Ney de Souza
Professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC SP). Doutorado em História Eclesiástica pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, Itália (1998) e líder do grupo de pesquisa no CNPQ Religião e política no Brasil contemporâneo. Contato: nsouza@pucsp.br
Resumo:
Objetiva-se, neste artigo, apresentar o pensamento do cardeal Giacomo Lercaro, arcebispo de Bologna (1952-1968) relativo aos pobres e sua tentativa de inclusão da temática no Concílio Vaticano II. A proposta do cardeal Lercaro, a presença de Cristo nos pobres e a sua identificação com eles (Mt 25, 40), deve orientar a missão da Igreja para que possa, assim, continuar a missão messiânica de Cristo sendo Igreja dos pobres. Alicerçado nesta base cristológica, de inspiração claramente bíblica, o texto de Lercaro, elaborado com Giuseppe Dossetti, teólogo que o assessorava no Vaticano II, apresenta desdobramentos eclesiológicos que valem a pens ser considerados. O mistério da Igreja não é outro senão o mistério de Cristo pobre, que se manifesta na encarnação do Verbo ao assumir plenamente a condição humana. A estrutura deste texto está articulada em três partes: o personagem Lercaro, o Concílio Vaticano II e a Igreja dos pobres.
Palavras-Chave: Lercaro, Vaticano II, Igreja dos pobres, eclesiologia
Absctrat:
The aim of this article is to present the thoughts of Cardinal Giacomo Lercaro, archbishop of Bologna (1952-1968), regarding the poor and his attempt to include such a topic in the Second Vatican Council. Cardinal Lercaro's proposal – the presence of Christ in the poor and his identification with them (Mt 25, 40) – must guide the mission of the Church in continuing Christ's messianic mission being the Church of the poor. Based on this Christological basis – of clear biblical inspiration, Lercaro's text – prepared with Giuseppe Dossetti, the theologian who advised him during the Vatican II –, presents ecclesiological developments that is worthy to be taken into account. The mystery of the Church is no other than the mystery of the poor Christ, manifested in the incarnation of the Word in fully assuming the human condition. The structure of this text is articulated in three parts: the Cardinal Lercaro, the Second Vatican Council and the Church of the poors.
Keywords: Lercaro, Vatican II, Church of the poors, ecclesiology
Este estudo tem por objetivo apresentar a trajetória do cardeal Giacomo Lercaro, arcebispo de Bologna (1952-1968), de modo particular sobre a temática do Grupo da Igreja dos Pobres, temática esta que ele buscou incluir no Concílio Vaticano II. Lercaro indicava que o caminho relativo ao mistério da Igreja não é outro senão o mistério de Cristo pobre. O texto a seguir está organizado em três partes: o personagem, o Concílio Vaticano II e a Igreja dos Pobres e, se estrutura com o intento de apresentar uma temática importante e discutida extra aulam conciliar por um grupo de bispos que se reunia no Colégio Belga, em Roma. Seu intuito principal era sensibilizar os padres conciliares a pensar e agir no sentido de que há uma íntima relação entre a Igreja, o Evangelho e a pobreza.
Giacomo Lercaro nasceu em 1891, em Quinto al Mare (Gênova), e pertencia a uma família numerosa de nove irmãos. Aos onze anos, entrou no Seminário Menor de Gênova e, seguidamente, no Seminário Maior da Arquidiocese para os estudos de filosofia e teologia. Em 1914, foi ordenado padre. Neste mesmo ano, iniciou seus estudos no Pontifício Instituto Bíblico, em Roma. Ao concluir os estudos, ensinou Sagrada Escritura e Patrologia no Seminário Maior de Gênova, onde era também o vice-reitor do Seminário. Um objetivo Lercaro era ensinar aos estudantes os princípios do movimento litúrgico e inculcar nos estudantes o sentido de uma pastoral com forte orientação social. diakonia, marca da identidade pastoral de Giacomo Lercaro por toda a sua vida.
Em 1937, Lercaro foi pároco na cidade de Gênova, na paróquia Maria Imaculada, no centro da cidade. Sua atividade pastoral constituiu-se como liturgia e diakonia, integrando os leigos nas práticas pastorais. A fundamentação dessa pastoral era uma espiritualidade de profunda inspiração bíblica que queria expressar o compromisso dos cristãos na sociedade e na política. Com esse objetivo, Lercaro fundou o instituto Didaskaleion, onde foi possível preparar um pequeno grupo de leigos com estudos em liturgia e teologia. Em 1947, Lercaro foi nomeado arcebispo de Ravena, região com forte adesão ao comunismo. Em 1948, Lercaro acolheu no arcebispado de Ravena alguns rapazes órfãos em situação de dificuldades, os quais acabaram se tornando a sua ‘família’, embrião da futura Obra de Nossa Senhora da Confiança (Madonna della Fiducia). Em Ravena, o então arcebispo cuidou de oferecer uma boa formação para os novos padres, com cursos de liturgia e teologia pastoral. No período de seu episcopado em Ravena, Lercaro alcançou reconhecimento internacional dentro do movimento litúrgico (TERRAZAS, 2016, p. 292).
Lercaro foi transferido para a arquidiocese de Bologna em 1952 e, no ano seguinte, foi criado cardeal pelo Papa Pio XII. Sua nova arquidiocese se encontrava em condições similares à arquidiocese de Ravena. Em Bologna, criou, em 1953, um instituto sociológico de estatística religiosa, acreditando que a Igreja deveria iniciar um diálogo com a sociedade contemporânea. Contudo, a liturgia continuou sendo o centro da sua ação pastoral; por meio dela, é possível dar testemunho (martyria), configurar-se como comunidade viva (koinonia) que se preocupa com as necessidades do outro (diakonia). O perfil de Lercaro – compromissado com o movimento litúrgico e com pastorais sociais era atípico no panorama geral da Igreja italiana, No entanto, a segunda metade do pontificado de Pio XII, de certa forma, se revelou mais flexível em relação às nomeações episcopais: além de Lercaro (Bologna), foram nomeados Giovanni Battista Montini (Milão) e Angelo Giuseppe Roncalli (Veneza). De 1962 a 1965, Lercaro participou do Concílio Vaticano II (GROOTAERS, 1995, p. 451; TERRAZAS, 2016, p. 272, 291-294), primeiramente como membro da Comissão Litúrgica, mas foi alijado das Comissões Preparatórias, inclusive da Comissão de Liturgia, devido a seu perfil citado acima. Suas expectativas em relação ao Concílio estavam enraizadas na sua experiência em Ravena e Bologna, de maneira que suas propostas (vota) enviadas a Roma, em outubro de 1959, nasceram de suas preocupações e inquietudes. Lercaro acolheu as intenções de João XXIII para o Concílio: não se tratava de dirimir controvérsias teológicas, reprimir heresias ou condenar o comunismo, embora fosse necessário enfrentar questões doutrinais importantes, tais como a liberdade religiosa, as relações da Igreja com o Estado, os métodos modernos de interpretação da Sagrada Escritura. Para Lercaro, o Concílio deveria abordar os temas da reforma interna da Igreja para um ministério pastoral mais eficaz, reforma dos religiosos, abolição da inamovibilidade dos párocos, limites de idade para os bispos, redistribuição do clero e das dioceses, seminários. Para ele, os problemas mais graves derivavam do processo de secularização da sociedade e do crescente laicismo. Sua proposta para o Concílio denota uma percepção clara das circunstâncias históricas. No período em que Paulo VI presidiu o Concílio, Lercaro participou como moderador encarregado dos trabalhos conciliares e acabou sendo um dos protagonistas do Vaticano II, exercendo forte influência sobre os trabalhos (DONATI, 2010, p. 133-144). Em 1964, foi nomeado pelo Papa presidente do Consilium ad exsequendam constitutionem de sacra liturgia, função que ocupou até 1968 (O’MALLEY, 2014, p. 152), quando apresentou sua renúncia à arquidiocese de Bologna, por idade canônica. Em 1976, no dia 18 de outubro, Lercaro morreu em Bologna.
Em 11 de setembro de 1962, o Papa João XXIII pronunciou uma alocução pelo rádio a todos os fiéis. A mensagem apresentava o que seria a temática central do Vaticano II, aberto no dia 11 do mês seguinte. Na alocução, o Papa afirmou que “a Igreja se apresenta como é e como quer ser, como a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres” (JOÃO XXIII, 1962). Era quase certo que a expressão havia sido colhida do projeto geral do cardeal Léon-Joseph Suenens (Malines – Bruxelas) que o enviara ao Papa no mês de abril de 1962 (ALBERIGO, 2000, p. 16). O projeto referia-se aos países subdesenvolvidos, mas, na voz do Papa, alcançou um impulso profético que ultrapassou fronteiras. A alocução se referia à identidade da Igreja e se encaixava no seu eixo eclesiológico. Essa mensagem radiofônica e o discurso de abertura Gaudet Mater Ecclesia (JOÃO XXIII, 1962, vol. 54, p. 785-795) terão grande repercussão nas atividades conciliares.
Em 20 de outubro de 1962, a Assembleia conciliar se encontrava num momento de grandes incertezas e fortes debates internos (RICCARDI, 1996, p. 21-86).[1] Os padres conciliares publicaram uma mensagem, escrita pelos teólogos dominicanos franceses Marie Dominique Chenu e Yves Congar, dirigida ad universos homines. O texto apresentava a grande preocupação da assembleia com “os mais humildes, os mais pobres, os mais fracos” (ENCHIRIDION, n.78), ecoando as palavras do Papa na sua radiomensagem. É importante pontuar que o episcopado italiano, no Concílio, como grupo estruturado e coerente nunca existiu. Os bispos italianos faziam parte da “Igreja de Pio XII” (RICCARDI, 1986, p. 21-52). Devido a isso, o termo conversão foi frequentemente utilizado para designar a significativa evolução do cardeal Lercaro durante os últimos anos do pontificado de Pio XII (BATTELLI, 1980, p. 30-32).
Lercaro, no dia 6 de dezembro de 1962, realizou uma intervenção na “aula” conciliar, durante a 35ª Congregação Geral, sobre o tema “Igreja dos pobres”. A questão essencial era a identidade da Igreja, apresentada por Lercaro numa perspectiva inesperada para a assembleia conciliar: além de ampliar teologicamente a mensagem de João XXIII, ele propôs que fosse a temática dominante de toda a eclesiologia e cristologia conciliar. Assim, o cardeal sublinha a perspectiva teológica da mensagem do Papa e escreve: “O mistério de Cristo na Igreja sempre foi e é, hoje particularmente, o mistério de Cristo nos pobres...o anúncio do evangelho aos pobres”. Um anúncio visto como síntese de toda a vida de Jesus, das profecias relativas ao Messias dos pobres do Reino de Deus, presente, mas também prometido na vinda escatológica do Filho do Homem no final dos tempos (LERCARO, 2014, p. 113-122).
Alicerçado nesta base cristológica, de impostação claramente bíblica, o texto de Lercaro, elaborado com Giuseppe Dossetti, teólogo que o assessorava no Vaticano II (LOREFICE, 2011, p. 175-186; O’MALLEY, 2014, p. 181), apresenta visivelmente os desdobramentos eclesiológicos que podem ser sintetizados nesta frase que é um projeto: “o tema do Concílio [deveria ser] a Igreja, particularmente a Igreja dos pobres”. Igreja chamada a evangelizar inspirada pelo rosto do Messias pobre, o Ungido do Senhor e a viver como Igreja pobre. De acordo com Lercaro, isto significa que a Igreja deve abandonar uma prática moralista, sociológica, institucional, filantrópica ou ascética e entrar no mistério de Cristo, em que a “pobreza é um aspecto essencial e primário” (BARNOSELL, 2015, p. 59-64). O mistério da Igreja não é outro senão o mistério de Cristo pobre. E esse mistério se manifesta na encarnação do Verbo feito humanidade. O texto de Lercaro e Dossetti afirma que a temática não só é perenemente essencial, mas de suprema atualidade histórica.
Sobre a evangelização, Paulo VI, o Papa que dirigiu o Concílio a partir do segundo período, escreverá, em 1975, que está “...não se esgota com a pregação ou com o ensino de uma doutrina” (PAULO VI, 2015, n. 47). Os desdobramentos da temática da Igreja dos pobres e da evangelização continuam na Evangelii Nuntiandi. Ao escrever sobre o então “Terceiro Mundo” assim relata o Papa: “Povos comprometidos, como bem sabemos, com toda a sua energia no esforço e na luta por superar aquilo que os condena a ficarem à margem da vida: carestias, doenças crônicas e endêmicas, analfabetismo, pauperismo, injustiças nas relações internacionais, e especialmente nos intercâmbios comerciais (...)”. Para Paulo VI, as causas da marginalização são “situações de neocolonialismo econômico e cultural, por vezes tão cruel como o velho colonialismo político”; devido a isso, “a Igreja, repetiram-no os Bispos, tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, sendo muitos destes seus filhos espirituais: o dever de ajudar uma tal libertação nos seus começos, de dar testemunho em favor dela e a de envidar esforços para que ela chegue a ser total”. E encerra o parágrafo sustentando que “isso não é alheio à evangelização” (EN 30).
A proposta do cardeal Lercaro sobre a presença de Cristo nos pobres e sua identificação com eles (Mt 25, 40) deve orientar a missão da Igreja que, assim, retoma a missão messiânica de Cristo e ser Igreja dos pobres. Este pensamento desemboca em duas vertentes. A primeira, numa Igreja dos pobres, chamada a ser Igreja para os pobres, a evangelizá-los e a deixar-se evangelizar por eles. A segunda, ser Igreja dos pobres significa ser uma Igreja pobre, que vive o seguimento a Jesus de Nazaré pobre, sem ser abduzida pela sedução e fascínio da riqueza terrena. Essas duas vertentes fazem parte também do pensamento do Papa Francisco (FRANCISCO, 2013, n. 198).
Como é sabido, o Concílio não seguiu a proposta de Lercaro, mas escolheu o pensamento eclesiológico dos cardeais Joseph Léon-Suenens (Malines-Bruxelas) e Giovanni Battista Montini (Milão, futuro Papa Paulo VI), que resultou em duas constituições: a Lumen gentium, sobre o mistério da Igreja e a Gaudium et spes, sobre a relação da Igreja com a sociedade contemporânea. Durante a realização do Concílio, foi muito ativo o informal e numeroso grupo de bispos e peritos, juntamente com outras pessoas externas, que tiveram influência no decorrer da assembleia conciliar: o “Grupo da Igreja dos Pobres”. Este grupo se reunia no Colégio Belga de Roma. A iniciativa foi do padre francês Paul Gauthier, antigo membro da fraternidade de Charles de Foucauld, que era padre operário em Nazaré. Gauthier transcorreu todo o período conciliar em Roma, teve apoio do bispo belga de Tournai, Charles-Marie Himmer (que presidiu a missa nas Catacumbas de Santa Domitilia – Pacto das Catacumbas) (SOUZA, 2020, p. 426-428) e, também, dos bispos franceses Alfred Ancel (bispo auxiliar de Lyon) e Georges Mercier (bispo de Lahouat, Saara da Argélia). De acordo com o padre Gauthier, os pobres deveriam ter consciência de seus próprios direitos e da própria libertação através do Evangelho. O objetivo central do Grupo da Igreja dos Pobres era sensibilizar os padres conciliares sobre a relação entre Igreja, Evangelho e pobreza. O Concílio deveria ser capaz de fazer chegar a mensagem de esperança aos mais pobres (TERRAZAS, 2016, p. 295). Este ponto de partida acompanhou o início da elaboração da teologia da libertação. Diversos bispos da América Latina, mas também da África, da Ásia e da Europa desejavam uma Igreja mais próxima aos pobres; todos eles participaram do Grupo da Igreja dos Pobres. No seu opúsculo Jésus, l’Église et les pauvres, o padre Gauthier apresentava reflexões bíblicas sobre os profetas e sobre Jesus com referência à pobreza e, ao mesmo tempo, denunciava uma Igreja rica, que não se identificava com Jesus de Nazaré, “o carpinteiro e com ele todo o mundo do trabalho, com o povo dos pobres e dos operários” (citado por MENNINI, 2016, p. 52). Não será possível compreender plenamente a contribuição conciliar de Lercaro se não se recorda de um aspecto principal da sua atividade, ou seja, ser o protetor da Igreja dos Pobres (GROOTAERS, 1994, p. 454; TERRAZAS, 2016, p. 296).
O trabalho do Grupo Igreja dos Pobres foi integrado, em parte, no Relatório Lercaro, que o cardeal entregou ao Papa Paulo VI poucos dias antes do término do terceiro período do Vaticano II (19 de novembro de 1964). O título do Relatório era Appunti sul tema della povertà nella Chiesa. Rapporto al papa. O documento final foi redigido por Dossetti e pela chamada Officina bolognese (LERCARO, 2014, p. 157). No apêndice, o cardeal Lercaro incluiu o elenco dos 500 padres conciliares que assinaram um apelo sobre a necessidade e a urgência do tema da pobreza na Igreja (GROOTAERS, 1995, p. 455). O ponto central do Relatório é a crítica à sociedade opulenta que, com a sua adoração neopagã dos bens materiais, anula o sentido do sagrado e produz uma decadência espiritual da humanidade. É, pois, nesse sentido que se necessita reverter uma teologia de impostação moralista que possa bloquear a sociedade opulenta e o ateísmo marxista. É urgentíssimo que a Igreja recupere o sentido teológico da pobreza, que surge do plano divino, livre e gratuito (a Revelação de Deus em Jesus foi realizada no meio da pobreza), para reunir todos os cristãos, discípulos de Jesus encarnado e abaixado até a cruz. É fundamental ler a primeira bem-aventurança (Mt 5,3; Lc 6,20) como aquela que é dirigida “a quem tenha uma condição objetiva de pobre, de excluído, de deserdado deste mundo, vivida com um íntimo abandono ao plano divino” (LERCARO, 2014, p. 164). A intervenção de Lercaro no evento conciliar ficará em segundo plano, porém foi desdobrada no Pacto das Catacumbas, na II Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho (Medellín, 1968), em encíclicas de Paulo VI (Evangelii Nuntiandi, Populorum Progressio, Octogesima Adveniens), João Paulo II (Novo Millennio Ineunte) e Francisco (Evangelli Gaudium e Fratelli Tutti), dentre outros documentos.
Nos documentos conciliares, não há muitas referências explícitas sobre a Igreja e os pobres, exceto em dois textos: Lumen gentium, n. 8 e Ad gentes, n. 5. Em outros documentos do Vaticano II, aparecem as palavras pauper e paupertas, mas, quando presentes nos textos, limitam-se a fixar os deveres da Igreja e dos cristãos em relação aos pobres e aos marginalizados da terra.
Na Lumen gentium, n. 8, a pobreza evangélica é apresentada como constitutiva da Igreja e do seu mistério. A Igreja foi fundada sobre a pobreza de Cristo e de seu relacionamento com os pobres. O Vaticano II reconhece que há uma relação intrínseca entre Cristo e pobreza, e que essa relação jorra de Jesus, na medida em que Ele viveu na pobreza e esteve a serviço dos pobres. Há uma conexão intrínseca entre Cristo e os pobres, enraizada no mistério da encarnação de Cristo e na sua kenosis. Nesse mesmo número da Constituição conciliar, é mencionado o Cristo Jesus, como Aquele que se esvaziou de si e rebaixou-se a si mesmo (Fl 2, 6-7). Jesus fez sua escolha por uma condição humana pobre (2Cor 8,9) visto que, sendo rico, Ele se fez pobre. A Igreja é chamada a seguir os passos de Jesus e a escolher um caminho de pobreza, de humildade e de abnegação, ciente de que, à diferença de Cristo, que não conhece o pecado (2Cor 5,21), ela necessita de constante e permanente purificação. O mistério da salvação se realiza por meio do Cristo pobre e servidor, culminando no Gólgota. Portanto, ao Cristo pobre deve corresponder uma Igreja pobre.
A Constituição dogmática segue o seu paralelismo entre Cristo e a Igreja fazendo menção ao discurso de Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18), o qual cita o profeta Isaías (Is 61,1), assumindo ter sido enviado pelo Pai para “evangelizar os pobres, para proclamar a remissão aos presos e aos cegos recuperar a vista, para restituir a liberdade aos oprimidos”. A Constituição ainda se refere ao texto de Lucas, segundo o qual o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido (Lc 19,10). Por sua vez, a Igreja é solicitada a reconhecer “nos pobres a imagem de seu fundador, pobre e sofrido” (alusão a Mt 25,40) e socorrê-los nas suas necessidades, na sua. Quem serve aos pobres serve a Cristo neles.
O decreto do Vaticano II sobre a atividade missionária da Igreja, Ad gentes, n. 5, acrescenta ao texto da Lumen gentium, n. 8, o fundamento pneumatológico da pobreza: a Igreja deve agir como Cristo agiu, seguindo o seu caminho de pobreza, sempre sob o impulso do Espírito. Desta maneira, o n. 5 da Ad gentes se coliga com o n. 3, recordando a real encarnação de Cristo e, ao mesmo tempo, que é o Espírito que moverá e iluminará a Igreja no caminho da pobreza, no seguimento a Jesus, que possui a plenitude do Espírito.
Caberá a Paulo VI aproximar a Igreja do mundo dos pobres. Ele retomará a ideia de Lercaro e do Grupo da Igreja dos Pobres na construção de seus discursos e documentos. Três deles são basilares: Populorum progressio (1967), Octogesima adveniens (1971) e Evangelii nuntiandi (1975). De maneira especial, a encíclica Populorum progressio. Da América Latina, o Papa, recebeu denúncias sobre a situação aviltante das populações empobrecidas que viviam em situação miserável e em grande parte sob regimes ditatoriais funestos, apoiados pelo capitalismo “democrático” americano. O Papa não ficou alheio a essa situação; lançou a encíclica Populorum progressio, que provocou grande debate tanto nos meios eclesiais quanto fora deles, principalmente entre os conservadores da Cúria Romana, que achavam que o Papa havia excedido em suas colocações à esquerda, como, por exemplo, quando citou e questionou a supremacia da propriedade privada em detrimento dos direitos: “O bem comum exige por vezes a expropriação, se certos domínios formam obstáculo à propriedade coletiva, pelo fato da sua extensão [...] da miséria que daí resulta para as populações, do prejuízo considerável aos interesses do país” (PP n. 24). Para Paulo VI, o desenvolvimento dos povos deve ser um empenho primário da Igreja, sendo um importante caminho para a paz. O progresso econômico deve ser colocado a serviço da humanidade. O pão cotidiano deve ser distribuído a todos, como sinal de fraternidade (SOUZA, 2020, p. 389-390). Numa visão global do mundo, o Papa conferia à paz o nome de desenvolvimento. Aprofundava a temática, no imediato pós Concílio, da centralidade dos pobres na Igreja.
Um evento de grande magnitude para a Igreja católica no século XX foi o Concílio Vaticano II. Seu propósito de dialogar com a sociedade contemporânea é relevante para uma teologia latino-americana que tem seu fundamento primeiro no Evangelho. O Concílio contou com alguns protagonistas de enorme relevância e, dentre eles, está o cardeal bolonhês Giacomo Lercaro. O cardeal introduziu no Vaticano II a chave da Igreja dos pobres. No pensamento de seu assessor, Dossetti, essa chave permitiu embasar os outros objetivos primários do Concílio: a abertura à sociedade contemporânea e a unidade dos cristãos. O caminho da evangelização dos pobres ajudou a descobrir o último objetivo do Vaticano II, que é a presença da Igreja no mundo inteiro.
Foram extremamente importantes as relações de diálogo e proximidade de Lercaro com os bispos latino-americanos, especialmente com o brasileiro Helder Camara e o chileno Manuel Larraín. Certamente foi a antecipação e o prelúdio do desenvolvimento pós-conciliar desdobrado em Medellín (1968) e Puebla (1979) (SCATENA, 2007, p. XIII). O olhar de Lercaro antecipou algumas intuições que foram desenvolvidas no período pós- conciliar ao se reler a eclesiologia do Vaticano II, em particular a noção de Igreja local, fundada e compreendida no marco de uma eclesiologia eucarística. É notável a sua reflexão sobre a Igreja local: a tríade sacramental, batismo, eucaristia, episcopado, delineia a ontologia mais profunda da Igreja, como mistério e como corpo visível. Nesta, e em outras intuições – como a proposta sobre a Igreja dos pobres ou a que fez sobre o sínodo dos bispos –, Lercaro traçou, na análise de Alberigo, a fronteira mais avançada da maioria conciliar (cf. TERRAZAS, 2016, p. 308).
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[1] Sobre o contexto histórico e desenvolvimento do Concílio, ver: SOUZA, N. Contexto e desenvolvimento histórico do Concílio Vaticano II. In: GONÇALVES, P. S. L.; BOMBONATO, V. (orgs.). Concílio Vaticano II. Análise e prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 17-67.