Mater et Magistra - Um guia de leitura
Mater et Magistra - A reading guide

Francisco de Aquino Júnior
Doutor em teologia pela Westfälischen Wilhelms-Universtät Münster – Alemanha; professor de teologia da Faculdade Católica de Fortaleza (FCF) e da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Contato: 
axejun@yahoo.com.br


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Resumo: 

Publicada por ocasião do septuagésimo aniversário da Encíclica Rerum Novarum (RN) do papa Leão XIII (1891), a Encíclica Mater et Magistra (MM) do papa João XXIII (1961) é considerada como uma “encíclica de transição” no contexto mais amplo do desenvolvimento histórico da doutrina social da Igreja. E por várias razões: situa a problemática da justiça social no contexto mais amplo da relação entre os povos; está inserida no contexto de mudança/transição que caracteriza o pontificado de João XXIII e o Concílio Vaticano II; é marcada por uma atitude de confiança e otimismo para com o mundo e por um estilo e uma linguagem menos filosófico-abstratos e mais concreto-empíricos no trato da realidade. Tudo isso confere particular importância e relevância à MM e justifica este trabalho que, como indica seu subtítulo, pretende ser um guia de leitura da encíclica. Começa indicando o contexto sócio-eclesial em que ela surge e ao qual procura responder. Faz uma apresentação panorâmica do texto em sua estrutura e conteúdo fundamentais. E conclui destacando alguns pontos importantes para sua adequada compreensão e interpretação.

PAlavras-chave: João XXIII; Mater et Magistra; Transição; Subdesenvolvimento; Justiça.

ABSTRACT

Published on the occasion of the seventieth anniversary of Pope Leo XIII's Encyclical Rerum Novarum (RN) (1891), Pope John XXIII's Encyclical Mater et Magistra (MM) (1961) is regarded as a “transitional encyclical” in the context of the historical development of the Church's social doctrine. And for several reasons: it places the issue of social justice in the broader context of the relationship between peoples; it is inserted in the context of change/transition that characterizes the pontificate of John XXIII and the Second Vatican Council; it is marked by an attitude of confidence and optimism towards the world and by a less philosophical-abstract and more concrete-empirical style and language in dealing with reality. All of this gives particular importance and relevance to the MM and justifies this work which, as its subtitle indicates, is intended to be a guide for reading the encyclical. It begins by indicating the socio-ecclesial context in which it arises and to which it seeks to respond. Gives a panoramic presentation of the text in its fundamental structure and content. And it concludes by highlighting some important points for its proper understanding and interpretation.

Keywords: John XXIII; Mater et Magistra; Transition; Underdevelopment; Justice.


Introdução

A Carta Encíclica Mater et Magistra (MM) do papa João XXIII “sobre a evolução da questão social à luz da Doutrina Cristã” foi publicada no dia 15 de maio de 1961. Ela foi escrita por ocasião do septuagésimo aniversário da RN – um documento “imortal”, um “verdadeiro resumo do catolicismo no campo econômico-social” ou mesmo “a ‘Magna Carta’ da reconstrução econômica e social da época moderna”. Assim como Pio XI na QA, também João XIII, na MM, retoma o ensinamento anterior (e não só de Leão XIII, mas também de Pio XI e de Pio XII), oferecendo uma síntese própria do desenvolvimento da doutrina social até então, enfrentando-se com problemas e desafios atuais e alargando seus horizontes doutrinais e pastorais. Mas não só. Além da síntese peculiar que oferece do ensinamento anterior e de sua atualização e ampliação a partir dos problemas e desafios atuais, a MM é marcada por uma “nova sensibilidade diante dos problemas sociais” (CAMACHO, 1995, p. 183), típica do espírito que caracteriza a personalidade e o magistério de João XXIII. Não por acaso, ela é considerada por muitos como uma “encíclica de transição” (CAMACHO, 1995, p. 183), no sentido de que ela “inaugura uma fase nova e decisiva na evolução do pensamento social da Igreja” (BIGO; ÁVILA, 1986, p. 191).

Para compreendermos bem a MM, no que tem de continuidade e no que tem de novidade e/ou ruptura com as encíclicas anteriores, é necessário considerá-la em seu contexto sócio-eclesial, fazer uma análise atenta e rigorosa de seu texto e destacar temas, perspectivas, sensibilidades e deslocamentos que lhe conferem originalidade e relevância no conjunto das encíclicas sociais e da Doutrina Social da Igreja.

I – Contexto histórico

Se nenhum texto pode ser compreendido adequadamente fora do seu contexto histórico, menos ainda um texto que trata de problemas, processos e desafios sociais, como são as encíclicas sociais. Por mais que se possa identificar nas encíclicas sociais aspectos, princípios, diretrizes e até propostas concretas que extrapolam um determinado momento histórico ou mesmo perpassam toda a Tradição cristã, na medida em que eles são tomados e propostos a partir e em função de um determinado contexto e/ou problema concretos adquirem características próprias. Por mais tradicional que seja uma doutrina, sempre que ela é retomada e confrontada com uma situação nova, adquire novas feições e alarga seus horizontes. Basta ver a retomada e a síntese que cada nova encíclica social faz das encíclicas sociais anteriores. Daí a necessidade de considerar cada encíclica social em seu contexto social e eclesial. Mais que qualquer outro texto eclesial, as encíclicas sociais têm “calendário” e “geografia” e só podem ser compreendidas em seu contexto histórico.

Do ponto de vista social, a MM aparece em um contexto bem distinto das encíclicas anteriores. Se o contexto da RN é a revolução industrial e a “condição dos operários” no final do século XIX e o contexto da QA é a crise do capitalismo liberal e o desafio da “restauração e aperfeiçoamento da ordem social” depois primeira guerra “mundial”, o contexto da MM é o otimismo generalizado e o desafio da justiça social na reestruturação do mundo no início da segunda metade do século XX (CAMACHO, 1995, p. 183-185; BURNS-LERNER-MEACHAM, 1995, p. 733-780; HOBSBAWM, 1995, p. 221-290).

O “mundo” vive na década de 1950 um momento de grande otimismo e euforia. Depois da tragédia das duas grandes guerras que ceifaram milhões de vida, arrasaram grande parte da Europa, aprofundaram ainda mais a crise econômica, social e política nos países envolvidos, alteraram profundamente as relações de poder no mundo e reconfiguram a economia mundial, parecia ter chegado o tempo da prosperidade e da bonança. Mesmo nos países do chamado terceiro mundo, a expansão do “mundo industrial” provocava um verdadeiro “surto econômico” e, com isso, criava/impunha um sentimento generalizado de otimismo com relação ao “progresso” e ao “desenvolvimento” em curso. Eric Hobsbawm fala dessa época em termos de “anos dourados” ou “era de ouro” (HOBSBAWM, 1995, p. 253-281). E diz que, embora hoje seja evidente que “a Era de Ouro pertenceu essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos”, na década de 1950, “o surto econômico pareceu quase mundial e independente de regimes econômicos”. Isso o leva a afirmar que a “a Era de Ouro foi um fenômeno mundial, embora a riqueza geral jamais chegasse à vista da maioria da população do mundo” (HOBSBAWM, 1995, p. 255).

Na verdade, há um conjunto de fatores – irredutíveis, mas mutuamente implicados – que concorrem para a criação, consolidação e expansão dessa atmosfera de otimismo generalizado que se impôs no mundo depois da segunda guerra “mundial”. Fatores que nem podem ser subestimados em sua especificidade e irredutibilidade nem podem ser superestimados e absolutizados em detrimento dos demais.

Antes de tudo, há um fator político, cuja importância é ainda maior e mais decisiva num contexto de pós-guerra. O otimismo político nesse contexto está ligado à crescente opção pela democracia como forma de governo e ao processo de descolonização de muitos povos dominados. A opção pela democracia aparecia como “a grande lição da guerra”, como a consciência de que “as soluções totalitárias acabaram se voltando contra os próprios povos que as impuseram e as toleraram” (CAMACHO, 1995, p. 183). A democracia aparecia cada vez mais como valor e caminho políticos no Ocidente. Mesmo os países comunistas e os povos que iam conquistando sua independência política nesse período, acabavam adotando certas formalidades e/ou estruturas políticas democráticas (CAMACHO, 1995, p. 183s; HOBSBAWM, 1995, p. 376). E isso acabou contribuindo favoravelmente para a mudança das relações e estruturas coloniais até então vigentes no mundo. Entre 1945 e 1960, dezenas de países conquistaram sua independência na Ásia, na África e nas Américas (CAMACHO, 1995, p. 185; BURNS-LERNER-MEACHAM, 1995, p. 743-755; HOBSBAWM, 1995, p. 337). Certamente, esse processo de descolonização se deve à resistência e às lutas dos povos dominados. Mas não se pode negar nem minimizar a importância decisiva da nova conjuntura mundial nesse processo, particularmente no que diz respeito à expansão do ideal socialista/comunista no mundo e à consolidação dos ideais e princípios democráticos.

Há também um fator econômico decisivo, sem o qual dificilmente o otimismo político se manteria por muito tempo: um crescimento econômico impressionante. Não por acaso Hobsbawm fala das décadas de 1950-1960 como “anos dourados” ou “era de ouro” (HOBSBAWM, 1995, p. 253-281). E isso se deve tanto ao desenvolvimento tecnológico que se deu nessa época – uma verdadeira “revolução tecnológica” (HOBSBAWM, 1995, p. 259-263), quanto à “reestruturação e reforma do capitalismo” e ao “avanço bastante espetacular na globalização e internacionalização da economia”. Esse segundo aspecto se materializou no chamado modelo de “economia mista” (Keynes) e na multiplicação da “capacidade produtiva da economia mundial” (HOBSBAWM, 1995, p. 264). O resultado da combinação desses processos foi uma “taxa explosiva” de crescimento da economia mundial na década de 1960: “A produção mundial de manufaturas quadruplicou”, “a produção agrícola mundial também disparou” e “as indústrias de pesca mundial triplicaram suas capturas” (HOBSBAWM, 1995, p. 257). Também os países comunistas alcançaram um crescimento econômico espetacular nessa época – ainda maior que os países capitalistas (HOBSBAWM, 1995, p. 255, 367s, 375). Sua “receita” era um “planejamento econômico estatal centralizado, voltado para a construção ultra-rápida das indústrias básicas e infra-estrutura essencial a uma sociedade industrial moderna” (HOBSBAWM, 1995, p. 367).

E há, sobretudo nos países desenvolvidos, um fator social, relativo ao crescimento da qualidade de vida ou do bem-estar social: “Não só aumenta o nível geral de vida, mas os bens de consumo também se tornam acessíveis a seguimentos cada vez mais amplos da população” (CAMACHO, 1995, p. 184). O Estado passa a ter um papel fundamental não apenas no desenvolvimento da atividade econômica, mas também na promoção da qualidade de vida da população, sobretudo no que diz respeito à saúde, à educação, ao trabalho e à seguridade social. É neste contexto que surge nos países capitalistas desenvolvidos o chamado Estado de Bem-Estar Social com seus vários programas de proteção e assistência social (CAMACHO, 1995, p. 184; BURNS-LERNER-MEACHAM, 1995, p. 759s). Também em alguns países do Terceiro Mundo houve inciativas nessa direção, embora nem de longe se possa comparar com o que se deu na Europa. Não se deve esquecer que “a [chamada] Era de Ouro pertenceu essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos” e que, embora tenha sido um “fenômeno mundial”, a riqueza produzida nunca chegou à “maioria da população do mundo” (HOBSBAWM, 1995, p. 255). No caso dos países comunistas, e isso sempre foi sua força mobilizadora maior, houve grandes esforços e conquistas no sentido da “garantia de um nível de vida igualitário, no qual as necessidades básicas estejam cobertas [...] para toda população” (CAMACHO, 1995, p. 184; HOBSBAWM, 1995, p. 373).

Mas não se pode esquecer que esse otimismo se dá no contexto da chamada “guerra fria” e de um crescente aumento das desigualdades sociais. Por um lado, o mundo pós-guerra é um mundo dividido e polarizado, sob a direção de duas grandes potências: Estados Unidos e União Soviética. O contexto internacional é de uma “guerra fria” (HOBSBAWM, 1995, p. 223-252; BURNS-LERNER-MEACHAM, 1995, 737-743). E a expressão não é casual. Hobsbawm chega a falar aqui de uma “Terceira Guerra Mundial, embora [se trate de] uma guerra muito peculiar”. Sua peculiaridade reside no fato de que, “em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra mundial”, uma vez que os governos das superpotências aceitavam a “distribuição global das forças”. Apesar disso, “gerações inteiras se criaram à sombra de batalhas nucleares globais que, acreditava-se firmemente, podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade” (HOBSBAWM, 1995, p. 224). Além do evidente “confronto militar” e da “cada vez mais frenética corrida armamentista”, sua consequência mais óbvia foi a polarização do mundo em “dois ‘campos’ marcadamente divididos” (HOBSBAWM, 1995, p. 234-235). Por outro lado, e não obstante o impressionante crescimento econômico e a melhoria significativa da qualidade de vida de grande parte da população, sobretudo, nos países capitalistas desenvolvidos e nos países comunistas, permanece ou mesmo aprofunda-se o fenômeno da desigualdade social. Tanto no interior dos países, inclusive dos países desenvolvidos, quanto entre os países desenvolvidos e os países subdesenvolvidos. E esse é o ponto central com o qual João XXIII vai se confrontar na MM. No que diz respeito à desigualdade no interior de cada país, está em jogo a situação do setor agrícola e as condições de vida da população rural. Hobsbawm chega a falar literalmente de “morte do campesinato” (HOBSBAWM, 1995, p. 284-289, 373). No que diz respeito à relação entre os países, está em jogo a profunda desigualdade entre o “alto nível de vida” dos países desenvolvidos e as “condições de escassez ou de miséria” dos países subdesenvolvidos e o risco de uma “nova forma de colonialismo” (JOÃO XXIII, 2010, n. 154, 168).

Do ponto de vista eclesial, diz Giacomo Martina, embora “não faltaram naqueles anos (1945-1958) iniciativas corajosas tomadas pelo papa nos campos teológico e litúrgico, bem como no campo estritamente pastoral” (MARTINA,1997, p. 266) (Divino Afflante Spiritu, Mystici Corporis, Mediator Dei, novas formas de vida consagrada, dentre outras) (MARTINA,1997, p. 267-271), é preciso reconhecer que, em geral, enquanto “o mundo passava por rápidas mudanças”, a Igreja “se entrincheirava numa posição imóvel e imutável, na defensiva” (MARTINA,1997, p. 272). Na verdade, “o pensamento católico do período bélico e do pós-guerra apresenta uma orientação mais aberta em certos setores da periferia e uma linha mais cautelosa no centro”. Não deixa de ser curioso o fato de alguns dos teólogos que assumiram um “papel importante entre os peritos conciliares” e/ou até se tornaram cardeais, como Daniélou e De Lubac, terem sido “objeto de diversas medidas restritivas” na Igreja na década de 1950 (MARTINA,1997, p. 259s). Em todo caso, é preciso reconhecer com Martina que a situação geral da Igreja nesse período é marcada por um “contraste entre orientações abertas e conservadoras” (MARTINA, 1987, p. 27). E, indo ainda mais longo, é preciso reconhecer que processos extremamente ambíguos, como o chamado “catolicismo social” europeu, a tomada de posição dos papas sobre questões sociais e a própria Ação Católica, acabaram contribuindo decisivamente na criação de um ambiente eclesial que tornou possível o Concílio Vaticano II. 

Um fato novo e decisivo nesse contexto foi a eleição do papa João XXIII em 1958 (BEOZZO-ALBERIGO, 1993; MARTINA,1997, p. 275-289, 315-317; MATOS, 1992, p. 285-289; MATOS, 996, p. 283-289; BIGO-ÁVILA, 986, p. 191-196). O que a princípio parecia simplesmente um “papa de transição”, terminou sendo o papa da transição, isto é, o papa que tornou possível institucionalmente a grande transição da Igreja no mundo moderno. Não sem razão, Henrique Cristiano Matos afirma que “a história da Igreja no século XX é impensável sem a referência à figura carismática do papa João XXIII” (MATOS, 1996, p. 283). E não porque ele fosse um grande “inovador” e, menos ainda, um “revolucionário”. Na verdade, diz Martina, “homem complexo, Roncalli era fundamentalmente um conservador, mas no melhor sentido da palavra”. Com seu “bom senso e seu equilíbrio”, com seu “otimismo” e sua “extraordinária capacidade de estabelecer contatos pessoais, pastorais”, percebeu a necessidade e urgência de aproximar a Igreja do “mundo moderno”, de dialogar com os “irmãos separados” e com “todos os que estavam afastados da Igreja”, bem como a “necessidade de uma atualização, de apresentar sob nova forma a antiga doutrina”. Em sua vida e magistério se conjugam a “adesão ao ensinamento da Igreja, de Trento ao Vaticano I, unida a ‘um salto para a frente’ doutrinal e pastoral”. De modo que “João XXIII não pensava em dar início a uma nova época, mas queria apressar o lento e secular caminho da Ecclesia mater, adaptá-la aos novos tempos, impulsioná-la com coragem para seus reais objetivos” (MARTINA,1997, p. 316s). Fato é que, impulsionado pela “lúcida visão da especial situação histórica que atravessava tanto a Igreja [imobilismo] quanto o mundo inteiro [dividido em dois blocos]” (MARTINA,1997, p. 278), ao convocar o Concílio Vaticano II, ele acabou desencadeando um processo de renovação ou reforma que marcou uma nova etapa ou, em todo caso, significou uma novidade em relação ao que se convencionou chamar “era piana” na Igreja.

Tudo isso repercutiu profundamente na Doutrina Social da Igreja. Bigo e Ávila chegam a afirmar que “com João XXIII se inaugura uma fase nova e decisiva na evolução do pensamento social da Igreja, que o insere no âmago dos grandes problemas do mundo contemporâneo” (BIGO-ÁVILA, 1986, p. 191). Exequiel Gutiérrez destaca que “João XXIII é o primeiro papa que assumiu com alegria os valores próprios do mundo moderno” (GUTIÉRREZ, 1995, p. 47). E Camacho fala da MM como uma “encíclica de transição”, cuja característica mais surpreendente é uma “nova sensibilidade diante dos problemas sociais”. Não apenas “detecta problemas novos”, mas “focaliza problemas de sempre com uma mentalidade diferente” (CAMACHO, 1995, p. 183).

Tendo esboçado o complexo contexto sócio eclesial, no qual se insere e deve ser lida a encíclica MM de João XXIII, passemos agora à análise do texto.

II – Texto: Estrutura e conteúdo

Se a MM deve ser situada e analisada em seu contexto social e eclesial, deve também ser compreendida em suas características e posições próprias. Por mais que um texto só possa ser compreendido a partir de seu contexto, enquanto interage com ele, tomando posição numa ou noutra direção, é irredutível ao contexto e sua compressão passa um esforço rigoroso de análise de sua estrutura e de seu conteúdo.

Mas, antes de passarmos à análise da estrutura e do conteúdo do texto, convém chamar atenção para um detalhe redacional, cuja importância será decisiva na nova maneira de tratar as questões sociais que caracteriza o magistério de João XXIII e, segundo a maioria dos comentadores, marcará uma nova fase na doutrina ou no ensino social da Igreja: uma postura mais otimista frente ao mundo e mais realista e empírica no trato das questões sociais. Embora os dados sobre o processo redacional da MM sejam ainda escassos, parece certo que “o antigo grupo de assessores de Pio XII, todo formado de alemães, teria sido encarregado do primeiro projeto”, mas que “o resultado não teria agradado ao novo papa, que o teria considerado demasiado erudito” e que ele “teria recorrido a alguns especialistas franceses e italianos”. Um “novo esboço” teria sido solicitado a três jesuítas da Universidade Gregoriana de Roma e dois jesuítas da “Action Populaire” em Paris e a “redação definitiva” teria ficado a cargo de três italianos: Pietro Pavan, Agostino Ferrari-Toniolo (especialistas nas questões sociais e animadores das Semanas Sociais Italianas) e Pietro Parente (assessor do Santo Ofício) (CAMACHO, 1995, p. 189). O importante aqui é destacar que essa mudança dos colaboradores na redação do texto reflete uma “nova sensibilidade” no trato das questões sociais que se traduz numa mudança de “linguagem e estilo”: de um enfoque mais filosófico-abstrato para uma abordagem mais concreto-científica (CAMACHO, 1995, p. 187).

1. Estrutura

A estrutura do texto é bastante clara e não oferece maiores dificuldades[1]. Além de uma introdução (1-8) e uma conclusão (255-258), o texto está estruturado em quatro partes: a primeira parte recorda os ensinamentos da RN e seu desenvolvimento no magistério de Pio XI e Pio XII (9-47); a segunda parte oferece uma síntese doutrinal que esclarece, adapta e desenvolve o ensinamento social anterior (48-118); a terceira parte aborda aspectos novos da questão social (119-208); a quarta parte, de caráter mais pastoral, trata da colaboração da Igreja na renovação das relações de convivência na verdade, na justiça e no amor (209-254).

Essa estrutura externa mais visível (introdução, quatro partes, conclusão) revela uma lógica interna mais sutil que remete e responde aos principais objetivos da encíclica: comemorar os 70 anos da RN, “repetir e precisar pontos de doutrina já expostos pelos predecessores”, “fazer uma exposição desenvolvida do pensamento da Igreja, relativo aos novos e mais importantes problemas do momento” (47) e destacar a contribuição da Igreja na solução dos problemas sociais (quarta parte). No fundo, expressa uma “dupla atenção” ao “passado” (continuidade com a doutrina social anterior) e ao “presente” (resposta aos desafios atuais) (CAMACHO, 1995, p. 186), mas em função do presente: retoma o ensino social desenvolvido anteriormente para iluminar e orientar os desafios do tempo presente. Não por acaso, Bigo afirma que a segunda e a terceira partes constituem o “corpo da encíclica” (BIGO, 1969, p. 62, nota 9), embora, como adverte Camacho, a atenção ao presente não se circunscreve nem sequer à terceira parte, onde se trata de modo mais sistemático dos grandes desafios atuais, mas perpassa o texto inteiro (CAMACHO, 1995, p. 186).

Com estas considerações acerca da estrutura do texto, passemos, então, à análise e à apresentação resumida de seu conteúdo.

2. Conteúdo

Tendo presente os objetivos da MM e sua “dupla atenção” ao desenvolvimento anterior da doutrina social e aos desafios atuais, conforme indicamos acima, seguiremos, na apresentação de seu conteúdo, a sequência e ordenação do texto (CAMACHO, 1995, p. 186-211; FOYOCA, 1967, 93-145; ALBURQUERQUE, 2006, p. 129-132).

Introdução

O texto começa afirmando que a Igreja, “Mãe e Mestra”, foi “fundada por Cristo” em vista da salvação de todos e recebeu d’Ele a “dupla missão” de “gerar filhos” e de os “educar e dirigir” (1). Afirma que a Igreja “assume o homem, na sua verdade concreta de espírito e matéria, inteligência e vontade” (2) e, por isso, embora sua missão principal seja “santificar as almas” e fazê-las “participar dos bens de ordem sobrenatural”, ela “não deixa de preocupar-se, ao mesmo tempo, com as exigências da vida cotidiana dos homens” (3). Fazendo isto, “põe em prática o mandamento de Cristo” que se refere “à salvação eterna do homem”, mas também se preocupa com as “exigências materiais dos povos” (4). Neste sentido, “não é para admirar que [ela] tenha mantido sempre bem alto [...] o facho da caridade”, mediante “preceitos” e “exemplos” que resumem “a doutrina e a ação social da Igreja” (5). Exemplo disso é a “imortal Encíclica RN”, na qual Leão XIII “formulou os princípios que haviam de resolver, cristãmente, a questão operária” (6). Com ela, “foi aberto um caminho novo à ação da Igreja” (7), cuja “eficácia” se mantém nos “documentos dos papas sucessores de Leão XIII” e na “organização dos povos”. Tudo isso mostra como “os sólidos princípios, as diretrizes históricas e as paternais advertências” da RN “conservam, ainda hoje, o seu valor” e sugerem “critérios novos e vitais” para o enfrentamento da questão social (8).

Primeira parte

A primeira parte oferece um resumo dos ensinamentos da RN de Leão XIII e seus desenvolvimentos posteriores na QA de Pio XI e na mensagem radiofônica La Solennitá de Pio XII, apresenta um panorama das profundas transformações que aconteceram nos últimos 20 anos e justifica a publicação na nova encíclica.

Quanto à RN, o texto começa descrevendo seu contexto histórico: “tempos de transformações radicais, de fortes contrastes e amargas rebeliões” (9); um dinamismo econômico “negador de toda relação entre moral e economia”, motivado unicamente pelo “interesse individual” e regido, “de modo exclusivo e automático, pelas leis do mercado”, no qual “o estado deve abster-se de qualquer intervenção no campo econômico” e os sindicatos ou são “proibidos” ou são “tolerados ou considerados como pessoas jurídicas de direito privado” (10); “uma ordem econômica radicalmente perturbada” (11), na qual, “enquanto nas mãos de uns poucos acumulavam-se riquezas imensas, as classes trabalhadoras iam gradualmente caindo em condições de crescente mal-estar” (12); “daí a profunda insatisfação nas classes trabalhadoras” e a propagação e consolidação do “espírito de protesto e de rebelião”, o que explica o apoio ou adesão a “teorias extremistas, que propunham remédios priores que os próprios males” (13). 

Neste contexto, Leão XIII publica “sua mensagem social, baseada na consideração da natureza humana e informada pelas normas e o espírito do Evangelho” – “um verdadeiro resumo do catolicismo, no campo econômico-social” (14). Foi um gesto audacioso, no qual o papa “não hesitou em proclamar e defender os direitos do operário” (15) e indicou “os princípios basilares [...], segundo os quais deve ser reconstruído o setor econômico e social da comunidade humana” (16). O texto passa indicar cinco desses princípios: a) O trabalho “não é mercadoria, mas um modo de expressão direta da pessoa humana” e, para muitos, “a única fonte dos meios de subsistência”; sua remuneração não pode ficar “à mercê do jogo automático das leis do mercado”, mas deve ser estabelecida “segundo as normas da justiça e da equidade” (17); b) A propriedade privada é “um direito natural que o Estado não pode suprimir”, mas “comporta uma função social” (18); c) O Estado existe em função do “bem comum” e “não pode manter-se ausente do mundo econômico”; ele “deve intervir com o fim de promover a produção de uma abundância de bens”, mas também “proteger os direitos de todos os cidadãos, sobretudo dos mais fracos”, “melhorar as condições de vida dos operários” (19) e “velar para que as relações de trabalho sejam reguladas segundo a justiça e a equidade” (20); d) Os trabalhadores têm o “direito natural de constituírem associações” e “agirem, no interior delas, de modo autônomo e por própria iniciativa, para assegurar a obtenção de seus legítimos interesses” (21); e) As relações entre operários e empresários devem inspirar-se “no princípio da solidariedade humana e da fraternidade cristã, uma vez que, tanto a concorrência de tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã da vida” (22).  Esses são “os princípios fundamentais em que deve basear-se, para ser sã, a ordem econômica e social” (23). Não por acaso, a RN “foi e continua a ser considerada como a Magna Carta da reconstrução econômica e social da época moderna” (24).

Quanto à QA, recorda o “direito” e o “dever” da Igreja contribuir na “solução dos problemas sociais”, “confirma os princípios fundamentais e as diretrizes históricas da encíclica leonina” e aproveita a ocasião para “precisar alguns pontos da doutrina [...] e para desenvolver o pensamento social cristão, atendendo às novas condições dos tempos” (26). E passa logo a indicar e esclarecer os pontos que mais levantavam dúvidas e provocavam polêmicas, inclusive entre os católicos: a) Com relação à propriedade privada, afirma “seu caráter de direito natural” e acentua “o seu aspecto e a sua função social” (27); b) Com relação ao regime de salários, “nega a tese que o declara injusto por natureza”, indica os “critérios em que deve inspirar-se e as condições a que é preciso satisfazer para não se lesar a justiça nem a equidade” (28) e propõe “suavisar o contrato de trabalho, com elementos tomados do contrato de sociedade” (29); c) Com relação ao socialismo moderado, afirma sua incompatibilidade com a fé: tanto por sua “concepção de vida fechada no temporal”, quanto por sua concepção de sociedade, “tendo a produção como fim único, não sem grave prejuízo da liberdade humana”, quanto ainda pela falta do “princípio de verdadeira autoridade social” (31).

Em seguida, destaca como Pio XI percebeu que “a situação histórica mudara profundamente” quarenta anos depois da RN: “à liberdade de mercado sucedeu a hegemonia econômica; à sede do lucro, a cobiça desenfreada do predomínio, de modo que toda a economia se tornou horrivelmente dura, inexorável, cruel, escravizando os poderes públicos aos interesses de grupo e desembocando no imperialismo internacional do dinheiro” (33). E propõe como remédio “o regresso do mundo econômico à ordem moral e a subordinação da busca dos lucros [...] às exigências do bem comum”, o que implica numa “reorganização da vida social”, mediante a “reconstituição de corpos intermediários autônomos”, o “restabelecimento da autoridade dos poderes públicos” e a “colaboração no plano mundial” (34). No fundo, os “temas fundamentais” da QA são “a justiça e a caridade social” como “regras supremas” das “atividades e instituições econômicas” (36) e “a criação de uma ordem jurídica, nacional e internacional, que se inspire na justiça social e à qual se conforme a economia” (37).

Quanto à Radio-mensagem de Pio XII, por ocasião do quinquagésimo aniversário da RN, reivindica para a Igreja a “competência de julgar se as bases de uma determinada ordem social estão de acordo com a ordem imutável que Deus Criador e Redentor manifestou por meio do direito natural e da revelação”, “reafirma a vitalidade perene dos ensinamentos da encíclica RN e a sua fecundidade inexaurível” e aproveita a ocasião para “expor ulteriores princípios diretivos de moral sobre três valores fundamentais da vida social e econômica” (39): a) Uso dos bens materiais: “o direito de todo homem usar daqueles bens para o seu próprio sustento tem prioridade sobre qualquer outro direito de natureza econômica, e mesmo sobre o direito de propriedade” (40); b) Trabalho: “um dever e um direito de todos e cada um dos homens”; a eles cabe, em primeiro lugar, “regular as relações mútuas do trabalho” e, “só no caso dos interessados não cumprirem ou não poderem cumprir o seu dever”, o Estado deve intervir (41); c) Família: “a propriedade privada dos bens materiais deve ser considerada como ‘espaço vital da família’”; “isso confere à família o direito de emigrar”; a eliminação da desconfiança traz “vantagem recíproca” e contribui para o “incremento do bem-estar humano e do avanço da cultura” (42).

O texto termina destacando as “profundas inovações” que ocorreram nos últimos vinte anos (43): seja no “campo científico, técnico e econômico” (44); seja no “campo social” (45); seja no “campo político” (46). Isso justifica a necessidade de numa nova encíclica e João XXIII aproveita a comemoração dos setenta anos da RN para “repetir e precisar pontos de doutrina já expostos por [seus] predecessores e, ao mesmo tempo, fazer uma exposição desenvolvida do pensamento da Igreja, relativo aos novos e mais importantes problemas do momento” (47).

Segunda parte

A segunda parte oferece uma síntese doutrinal que esclarece, adapta e desenvolve alguns pontos do ensinamento social anterior.

O texto começa afirmando que “o mundo econômico é criação da iniciativa pessoal dos cidadãos” (48), mas nele “devem intervir também os poderes públicos” (49) com “orientação, estímulo, coordenação, suplência e integração” e segundo o “princípio de subsidiariedade” (50). O desenvolvimento técnico-científico oferece possibilidades de “reduzir os desequilíbrios”, “limitar as oscilações” e enfrentar o “desemprego das massas” e o Estado “não pode deixar de sentir-se obrigado a exercer, no campo econômico, uma ação multiforme, mais vasta e mais orgânica” (51). Mas sua presença e ação nesse campo “não pode ter como meta reduzir, cada vez mais, a esfera da liberdade na iniciativa pessoal dos cidadãos” (52). A colaboração “dos cidadãos e dos poderes públicos” é fundamental para uma “convivência ordenada e fecunda” (53). E a “experiência ensina” que “onde falta a iniciativa pessoal dos indivíduos” domina “tirania política” e há “estagnação nos setores econômicos” e nos “serviços de utilidade geral” (54) e que “onde falta ou é defeituosa a necessária atuação do Estado, há desordem insaciável e os fracos são explorados pelos fortes” (55).

Em seguida, passa a falar do fenômeno da “socialização” como “um dos aspectos característicos de nossa época”. Ele “consiste na multiplicação progressiva das relações dentro da convivência social e comporta a associação de várias formas de vida e de atividade e a criação de instituições jurídicas”. Isso se deve a “multíplices causas históricas” (56), é “efeito e causa de uma crescente intervenção dos poderes públicos”, mas é também “fruto e expressão de uma tendência natural” dos seres humanos a “associarem-se para fins que ultrapassam as capacidades e os meios de que podem dispor os indivíduos em particular”. E isso explica “a grande variedade de grupos, movimentos, associações e instituições [diversas] tanto nos diversos países como no plano internacional” (57). Esse fenômeno possibilita “satisfazer muitos direitos da pessoa humana” e facilita a “participação nos acontecimentos de caráter mundial” (58), mas também “restringe o campo de liberdade de ação dos indivíduos” (59). Em todo caso, não deve ser considerado como “determinismo”, mas como obra de “seres conscientes e livres” (60). Sua realização deve ser orientada por uma “concepção exata do bem comum”, pela garantia de uma “autonomia efetiva” dos “corpos intermediários”, pela consideração de seus membros como “pessoas” (62) e por um “equilíbrio renovado” entre “indivíduos e grupos” e “autoridades públicas” (63). Desta forma, além de evitar o perigo de “oprimir os indivíduos”, ajudaria no seu desenvolvimento pessoal e na reorganização da “vida comum” (64).

Com relação ao trabalho, considera-se a exigência de justiça, “não só na distribuição da riqueza, mas também na estrutura das empresas” (79). 

Quanto à “remuneração do trabalho”: constata o “espetáculo tristíssimo de inumeráveis trabalhadores [que] recebem um salário que os submete, a eles e às famílias, a condições de vida infra-humanas” (65) e os enormes contrastes de rendimentos (66-67); afirma que a “retribuição do trabalho” não pode ser “abandonada às leis do mercado” nem “fixar-se arbitrariamente”, mas deve “estabelecer-se segundo a justiça e a equidade”, que o salário deve proporcionar ao trabalhador e sua família um “nível de vida verdadeiramente humano” e que sua determinação deve ter em conta os trabalhadores, as empresas e o bem comum (68); afirma que “o progresso social deve acompanhar e igualar o desenvolvimento econômico” (70) e que “a riqueza econômica de um povo não depende só da abundância global dos bens, mas também, e mais ainda, da real e eficaz distribuição deles segundo a justiça” (71); dado o “aumento da capacidade produtiva, por meio do autofinanciamento” em muitas empresas, defende um “título de crédito” para os trabalhadores destas empresas (72); recorda a colaboração capital-trabalho na produção da riqueza e a exigência de justiça em sua repartição, fazendo, inclusive, com que “os trabalhadores possam chegar a participar na propriedade das empresas” (73-74); e recorda que “o equilíbrio entre a remuneração do trabalho e o rendimento deve conseguir-se em harmonia com as exigências do bem comum” (75) nacional (76) e mundial (77) – isso vale também para a determinação dos rendimentos dos dirigentes das empresas e dos fornecedores de capitais (78). 

Quanto às “estruturas produtivas”: afirma que, quando “comprometem a dignidade humana [...], entorpecem sistematicamente o sentido da responsabilidade ou impedem que a iniciativa pessoal se manifeste, tal sistema é injusto, mesmo se, por hipótese, a riqueza nele produzida alcança altos níveis e é distribuída segundo as regras da justiça e da equidade” (80); defende com Pio XII (81) a conservação e promoção de empresas artesanais e cooperativas de produção (82-87) e a participação ativa dos trabalhadores nas médias e grandes empresas, o que exige uma “concepção humana de empresa” (88-93); destaca a necessidade da presença dos trabalhadores, não apenas em “cada organismo produtivo”, mas em “todos os níveis” da sociedade (94), já que “as resoluções, que mais influem no conjunto, não são tomadas pelo organismo produtivo, mas sim pelos poderes públicos ou por instituições de alcance mundial, regional ou nacional, pertencentes à economia ou à produção” (96); e manifesta satisfação e estima pelas “associações profissionais e os movimentos sindicais de inspiração cristã” (97-99) e pela Organização Internacional do Trabalho (100).

Por fim, o tema da propriedade privada: indica aspectos do mundo econômico atual que põem em dúvida o valor e a importância da propriedade (105): “separação entre propriedade dos bens de produção e as responsabilidades na direção” (101), confiança em “organismos assegurados ou de previdência social” (102) e maior aspiração a “conseguir habilitações profissionais do que tornar-se proprietário de bens” (103); afirma que “o direito de propriedade privada [...] tem valor permanente” por ser “um direito natural fundado sobre a prioridade ontológica e final de cada ser humano em relação à sociedade” e que onde esse direito é negado “são oprimidas e sufocadas as expressões fundamentais da liberdade” (106); esclarece com Pio XII que a defesa do “princípio da propriedade particular” não significa defesa do “estado presente das coisas”, mas “garantia da liberdade essencial da pessoa humana e elemento insubstituível da ordem social” (108); afirma que o princípio da justiça e equidade exige que, “crescendo o rendimento [...], seja também elevada a remuneração do trabalho”, o que permitiria aos trabalhadores “poupar e constituir um patrimônio” (109); recorda com Pio XII que o direito de “propriedade privada” está em função do direito mais fundamental de “uso dos bens” (111); reconhece a legitimidade da “propriedade pública” em função do “bem comum” e segundo o “princípio de subsidiariedade” (113-115); recorda que “o direito de propriedade [...] possui, intrinsecamente, uma função social” (116) e vê aí “um vasto campo à sensibilidade humana e à caridade cristã” (117).

Terceira parte

A terceira parte aborda aspectos novos da questão social. Ela já não se restringe às “relações entre operários e empresas”, mas diz respeito também “às relações entre os diversos setores econômicos, entre zonas economicamente desenvolvidas e zonas economicamente menos desenvolvidas dentro da economia nacional e às relações entre países desigualmente desenvolvidos em matéria econômica e social” (119).

No que diz respeito às relações entre os setores produtivos, a preocupação central é com o setor agrícola. Começa constatando um crescente “êxodo rural” (120), indicando um conjunto de fatores que provocam esse fenômeno, dentre os quais destaca o “fato de ser o setor agrícola, quase em toda parte, um setor deprimido, tanto no que diz respeito ao índice de produtividade da mão-de-obra, como pelo que se refere ao nível de vida das populações rurais” (121) e identificando como “problema de fundo” o desafio de “reduzir o desequilíbrio da produtividade entre o setor agrícola e o setor industrial e os vários serviços” (122). Em seguida, passa a indicar “algumas diretrizes” para enfrentar o problema (124): garantia de “serviços essenciais” (124); “transformações que dizem respeito às técnicas de produção, à escolha das culturas e à estrutura das empresas” (125); “política econômica hábil no que se refere ao regime fiscal, ao crédito, à previdência social, à defesa dos preços, ao fomento de indústrias complementares e à modernização dos estabelecimentos” (128); regime fiscal “segundo a capacidade contributiva dos cidadãos” (129), tendo presente que “os lucros se obtêm com maior lentidão no setor agrícola e estão expostos a maiores riscos” (130); “política especial de crédito que assegurem aos lavradores esses capitais, a uma taxa razoável de juros” (131); seguros sociais e previdência social (132-133); “disciplina eficaz na defesa dos preços” (134-17); indústrias e serviços agrícolas e outras inciativas econômicas como complemento de renda na zona rural (138); não perder de vista o ideal da empresa como “comunidade de pessoas” e de “dimensões familiares” (139); os agricultores devem ser os “protagonistas de progresso econômico e social e da elevação cultural” nos meios rurais (141); importância da “solidariedade”, das “iniciativas cooperativistas” e das “associações profissionais e sindicais” (143); “conservar-se dentro da ordem moral e jurídica”, tendo em conta as “outras profissões” e subordinando-se às “exigências do bem comum” (144); trabalho como “vocação e missão” (146).

Quanto às desigualdades entre zonas de um mesmo país, o texto afirma que as desigualdades entre cidadãos de um mesmo país “deve-se, principalmente, ao fato de viverem e trabalharem uns em zonas economicamente desenvolvidas e outros em zonas atrasadas”, que “a justiça e equidade exigem que os poderes públicos se empenhem em eliminar ou diminuir essas desigualdades” e que para isso é necessário que “sejam garantidos os serviços públicos essenciais” e uma “política econômica social adequada” que seja “capaz de promover a absorção e o emprego remunerador da mão-de-obra, de estimular o espírito empreendedor e de aproveitar os recursos locais” (147); afirma que a “ação dos poderes públicos” se justifica em função do “bem comum” e que deve ser exercida num “plano de conjunto para toda nação” que favoreça um “progresso gradual, simultâneo e proporcionado [na] agricultura, indústria e serviços”, tendo os cidadãos dessas zonas como “os responsáveis e os realizadores de sua elevação econômica” (148); afirma que “também a iniciativa particular deve contribuir para estabelecer o equilíbrio econômico e social entre as diferentes zonas” e que “os poderes públicos, em virtude do princípio de subsidiariedade, devem favorecer e ajudar a iniciativa privada” (149); e, no que diz respeito às “flagrantes desigualdades entre território e população”, afirma que “a solidariedade humana e a fraternidade cristã pedem que sejam estabelecidas, entre os povos, relações de colaboração ativa e multiforme, que permita e favoreça o movimento de bens, capitais e homens” (150-153).

Por fim, quanto às relações entre países desigualmente desenvolvidos, o texto começa falando do contraste entre as condições de vida dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos como “o maior problema da época moderna” e do dever de “solidariedade” dos países desenvolvidos; recorda que, “dada a interdependência cada vez maior entre os povos, não é possível que entre eles reine uma paz duradoura e fecunda, se o desnível das condições econômicas for excessivo” (154); indica uma dupla forma de solidariedade: “auxílio de urgência” (159) e cooperação científica, técnica e financeira  (160-162); faz algumas considerações e advertências: “procurar que o desenvolvimento econômico e o progresso social se sujeitem a um mesmo ritmo” (165), reconhecer e respeitar as características próprias de cada nação (166-167), risco de uma “nova forma de colonialismo (168-170), não esquecer que “os progressos científicos e técnicos, o desenvolvimento econômico, as melhorias nas condições de vida” têm “caráter de puros meios” (172) e que há uma “hierarquia de valores” (173); destaca a contribuição da Igreja no desenvolvimento econômico e social dos povos (175-181); afirma que a solução do problema do desequilíbrio entre crescimento demográfico e desenvolvimento econômico “encontra-se apenas num progresso econômico que respeite e fomente os genuínos valores humanos [...] e numa colaboração em escala mundial que permita e fomente a circulação ordenada e fecunda de conhecimentos úteis, dos capitais e das pessoas” (189); por fim, fala da “interdependência cada vez mais profunda e vital” entre os países e da necessidade de “entendimento e colaboração mútuo” (197-199), da falta de confiança e do temor mútuos que levam ao emprego de “imensas energias humanas e meios gigantescos para fins não-construtivos” (200-201) e conclui recordando que a confiança mútua é fruto do reconhecimento e do respeito à ordem moral e que Deus é o verdadeiro fundamento da ordem moral (204-208).

Quarta parte

A última parte da encíclica trata da dupla colaboração da Igreja (doutrina e ação) na solução dos problemas sociais no interior de cada país e no plano internacional. 

Por um lado, afirma que o “declínio” das ideologias modernas se deve a uma concepção parcial do homem que não leva em conta suas “imperfeições” e a “exigência religiosa” (210) e que “o aspecto mais sinistramente típico da época moderna consiste na tentativa absurda querer de construir uma ordem temporal sólida e fecunda, prescindindo de Deus [...] e querer proclamar a grandeza do homem, sacando a fonte donde ela brota e se alimenta” (214); e afirma que, frente a essas ideologias, “a Igreja apresenta e proclama uma concepção sempre atual da convivência humana” (215), cujo “princípio fundamental” reside na afirmação do ser humano como “fundamento, fim e sujeito de todas as instituições” (216); desse “princípio fundamental” a Igreja elaborou uma “doutrina social” que indica “o caminho seguro que leva ao restabelecimento das relações de convivência social segundo critérios universais [e] as características da sociedade contemporânea” (217); essa doutrina é “parte integrante da concepção cristã da vida” (219) e seu ensino deve ser intensificado (220); e não se pode esquecer que “a verdade e a eficácia da doutrina social católica se manifestam, sobretudo, na orientação segura que oferecem à solução dos problemas concretos” (222).

Por outro lado, afirma que “uma doutrina social não se enuncia apenas, aplica-se na prática, em termos concretos” (223); reconhece que “a passagem da teoria à prática é difícil, por natureza”, sobretudo no caso da doutrina social cristã, dados o “egoísmo”, o “materialismo” e a dificuldade de reconhecer em cada caso as “exigências objetivas da justiça” (226); afirma que “não basta fazer despertar e formar a consciência da obrigação”, mas é preciso também “ensinar o método que torne possível o cumprimento dessa obrigação” (227); adverte que a educação social cristã “dificilmente aparecerá eficaz, se os que a recebem não tomam nela parte ativa e se não for dada também através da ação” (228); propõe o método “ver, julgar e agir” como caminho de concretização dos “princípios e diretrizes sociais” (232); adverte contra o risco de nos perdermos em “discussões intermináveis” e, “sob o pretexto de conseguir o ótimo”, não realizarmos “o bom que é possível e, portanto, obrigatório” (234); orienta que na relação com “pessoas que não possuem a mesma concepção de vida”, os católicos devem ser “coerentes consigo mesmos” e mostrar “espírito de compreensão, desinteresse e disposição a colaborar lealmente na prossecução de objetivos bons por natureza ou que, pelo menos, se podem encaminhar para o bem” (235); afirma que isso é tarefa, sobretudo, do laicato (236) e deve ser exercida com competência e segundo os “princípios e diretrizes da doutrina social cristã” (237); sua importância é ainda maior numa época que se “distingue pelo contraste flagrante entre o imenso progresso científico e técnico e um espantoso regresso no campo dos valores humanos” (239); exorta à observância da “hierarquia dos valores” (240-242), do “terceiro preceito do decálogo” (243-247) e insiste na “obrigação cristã para com o mundo” (248-250); conclui afirmando que a abertura “aos valores espirituais e aos fins sobrenaturais” confere maior eficácia “aos fins específicos e imediatos” das atividades e instituições temporais (251) e recordando que, como “membros vivos do Corpo Místico de Cristo” (252), “todo trabalho e todas as atividades, mesmo as de caráter temporal, que se exercem em união com Jesus, divino Redentor, tornam-se prolongamento do trabalho de Jesus e dele recebem virtude redentora” (253).

Conclusão

O papa conclui afirmando que o olhar sobre os “diversos problemas da vida social contemporânea” e as “luzes do ensinamento do papa Leão XIII” o levaram a formular “um conjunto de observações que formam um programa”. Convida todos a ponderarem e meditarem essas observações e a cooperarem na “realização do Reino de Cristo na Terra” (255). Recorda que se trata da “doutrina da Igreja Católica e Apostólica, mãe e mestra de todas as gentes, cuja luz ilumina e abrasa, cuja voz [...] pertence a todos os tempos, cuja virtude oferece sempre remédios eficazes, suscetíveis de trazerem solução para as crescentes necessidades dos homens, para as angústias e aflições desta vida” (256). Faz votos de que “o divino Redentor reine e triunfe em todos os homens e sobre todas as coisas” e que, “restabelecida a ordem na sociedade, todas as gentes gozem, finalmente, de paz, de prosperidade e de alegria” (257) e concede sua “benção apostólica” (258).

III - DESTAQUES

Tendo contextualizado a MM e feito uma apresentação global da estrutura e do conteúdo do texto, indicaremos alguns pontos que nos parecem relevantes para uma adequada compreensão desta encíclica que pode ser tomada como uma “encíclica de transição” no contexto mais amplo do desenvolvimento da doutrina social da Igreja.

1. O texto é marcado por uma tensão permanente que o mantém em continuidade com a doutrina social elaborada anteriormente e o abre a novos desafios, horizontes e desenvolvimentos (CAMACHO, 1995, p. 186). A MM de João XXIII se insere claramente na tradição inaugurada por Leão XIII: foi publicada por ocasião do septuagésimo aniversário da RN (47); trata a RN como encíclica “imortal” (6), “síntese orgânica” ou “resumo do catolicismo no campo econômico-social (14) e “Magna Carta da reconstrução econômica e social da época moderna” (24); tem como um de seus objetivos fundamentais “repetir e precisar pontos de doutrina já expostos pelos [seus] predecessores” (47); oferece logo no primeiro capítulo uma síntese dos ensinamentos sociais de Leão XIII, Pio XI e Pio XII (9-15) e retoma constantemente esses ensinamentos ao longo do texto. Mas não é mera repetição do que foi dito anteriormente. Além de se propor a “fazer uma exposição desenvolvida do pensamento da Igreja relativo aos novos e mais importantes problemas do momentos” (47), sua retomada dos documentos anteriores se dá em função dos desafios do presente e é “condicionada pelas novas ênfases que se foram incorporando à doutrina com o passar do tempo e com as mudanças históricas” (CAMACHO, 1995, p. 189s), como se pode ver na ênfase dada ao trabalho (17) e à função social da propriedade (18) na RN (CAMACHO, 1995, 189-192).

2. Camacho se refere à MM como uma “encíclica de transição” no contexto mais amplo do magistério de João XXIII e do desenvolvimento histórico da doutrina social da Igreja (CAMACHO, 1995, p. 183). Bigo e Ávila afirmam que ela “inaugura uma fase nova e decisiva na evolução do pensamento social da Igreja” (BIGO-ÁVILA, 1986, 191). E os comentadores em geral destacam sua novidade em relação ao período anterior (RICCARDI, 1993, p. 39-43; ALBURQUERQUE, 2006, p. 127; BIGO, 1969, p. 62s; GUTIÉRREZ, 1995, p. 47). Essa novidade diz respeito, antes de tudo, à ampliação da chamada “questão social” (ANDRADE, 1991, p. 229s; ALBURQUERQUE, 2006, p. 130; BIGO-ÁVILA, 1986, p. 191-194): enquanto a RN se enfrenta com a questão operária e a QA com a questão da ordem social, a MM, sem negar essas questões e alargando seu horizonte, enfrenta-se com a questão das relações entre os povos. Mas ela diz respeito também a uma “nova sensibilidade” no trato das questões sociais, sempre vinculada à personalidade de João XXIII, marcada por uma “serena confiança na realidade” e um “otimismo aberto em relação ao futuro” (CAMACHO, 1995, p. 187): João XXIII “é o primeiro papa [do século XX] que assume com alegria os valores próprios do mundo moderno” (GUTIÉRREZ, 1995, p. 47). Junto a essa atitude de confiança e otimismo para com o mundo, há também um estilo/modo e uma linguagem menos filosófico-abstratos e mais concreto-empíricos de tratar a realidade, mais próximos da mentalidade atual (CAMACHO, 1995, p. 187; ALBURQUERQUE, 2006, p. 130). Essas mudanças são tão significativas que inauguram uma nova etapa na doutrina social da Igreja.

3. Além dessas mudanças mais estruturais que dizem respeito à dimensão mundial dos problemas sociais e à nova sensibilidade no trato da questão social, há problemas ou temas novos na MM que enriquecem e alargam o horizonte da doutrina social da Igreja. Três deles merecem destaque. No segundo capítulo, o texto trata do fenômeno da “socialização” (56-64) como “um dos aspectos característicos de nossa época” (56). O destaque dado a esse fenômeno e o silêncio completo em torno do “corporativismo” parece indício de que para João XXIII a “socialização” responde melhor aos desafios do mundo atual que o “corporativismo” (CAMACHO, 1995, p. 197; BIGO, 1969, p. 289). No terceiro capítulo, aparecem dois temas novos. Por um lado, a problemática agrária (120-146): “a MM foi a primeira encíclica que tratou longamente da matéria” e chegou a ser chamada “a Carta Magna da agricultura”. Beozzo recorda que João XXIII tratou do problema agrário em pelo menos 15 diferentes documentos e que essa sensibilidade talvez se deva a sua origem camponesa (BEOZZO, 1993, p. 131). Por outro lado, a relação entre povos desenvolvidos e povos subdesenvolvidos (154-181) aparece como “o maior problema da época moderna” (154) e a encíclica apresenta aqui intuições preciosas acerca da cooperação entres os povos (155-162) e acerca da concepção de desenvolvimento (165-174) (CAMACHO, 1995, p. 206-208; BIGO-ÁVILA, 1986, p. 192-194).

4. No que diz respeito ao problema da relação entre povos desenvolvidos e povos subdesenvolvidos, convém ainda destacar com Bigo e Ávila que é a primeira vez que a “temática do subdesenvolvimento” aparece de modo explícito no “pensamento oficial da Igreja” (BIGO-ÁVILA, 1986, p. 192) e chamar atenção para a compreensão de “desenvolvimento” e de “bem comum” que aparece na MM, cuja importância será decisiva na reflexão eclesial e sociopolítica em geral. Quanto à compreensão de “desenvolvimento”: a) conjuga o “econômico” e o “social” (70), a “abundância global de bens” e a “real e eficaz distribuição deles segundo a justiça” (71), o “produzir mais e melhor” e o “repartir-se equitativamente a riqueza produzida” (165); b) respeita as características próprias de cada comunidade tanto no que se refere ao “ambiente natural” quanto no que se refere às “tradições” e às “qualidades” de cada povo (166); c) trata “os progressos científicos e técnicos, o desenvolvimento econômico, as melhorias nas condições de vida” não como “valores supremos”, mas como “puros meios” (172). Quanto à noção de “bem comum”, compreende “o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade” (62). Essas intuições apenas indicadas e esboçadas serão desenvolvidas em documentos posteriores.

5. A MM realiza ou ao menos inicia um sutil deslocamento de foco da “propriedade” para o “trabalho” na doutrina social da Igreja. Dada sua centralidade na RN, o tema da propriedade aparecia sempre como questão central no ensino social da Igreja. É verdade que o acento na dimensão social da propriedade na QA e a consequente afirmação do primado do direito de “uso dos bens” sobre o direito de “propriedade privada” por Pio XII já haviam produzido certa relativização do tema. E é verdade também que não se pode entender a posição de João XXIII sem essa relativização anterior que, em boa medida, está ligada à mudança de contexto em que se desenvolve e ao qual responde a reflexão social dos referidos papas. Mas a MM vai muito além dessa relativização e inaugura um verdadeiro deslocamento de foco. Já no primeiro capítulo, ao retomar o ensino dos papas anteriores, inclusive Leão XIII, constata-se uma clara relativização da propriedade. E, no segundo capítulo, chama atenção o fato do tema da propriedade aparecer em último lugar entre os temas abordados e de indicar um conjunto de aspectos no mundo econômico que pareceria pôr em dúvida o “valor” e a “importância” da propriedade (101-105). Fato é que o tema da propriedade não tem mais a mesma importância que tinha na RN (CAMACHO, 1995, p. 189-192, 202-204).

6. Centralidade do tema justiça e equidade. Isso perpassa o texto inteiro, mas é particularmente visível no terceiro capítulo que trata dos novos aspectos da questão social. Todo o capítulo está centrado na constatação da desigualdade e nas “exigências da justiça e da equidade” no interior dos países (entre setores econômicos e entre zonas econômicas) e nas relações entre os países (119) (CAMACHO, 1995, p. 192). E isso se materializa em contextos e problemas os mais diversos que aparentemente nada têm a ver um com o outro, como a agricultura, a relação entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos e o crescimento demográfico. No caso da agricultura, chama atenção a objetividade e precisão nas diretrizes/propostas apresentadas (123-144). No caso das relações entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, chama atenção a advertência contra o risco de uma “nova forma de colonialismo” (169) por parte dos países desenvolvidos que consistiria em “se aproveitarem da cooperação técnica e financeira que prestam para influir na situação política das comunidades em fase de desenvolvimento econômico a fim de levar a cabo planos de predomínio” (168). Quanto ao crescimento demográfico, frente a políticas de controle de natalidade, formula o problema em termos de “progresso econômico e social” e “colaboração em escala mundial” (189) (CAMACHO, 1995, p. 208s).

7. Por fim, merece destaque, no último capítulo, a indicação de um conjunto de princípios e diretrizes para a ação dos cristãos no campo social: aplicação da doutrina social em “termos concretos” (223); “a passagem da teoria para a prática é difícil” (226): não basta “despertar e formar a consciência da obrigação de proceder cristãmente no campo econômico e social”, é preciso também um “método que torne possível o cumprimento desta obrigação” (227); a educação cristã no campo econômico e social “dificilmente aparecerá eficaz, se os que a recebem não tomam nela parte ativa e se não for dada também através da ação” (228); método ver-julgar-agir: “estudo da situação, apreciação da mesma à luz [dos] princípios e diretrizes, exame e determinação do que se pode e deve fazer para aplicar os princípios e as diretrizes à prática, segundo o modo e no grau que a situação permite ou reclama” (232); lidar com as divergências sem faltar com “a consideração, o respeito mútuo e a boa vontade em descobrir os pontos onde existe acordo”, sem se perder em “discussões intermináveis” e, “sob o pretexto de conseguir o ótimo, [deixar] de realizar o bom que é possível e, portanto, obrigatório” (234); “a verdade e a eficácia da doutrina social católica se manifestam, sobretudo, na orientação segura que oferecem à solução dos problemas concretos” (222).

Referências 

ALBURQUERQUE, Eugenio. Moral social Cristiana: Camino de liberación y de justicia. Madrid: San Pablo, 2006.

ANDRADE, Paulo Fernando Carneiro. Fé e eficácia: O uso da sociologia na teologia da libertação. São Paulo: Loyola, 1991.

BEOZZO, José Oscar – ALBERIGO, Giuseppe (orgs.). Herança espiritual de João XXIII: Olhar posto no amanhã. São Paulo: Paulinas, 1993.

BEOZZO, José Oscar. “Recepção do pontificado de João XXIII na Igreja do Brasil”. In: BEOZZO, José Oscar – ALBERIGO, Giuseppe (orgs.). Herança espiritual de João XXIII: Olhar posto no amanhã. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 105-175.

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Notas

[1] Por questão de praticidade, usaremos a tradução do documento feita pelas Paulinas e seguiremos a numeração ai proposta (JOÃO XXIII, 2010). A partir de agora, os números entre parêntesis, sem outra indicação, remetem à numeração desta obra.