Do diálogo ao encontro: a teologia das religiões de Andrés Torres Queiruga e o princípio pluralista    
From dialogue to meeting: Andrés Torres Queiruga’s theology of religions and the pluralist principle 

Claudio de Oliveira Ribeiro*
Felipe de Moraes Negro**

*Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ). Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: cdeoliveiraribeiro@gmail.com
**Mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Contato: 
adrefenegro12@gmail.com 

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Resumo:

O texto apresenta resultados de pesquisa sobre as possibilidades de aproximação entre a teologia das religiões de Andrés Torres Queiruga e o princípio pluralista. Metodologicamente, a análise e a apresentação dos resultados estão estruturados nos seguintes passos: (i) identificação das referidas aproximações, sobretudo a perspectiva de se superarem modelos tradicionais de avaliação do dado salvífico, como o incluvista e o pluralista, recorrendo às zonas fronteiriças deles; (ii) distinção entre as noções de diálogo, que pode implicar conotação de uma verdade que já se possui plenamente e que vai ser ‘negociada’ com o outro, e a de encontro, que sugere mais intensamente um sair de si, unindo-se ao outro para ir em busca daquilo que está no horizonte de ambos; (iii) explicitação da visão de que é na partilha solidária e respeitosa do Mistério que as religiões contribuirão para a genuína percepção de revelação e o consequente relacionamento sadio entre elas; (iv) descrição das categorias de universalismo assimétrico, teocentrismo jesuânico e inreligionação para a tarefa de interpretação da revelação; e (v) destaque para a noção de que as autênticas identidades são forjadas nos encontros, no respeito e na relação de alteridade entre diferentes, como realça o princípio pluralista.  

Palavras chave: Diálogo inter-religioso, religiões, princípio pluralista, Torres Queiruga. 

Abstract

The text presents research results on the possibilities of approximation between Andrés Torres Queiruga’s theology of religions and the pluralist principle. Methodologically, the analysis and presentation of the results are structured in the following steps: (i) identification of the aforementioned approaches, especially the perspective of overcoming traditional models for evaluating the salvific data, such as inclusive and pluralist, using their border areas; (ii) distinction between the notions of dialogue, which may imply a connotation of a truth that is already fully owned and which will be ‘negotiated’ with the other, and that of encounter, which more intensely suggests a way out of oneself, uniting to the other to go in search of what is on the horizon of both; (iii) explanation of the view that it is in the solidary and respectful sharing of the Mystery that religions will contribute to the genuine perception of revelation and the consequent healthy relationship between them; (iv) description of the categories of asymmetric universalism, Jesusic theocentrism and inreligionation for the task of interpreting revelation; and (v) emphasis on the notion that authentic identities are forged in encounters, in respect and in the relationship of alterity between different ones, as highlighted by the pluralist principle. 

Keywords: Interreligious dialogue, religions, pluralist principle, Torres Queiruga. 

Introdução 

Como as religiões podem contribuir para que as suas comunidades de fiéis possam perceber Deus de forma mais autêntica, em meio a tantos e variados estímulos que a sociedade lhes oferece? Quais pessoas ou grupos estão em melhores condições de captar a presença do Transcendente na história? Todas as religiões estão aptas a revelar Deus? Estas são apenas algumas questões que marcam o cenário do debate teológico cristão obre o pluralismo religioso e as possibilidades de diálogo. 

Com base na autocompreensão cristã, que é o lugar teológico de onde refletimos, e tendo como fundamento a teologia da revelação de Andrés Torres Queiruga e suas aproximações com o princípio pluralista, procuraremos demonstrar que o tema do diálogo das religiões é, por si só, de alta complexidade e carece de aprofundamento e explicitação conceitual, sobretudo por se tratar da delicada tessitura do Mistério e de suas implicações transcendentais.

Torres Queiruga, cujos escritos formam a base material de nossa pesquisa, é um destacado pensador europeu no campo da teologia. Autor de diversos livros, esse teólogo galego tem procurado marcar suas reflexões por um aspecto de revisão e atualização dos principais temas da fé cristã, daí o uso da expressão “repensar” ou “recuperar” no título de muitas de suas obras.1

De forma similar, o princípio pluralista se situa no movimento de se repensarem categorias. Trata-se de um instrumento hermenêutico de mediação teológica e analítica da realidade sociocultural e religiosa que procura dar visibilidade a experiências, grupos e posicionamentos gerados nos ‘entrelugares’, bordas e fronteiras das culturas e das esferas de institucionalidades. Ele possibilita divergências e convergências novas, outros pontos de vista, perspectivas críticas e autocríticas para diálogo, empoderamento de grupos e de visões subalternas e formas de alteridade e de inclusão, considerados e explicitados os diferenciais de poder presentes na sociedade (RIBEIRO, 2020). O princípio pluralista foi forjado com certa originalidade, embora seja devedor do arcabouço teórico de variados autores e autoras como a noções de entrelugares da cultura (BHABHA, 2001), de polidoxia e diferenciais de poder (PUI-LAN, 2015), do pluralismo de princípio (GEFFRÉ, 2004), da perspectiva teológica pluralista (DUPUIS, 1999), da sociologia das ausências e das emergências (SANTOS, 2010) e da colonialidade do poder, do saber, do ser (MIGNOLLO, 2003).

Em nossa pesquisa, foram dados os seguintes passos: (i) a identificação, em síntese, das possibilidades de aproximação entre o princípio pluralista e o pensamento teológico de Torres Queiruga; (ii) a apresentação da distinção entre as noções de diálogo, que pode implicar conotação de uma verdade que já se possui plenamente e que vai ser ‘negociada’ com o outro, e a de encontro, que sugere mais intensamente um sair de si, unindo-se ao outro para ir em busca daquilo que está no horizonte de ambos; (iii) a explicitação da visão de que é na partilha solidária e respeitosa do Mistério que as religiões contribuirão para a genuína percepção de revelação e o sadio relacionamento entre elas; (iv) a demonstração da importância das categorias universalismo assimétrico, teocentrismo jesuânico e inreligionação para a tarefa de interpretação da revelação; e (v) a descrição da noção de que as autênticas identidades são forjadas nos encontros, no respeito e na relação de alteridade entre diferentes.

O princípio pluralista e a contribuição de Torres Queiruga

O elemento de maior destaque que podemos apontar na relação entre o princípio pluralista e a teologia das religiões de Torres Queiruga é o fato de esse teólogo trabalhar na fronteira de concepções importantes do debate sobre as religiões no tocante ao plano salvífico, compreendido de forma ampla e ancorada nos aspectos concretos da vida e integrada as dimensões utópicas e transcendentes da fé. Como esperamos demonstrar, o autor pauta a sua tarefa teológica na busca de uma plataforma de reflexão ecumênica firmada no diálogo inter-religioso que saiba valorizar a disposição em reconhecer o dom salvífico e valorativo da vida humana e de toda a criação nas diferentes expressões religiosas, como as visões inclusivistas o fazem, e que também aproveite as experiências concretas de diálogo, como as visões pluralistas defendem, para se construírem e se reconstruírem identidades. O princípio pluralista, em direção similar, 

[...] procura superar as clássicas visões exclusivistas, inclusivistas e relativistas de compreensão mútua entre as religiões. A perspectiva pluralista nem anula as identidades religiosas e culturais, por um lado, e nem as absolutiza, por outro. Ao contrário, interpreta as religiões e as vivências humanas em geral em plano dialógico e diatópico, considerando cada contexto, especialmente os diferenciais de poder que neles estão presentes. No caso dos diálogos e cooperações inter-religiosas, não se trata de igualdade de religiões, mas de se buscar relações justas, dialógicas e propositivas entre elas (RIBEIRO, 2020, p. 30).

Outro elemento que aproxima o princípio pluralista da teologia das religiões de Torres Queiruga é que o pensamento desse autor é permeado pela busca incessante do sentido histórico das ideias teológicas. Por isso, ele procura implementar em sua obra um movimento dinâmico de retorno criterioso e obediente à Tradição, para redizê-la e reconstruí-la em consonância com as categorias do tempo presente, com um espírito de liberdade e no diálogo com a cultura e com a diversidade religiosa. 

Os dois polos de toda a teologia – experiência humana, por um lado, e palavra revelada, por outro – se fazem assim presentes, como não podia deixar de ser. Porém sua articulação adquire uma vivacidade extraordinária: a palavra só significa enquanto ilumina hoje a experiência real. Nada de repetição mecânica ou de reconstrução arqueológica, mas antes recriação viva, “aprender a aprender”, proporcionalidade dinâmica, que vivencia e realiza em, a partir de e para a situação atual o que para a realidade de seu tempo supôs a palavra originária. Falar então de “voltar a escrever evangelhos” ou, mais forte ainda, de “criar evangelhos” não é mera metáfora, mas sim profunda e criativa fidelidade (TORRES QUEIRUGA, 2003, p. 22, destaques do original).

Essa concepção é realçada por diferentes círculos e tradições teológicas. Paulo Sérgio Lopes Gonçalves, por exemplo, nos mostra que “a teologia como sabedoria não se impõe arbitrariamente ao ser humano e ao mundo, mas brota da realidade de ambos, enquanto se abrem à revelação de Deus, que, por sua vez, é histórica e imbuída de sentido para a existência humana e para a vida de todo o universo” (GONÇALVES, 2020, p. 103).

O princípio pluralista, que é arquitetado sob a noção de entrelugares da cultura e estabelecido sob duas grandezas da herança teológica – alteridade e ecumenicidade –, pode reforçar as experiências religiosas e culturais que se constituem como aprofundamento dos processos de humanização, da democracia, da cidadania e da capacidade contra-hegemônica na defesa de direitos humanos e da Terra (RIBEIRO, 2020). Essas visões estão presentes no pensamento de Torres Queiruga e parte delas está sintetizada a seguir.

Do diálogo ao encontro

Dentro da tradição cristã, as pessoas e grupos que dedicam atenção ao mistério divino revelado em Jesus de Nazaré perceberão que na revelação do Deus que Jesus pôs a descoberto tudo será transformado e transfigurado. Para essa empreitada, é preciso atenção especial à atual insuficiência da linguagem para expressar a nova compreensão da revelação do grande mistério da vida. O teólogo galego pondera que toda pessoa está, em princípio, em condições de reconhecer-se na interpretação da revelação que se propõe a fazer ou mesmo a rechaçá-la, se não a convence, ou de propor uma interpretação alternativa (TORRES QUEIRUGA, 2010).

Faz-se necessária, portanto, uma consciência dos limites da autocompreensão da fé a fim de se elaborar, conjuntamente com outras expressões religiosas, uma compreensão mais ampla da percepção do amor de Deus destinado a todas as pessoas e culturas. Daí a sugestão de Torres Queiruga em substituir a palavra “diálogo” por “encontro”. Diálogo parece implicar uma verdade que já se possui plenamente e que vai ser ‘negociada’ com o outro, que também já tem a sua. Encontro, pelo contrário, sugere muito mais um sair de si, unindo-se ao outro para ir em busca daquilo que está diante de todos (TORRES QUEIRUGA, 2010).

Em algumas posições, dependendo de onde o interlocutor ou interlocutora estão situados e de suas cosmovisões, as propostas de encontro entre grupos religiosos distintos podem ser assimiladas positivamente de diferentes formas. A uns, certamente, as propostas de diálogo, com todas as suas variações locais, regionais ou nacionais, e também as de grupo para grupo, podem parecer ousadas demais, e a outros, muito tímidas. Em todo caso, prevalece sempre o convite a todas as religiões e espiritualidades para que permaneçam abertas ao diálogo e à cooperação e que tenham ânimo e disposição para uma práxis religiosa renovadora. 

A perspectiva do encontro se caracteriza por uma abertura que deve sempre ter a sua gênese no princípio de que “todas as religiões são – a seu modo e em sua específica medida – verdadeiras” (TORRES QUEIRUGA, 2010, p. 378). Sendo assim, com base na autocompreensão cristã, se pode afirmar “uma radical e fraterna comunidade formada por todas as religiões e, como resposta ao amor universal de Deus, sem eleições e nem privilégios da parte d’Ele, todas devem buscar a máxima comunhão possível” (NOBRE, 2016, p. 340). Embora, deve ser realçado que a autocompreensão cristã não pode determinar, direta ou subliminarmente, o que outras religiões devam fazer em qualquer campo de suas atuações e práticas.

O Mistério e a partilha solidária na história

A literatura do teólogo galego aponta para a compreensão de que é na partilha solidária e respeitosa do Mistério que as religiões e as espiritualidades contribuirão para a genuína percepção de revelação e o sadio relacionamento entre os seres criados por amor. “Só partilhando aquilo que creem ser o melhor, num diálogo repleto de respeito e sempre disposto a dar e receber, elas podem ir se aproximando da inesgotável riqueza do Mistério” (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 8). O diálogo, portanto, acontece se essa abertura está presente. O Mistério é o único ponto verdadeiro que descentraliza, na justa medida em que o acolhem. Na comunhão que brota do Mistério, as confissões religiosas e espiritualidades se unem sem impor condições umas às outras e se aproximam sem se desrespeitarem. 

Nessa perspectiva, as análises mostram que os grupos vão descobrindo as suas identidades, predispostas e receptivas a novas visões e formulações, sempre em clima de permanente reforma. A necessidade do encontro nasce entre as religiões justamente diante da diversidade de ofertas e experiências (RIBEIRO, 2016).

Para Torres Queiruga, a livre decisão divina de comunicar-se plenamente encontrou em Jesus Cristo o ápice da recepção possível de sua revelação concreta e culminante na história. Isso não significa que essa culminação esteja em ‘poder dos cristãos’ ou que eles a realizem com perfeição. Exatamente por ser culminação humana, constituindo um convite e desafio, entendemos que possa haver certa unicidade, cujas bases e natureza podem ser comuns a outros grupos religiosos. 

A teologia da revelação de Torres Queiruga aponta para o fato de que, numa honesta e humilde abertura ao outro, não se abandona a própria oferta ou convicção de fé. Mas esta, por meio do diálogo/encontro, tornar-se-á mais ampla, mais crítica e mais acolhedora. Essa dinâmica possibilita à comunidade cristã reconhecer o Ressuscitado na profunda dialética de pertença à história. 

Não uma pertença absoluta, porque o Ressuscitado transcende as engrenagens históricas, mas pertença teológica, uma vez que, não obstante as limitações históricas, Ele vai se dando a conhecer na história, possibilitando que todas as pessoas e o universo abertos à plenitude.

Essa mesma lógica vale para a pertença eclesial: ela se dá porque é a comunidade que é encarregada de manter viva a lembrança da fé e efetivar a sua oferta. Paradoxalmente, é também não pertença, porque o Ressuscitado não se deixa aprisionar-se, e qualquer comunidade jamais conseguirá abarcá-Lo nem possuí-Lo. Elas devem reconhecê-Lo como destinado ao mundo.

Nessa dinâmica, o Ressuscitado pode ser acolhido pelas totalidades que abarcam a vida humana e cósmica. Isso se dá com a consciência de que a revelação se configura continuamente. Trata-se de uma nova ideia de revelação “não mais concebida de maneira fundamentalista, como uma espécie de ‘ditado divino’ que é preciso tomar à letra, mas como um ‘dar-se conta’ daquilo que Deus, desde sempre e sem discriminação, está tentando comunicar a todo indivíduo, a toda comunidade e a toda cultura” (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 189). No tempo presente, a revelação, se superada a sua compreensão como um “ditado”, acolhido de maneira fixista, aponta para o caráter interpretativo e de interlocução entre humanidade e divindade. Isso se dá na partilha despojada e autêntica das monções do Espírito entre todos os povos e culturas.

Universalismo assimétrico, teocentrismo jesuânico e inreligionação

Para a tarefa de uma constante interpretação da revelação, Torres Queiruga propõe três categorias: 

1. Universalismo assimétrico. As religiões e espiritualidades, em seus nascimentos e desenvolvimentos históricos, são, em si mesmas, caminhos reais de revelação e salvação. Ou seja, elas oferecem caminhos de salvação e de iluminação para os diferentes aspectos da vida, em geral, baseadas em um conjunto de crenças e de práticas, não raro entendidas como recebidas ou reveladas. Elas, em sua maioria, e não obstante as suas ambiguidades e limites, expressam uma presença divina universal e irrestrita, posto que, na tradição cristã, acredita-se que desde a criação do mundo há o desejo de que “todos sejam salvos” (1Tm 2,4). Assimétrico, porque é impossível ignorar o fato das diferenças reais nas conquistas das diferentes religiões; não por um tipo de discriminação divina, mas porque, por parte da compreensão humana, a desigualdade se torna inevitável. Assevera Torres Queiruga (2010) que a assimetria não deve ser entendida como absolutismo, mas como um dado que aponta para a compreensão de que todas as religiões, incluída ‘a nossa’, se apresentam, em sua essência mais íntima, necessitadas de aperfeiçoamento. 

As religiões e espiritualidades são como leques de tentativas exploratórias, partindo de instâncias distintas e por caminhos diversos, convergindo para o mesmo Mistério que as sustenta, as atrai e as supera. Elas são fragmentos diferentes nos quais se difrata a riqueza inesgotável dele. Sendo assim, por serem fragmentos, não devem ignorar-se entre si, mas somar os reflexos de cada um deles. Seria inadequado pensar que a riqueza do outro me empobrece, bem como seria intolerável açambarcar como privilégio próprio o que pertence a todos. Ressaltamos, desse modo, que, segundo Torres Queiruga, o caráter pleno da revelação afasta o humano de toda e qualquer pretensão de domínio ou conquista nos diferentes planos de poder na sociedade.

2. Teocentrismo jesuânico. Essa categoria evidencia que há, por um lado, uma imprescindibilidade de Jesus de Nazaré como pessoa histórica, e, por outro, um reconhecimento de que, fundamentalmente, Deus é o centro último de todas as realidades. Esta afirmação não ignora a existência de religiões que não professam a fé em um Deus único, ou até mesmo em Deus, como se concebe na fé cristã. Daí a proposta dessa categoria como tentativa de juntar ambas as extremidades. “Hoje considero mais significativo falar de um ‘teocentrismo jesuânico’, pois nos parece que aponta melhor tanto para Deus enquanto Mistério ultimamente fundante como para sua irrenunciável mediação no Evangelho na pessoa de Jesus de Nazaré” (TORRES QUEIRUGA, 2010, p. 366). 

Além disso, com relação a todas as religiões, não se prejulga em princípio seu direito de falar de um teocentrismo diferentemente qualificado, se assim elas o creem. No entanto, essa é uma posição que redunda em variadas e desafiadoras consequências. Para o autor, a “autocompreensão cristã acaba sendo sem dúvida tão ousada que só pode ser feita hoje com temor e tremor. E desde já obriga a uma revisão muito profunda da Cristologia que, seguindo o exemplo do próprio Jesus, precisa tornar-se (mais) teocêntrica” (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 190). Ele conclui que “ao fazer isso, todavia, agora também o realismo pede um delicado equilíbrio que, ao mesmo tempo em que acentua a centralidade de Deus, não desvaneça o papel único e irrenunciável da figura histórica de Jesus de Nazaré” (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 190).

A visão teocêntrica abre espaços para um diálogo mais justo, real e paritário entre as religiões. Isso não se dá a priori, em planos formais e intelectivos, mas a posteriori, ou seja, mediante diálogo e cooperação. É a partir dessas experiências que se pode analisar as diferentes propostas de fé. Para os grupos que acolhem o    teocentrismo que se revela na palavra e no destino do Nazareno, as razões se concentram na visão de que Deus é amor incondicional, sem limites nem discriminações, e que, em consequência disso, se constrói a relação filiar com Ele e a relação de amor e serviço com as pessoas e com o conjunto da criação.

3. Inreligionação. Assim como no debate sobre inculturação determinada cultura assume riquezas que lhe vêm de fora, sem renunciar a ser o que fundamentalmente ela é, o mesmo acontece no plano religioso. O autor nos mostra “a inreligionação, a qual, reconhecendo o avanço pressuposto pela categoria da ‘inculturação’, evidencia a necessidade de dar um passo a mais. O perigo está, de fato, em pensar que é suficiente respeitar a cultura, mesmo suprimindo-se a religião. [...] Isso seria equivalente à desmedida pretensão de suprimir uma presença real de Deus no mundo” (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 193, destaque do original). É com essa valorização da dimensão religiosa na vida social que se reconhece que a categoria inreligionação tem significativa presença tanto no campo da teologia quanto no da espiritualidade.

Dessa forma, as religiões que se encontram em plano dialógico e cooperativo com outras não têm suas forças atenuadas ou tendem a desaparecer; ao contrário, longe de serem suprimidas, afirmam-se mediante uma transformação que pode torná-las mais críticas, mais ricas e universais. É como no exemplo do enxerto de árvores em que tanto a árvore receptora quanto o galho enxertado se enriquecem mutuamente. Sendo assim, no enraizamento hermenêutico do encontro entre as religiões, entendemos que quando se busca, com humildade e acolhida, o contato com o diferente na disponibilidade da partilha desarmada e sincera, muitas verdades que são comuns a todos se efetivarão na mútua ajuda. 

A literatura de Torres Queiruga aponta para o fato de que todas as religiões têm aspectos e perspectivas intrínsecas. Estes se constituem em ferramentas que possibilitam a percepção de dimensões transcendentais. Sendo assim, as religiões são desafiadas a colocar em comum suas descobertas, numa atitude de mútua ajuda e partilha. O teólogo galego nos possibilita entender que é preciso manter a sensação viva do Mistério, e não a sua monopolização. Isso contribui para que todas as pessoas e grupos se eduquem para a vivência em coletividade. Na atual cultura, marcada por diversos etnocentrismos, há, pois, o desafio de se dar um passo adiante rumo à graça da partilha do testemunho e da verdade revelada no amor (TORRES QUEIRUGA, 2010). 

A visão de Torres Queiruga alimenta a esperança de que, da cultura multifacetada – quando humanizada e iluminada pela presença reveladora do Mistério –, poderão sair potencialidades criativas, inéditas e inauditas. “Não existe maior respeito ao outro que lhe apresentar a própria posição da maneira mais sincera e clara possível. Só assim, de mais a mais, pode-se esperar que também o interlocutor escute de verdade, sem pretender saber a priori” (TORRES QUEIRUGA, 2010, p. 110). 

O encontro e a cooperação inter-religiosa se tornaram tão urgentes que comportam uma radical mudança no modo de enfrentá-los, uma autêntica mudança de paradigma. E isso implica a necessidade de uma profunda transformação, não apenas nos novos conceitos, mas também nas condutas e nas sensibilidades dos diferentes grupos. Trata-se de um novo modo de aproximar-se do outro em que é oportuno vê-lo não mais como um concorrente, mas um companheiro de jornada, já que, diante do Mistério comum, acaba sendo vazio de sentido se insistir no ‘teu’ e no ‘meu’. 

As autênticas identidades são forjadas no encontro

Como temos destacado, Torres Queiruga busca um modelo de reflexão teológica ecumênica pautado no diálogo inter-religioso que saiba valorizar a disposição em reconhecer o dom salvífico nas diferentes expressões religiosas, como as visões inclusivistas o fazem, e que também aproveite os espaços autênticos de diálogo, como as visões pluralistas defendem. Assim, é concebido processo de construção e reconstrução de identidades.

Torres Queiruga defende a visão de que todas as religiões precisam buscar a máxima comunhão possível como ato de resposta humana ao amor universal de Deus. Isso deve se dar isentando-se das concepções de eleição ou privilégio da parte de Deus em relação a qualquer expressão religiosa em particular. 

A queda do exclusivismo – hoje, felizmente, em geral por todos reconhecida – representa a consequência mais saliente e de importância decisiva para o problema. Em continuidade com essa queda, tornou-se imperioso revisar e no fim das contas abandonar a ideia da eleição como um privilégio pelo qual, de maneira mais ou menos “voluntarista” ou “favoritista”, a divindade escolheria alguns, decidindo deixar os restantes abandonados ou no mínimo relegados a um segundo plano. Na nova perspectiva, o ponto de partida para o diálogo tem sido, pelo contrário, a constatação da universal presença reveladora e salvífica de Deus, que leva a afirmar que, a seu modo e em sua medida, todas as religiões são verdadeiras (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 189, destaques do original).

Para o autor, a partilha da fé e da experiência da vida – naquilo que é compreendido pelos grupos como o que há de melhor –, num diálogo repleto de respeito e alteridade em um complexo, mas, ao mesmo tempo singelo movimento de dar e receber, torna possível que as religiões se aproximem do inesgotável mistério de Deus. Na medida em que é acolhido pelas diferentes religiões, Ele passa a ser o único centro, e elas deixam de ser centradas nelas mesmas, mas, com esse descentramento, passam a gravitar em torno de Deus.

O diálogo não requer a destruição da identidade; ao contrário, possibilita novas compreensões da identidade própria de cada grupo. A ideia é que a verdadeira e autêntica identidade não se encontra no passado morto, mas adiante, no futuro de Deus. Nesse sentido, as identidades são enriquecidas pelo encontro e se tornam instrumentos de conversão e uma promessa de plenitude da experiência religiosa. Para Torres Queiruga, 

uma vez reconhecida e afirmada a presença universal da salvação, essa opção se torna mais coerente. A partir dela parece possível chegar a um difícil equilíbrio que deve dar conta de duas frentes: por um lado, manter tanto o respeito ao valor intrínseco de todas as religiões quanto o realismo de reconhecer a independência de seu nascimento e desenvolvimento na história; por outro, e também por realismo histórico e antropológico, não ceder nem ao relativismo do “tudo é igual”, nem ao achatamento do buscar a universalidade no mínimo denominador comum (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 190). 

É fato que o diálogo requer que cada grupo religioso mantenha a sua identidade aberta, predisposta a descobertas e receptiva ao novo e às mudanças. O autor nos lembra que as experiências de diálogo destroem, sim, as identidades narcisistas, fechadas em torno delas mesmas, não condizentes com os próprios fundamentos da fé. E mais do que isso, nos alerta também que mesmo sem um diálogo efetivo com outras religiões, o processo de revisão dos fundamentos da fé [identidade semper reformanda, nas palavras do autor] pode e deve se dar a partir de uma ‘anterioridade estrutural’, de uma aguda pergunta interna para cada religião sobre a revelação de Deus. Será ela uma possessão própria ou salvação exclusiva ou será a revelação de Deus que “mantém sempre viva a gratuidade de sua transcendência e sua intrínseca destinação a toda a humanidade”? (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 198).

Torres Queiruga não ignora as realidades de violência, de disputas políticas e religiosas, de etnocentrismos e de desencontros entre as religiões. Todavia, considera que o encontro entre elas possa estar vivendo uma fase de florescimento. Os próprios fatores negativos se tornam elementos constitutivos de uma nova visão e, somados ao fato de a humanidade estar se tornando planetária, tal perspectiva pode suscitar uma nova consciência dialogal. Como o autor se referiu:

[...] [daí] poderão sair potencialidades inéditas que nem sequer estamos em condições de suspeitar e que, em todo caso, não devemos limitar de antemão. De qualquer forma, se a situação não produz a complacência do acordo expresso, mantém, isso sim, por sua vez, a sensação viva do Mistério, a não-monopolização do Deus semper maior. E com ela, a humildade do contínuo aprendizado, sem renunciar por isso ao oferecimento gratuito, nem à íntima alegria da própria convicção (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 199). 

A universalidade e o pluralismo assimétrico não anulam a vocação ecumênica; ao contrário, a redimensionam na medida em que “a ‘lógica da gratuidade’ deve substituir a ‘lógica da concorrência’ e, como está escrito, é preciso ‘dar de graça que de graça foi recebido’” (TORRES QUEIRUGA, 2007, p. 191).

O autor busca um modelo de reflexão teológica ecumênica pautada no diálogo inter-religioso que saiba valorizar a disposição em reconhecer o dom salvífico nas diferentes expressões religiosas, como as visões inclusivistas o fazem, e que também aproveite os espaços autênticos de diálogo, como as visões pluralistas defendem, para se construírem identidades. 

Considerações finais

A teologia das religiões, ao assumir a identidade sapiencial e o caráter propositivo próprios do princípio pluralista, será sempre capaz de compreender os sinais dos tempos para que, em formas diversas, seja contemporânea e incisiva na atualidade histórica, sobretudo nas possibilidades de encontro das religiões e na efetivação dos esforços delas pela paz e pela justiça. Para isso, dentro da autocompreensão cristã, ela necessita possuir um espírito de abertura para servir a verdade revelada, com uma linguagem que se renove permanentemente a fim de iluminar a realidade humana e cósmica para o novum de Deus. 

Nessa direção, procuramos analisar obras que marcam a teologia das religiões de Andrés Torres Queiruga e fazer conexões com o princípio pluralista. Entre os resultados de nossa pesquisa, destacamos os seguintes pontos. Há significativas aproximações entre o princípio pluralista e o pensamento teológico de Torres Queiruga, sobretudo a perspectiva de se superarem modelos tradicionais de avaliação do dado salvífico. 

Nesse sentido, é saudável distinguir a concepção de diálogo, que, em geral, expressa a posição de uma verdade que já se possui plenamente e que vai ser ‘negociada’ com o outro, e a noção de encontro, que pressupõe diferenças, revela com mais intensidade a atitude de se despojar e sair de si, unindo-se ao outro para buscar dimensões e valores que estão no horizonte de ambos. É na partilha solidária e respeitosa do Mistério que as religiões contribuirão para a genuína percepção de revelação, o aprendizado mútuo e o justo e sadio relacionamento entre elas. 

Vimos como Torres Queiruga destaca a universalidade da revelação cristã e a vê como a forma de Deus se manifestar na história concreta da vida humana. No entanto, ele compreende a revelação cristã sempre a partir do encontro com as demais religiões e culturas, além de considerar os aspectos conjunturais do atual contexto mundializado. Nesse sentido, se realça a visão de que as identidades de mais profunda autenticidade são forjadas nos encontros, nos cruzamentos justos e respeitosos e na relação de alteridade entre as diferentes partes envolvidas.

O diálogo das religiões se situa, assim, em um espaço comum, exigindo a formulação de novas categorias para a tarefa de interpretação da revelação divina –  como a de universalismo assimétrico, teocentrismo jesuânico e inreligionação –   e propiciando um novo espírito de acolhida, respeito e colaboração entre as religiões, como realça o princípio pluralista. Como indicado no início do presente texto, a abordagem se situa no contexto de uma autocompreensão cristã e, com isso, se refere a um modo próprio de se fazer e pensar uma teologia das religiões a partir dessa realidade. Para isso, a contribuição teológica de Torres Queiruga nos parece de vital importância na atualidade.

Referências

BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999. 

GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada hermenêutica da teologia. São Paulo: Vozes, 2004. 

GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Identidade e Sabedoria: a reflexão teológica como Veritatis Gaudium. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, PUC SP, v. 28, n. 95, p. 87-113, jan./abr. 2020. 

MIGNOLO, Walter. Histórias locais-Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003. 

NOBRE, José Aguiar. Ecumenismo e o diálogo das religiões em Andrés Torres Queiruga. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, PUC Rio, v. 20, n. 53, p. 339-354, maio/ago. 2016. 

PUI-LAN, Kwok. Globalização, gênero e construção da paz: o futuro do diálogo interfé. São Paulo: Paulus, 2015. 

RIBEIRO, Claudio de Oliveira. Religião, democracia e direitos humanos: presença pública inter-religiosa no fortalecimento da democracia e na defesa dos direitos humanos no Brasil. São Paulo: Reflexão, 2016. 

RIBEIRO, Claudio de Oliveira. O princípio pluralista. São Paulo: Loyola, 2020. 

SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2010. 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a Cristologia: sondagens para um novo paradigma. São Paulo: Paulinas, 1998. 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Recuperar a Salvação: por uma interpretação libertadora da experiência cristã. São Paulo: Paulus, 1999. 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Fim do Cristianismo pré-moderno: desafios para um novo horizonte. São Paulo: Paulus, 2003. 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a Ressurreição: a diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura. São Paulo: Paulinas, 2004. 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Autocompreensão cristã: diálogo das religiões. São Paulo: Paulinas, 2007. 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar a Revelação: revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010. 

TORRES QUEIRUGA, Andrés. Repensar o Mal: da ponerologia à teodiceia. São Paulo: Paulinas, 2011.  

Notas

[1]  As obras listadas a seguir são exemplos dessa concepção. Note-se que os subtítulos delas expressam a dinâmica do pensamento do autor e o seu desejo, em consonância com o princípio pluralista, de atualização e inculturação teológicas: Repensar a Cristologia: sondagens para um novo paradigma (1998), Recuperar a Salvação: por uma interpretação libertadora da experiência cristã (1999), Repensar a Ressurreição: a diferença cristã na continuidade das religiões e da cultura (2004), Repensar a Revelação: a revelação divina na realização humana (2010) e Repensar o Mal: da ponerologia à teodiceia (2011).