Roberto Nentwig*
*Doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC RJ). Professor da Pontifícia Universidade do Paraná (PUC PR). Contato: beto.catequese@gmail.com
Diogo Marangon Pessotto**
**Mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC PR). Contato: diogopessotto@hotmail.com
Regis Soczek Bandil***
***Mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Contato: regissoczek@gmail.com
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Resumo:
Nosso tempo é marcado pela ambiguidade, cujas implicações para o sujeito e instituições são sentidas na absolutização das individualidades e ausência de sentidos. A experiência cristã é desafiada por esse contexto, sendo motivada a revisitar, discernir e repropor seus referenciais. O objetivo deste trabalho é analisar as noções de vocação, liberdade e evangelização à luz da experiência do discernimento, segundo Francisco, tendo em vista a identificação de possíveis articulações entre tais pautas da experiência cristã e a realidade atual. As referidas noções nos auxiliam na compreensão da importância do discernimento em face dos pluralismos contemporâneos.
Palavras-Chave: Discernimento; Francisco; Vocação; Liberdade; Evangelização
Abstract:
Our time is marked by ambiguity, whose implications for the subject and institutions are realized in the absolutization of individualities and the absence of meaning. The christian experience is challenged by this context, being motivated to revisit, discern and propose its references. The objective of this work is to analyze the notions of vocation, freedom and evangelization in the light of the experience of discernment according to Francis with a view to identifying possible links between such guidelines of the christian experience and the current reality. These notions help us to understand the importance of discernment in the face of contemporary pluralisms.
Keywords: Discerniment; Francis; Vocation; Freedom; Evangelization
Vivemos atualmente em um contexto marcado por três grandes características: a) a absolutização das individualidades; b) o enfraquecimento das instituições; e c) a ausência de sentidos e referenciais. Tais características são potencializadas (e potencializam) os diversos pluralismos culturais, sociais, políticos e religiosos. Existimos num mundo fluido, líquido, exageradamente instável e notoriamente irracional, o que é demonstrado pela instrumentalização da pessoa humana em face de interesses escusos de natureza político-econômica.
A mensagem cristã parece estar na contramão dessa realidade: a) primazia da comunidade; b) unidade da Igreja na diversidade de seus membros; c) centralidade de Jesus Cristo e seu Evangelho. Todavia, no contexto a que nos referimos anteriormente, tais princípios tornam-se irrelevantes na medida em que podem não ser significativos ao sujeito contemporâneo. Sua relativa compreensão – que outrora estava condicionada à pretensa transmissão da fé por tradição familiar (herança da cristandade) – é agora relegada a um pequeno grupo de pessoas que vivem o cotidiano da comunidade eclesial, cuja imagem pública remete a um espaço separado e à margem da cultura e da sociedade. A experiência cristã não é mais a fonte dos sentidos e referenciais para os indivíduos da sociedade das múltiplas verdades.
Repropor, então, a mensagem cristã de modo significativo para o mundo hodierno não pressupõe maior força de imposição (atitude triunfalista) ou mesmo atitudes de confronto religioso (atitude bélica). O agir cristão está radicado na adesão livre à Pessoa de Jesus Cristo mediante um encontro pessoal que orienta por inteiro a vida[1]. Ora, nunca antes foram tão necessárias a formação das consciências e uma maturidade eclesial que privilegiem o discernimento como atitude preponderante para o agir pessoal e pastoral. Tal discernimento, na perspectiva da fé, envolve a escolha fundamental (vocação), as escolhas pessoais (liberdade) e a vida e missão da Igreja (evangelização), porque há, na experiência cristã, uma interdependência entre a pessoa e a comunidade (cf. 1Cor 12,12-26).
Por essa razão, a experiência cristã é desafiada pelo contexto atual a revisitar, discernir e repropor seus referenciais. O Papa Francisco tem procurado levar a termo tal urgência, reconhecendo-a como essencial para a transformação missionária da Igreja. Mais ainda: tem apresentado o discernimento como caminho seguro para esse intento. Assim, com o presente trabalho, procuraremos analisar as noções de vocação, liberdade e evangelização à luz da experiência do discernimento segundo Francisco tendo em vista a identificação de possíveis articulações entre tais pautas da experiência cristã e a realidade atual.
A história humana é marcada pela ambiguidade. O tempo em que vivemos é ainda mais afetado por ela. Segundo Lipovetsky (2005, p. 9-12), a sociedade atual pode ser chamada de sociedade do pós-dever. Para o autor, a ética não se ausentou da cultura humana; porém, é preciso que se diga que a conduta das pessoas e das instituições é menos baseada nas obrigações impostas. As ordens e as proibições têm cada vez menos força para provocar transformações vitais. Na religião, as imposições radicadas em sanções que se fundamentam em uma lei transcendente parecem não chegar ao seu objetivo, pois não evidenciam as consequências práticas na vida cotidiana.
Tal ambiguidade se manifesta quando, ao lado da sociedade do pós-dever, emergem restrições à liberdade. Se é verdade que as últimas décadas se edificaram sobre um forte ideal de liberdade, é também certo que depois da crise financeira de 2008 a narrativa liberal perdeu espaço. A sociedade democrática, alicerçada no capitalismo, que pretendia garantir a efetivação do indivíduo livre, mostrou sua fraqueza, dando espaços para novas posturas conservadores como a emergência de ditaduras, o medo da imigração, o Brexit e a ascensão de lideranças mundiais como Donald Trump (cf. HARARI, 2018, p. 23).
Vivemos o emaranhado de relações do mundo plural e virtual. Nessa sociedade há o enfraquecimento das instituições, emergem religiões e religiosidades que promovem experiências epidérmicas e subjetivas e a fé cristã não tem mais a força de uma matriz cultural ocidental. Do mesmo modo presenciamos a passagem do ateísmo militante para uma indiferença tranquila. Emergem pluralidades com as quais é necessário dialogar e minorias que reivindicam o seu status: mulheres, gays, afrodescendentes, migrantes, etc.
Em face de tal pluralidade, vemos o habitante urbano enclausurado em seus condomínios e apartamentos, sinal do individualismo. A presença humana é menos física. Se podemos falar de uma saída de quem vive na sociedade da crise da modernidade, ela é virtual: as pessoas saem para navegar, conectar-se ou para pelejar na ágora das redes sociais, mostrando todo o ressentimento que não tinha voz e tornando públicas ideias loucas e sem fundamentos. O mundo digital é uma das grandes marcas da ambiguidade de nosso tempo. Encurtaram-se distâncias e processos foram acelerados. Surgiu igualmente a dependência digital e as relações foram enfraquecidas. A evolução tecnológica trará ainda outras marcas nas próximas décadas, como a ditadura digital: prevê-se que cada vez mais delegaremos muitas das nossas atividades e até decisões aos programas de computadores. Nesse contexto, em que medida podemos avaliar a liberdade humana? (cf. HARARI, 2018, p. 69-101) De fato, a sociedade descrita por Lipovetsky parece seguir entre as égides da liberdade e da escravidão.
Fala-se, por conseguinte, de uma sociedade da razão débil (cf. PALACIO, 2001, p. 68-72). O conhecimento não é mais fonte de sabedoria, como se propunham ser as filosofias antiga e medieval. Não se pensa mais a partir dos grandes valores referenciais. Hoje, muito depende do interesse imediato, verificável, até fútil, do instante, do que promete felicidade no aqui e no agora. O sujeito se tornou absoluto, relegando ao segundo plano a verdade do objeto em si. Há a absolutização do imanente que, por vezes, retira ou até instrumentaliza o transcendente. O pensamento fraco é uma espécie de estado de penúria da reflexão e do ser humano. Se a ânsia pela liberdade não consegue êxito, se a pluralidade e a virtualidade criam confrontos intermináveis e se a razão se torna débil, o que ganha força? Entre as tantas marcas do nosso tempo, sobressalta-se a falta de sentido. A razão instrumental que pretendia explicar todos os fenômenos da vida não chegou ao seu termo. Os sistemas ruíram, bem como os totalitarismos, seus filhos. Deseja-se o paraíso na terra, depois da decepção de um paraíso no céu, mas este também parece não ter vindo. Se estamos diante de grandes descobertas e evoluções no campo da ciência e da tecnologia, também precisamos encontrar soluções para a falta de sentido e para os problemas de fronteira, como os terrorismos, a violência, o sexismo e o irracionalismo das zonas tenebrosas da existência. Um ser humano que outrora se dizia racional está diante de muitas irracionalidades.
Diante desse panorama de ambiguidades, entre liberdades e totalitarismos, ânsias e decepções, razão e irracionalidade, concreto e virtual, a experiência cristã se vê desafiada, mais do que nunca, a discernir suas escolhas. É esta a indicação do Papa Francisco que, fiel à sua formação jesuítica, propõe o discernimento como uma prática da mais pura autenticidade evangélica.
Na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium (EG), Francisco propõe uma análise de conjuntura, intitulando-a “Na crise do compromisso comunitário” (EG 50), na qual trata de alguns desafios contemporâneos. Contudo, não o faz com “um olhar puramente sociológico” (EG 50). Ao contrário, faz “um discernimento evangélico” (EG 50), como “olhar do discípulo missionário que ‘se nutre da luz e da força do Espírito Santo’” (EG 50). Tal discernimento, no Espírito, é a contemplação da realidade com os óculos do Evangelho. E é justamente o mesmo Espírito Santo que revela os sentidos do Evangelho: “Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14,26).
Francisco enfatiza a importância do discernimento evangélico em virtude da herança espiritual de Inácio de Loyola. Como jesuíta, Francisco foi formado na dinâmica dos Exercícios Espirituais, dos quais o discernimento espiritual é eixo fundamental. Este “nos possibilita crescer nos caminhos de Deus e conhecer, no cotidiano, o seu projeto de amor” (RECH, 1998, p. 132). Por conseguinte, é o Espírito que mobiliza a vida interior e orienta os afetos para o entendimento de tal projeto, expresso em plenitude em Cristo, a Boa-Nova do Pai. Se isso vale para o crescimento pessoal, vale também para a vida da Igreja, que, dócil ao Espírito, busca considerar evangelicamente a realidade. Desse modo, ao evidenciar tal discernimento como condição para a fidelidade da Igreja ao Evangelho e sua atuação pastoral no mundo, Francisco afirma a ação do Espírito como necessária e essencial para a compreensão daquilo que o Evangelho diz à Igreja e aos cristãos hoje. Só é possível, então, o discernimento se houver uma atitude de abertura e docilidade ao Espírito, pois é Ele quem nos comunica a vida de Cristo. Para Miranda (2015, p. 92), a abertura à ação iluminadora do Espírito Santo transforma a mentalidade do cristão e lhe dá o olhar de Jesus.
Para manter vivo o ardor missionário, é necessária uma decidida confiança no Espírito Santo, porque Ele ‘vem em socorro de nossa fraqueza’ (Rm 8,26). Mas essa confiança generosa tem de ser alimentada e, para isso, precisamos invocá-Lo constantemente. Ele pode curar-nos de tudo o que nos faz esmorecer no compromisso missionário. É verdade que essa confiança no invisível pode causar-nos alguma vertigem: é como mergulhar num mar onde não sabemos o que vamos encontrar [...] não há maior liberdade do que a de se deixar conduzir pelo Espírito [...] (EG 280).
Vale salientar que o discernimento está presente radicalmente na Escritura. O Salmo 1 nos remete aos “dois caminhos”. O Livro do Deuteronômio (cf. Dt 30,19) apresenta-nos a necessidade da escolha da vida em detrimento da morte. A Primeira Carta de Paulo aos Tessalonicenses (cf. 1Tes 5,19) indica-nos o exame de tudo para abraçarmos o que é bom. Esta atitude é graça, carisma, dom do Espírito: o “discernimento dos espíritos” (1Cor 12,10). Biblicamente, em suma, o discernimento serve à edificação pessoal e eclesial e ao bem comum.
Jesus, ao reportar-se às multidões, indica o discernimento:
Quando vedes uma nuvem no ocidente, logo dizeis que vem chuva; e assim acontece. Quando percebeis o vento sul, logo dizeis que vai fazer calor; e assim acontece. Hipócritas! Sabeis avaliar o aspecto da terra e do céu e não sabeis avaliar o tempo presente? Por que não julgais por vós mesmos o que é justo? (Lc 12,54-57)
O discernimento também se refere à consideração dos sinais dos tempos. Em EG, Francisco faz referência a essa expressão por três vezes[2], vinculando-lhe expressões como: estudo, leitura, escuta do Espírito, reconhecimento comunitário, realidade, vigilância,... Ou seja, uma abordagem inadequada pode esvaziar a noção de sinais dos tempos, atribuindo-lhe unicamente um sentido temporal: sinais que acontecerão no período próximo ao fim do mundo material. Reposicionando tal sentido, dizemos que sua pertinência é escatológica, a saber, o definitivo de Deus: Deus definitivamente sempre e continuamente fala, mostra-se, dialoga e relaciona-se conosco por meio da realidade concreta que vivemos. O discernimento cristão como dom e atitude nos é concedido para “lermos” estes sinais e reconhecermos neles a presença e a atuação de Deus na história.
Para Francisco, o discernimento é muito mais do que uma iluminação pessoal para a observação da realidade que nos cerca. O discernimento é transformador e nos impele para a missão, justamente porque nos coloca numa atitude de confiança e entrega total aos desígnios da Trindade. Ela bem sabe o que é necessário para cada época e para cada tempo. “O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde quer [...] Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário” (EG 279). Segundo Codina (2016, p. 266, trad. nossa),
Nos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola, o discernimento possui um papel capital na busca da vontade de Deus. Assim, o discernimento é uma lógica existencial para descobrir o que Deus quer de cada um, em cada situação. O jesuíta Jorge Mario Bergoglio, que se encontra no interior dessa corrente espiritual, não só dá ao discernimento uma dimensão pessoal, senão que, além disso, dá-lhe uma dimensão pastoral, já que o entende como um instrumento para ajudar a outros em seu caminhar até o Senhor.
O exercício do discernimento é (e sempre foi) presente na vida da Igreja. O reconhecimento da vontade de Deus e nossa adesão livre a esta vontade – sem rechaçar os diversos condicionamentos humanos, culturais, sociais e religiosos – manifesta-se em alguns sinais: paz, alegria, serenidade, força interior, vivência mais profunda das virtudes teologais, sentido de pertença à comunidade, entrega aos irmãos, especialmente os mais pobres e fracos, etc.
Na perspectiva de Francisco, como vimos, o discernimento extrapola o nível pessoal na direção da vida e missão da Igreja. Daí que o discernimento eclesial é operado tanto ao interno da comunidade eclesial como ao seu externo, no diálogo com as demais instâncias da cultura e da sociedade. Esse duplo movimento é conjugado, de modo que um depende do outro. A unidade na diversidade de carismas e ministérios, em vista do Reino de Deus, edifica a Igreja e sustenta sua missão, tal como nas primeiras comunidades (cf. At 2,42-47; 1Cor 12,12-31). Ao mesmo tempo, o diálogo com as culturas e sociedades impõe à Igreja discernir os caminhos da evangelização conforme as exigências de cada tempo. Discernir, por exemplo, o que é humano e o que degrada sua dignidade é também tarefa da Igreja em seus diálogos com o mundo.
Passamos, a seguir, à análise das noções de vocação, liberdade e evangelização à luz da experiência do discernimento tal como proposta por Francisco no transcurso de seu magistério. O cristão, basicamente, constitui-se pela sua escolha fundamental, pelas suas escolhas livres e pela sua missão no mundo. Ainda que as realidades a que as mencionadas noções fazem referência encontrem-se imbricadas, nossa opção por essa ordem se deve ao fato de que, na perspectiva do discernimento, a experiência cristã repercute da pessoa para a comunidade e da comunidade para o mundo, de modo que o discernimento vocacional implica e prepara escolhas livres, que, por conseguinte, pautam o agir cristão em termos missionários.
A vocação é um chamado de Deus para todos. O primeiro deles à vida, depois à amizade com Ele, à santidade, ao serviço e a uma vocação específica. É uma resposta pessoal e de colaboração gratuita no projeto de Deus, que nos ama incondicionalmente. Na dinâmica vocacional, o contato pessoal é a marca de Jesus: ele gera relação, vínculo e mudança de vida. Francisco, na Exortação Apostólica Christus Vivit (CV), afirma:
A salvação que Deus nos dá é um convite para fazer parte de uma história de amor que se entrelaça com nossas histórias; que vive e quer nascer entre nós para que produzamos frutos onde quer que estejamos, como estejamos e com quem estejamos. Precisamente aí vem o Senhor a plantar e plantar-se (CV 253).
Vocação não é multiplicação de atividades, mas itinerário de muitos esforços, lutas, doação, disponibilidade e serviço. No agir vocacional deve prevalecer o essencial, sob o risco de o superficial absorver a totalidade das energias e transmutar vocação em “profissão”, o que não raras vezes presenciamos na realidade eclesial atual. Nesse sentido, se vocação, à luz de nossa relação com a Trindade, é uma progressiva descoberta da vontade de Deus para nossa existência, está aí imbricado um processo decisivo de discernimento. Porém, o que significa discernir a vocação? Eis a resposta de Francisco a essa hipotética pergunta: “Tua vocação te orienta para oferecer o melhor de ti para a glória de Deus e para o bem dos outros. Não se trata apenas de fazer coisas, mas fazê-las com um significado, com uma orientação” (CV 257). Na esteira dessa afirmação, CV, que trata, dentre tantos assuntos, do discernimento vocacional juvenil, apresenta alguns elementos que compõem o discernir da vocação.
a) O sonhar é parte do discernir (CV 136-143). Não se trata do alimento de ilusões, mas do desejo interior de servir a Deus no serviço dos irmãos e irmãs não obstante os desafios e obstáculos da realidade que nos circunda.
b) A consciência sacramental (CV 264). Vislumbrar honestamente as possíveis consequências, exigências e alegrias do matrimônio ou do ministério ordenado é realizar um processo de discernimento vocacional que poderá resultar na recepção de uma graça eficaz (sacramento) que implicará sua acolhida e resposta pessoal.
c) Desafios e dificuldades (CV 264). As dificuldades enfrentadas por inúmeras famílias, o individualismo, a cultura do provisório e do descarte, o relativismo e a ausência de sentido de vida podem nublar um autêntico discernimento, orientando escolhas imediatas e até mesmo arbitrárias como forma de rejeitar o compromisso com o outro e o sofrimento.
A partir de CV, Guillama (2018, p. 174-176, trad. nossa) delineia o que denomina “discernimento espiritual, processo integral”. Tal discernimento é o que fundamenta o discernimento vocacional, uma vez que vincula os aspectos antropológico, batismal/missionário e eclesial à vocação.
a) O aspecto antropológico vocacional implica a seguinte pergunta: qual é o sentido da vida? O discernimento cristão parte do imperativo evangélico do serviço: o reconhecimento da vida como dom gratuito de Deus motiva o serviço aos irmãos. “A pessoa é capaz de transformar e dar um sentido à sua vida; relaciona-se desde a solidariedade tratando a cada um como igual, propõe a vida em comunidade, busca o encontro, a comunicação [...]” (GUILLAMA, 2018, p. 175, trad. nossa).
b) O aspecto batismal da vocação propõe a seguinte questão: qual é o compromisso discipular missionário? Trata-se de um processo de discernimento resultante da relação pessoal com Deus que toca todas as dimensões da vida: o encontro pessoal com Cristo; a conversão perene; o discipulado; a busca da santidade; e a missão. A vocação cristã supõe proximidade e relação dialógica com Deus que transborda na vida cotidiana. Esta relação e este transbordamento acabam por ser objeto do discernimento vocacional.
c) O aspecto eclesial da vocação destaca a pergunta: qual é o estado de vida? Tal resposta compreende maturidade e liberdade, atitudes de um autêntico discernimento. A acolhida pessoal do projeto de Deus reivindica um adequado processo de discernimento que se traduzirá na permanente oblação da vida com vistas à busca do bem comum. A definição por um estado de vida não conclui o discernimento da vocação, que passa a revisar continuamente motivações e ações.
Repercutindo o conteúdo de CV, Guillama (2018, p. 176, trad. nossa) afirma:
Na base do discernimento podemos identificar três convicções... A primeira é que o Espírito de Deus atua no coração de cada homem e de cada mulher por meio de sentimentos e desejos que se conectam a ideia, imagens e projetos. Escutando com atenção, o ser humano tem a possibilidade de interpretar estes sinais. A segunda convicção é que o coração humano, devido à sua debilidade e ao pecado, apresenta-se normalmente dividido devido à atração de diferentes reivindicações, ou inclusive opostas. A terceira convicção é que, em qualquer caso, o caminho da vida impõe decidir, porque não se pode permanecer indefinidamente na indeterminação. Porém, é necessário dotar-se dos instrumentos para reconhecer a chamada do Senhor, a alegria do amor e escolher responder a ele.
Francisco, portanto, convida e desafia a Igreja a ajudar os jovens (e a todos) a formarem consciências de maneira profunda e sólida. É um itinerário para toda a vida, permeado pela experiência do discernimento como promotor de escolhas e revisões de escolhas em prol de outras ações. A escolha vocacional se desdobra nas sucessivas escolhas livres e discernidas ao longo da vida, como veremos.
Após reflexão sobre a relação entre discernimento e vocação, trataremos agora da relação entre discernimento e liberdade. Abordada na sessão anterior a decisão fundante da pessoa, agora trataremos das decisões éticas pertinentes à sua existência.
A base das decisões, em termos inacianos, está no discernimento dos espíritos. Nesta linha, uma possível ética depende de um olhar sobre si mesmo, tendo como pressuposto “uma cuidadosa triagem dos desejos, afeições, pulsões e tendências” (MIRANDA, 2017, p. 176). Para tanto, é necessário compreender o processo construtivo da existência no âmbito da liberdade, longe de uma observância religiosa servil e infantilizada: sem uma adequada pedagogia de liberdade o cristão segue sob a égide de obrigações. A vivência de uma espiritualidade autêntica, no entanto, não se contenta com a livre escolha, mas de escolhas que realmente estejam em consonância com a realização humana, em sua integridade. Para que este fim seja alcançado, no entanto, não basta considerar a normativa ética, mas a decisão contextualizada, respeitando-se a pessoa inteira como um ser corpóreo e inserido em uma sociedade. A existência é uma aventura, uma realidade dinâmica repleta de oportunidades e desafios (cf. MIRANDA, 2017, p. 177-181).
Assim, não basta a busca autosatisfeita de um pressuposto estado de graça. É preciso considerar a pessoa em sua construção histórico-pneumática: ser cristão é ser discípulo, é estar a caminho, sempre ouvindo os apelos divinos, é estar aberto ao Espírito que age iluminando as escolhas e fortalecendo o cristão no seu seguimento coerente (cf. Gl 5,25). O cristão vive sua experiência de fé em um contínuo devir, certo de que almeja uma plenitude cristológica (cf. Ef 1,3-4), sendo tentado a parar ou a retroceder. Convive, pois, com a ambiguidade que lhe é inerente. Na dinâmica da graça, segue tendo como prioridade a construção de si mesmo como pessoa livre, alguém que é senhor de si mesmo. Pode seguir nessa direção, mesmo diante de seus limites, sendo continuamente acompanhado pela possibilidade de voltar atrás em suas escolhas, até mesmo de escolher a autossuficiência egoísta ou até mesmo a imobilidade de ser-coisa (cf. MOINGT, 2010, p. 335-336).
É nesse sentido que Paulo fala de uma luta do cristão, em comparação aos atletas que se empenham para melhorar sua performance (cf. 1Cor 9,24-27). Porém, na linha do discernimento, o empreendimento de uma luta é algo mais profundo do que o mero esforço pelo cumprimento de uma obrigação legal. Se a decisão é contextualizada, como afirmamos acima, é necessário considerar com seriedade que a existência humana é condicionada por fatores internos e externos. Assim, uma existência livre e discernida depende de um processo de conversão, tendo-se em conta de que a liberdade não está pronta, como um dado metafísico estático, pois cada ser humano vive, em maior ou menor medida, uma vida condicionada (cf. MIRANDA, 2004, p. 219).
Diante da constatação da força dos condicionamentos, o discernimento para a liberdade se realiza pela autodescoberta e integração dos limites. A pessoa, em sua aventura de ser na graça do Espírito, cresce mergulhando dentro de si, descobrindo-se, conhecendo-se. Não basta a mera contabilização de virtudes, obras ou atos cúlticos, nem tão pouco a fuga obstinada daquilo que poderia ser considerado impuro, pecaminoso, em um caminho de culpabilização, por vezes, neurótico. O processo de liberdade é realizado no conflito com as forças instintivas, inclinações provindas do inconsciente e da história, que podem remeter até ao momento da gestação. Portanto, mesmo se há clareza do conjunto das normas de conduta ética, um olhar rápido para um único instante do tempo não pode avaliar com toda clareza a qualidade moral de um ato pessoal. Não se pode avaliar com toda certeza qual é o nível de consciência da parte de quem realiza um ato avaliado como pecaminoso. Cada pessoa segue carregando as suas ambiguidades, tendo a chance de vencê-las. O caminho para este crescimento é a autenticidade: sob o impulso e luz do Espírito, cada pessoa descobre suas sombras e condicionamentos, bem como suas potencialidades. Quanto maior lucidez sobre o próprio eu, associado à consciência da conduta ética que se deve praticar, mais chance haverá de se efetivar um caminho de discernimento para a liberdade (cf. MIRANDA, 2004, p. 228-229).
O discernimento como caminho para a liberdade, nesta visão processual, previne que a conduta ética seja avaliada por atos exteriores (legalismo). Corre-se o risco de viver inundado em falsas virtudes, ou seja, quando não se vive a partir da interioridade, a partir da reta intenção que brota do coração (cf. Jr 31,33; Mc 7,21)[3]. As leis existem, o decálogo continua como regra, sobretudo o imperativo do amor, mas o que está em jogo é o modo como se abraça o legado ético: é preciso discernir se o que existe é mera observância exterior ou é verdadeiro discipulado (cf. MOINGT, 2012, p. 149). Nesta linha, é importante que se esteja prevenido de uma visão simplória que avalia a vida sob a ótica do mérito e da recompensa, uma prática exterior que buscaria uma salvação privatizada, o exercício de boas ações. A proposta paulina é uma existência pneumatológica de filhos de Deus (cf. Gl 4,4-6), uma vida segundo o Espírito (cf. Rm 8,1).
A partir das premissas aqui colocadas, pode-se esclarecer como o Papa Francisco propõe uma ética de discernimento para a liberdade. Primeiramente, consideremos que o papa afirma a importância de uma ética que mantém uma equilibrada relação com a lei, refutando a ética casuística. Assim, as leis gerais são importantes, mas elas não têm a capacidade de reger as situações específicas da vida, em suas minúcias, pois quando as particularidades se transformarem em leis, caímos em uma casuística insuportável (Amoris Laetitia-AL 304). O Papa jesuíta sugere que ninguém se sente na cátedra de Moisés como juiz que julga com superioridade e superficialidade. Ao se ter em conta os condicionamentos e fatores que podem atenuar a responsabilidade ética, mesmo diante de uma situação de pecado, a pessoa tem a chance de não ser culpada, mesmo que esteja inserida em uma situação comumente chamada de situação de pecado. O crescimento na vida da graça, a vida de caridade, o seu crescimento como seguidor de Jesus sob moção do Espírito não está vedado àquele que é assim, negativamente, avaliado. Por isso, recomenda Francisco que é essencial o discernimento como busca de caminhos que conduzam cada cristão ao crescimento diante de seus limites. Mesmo diante dos limites de cada pessoa, é possível crescer, mesmo que se dê pequenos passos, exercício que pode ter mais valor para Deus do que a existência de quem vive sem grandes dificuldades (cf. AL 305).
Um segundo elemento importante do discernimento para a liberdade, na linha do Papa Francisco, é a escuta. É preciso, como nos diz Paulo, examinar tudo e ficar com o que é bom (cf. 1Ts 5,21). Convém examinar o que existe dentro de nós, mas também o que há fora de nós, escutando os sinais dos tempos (cf. Gaudete et Exsultate-GE 168). Portanto, o verdadeiro discernimento é realizado na oração, na escuta do Senhor. Deus é questionador, interpela a pessoa para que saia do seu comodismo, assumindo novas posições na aventura da existência, sem se prender aos próprios e velhos esquemas, sem a rigidez que enclausura: “Somente quem está disposto a escutar é que tem a liberdade de renunciar ao seu ponto de vista parcial e insuficiente, aos seus hábitos, aos seus esquemas” (GE 172). Não se repete o passado, não se prende ao estabelecido, mas significa se abrir a novidade do presente: “o discernimento dos espíritos liberta-nos da rigidez, que não tem lugar no ‘hoje’ perene do Ressuscitado” (GE 173). Esta dinâmica, segundo o papa, não é automática, exige tempo, paciência:
Um discernimento deste tipo requer tempo. São muitos, para dar um exemplo, os que acreditam que as mudanças e a reformas podem vir em breve. Eu sou da opinião de que se necessita tempo para assentar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. Trata-se do tempo do discernimento[4].
O que se propõe, a partir das intuições jesuíticas de Francisco é a formação de cristãos maduros – adultos morais, ou seja, pessoas conscientes de que são responsáveis pelas escolhas da sua vida, sem recorrer a uma resposta já pré-elaborada ou coercitiva. Os adultos morais são capazes de fazer perguntas: Por que estou agindo de determinada maneira? Quais são minhas intenções? Há segurança na tomada de minha decisão? Mais segura é a escolha quando há um processo de verdadeiro discernimento (cf. MIRANDA, 2017, p. 184). Quem não se confronta, não cresce. Seria uma mediocridade passar a existência sem olhar para si mesmo, sem aprender com o passado, sem se conhecer, sem indagar a vida a partir de uma ética, sem escutar a voz divina e, portanto, sem crescer em discernimento, na dinâmica da liberdade.
“Cristo vive: é Ele a nossa esperança e a mais bela juventude deste mundo” (CV 1). Sua vida é atual porque o Espírito Santo segue atualizando sua existência na história. Aqui o discernimento é hermenêutica, pois a aplicação do Evangelho não é imediata, mas encarnada no lugar e no tempo, exige a inculturação, uma recepção da Palavra no hoje. É preciso, pois, deixar que o passado interrogue o presente, sem um paralelismo infrutífero: de um lado o Evangelho e de outro o mundo, numa postura de confronto. A atitude de escuta atenta será capaz de revelar como Jesus de Nazaré é um “evento único e irrepetível” (PALACIO, 2001, p. 81). A grande pauta do discernimento para a liberdade é ter como critério fundamental a pessoa de Jesus. É ele que nos convida a evangelizar de modo discernido.
Na perspectiva do magistério de Francisco, a experiência do discernimento tem no âmbito pastoral sua principal aplicação. Em EG – Exortação Apostólica que indica as linhas programáticas de seu pontificado – Francisco evidencia a premente necessidade de uma “conversão pastoral e missionária” (EG 25), esta apoiada num “preciso estilo evangelizador” (EG 18) que engendrará, na Igreja, “uma nova etapa evangelizadora, cheia de ardor e dinamismo” (EG 17). Por conseguinte, o discernimento edifica a comunidade eclesial e serve para o bem comum na medida em que se refere e sustenta a atividade evangelizadora como critério pastoral. O “fez-se sempre assim” (EG 33) está condicionado a um automatismo pastoral estéril. O discernimento pastoral, ao contrário, conjugando a luz do Evangelho, a ação do Espírito e a consideração dos sinais dos tempos, leva a “repensar os objetivos, as estruturas, o estilo e os métodos evangelizadores” (EG 33).
Na condição de critério pastoral – e um dos mais importantes e significativos – o discernimento pastoral se exprime mediante alguns aspectos, uma vez que, por si só, não possui um conteúdo estabelecido, tal como uma receita para a pastoral eclesial. Sua matéria-prima é a realidade e suas bases, como já mencionadas, são o Evangelho e a ação do Espírito, de modo que, em sua aplicação pastoral, sua ambiência é a comunidade. Nesse sentido, vinculando conceitos teológicos, podemos afirmar que o discernimento é um dos principais exercícios ou dimensões da sinodalidade[5].
O discernimento evangélico, para Francisco, “é o olhar do discípulo missionário que ‘se nutre da luz e da força do Espírito Santo’” (EG 50). Dada a centralidade da missão em seu magistério, temos que o pontificado de Francisco é um magistério de discernimento pastoral.
No ambiente pastoral, o discernimento se apresenta de modo ainda mais evidente como processo contínuo e dinâmico, porque o Espírito é dinâmico, mas isso também em virtude da contingência, mutabilidade e inconstância da realidade. Permanece nesse processo o Evangelho como paradigma para a vida e missão da Igreja. Parece-nos que aí reside o grande desafio do discernimento pastoral num contexto complexo e líquido: evangelizar considerando a mudança e o diferente como realidade e a mensagem de Jesus como permanente e significativa. Tal desafio, no entanto, não opõe realidade e Evangelho, pois a primeira não é obstáculo à plasticidade e riqueza do segundo, mas oportunidade de reposicionar o anúncio a fim de que este faça sentido a cada época. Paulo VI acenou para a perigosa oposição decorrente dessa relação: “a ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas” (EN 20). Igualmente João XXIII, na abertura do Concílio Vaticano II, já havia destacado a pastoralidade como o elemento vinculante entre a doutrina e a realidade.
[...] é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do ‘depositum fidei’, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral (JOÃO XXIII, 1962, 5).
Nesse sentido, o discernimento pastoral não é uma atribuição funcional da hierarquia, uma espécie de procedimento administrativo. O carisma do discernimento, em sua face pastoral, implica o compartilhamento das responsabilidades eclesiais referentes à missão: a salvaguarda do depósito da fé (sua verdade e sentido) é tarefa do magistério; porém, seu aprofundamento, exposição, possibilidades de formulação, elaboração e apresentação são prerrogativas de todo o povo de Deus, que, por sua própria constituição, é evangelizador. O reconhecimento dos contextos e o discernimento dos caminhos da evangelização é uma experiência a ser vivenciada por ministros ordenados, religiosos, leigos, teólogos, agentes de pastoral, crianças, jovens, anciãos, lideranças, etc. Os resultados contínuos desse processo são acolhidos pela hierarquia, pautados, refletidos, sistematizados e tornam-se um discernimento comum, seja para toda a Igreja ou para uma realidade específica. Isso corresponderia ao ideal de discernimento pastoral. Os Sínodos são uma expressão concreta do exercício deste discernimento.
A sinodalidade é vivida na Igreja a serviço da missão [...] Todo o povo de Deus é o sujeito do anúncio do Evangelho. Nele, todo Batizado é convocado para ser protagonista da missão, pois todos somos discípulos missionários. A Igreja é chamada a ativar em sinergia sinodal os ministérios e os carismas presentes na sua vida para discernir as vias da evangelização na escuta da voz do Espírito (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, 2018, 53, trad. nossa).
O discernimento é critério pastoral. Todavia, o seu exercício possui, da mesma forma, alguns critérios. Na EG, ao tratar da dimensão social da evangelização, Francisco apresenta quatro princípios que concorrem para o bem comum e a paz social. Dada a relevância de tais princípios no contexto do magistério do Papa Bergoglio, podemos considerá-los como critérios do discernimento pastoral, uma vez que se aplicam, na mesma medida, aos povos, às sociedades e à evangelização, realidades eminentemente pastorais.
a) O primeiro princípio: “o tempo é superior ao espaço” (EG 222). Referido à plenitude, o tempo contrasta com o espaço, que diz do limite, do momento. A pastoral eclesial (e a vida social) ordenada pelos valores evangélicos não está preocupada com “resultados imediatos” ou com “espaços de poder e autoafirmação” (EG 223). Prioriza-se, em contrapartida, o tempo dos processos, que comportam “situações difíceis e hostis” ou “as mudanças de planos” (EG 223). O espaço privilegia o presente, ao passo que o tempo preconiza o futuro.
b) O segundo princípio: “a unidade prevalece sobre o conflito” (EG 226). “Quando paramos na conjuntura conflitual, perdemos o sentido da unidade profunda da realidade” (EG 226). Propõe o Evangelho a aceitação dos conflitos numa atitude de suportá-los para resolvê-los e transformá-los em um novo processo. A comunhão ou a unidade nas diferenças não é o rechaço destas, mas uma atitude de busca por uma nova vida que contemple a diversidade (cf. EG 228). Fruto desse processo é a paz: “a convicção de que a unidade do Espírito harmoniza todas as diversidades” numa “diversidade reconciliada” (EG 230).
c) O terceiro princípio: “a realidade é mais importante do que a ideia” (EG 231). Uma polarização no campo das ideias pode ocultar a realidade. Se as ideias não estão a serviço da realidade são meros “idealismos e nominalismos” (EG 232). Para Francisco, esse princípio vincula-se ao Mistério da Encarnação. A centralidade de Jesus Cristo na evangelização recorda à Igreja que a Palavra encarnada é o núcleo da missão evangelizadora: o reconhecimento da história da salvação como história da presença e ação de Deus no mundo e o imperativo da caridade e da justiça.
d) Por fim, o quarto princípio: “o todo é superior à parte” (EG 234). Limites e particularidades reduzem a compreensão da realidade. Ainda que se trabalhe no que está próximo, a visão deve transcender o presente e o imediato. O poliedro é o modelo que exemplifica esse princípio, pois seus pontos se encontram a diferentes distâncias do centro. O todo, portanto, leva em conta a contribuição de cada um e possibilita o sentido integral de uma determinada realidade. Com o Evangelho não é diferente, pois a sua riqueza está na sua integridade e no seu anúncio universal.
O exercício do discernimento pastoral, segundo o magistério de Francisco, possui algumas marcas características que nos permitem, ainda que não de modo exaustivo, delinear os principais caminhos pastorais discernidos pela Igreja neste período de mudança de época e no interior dos quais novos discernimentos são realizados.
a) A docilidade ao Espírito de Deus. Uma possível pneumatologia depreendida do magistério de Francisco nos insere na perspectiva do Espírito como protagonista da evangelização. De acordo com Bingemer (2017, p. 539), quando nos fechamos ao novo e às surpresas podemos barrar o Espírito, que é, por excelência, o promotor do novo na Igreja. O discernimento dos sinais dos tempos solicita a docilidade à ação do Espírito que nos torna claras as mensagens que o Senhor nos envia por meio da realidade. A fé na pessoa de Jesus Cristo, como vimos, permanece nesse processo, de modo que o Espírito é quem nos cristifica (pois a vida de Jesus é, para os cristãos, normativa) ao mesmo tempo em que nos move segundo os sinais dos tempos. Faz-se necessário, portanto, discernir novos caminhos à escuta do que o Espírito diz às Igrejas.
b) Acolher, acompanhar, discernir e integrar. Na Exortação Apostólica Amoris Laetitia, Francisco argumenta sobre a experiência do discernimento situando-a em dois níveis: a) o discernimento para a vivência do amor na família; b) o discernimento para as situações “irregulares”. No que tange ao primeiro nível, Francisco, em geral, apresenta e aplica à família cristã os elementos já expostos no presente trabalho. Deteremo-nos, então, no discernimento em face do segundo nível. Em AL, Francisco utiliza por oito vezes a expressão “discernimento pastoral”[6]. Sua insistência nessa prática se deve ao fato de que o discernimento dos evangelizadores visa, prioritariamente, ao anúncio do Senhor e não à recordação ou à execução das sanções canônicas pertinentes às situações irregulares. Temos ciência das inúmeras controvérsias surgidas cujo objeto é o Capítulo VIII de AL. No entanto, Francisco compreende o discernimento como estando vinculado à acolhida, ao acompanhamento e à integração das pessoas que estão na comunidade eclesial em situação irregular. Ou seja, dada a impossibilidade de “receitas simples” (AL 298), o discernimento que acolhe, acompanha e integra é o que: forma consciências – [os fieis] “muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas” (AL 37); entra em diálogo (acolhe e escuta) com as pessoas em situações limite e de sofrimento pessoal e familiar (AL 293); e identifica elementos que favorecem a evangelização e o crescimento humano e espiritual das pessoas que vivenciam as mencionadas situações (AL 293).
c) A centralidade da misericórdia. Ecoando a reflexão de Bacas (2016, p. 153), o discernimento pastoral julga nosso compromisso comunitário, na Igreja e no mundo.
A ética realiza uma valoração de nossos atos; porém, a espiritualidade transcende a materialidade dos mesmos, para perguntar-se pelas motivações últimas que os sustenta. Assim, o elemento definidor da espiritualidade é o discernimento. Ou de outro modo, pode-se estar ‘comprometido’ e não estar ‘convertido’, porque a conversão sempre é o resultado do dom recebido (BACAS, 2016, p. 153, trad. nossa).
Esta é a “misericórdia discernida” (BACAS, 2016, p. 152, trad. nossa), que contrasta com nossas ações segundo nossas motivações, o que é decisivo para a pastoral. Este discernimento nos livra do ativismo eclesial, por um lado, e da passividade conformada, por outro. Se a misericórdia de Deus nos trata segundo o amor, que é próprio do ser de Deus, a medida do discernimento também é o amor, que “filtra” as motivações e revela os sentidos primeiros e últimos de nossas ações. Ademais, esta constatação nos permite compreender o imperativo da misericórdia como oportunidade para si e para os outros de fazer brotar do íntimo das consciências a verdade e o amor inscritos por Deus.
Concluímos reafirmando a relevância e pertinência dos três âmbitos (pautas) da experiência cristã analisados neste trabalho, evidenciando sua referência direta aos contextos pessoais, sociais e eclesiais que tendem a comprometer o exercício do discernimento no Espírito no cotidiano da vida cristã.
No âmbito da escolha vocacional, reiteramos que a luz do Espírito conduz a pessoa a uma decisão que facilmente contrasta com o ego humano, na direção e na busca de sua realização pessoal. Assim, o principal desafio vocacional é o confronto com o inflacionamento e desvirtuamento do conceito de felicidade que, na crise da modernidade, parece não deixar muitos espaços para uma existência oblativa.
No âmbito das decisões ao longo da vida, o que está em jogo é o chamado à liberdade como lugar imprescindível para a construção da identidade pessoal. O cristão, aberto ao sopro do Espírito, é pessoa livre, que rechaça a opressão em todos os seus aspectos e alcances (pessoais, sociais, religiosos, etc). É fato que o medo, as inseguranças psíquicas, os condicionamentos sociais e até mesmo certas experiências religiosas massificadoras podem boicotar esse processo de libertação integral. Discernir, nesse sentido, é perceber com clareza o que edifica e o que destrói, o que promove e o que freia a jornada individual de construção e vivência da liberdade mediante a ação da graça.
No âmbito da evangelização, o discernimento está associado à percepção dos novos tempos eclesiais e suas exigências, especialmente aquelas que dizem respeito à coragem e à ousadia na missão e ao compartilhamento das responsabilidades na Igreja. Ademais, o discernimento dos espíritos na pastoral pressupõe abertura ao novo e às surpresas do Espírito, de modo que a posse de espaços institucionais e a automaticidade de processos não coadunam com o ideal de comunidade cristã que caminha segundo o Espírito. O discernimento na missão, portanto, é pautado pela docilidade e pela parresía.
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[1] “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (BENTO XVI. Deus Caritas Est 1).
[2] Cf. EG 14, 51 e 108.
[3] O Concílio Vaticano II responderia de modo magistral a este questionamento ao tratar do tema da consciência: “O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (Gaudium et Spes 16).
[4] SPADARO, Antonio. Entrevista de Francisco a Spadaro. In: Observatório Bíblico: Blog sobre estudos acadêmicos da Bíblia. Disponível em: <https://airtonjo.com/blog1/2013/09/entrevista-de-francisco-spadaro.html>.
[5] “No dom e no empenho da comunhão se encontram a fonte, a forma e o escopo da sinodalidade enquanto esta exprime o específico modus vivendi et operando do Povo de Deus na participação responsável e ordenada de todos os seus membros ao discernimento e à implementação dos caminhos da sua missão” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. La sinodalità nella vita e nella missione della Chiesa 43, trad. nossa).
[6] Cf. AL 6, 249, 293 (duas vezes), 301, 302, 304 e 312.