrimento e pela morte do “povo crucificado” (ELLACURÍA, 1990b). Nesse sentido, Deus se insere na “realidade real” dos pobres e se revela como misericordioso e sensível à realidade de “morte prematura”, fazendo-se compassivo ao sofrimento dos pobres, sentindo suas dores, vendo suas aflições, ouvindo os seus clamores e vindo ao seu encontro no “estábulo deste mundo” e no espaço de sua crucificação (GUTIÉRREZ, 1990a, p. 134-145). Esse mesmo Deus se apresenta na história como concretização da esperança da ressurreição, mediante o movimento de libertação de estruturas históricas opressoras – que produzem violência, injustiça e institucionaliza o ódio – visando à efetividade da justiça social, de uma política que prime pelo bem comum e da implantação de uma cultura da paz que propicia levar a cabo a “ecologia integral”.
O adjetivo libertador de Deus é precedido de seu caráter misericordioso e compassivo à medida que é por sua sensibilidade que se movimenta a libertar os pobres. No entanto, é sua habitação no mundo ou propriamente seu repouso na criação que lhe permite manifestar-se como Deus criador, que mesmo tendo sua aliança rompida por causa da infidelidade humana, presente no pecado, que se estrutura socialmente e se manifesta na “crise ecológica”, mantém-se fiel em sua santidade e inefabilidade, para trazer à tona o “novo ser humano” e a “nova criação”. Por isso, tornou-se possível que, na teologia da libertação, esse Deus seja concebido como “Deus da vida” (GUTIÉRREZ, 1990b).
A antropologia teológica libertadora se caracteriza por interpretar a condição do ser humano “como imagem e semelhança”, e como caracterização teológica o aponta como pessoa, sujeito, livre e responsável, conforme já se designava na theologia mundi conciliar. No entanto, a novidade está na apreensão da “realidade real” do ser humano situado no continente latino-americano e o exercício teologal em conceber o que seja a pessoa humana a partir do locus dos pobres, que é o lugar social que epistemologicamente se articula com a fé cristã no complexo teórico libertador. Nesse sentido, a categoria alteridade desenvolvida na filosofia da libertação é de fundamental importância para aguçar a sensibilidade pela dor do outro, que é o pobre compreendido nas suas diversas dimensões, que possui identidade própria e interpela à relação de “face-a-face” para a efetividade da compaixão, da solidariedade e para que haja empenho à construção da justiça, da fraternidade e da paz (GONÇALVES, 2020c, p. 154-158). Nesse sentido, ser pessoa é ter a dignidade humana elevada no reconhecimento de que o trabalho é espaço de desenvolvimento das potencialidades humanas e não espaço de exploração; que moradia, saúde e educação são direitos fundamentais; que é necessário superar o androcentrismo e toda forma de arbitrariedade contra o humanocentrismo que possibilita que as relações humanas sejam marcadas pelo respeito, corresponsabilidade e efetividade da justiça que elimina todo a marginalização de gênero; que urge reconhecer o pluralismo cultural e a singularidade de cada cultura, e ainda promover um ethos que possibilite a comunhão das culturas (GONÇALVES, 2020a, p. 65-72).
A criação é também um tema da antropologia teológica libertadora (TRIGO, 1990), considerando o dado da fé na criação, concebida como muito boa, abençoada, santificada e habitada por Deus. A perspectiva ecológica possibilita compreender a criação mediante a inter-relação ou entrelaçamento de todos os seres vivos e desses com os não vivos, com centralidade no “cuidado” para que a vida seja defendida, preservada e promovida em todas suas dimensões. O cuidado é uma categoria que possibilita ao ser humano compreender os outros seres em sua condição de diferentes e imbuídos de vida a ser respeitada e promovida. Emerge também um ethos da vida, com centralidade na relação da communitas humanae com as comunidades dos outros seres – animais, vegetais e minerais –, a fim de que se estabeleçam relações de comunhão, em que o todo manifesta a unidade efetuada na diversidade da vida presente na integridade ecológica que caracteriza essa mesma comunhão (SUSIN, 2003).
A eclesiologia libertadora também se ampara na theologia mundi conciliar e, por conseguinte, é compreendida originariamente como mistério de comunhão, sacramento de salvação, corpo de Cristo, povo de Deus e constituída de índole escatológica. Essa formulação conciliar possui recepção criativa nessa eclesiologia a partir da inserção da Igreja no mundo latino-americano e caribenho desde o locus dos pobres, constituindo-se como Igreja dos Pobres, que tem nas comunidades eclesiais de base o seu “tecido social” e se constitui como “povo sacerdotal”. Nesse sentido, a Igreja dos pobres é a communitas fidleium, que se caracteriza pela comunhão, presente na efetividade do princípio de subsidiariedade nas estruturas eclesiais, no desenvolvimento da ministerialidade denotativa de acolhimento aos carismas mediante o serviço gratuito que visa o bem comum. Os ministérios são os ordenados e os laicais, concebidos em sua respectiva essência e grau, mas todos estão a serviço da edificação da communitas fraterna e evangelizadora, que possui estrutura de organização, em que se prima pelo diálogo, participação e condição ativa de todos os seus membros. Além disso, esse povo é também “povo crucificado”, cuja “morte prematura” e perseguição e morte por causa da busca da justiça denotam uma Igreja de mártires, marcada pela santidade de sacrifício concebido como “dom da graça” e de um sacerdócio efetivamente servidor. A despeito do caráter vitimário dos mártires, sua presença é um sinal de esperança de que a utopia do Reino de Deus há de chegar a realizar-se na história (QUIROZ MAGAÑA, 1990).
Essa mesma Igreja dos pobres possui um modus vivendi pobre, realizado na humildade e simplicidade de vida de seus membros, e na sua inserção compassiva e solidária para com os empobrecidos deste continente, cujos rostos estão identificados com o rosto de Cristo. Por isso, são fundamentais as estruturas participativas da Igreja, o espírito de alegria e de fraternidade e o impulso à evangelização em que Jesus Cristo é anunciado e testemunhado mediante um processo de inculturação e promoção humana – efetividade da justiça, da fraternidade e da paz –, caracterizando-se como uma Igreja que é “sacramento histórico da salvação” (ELLACURÍA, 1990a).
Enfim, a teologia da libertação é uma forma de tornar real a theologia mundi conciliar à medida que apresentou a realização concreta da fé revelada na história humana, colocando o ser humano como um habitante da “casa comum”, que pertence à criação Deus. A inteligência da fé cristã apresenta a revelação efetivada na história do ser humano e no interior de toda a criação, trazendo à tona Deus como seu assunto principal e, por conseguinte, a ser tratado com toda seriedade que a “realidade real” da própria fé exige. A meditação teológica sobre Deus conduz ao ser humano, seu partner na aliança selada definitivamente em Jesus Cristo, pessoa e sujeito, marcado por liberdade e responsabilidade por levar acabo a revelação na história e no planeta para que a libertação integral de cada ser humano se constitua parte da efetividade da “ecologia integral”.
Ao final deste artigo, impõe-se a necessidade de suscitar elementos conclusivos, sem pretender encerrar o assunto, para apresentá-los sinteticamente e trazer prospectivas que sirvam para o debate teológico em torno da repercussão da teologia conciliar na América Latina e no Caribe em termos de epistemologia teológica.
Objetivou-se neste artigo analisar a teologia do Concílio Vaticano II, denominada theologia mundi, e os seus desdobramentos na produção teológica latino-americana e caribenha. Para atingir esse objetivo, analisou-se o contexto filosófico e teológico que norteou o Concílio Vaticano II, marcado por intenso e denso pluralismo e complexidade teórica, visando inferir novas formas de fazer teologia que traziam à tona a interlocução com a história, com o sentido da existência humana, e abriam novas possibilidades epistemológicas de realização do método teológico. Em seguida, analisou a teologia conciliar, verificando sua atenção ao mundo contemporâneo e às questões antropológicas e sociais efetivamente presentes em sua época histórica. Por conseguinte, denominou-se a teologia conciliar como uma theologia mundi, pois Deus – que é o assunto fundamental da teologia – é meditado em consonância com os dramas, as angústias, as alegrias e as esperanças da humanidade. Posteriormente, visualizou-se o modo como a theologia mundi do Concílio Vaticano II se fez presente no magistério eclesial latino-americano e caribenho – em que foram tomadas como fontes as conferências gerais do respectivo episcopado – e na teologia da libertação, complexo teológico que articula a fé cristã com o locus historicus dos pobres.
O Concílio Vaticano II se constitui em um evento importante para a ciência teológica, por ter sido espaço de recepção de um pluralismo filosófico, denotativo de duas viradas epistemológicas incisivas na produção teológica: a antropológica e a hermenêutica. Essas viradas propiciaram pensar a ciência teológica em articulação com a antropologia, com sustentação em uma metafísica do ser, e tendo a hermenêutica como filosofia que propicia superar as formas fechadas de teologia. Por isso, emergiu um pluralismo teológico que se mostrou contemporâneo e fundamental para a constituição de uma theologia mundi conciliar, em que Deus há de ser concebido no mundo, em sua contemporaneidade histórica, encontrando-se com os seres humanos em sua efetiva realidade, fazendo com que a Igreja, ao estar no mundo, se apresente como mistério de comunhão, cuja eficácia se dá em sua inserção na história para reunir todo o gênero humano e contribuir à edificação de uma nova humanidade e de uma nova criação.
Essa theologia mundi é recepcionada criativamente, de modo a tornar o magistério eclesial capaz de evangelizar com um complexo teórico que articula fé cristã e história, tomando o locus dos pobres como lugar privilegiado da revelação. Nesse sentido, emergiu a teologia da libertação, que já em sua origem tripartia os pobres nas dimensões social, espiritual e ética, tendo em vista constituir-se de uma teologia da libertação integral, cuja plausibilidade é de fundamental importância para que o Reino de Deus se torne “realidade real”, denotativa de “vida em abundância” para o povo latino-americano e caribenho.
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[1] As teologias da práxis surgiram durante e logo após o término do Concílio Vaticano II. Constituem-se da teologia da esperança elaborada por Jürgen Moltmann, da teologia política elaborada por Johann Baptist Metz e da teologia da experiência elaborada por Edward Schilebeekcx.