O corpo como lugar da oração na liturgia do Vaticano II  
The body as a place of prayer in the liturgy of Second Vatican 

Daniel Carvalho Silva*
José Reinaldo Felipe Martins Filho** 

*Mestrando em Ciências da Religião (PUC Goiás / CAPES). Atualmente também realiza pósgraduação – em nível de especialização – em Liturgia Cristã (FAJE/Rede Celebra). Contato: dancarvalho90@gmail.com 
**Doutor em Filosofia (UFG). Doutor em Ciências da Religião (PUC Goiás). Mestre em Filosofia e em Música (UFG). É professor efetivo do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, na Linha de Pesquisa Cultura e Sistemas Simbólicos. Contato: 
jreinaldomartins@gmail.com  

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Resumo:

O presente artigo coloca em evidência a dimensão antropológica da liturgia. Tal dimensão, propiciada pelo Movimento Litúrgico e acatada pelo Concílio Vaticano II, possibilitou o nascimento da ciência litúrgica e o diálogo aberto com as outras ciências que investigam o rito como parte do fenômeno religioso. Valorizada nos primórdios do cristianismo, negada no medievo e reassumida pelas constituições conciliares Sacrosanctum Concilium e Gaudium et Spes, a corporeidade, como dado litúrgico e também pastoral, tem sido endossada pelo magistério do Papa Francisco. Por meio da pesquisa exploratória, o texto a seguir busca compreender como o corpo foi assumido pelas tradições bíblica, cristã e litúrgica e quais implicações essas demonstram ter sobre a concepção atual de corporeidade. Em seguida, busca-se elucidar acerca de como a liturgia atua sobre o corpo e de como o corpo se manifesta na liturgia. O estudo conclui que a ênfase na mediação simbólica que tange os sentidos corpóreos possibilitou afirmar que a liturgia é o modo pelo qual o corpo ora.   

Palavras chave: Antropologia litúrgica; Corporeidade; Mediação simbólica; Ritualidade; Experiência sensível. 

Abstract

This article highlights the anthropological dimension of the liturgy. This dimension, provided by the Liturgical Movement and accepted by the Second Vatican Council, made possible the birth of liturgical science and an open dialogue with other sciences that investigate the rite as part of the religious phenomenon. Valued in the early days of Christianity, denied in the Middle Ages, and resumed by the conciliar constitutions Sacrosanctum Concilium and Gaudium et Spes, corporeality, as a liturgical and pastoral data, has been endorsed by Pope Francis’ magisterium. Through exploratory research, the following text seeks to understand how the body was assumed by biblical, Christian, and liturgical traditions and what implications they have these demonstrate to have on the current conception of corporeality. Then, it seeks to elucidate how the liturgy acts on the body and how the body manifests itself in the liturgy. The study concludes that the emphasis on symbolic mediation that touches the bodily senses made it possible to affirm that the liturgy is the way in which the body prays. 

Keywords: Liturgical anthropology; Corporeality; Symbolic mediation; Rituality; Sensitive experience. 

Introdução 

Teologia é um jeito de falar sobre o corpo. O corpo dos sacrificados. São corpos que pronunciam o nome sagrado: Deus... A teologia é um poema do corpo, O corpo orando, O corpo dizendo as suas esperanças, Falando sobre o seu medo de morrer, Sua ânsia de imortalidade, Apontando para utopias, Espadas transformadas em arados, Lanças fundidas em podadeiras... Por meio desta fala, Os corpos se dão as mãos, Se fundem num abraço de amor, E se sustentam para resistir e para caminhar. (ALVES, 1982, p. 9) 

O que Rubem Alves poetizou sobre a teologia, aplica-se também à liturgia. Com a exceção de que, por estar no campo da ação, a liturgia não apenas discursa sobre o corpo, mas é feita por ele; e, ao mesmo tempo, põe-no em movimento, faz com que pulse, vibre. Marcel Mauss (2009), em sua análise socioantropológica da prece religiosa, traça um perfil bastante geral no qual esboça compreender a oração como o ponto fulcral da experiência religiosa. Mas, o que nos chamou a atenção de sua leitura é justamente o aceno que faz ao supor que, em seus primórdios, a oração fosse sempre um ato coletivo e comunitário. Aqui, não apenas o ato de um corpo, mas de um corpo entrelaçado em sentidos socialmente construídos. De acordo com Mauss, a prece seria feita sempre de algum modo ritual. Com o decorrer do tempo, no entanto, cada vez mais a oração tornou-se um ato pessoal, depois até mesmo subjetivo. Transformou-se, enfim, em livre conversação do indivíduo com o sa-grado: a realização de um ato mental, que sequer exige a oralização de palavras.

A tradição cristã, de certo modo, não fugiu aos padrões observados por Mauss. É verdade que os rituais coletivos nunca deixaram de existir. Mas é ver-dade também que, por séculos, as assembleias cristãs – povo congregado pela força do Espírito – participaram do principal culto cristão, a missa, recitando orações pessoais em silêncio. O papa Pio XII (Mediator Dei, n. 21) chegou a afirmar que “o elemento essencial do culto deve ser o interno” – denotando, em outras palavras, a ênfase do individual sobre o comunitário, a vitória do que é subjetivo. No âmbito do cristianismo, parece-nos que este percurso, do coletivo ao individual, do objetivo ao subjetivo, deu-se na medida em que foram sendo valorizadas as experiências interiores (da alma) e desvalorizados os corpos. Ao que parece, pontualmente contra esse impulso se estendem as conclusões ema-nadas das constituições do Concílio Vaticano II sobre a liturgia – Sacrosanctum Concilium – e sobre a ação pastoral da Igreja no mundo – Gaudium et spes –, numa espécie de entrave à manutenção de leituras dicotômicas da ordem do cor-po versus a alma. Ainda assim, o debate sobre a corporeidade no âmbito eclesial, até hoje, causa certo incômodo. 

A fim de propormos um caminho interpretativo, partimos da premissa de que os ritos litúrgicos são realizados fundamentalmente com o corpo, para o corpo, pelo corpo e no corpo. Tal fato é justificativa mais que suficiente para sempre retornarmos ao tema, o que aqui almejamos fazer nos limites de uma metodologia exploratória, respondendo às seguintes questões: a) como se pen-sou o corpo humano nas tradições bíblica, cristã e litúrgica? b) Decorrem daí implicações sobre o modo como concebemos o corpo na atualidade? c) Como atua a liturgia sobre o corpo – e, ao inverso – como o corpo pode alcançar plena manifestação na esfera da liturgia? Mais que encerrar a discussão em postulados apressadamente conclusivos, propomos retomar algumas ideias gerais, de modo a contribuir para que a flama não se apague, dar destaque ao corpo que celebra e, por meio dele, refletir sobre uma prática pastoral com incidência de temas ainda considerados marginais.

1. O corpo na Bíblia: tu és corpo e, como corpo, viverás

A narrativa do Gênesis afirma que Deus, do pó da terra, formou Adão. E que, depois, de parte do corpo de Adão, formou Eva (Gn 2,7.21). O prólogo de João diz que o Filho de Deus se fez carne – humana – e habitou entre nós. Há, já aqui, um evidente paralelismo entre a criação da humanidade, como corpo vivo e corresponsável pela obra criada, e a nova criação instaurada pela Encarnação do Verbo, isto é, sua adesão à condição de ser corpóreo e, como corpo (potência efêmera, suscetível à precariedade e à morte) instaurar a redenção. Os textos bí-blicos, em maioria absoluta, são compostos por narrativas: de guerras, namoros, crimes, colheitas, exílios, lutas por terra, festas, pessoas fiéis e infiéis, orações, pensamentos, parábolas, alegorias... todas marcadas por comportamentos que, sem exceção, são profundamente arraigados ao modo de ser humano. A narrativa é o gênero literário que possibilita a imersão do leitor no relato, diferentemente, por exemplo, dos textos argumentativos, que podem fazer fervilhar as ideias, mas, nem sempre, o coração. Quem lê ou reza um salmo tende, geralmente, a sentir o mesmo que sentiu o salmista, seja alegria, seja raiva. Isso é um indício de que a revelação de Deus não se dá pela consciência ou por alguma capacidade do intelecto, mas pelo sentir, isto é, pelo corpo que sente. É a partir do corpo, da carne, que Deus fala nas Escrituras. 

Nesse sentido, é belíssimo mergulhar nos relatos da Salomita. A descrição do corpo da amada (Ct 4,1-7; 7,2-10) e do amado (Ct 5,10-16) não deixa de lado os dentes, os seios, o umbigo, o nariz ou o ventre. Contudo, na Bíblia, talvez quem mais tenha ponderado sobre o corpo seja o apóstolo Paulo. Conforme a compreensão de Gutierrez (1984, p. 76), Paulo, como bom judeu, compreende o ser humano como uma unidade: corpo, alma e espírito (1Ts 5,23). E, ainda que haja uma plurissignificação do conceito nas cartas paulinas, grosso modo, o cor-po (físico da pessoa humana) é pensado como um campo onde atuam as forças da carne e do espírito. Provado na perseguição contra os cristãos, Paulo sabia que ela se dava no corpo físico (At 9,16; 16,19-24; 2Cor 11,23) e, nessa perspectiva, afirmou: “embora vivamos, somos sempre entregues à morte por causa de Jesus, a fim de que também a vida de Jesus seja manifestada em nossa carne mortal” (2 Cor 4,11).

Enquanto o salmista afirma que os mortos não podem louvar ao Senhor (Sl 115,17), Paulo expressa o desejo de manifestar a glória de Cristo em seu próprio corpo, seja pela vida, seja pela morte (Fl 1,20). O apóstolo afirma ainda que, sepultado o corpo corruptível, ressuscita o corpo glorioso ou espiritual (1Cor 15,42-44; Fl 3,21). De fato, Cristo, já ressuscitado, quando aparece aos discí-pulos, em face do medo deles, afirma não ser um espírito – ele tem carne e osso – e come peixe diante deles (Lc 24,37-43): é um corpo. Ademais, é imperioso lembrar que Jesus, no evangelho de João, apresentou-se como o pão da vida: carne-comida e sangue-bebida que garantem a unidade com Ele e a ressurreição no último dia (Jo 6,51-56). No mesmo sentido, as narrativas da ceia afirmam que Jesus doou-se em totalidade: corpo e sangue (1Cor 11, 23-25; Mc 14, 22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,19-20). Contudo, embora a Bíblia esteja repleta de relatos sobre o corpo, seja no contexto da Antiga Aliança ou, mesmo, da restauração operada pelo Corpo de Deus e sua atividade salvífica no meio dos homens, não é possível atingir uma compreensão suficiente da concepção herdada pelo cristianismo dos dias atuais sem que se considere o debate sobre o corpo num contexto eminente-mente eclesial (embora, nalgumas vezes, majoritariamente eclesiástico).

2. O corpo na história da Igreja: sobre o corpo e o “corpo místico” de Cristo

Não raro fala-se sobre o cristianismo como a “religião das relíquias”. Tal referência está conectada aos mártires, dos quais os cristãos sempre veneraram os corpos. Já no século III, ao afirmar aquilo que repetimos na missa de todos os domingos “creio na ressurreição da carne”, Tertuliano não titubeia em dizer que “a carne é o eixo da salvação” (1960, p. 26 – tradução nossa). Pode-se afirmar, portanto, que nos primeiros séculos do cristianismo, o corpo era considerado tão digno quanto o era a pessoa humana. 

No decorrer da história, contudo, a compreensão de espiritualidade – como vida guiada pelo Espírito – posta em contato com as estruturas linguísticas do pensamento grego, acabou por fragmentar a unidade do corpo, que era caracte-rística do pensamento judaico. A síntese de Daniélou (apud COSTA, 2006, p. 327) sobre a questão é esclarecedora:

Quando falamos de “espírito”, quando dizemos que “Deus é espírito”, o que queremos dizer? Falamos grego ou hebrai-co? Se falamos grego dizemos que Deus é imaterial, etc. Se falamos hebraico dizemos que Deus é um vento forte, uma tempestade, uma força irresistível. Daqui provêm todas as ambiguidades quando se fala de espiritualidade. A espiritua-lidade consiste em se tornar imaterial ou em ser animado pelo Espírito Santo? 

Por um tempo significativo na história da Igreja, o “tornar-se imaterial” foi sendo solidificado de modo a criar uma categoria de vida na alma. Como es-quecer Tereza d’Ávila quando expressava, em poesia, seu desejo de encontrar a Cristo através da morte? “Não vive em mim meu viver, e em tão alta vida espero que morro de não morrer.” (TEREZA D’ÁVILA, 2000, p. 343). A dicotomia en-tre corpo e alma valorizou a segunda em prejuízo do primeiro. Não é por acaso que o contraponto à teologia de Tertuliano geralmente se realize com recorrência a Agostinho, que, entre os Padres da Igreja, talvez seja o principal responsável pelo estabelecimento da dicotomia no núcleo da compreensão teológica, expon-do, de um lado, o corpo, nalgum grau assumido como fonte do conhecimento, mas, definitivamente, não da experiência de Deus, que se recolhe no mais pro-fundo do homem: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a Verdade habita no coração do homem” (AGOSTINHO, 2014, p. 67). A noção de divino passa a estar indissoluvelmente ligada à alma, enquanto ao corpo restavam os vícios, o pecado. Chega-se a falar em um “sentir superior”, com relação ao que Agostinho nomeou “sensações internas” e o “sentir inferior”, diretamente re-lacionado ao âmbito sensorial. Esse movimento tem como ápice a concepção de corpo poetizada por Tereza D’Ávila, com implicações muito próximas dos vestígios neoplatônicos e estoicos, a ideia de corpo como “cárcere da alma”. Tal concepção antropológica vigorou até o período pós-tridentino. 

O Concílio Vaticano II, por sua vez, afirma que o gênero humano é uma unidade de corpo e alma, e que, portanto, a vida corporal não deve ser despreza-da, mas, ao contrário, que o corpo seja considerado bom e digno de respeito, já que foi criado por Deus e ressuscitará no último dia. Tal impressão encontra-se, sobretudo, na constituição Gaudium et Spes (n. 14). Trata-se de uma retomada importante. Endossando-a, o Papa Francisco, na Exortação apostólica Evangelii Gaudium (n. 24), apresenta uma frase emblemática, no imperativo, ao animar as comunidades missionárias ao serviço pastoral; a saber: “assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo”. É como se repetisse a frase de Tertuliano. A carne, que é o gênero humano, que é o Corpo de Cristo, precisa ser tocada. É ela que sofre. É ela o fulcro da salvação.

3. A liturgia no corpo: o rito como ação, como corporeidade

A retomada do Ritual da Iniciação Cristã de Adultos, depois do Concílio Vaticano II, é uma confissão clara de que o catecismo feito por aulas, explicações dogmáticas, frases decoradas... não é capaz de conduzir uma pessoa à fé, ou de configurá-la a Cristo. Para isso, é preciso que haja um encontro com a pessoa de Jesus. O Papa Francisco, na audiência geral do último dia 03 de fevereiro, afirmou que a liturgia é o lugar da presença e do encontro com Cristo. De acordo com o papa, uma vez que Jesus não é uma ideia ou um sentimento, mas uma pessoa viva e um acontecimento histórico, “A oração dos cristãos passa por mediações concre-tas: a Sagrada Escritura, os Sacramentos, os ritos litúrgicos”. Afirmou ainda que “Na vida cristã não prescindimos da esfera corpórea e material, porque em Jesus Cristo ela se tornou o caminho da salvação. Podemos dizer que agora devemos rezar com o corpo. O corpo entra na oração” (FRANCISCO, 2021). 

Tomás de Aquino (De veritate, q.2, a.3, ad 19) já afirmara, séculos atrás, que não há nada no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos, isto é, pelo corpo. É pelos sentidos – visão, audição, tato, olfato, paladar – que expe-rimentamos todas as coisas, inclusive a Deus. Falar de “experiência” de Deus é algo que por algumas décadas, especialmente no século XIX, gerou inúmeras controvérsias e querelas teológicas. Hoje tem-se como ponto pacífico que não se trata da empiria, nos limites do que conceberam os movimentos cientificistas, reclusos num outro extremo, na negação de toda e qualquer realidade espiritual. “Experiência de Deus” denota, ao contrário, pôr o corpo no curso da fé, que, aliás, tem o corpo como horizonte de sua possibilidade. Como denotam teólogos do cacife de Aldo Terrin ou Giorgio Bonaccorso, com a Encarnação de Cristo o corpo entra de uma vez por todas no jogo da salvação, como instância incontor-nável. É por isso que nossos corpos precisam do rito litúrgico para ouvir, ver, cheirar, comer, suplicar e louvar a Deus. Como lembra o apóstolo: “O corpo (...) é para o Senhor, e o Senhor é para o corpo” (1Cor 6,13).

As ações de Jesus, tal como narradas pelos Evangelhos, também são corpó-reas. Jesus olhava para o céu antes de curar ou orar (Mc 7,34; Jo 17,1). Lucas afirma que Ele se inclinou sobre a sogra de Pedro para curá-la (Lc 4,39). A mu-lher hemorroíssa sentiu em seu corpo que foi curada ao tocar a roupa de Jesus (Mc 5,29). Lázaro escutou o grito “venha para fora” e obedeceu (Jo 11,43). Ressuscitado, o Senhor mostrou-se e deu-se ao toque das mãos de Tomé (Jo 20,27). Do mesmo modo que a ação de Jesus, a ação litúrgica se faz com corpos. É importante ressaltar que esta compreensão não exclui a dimensão psíquica (a alma, com sua potência espiritual, no caso do ser humano). Ocorre que a psique, isto é, a mente, passa a ser concebida como conteúdo do corpo. E, da mesma for-ma que a mente é moldada pelo corpo (GALLAGHER, 2005), o corpo é molda-do pelo rito (SMITH, 1992, p. 103; BELL, 2006, p. 533-543). Aliás, Bonaccorso (2015, p. 141) afirma que o rito não gerencia o corpo por meio da fala, mas crian-do situações às quais o corpo deverá viver. O rito é uma linguagem que comunica para e através do corpo.

Nessa perspectiva, podemos refletir sobre os diferentes modos como a litur-gia atua sobre os corpos. O batismo de uma criança, que estabelece a imersão de seu corpo em Cristo, é por ela experimentado como a submersão do seu corpo em água. Do mesmo modo, a Eucaristia é a imersão de Cristo no corpo do co-mungante, mas é também a experiência de comer do pão. Assim, o rito litúrgico funciona de modo a imergir a pessoa na experiência, diferentemente do catecis-mo e dos dogmas, que compõem uma ordem descritiva. O primeiro comunica ao corpo, os segundos ao intelecto. Dirá Bonaccorso (2020, p. 1157): “O rito religioso é um comportamento através do qual o corpo se organiza para viver a fé em Deus, não tanto como uma descrição de Deus e de suas obras, mas como uma imersão em Deus e em suas obras”. Com razão Tertuliano (Apologia, cap. 18) já havia dito: “os homens se tornam, não nascem cristãos”. Não há dúvidas de que esse “tornar-se” ocorre por meio da ação da liturgia sobre os corpos humanos.

Parece-nos, portanto, que a dimensão corpórea não pode ser menosprezada nem no âmbito litúrgico, nem no catequético, especialmente devido a dois fatos: a) a corporeidade não é uma dimensão superficial do ser humano, ao contrário, é a fundamental; b) o encontro com o Senhor é mediado pelos sinais sensíveis (que tangem os sentidos), de modo que a experiência depende da imersão ritual. Só ela deixa marcas no corpo.

4. A comunicação não verbal: o corpo como linguagem tácita

A linguística moderna passou a ser reconhecida como ciência depois que o Curso de linguística geral de Saussure foi publicado, em 1916, em Paris. O segundo capítulo da obra traz à baila a “teoria dos signos”. Trata-se da compre-ensão de que todo objeto linguístico tem dois aspectos: uma forma (significan-te) e um significado. A palavra portuguesa chuva, por exemplo, é formada (no sentido de ter uma forma), simultaneamente, por cinco letras e quatro fonemas. Essa representação gráfica ou o som da palavra (imagem acústica) é chamada significante. Por sua vez, o significado diz respeito à coisa em si, isto é, os pingos d’água que caem das nuvens. A teoria de Saussure permitiu compreender que a linguagem é um sistema simbólico e, paulatinamente, que os sistemas simbóli-cos são linguagens.

Contemporâneo de Saussure, Pierce, filósofo e lógico estadunidense, elabo-rou uma teoria sobre o signo à qual ele nomeou semiótica. Para Pierce (2005), o signo é composto por três polos: a) o significante (símbolo que representa – por exemplo, a palavra chuva, mas pode ser um desenho, um gesto, uma escultura...); b) o referente (objeto do discurso – os pingos d’água que caem das nuvens); e c) o interpretante (pessoa, marcada por sua cultura, língua e experiências, que é ca-paz de unir significante e referente e compreender a mensagem: “choveu!”, “vai chover!” ou “faz tempo que não chove!”). A significação é, portanto, o resultado da interação entre os três polos.

A relação entre o significante e o referente pode ser de três tipos: a) indiciá-ria (por exemplo, o tempo nublado é um indício de que vai chover; a rua molhada é indício de que choveu); icônica (como o ícone do Cristo Pantocrator que re-mete ao Senhor, ou uma imagem de chuva que remete ao fenômeno meteoroló-gico); e c) simbólica (que depende de uma convenção, como a língua – que, em português, convencionou que cadeira se chamará cadeira e não sentador – ou a pomba branca que representa a paz). É importante ter presente esses estudos, primeiro, pelo fato de que tais aspectos da comunicação ocorrem no ato litúrgico em todos os níveis mencionados anteriormente. Mas, neste caso, o fazemos com a intenção de sedimentar o passo seguinte: a teoria dos “atos de fala” desenvol-vida por Austin (1990), na década de 1960.

Austin observou que, em alguns casos, o enunciado, por si só, realiza algo. Quando um juiz dá a sentença: “culpado!”, a vida do sentenciado muda. O mes-mo acontece nas celebrações dos sacramentos. Quando o ministro diz “Eu te ba-tizo”, “Eu te absolvo”, “recebe por este sinal...”, somos efetivamente batizados, absolvidos, crismados. Austin chamou a tais enunciados de performativos, e sua teoria ficou conhecida como dos “atos de fala”. O dado performático da língua apontado por Austin resultou na acentuação da compreensão de que a linguagem é – ou pode ser – ação.

Em diálogo com a teoria de Austin, um interessante artigo de Fernandes problematizou a questão ao analisar a capacidade performática de um defunto. De acordo com ela, o corpo inerte preparado para o velório também performa e comunica. E o faz por meio do ato fático que enfatiza o gesto, isto é, sua imo-bilidade. A primeira mensagem que o interlocutor recebe é: “estou morto” e a segunda: “um dia você estará como eu” (FERNADES, 2008, p. 278-279). No fundo a autora está chamando a atenção para o fato de que o locus da linguagem é o corpo. Além disso, se ação significa manifestação da força de um agente atu-ando sobre outro, o corpo morto atua. A performance do defunto cria o clima do velório: o silêncio, as conversas baixas, um certo desconforto. De fato, muitas pessoas não são capazes de colocar-se em diálogo com um defunto e, por isso, evitam os velórios. 

Tal constatação corrobora com o fato de que a dinâmica gesto-ritual é uma linguagem. Enquanto o signo, no ato comunicativo, equivale ao símbolo, este, por sua vez, equivale ao rito. É nesse sentido que Croatto (2001, p. 329) garante que “o rito é o símbolo em ação”. Se o mito é resultado de um evento primor-dial transmitido por meio de um discurso, o rito é resultado do mesmo evento primordial transmitido por uma atuação gestual, corporal. Dito de outro modo, o rito é a narrativa do evento fundante da experiência religiosa comunicada e/ou atualizada pelo corpo.

Eis porque Chauvet (1995, p. 51) faz questão de recordar que liturgia é da ordem “úrgica”, isto é, trata-se de uma linguagem-ação. A raiz grega “ergon” (de ação, obra, trabalho) indica isso. Se se tratasse da ordem “lógica”, como os dis-cursos científicos, a raiz deveria ser “logos”. Mas, a palavra discursada não subs-titui o ato realizado. O relato de um acidente não é o acidente em si. Por isso, não basta ler a Bíblia ou participar de liturgias de muitos falatórios. É pelo rito que se experimenta o evento salvífico. O rito faz com que toda a assembleia celebrante mergulhe na verdade do mistério celebrado, não pelas palavras explicativas, mas pela completa imersão de seus corpos no fluxo celebrativo1.  

5. Implicações pastorais: o que temos feito?

Em termos do debate teológico, da cientificidade da teologia no amplo horizonte de articulações do saber ao longo dos séculos, também é inegável o pre-domínio da dimensão espiritual, em detrimento da praxia. Note-se, por exemplo, o ainda recente reconhecimento da “teologia pastoral” como uma área autônoma na composição da “ciência teológica”. Em teologia, dito de outra maneira, esta-mos mais habituados a perguntar “o que temos pensado” e não, necessariamente, “o que temos feito”. Eis porque provocarmos nossa inflexão também sobre esse plano – não meramente complementar, mas igualmente decisivo na composição de uma compreensão que envolva o ser humano na totalidade do que ele é, corpo vivo e constituidor de sentidos e significados. Além disso, não esqueçamos, o Vaticano II é o primeiro concílio católico com explícitas preocupações pastorais. 

No exemplo do velório, citado anteriormente, há um critério que pode nos ajudar a avaliar o modo como consideramos os corpos presentes nas assembleias litúrgicas. Se, ao prepararmos uma celebração, estivermos atentos ao espaço, à iconografia, aos símbolos, perfumes, sabores, gestos e outros elementos não ver-bais, significa que buscamos valorizar as “palavras não ditas” – o caráter tácito do diálogo dos corpos entre si, a dimensão “pré-compreensiva”, preliminar a todo tipo de consciência. Aliás, Bonaccorso (2015, p. 95) lembra que a comu-nicação ritual, na história da humanidade, certamente precede a comunicação verbal, uma vez que essa é bastante mais complexa e estruturada. Ademais, a consciência sobre o fundamento dos ritos não é, de modo algum, o aspecto prin-cipal para a participação neles. Uma vez que o rito não seja, em primeiro lugar, para ser entendido, mas para fazer entender o mundo e a existência humana. 

O rito funciona como óculos: não foi feito para ser visto, mas para que olhemos através dele. Se nossas liturgias são carregadas de verbalização, é sinal de que os corpos não são importantes para elas. A linguagem verbal tende a co-municar ao intelecto. Mas se o intelecto fosse a única coisa importante, não seria necessário fracionar o pão, como Jesus fez em Emaús, depois de haver explicado as Escrituras (Lc 24). Fracionar o pão é apenas um exemplo. Outros poderiam ser: batizar com água, ungir com óleo, impor as mãos, incensar, ornamentar com flores, acender velas e etc. Se somente a palavra bastasse, o Verbo não precisaria encarnar-se, tornar-se corporeidade. 

6. O corpo na liturgia: da tomada de consciência à participação ativa

Até aqui buscamos refletir acerca do modo como a liturgia age sobre os corpos, mas o contrário também ocorre: os corpos também agem na liturgia. A liturgia é formada, em primeiro lugar, pela presença dos corpos. O Senhor mes-mo afirmou que onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome, Ele estará no meio deles (Mt 18,20). Formada pelos membros do corpo de Cristo, a as-sembleia, por si, já é sacramento da presença do Senhor (BUYST, 2003, p. 100) – uma percepção certamente ignorada por algumas concepções teológicas atual-mente vigentes. É nessa perspectiva que Orígenes afirma que o Senhor continua presente em nosso meio pelos ritos e símbolos, aos quais ele chamou a “carne dos sinais” (ORIGÈNE, 2001, p. 130 – tradução nossa). De igual modo, Leão Magno (2003, p. 1031) asseverou: “aquilo que era visível em nosso Redentor passou para os sacramentos”. No mesmo sentido, o número 7 da Sacrosanctum Concilium retoma Agostinho para afirmar que “quando alguém batiza, é o pró-prio Cristo quem batiza”. Disso resulta uma primeira e fundamental inferência: primordialmente, a liturgia é expressão do corpo do Senhor.

A assembleia, todavia, é formada por vários corpos de mulheres e homens que se colocam ao serviço do mistério celebrado. É sobre eles que, em segundo lugar, focalizaremos nosso olhar. Certeau (2006, p. 33) disse que o homem em oração é como uma “árvore de gestos”. Seu corpo atua, performa, comunica, sente, intui... sem corpos a liturgia não existiria. No corpo sucede a dinâmica interioridade e exterioridade. Isto é, “o corpo é tanto sujeito que percebe quanto objeto percebido (tanto mão que aperta e sente, quando mão que é apertada e sentida)” (BONACCORSO, 2010, p. 210 – Tradução nossa). É nessa direção que o Laboratório Litúrgico, desenvolvido pela Rede Celebra de animação litúrgica como método de formação, aposta numa pedagogia que contemple a inteireza do ser, a saber, sua base sensorial (o corpo que experimenta) e sua inteligência (a consciência que percebe e relaciona os significados).

Os “três pontos” de análise do Laboratório Litúrgico – gesto corporal, senti-do teológico-litúrgico e atitude interior – corroboram com este fato: “Enquanto a teologia se dirige à inteligência, a liturgia se dirige à pessoa inteira como corpo-reidade” (SILVA, 2013, p. 84). Afinal, corporeidade, racionalidade e afetividade não são dimensões independentes uma da outra. Um gesto humano é sempre resultado de uma elaboração cognitiva e uma disposição afetiva. O corpo que atua numa liturgia, o faz movido por sua crença e pela experiência adquirida na relação com outros crentes da tradição. É nesse sentido que afirmamos: a liturgia, com seus ritos, é o modo pelo qual o corpo ora. 

7. Antropologia litúrgica: o rito com raízes no corpo

Um dossiê da revista Concilium de 1995, intitulado “A liturgia e o corpo” refletiu acerca da relação corpo e liturgia em várias dimensões. Aludimos a al-gumas delas: o corpo que encena o rito; o corpo como o locus da sensibilidade que medeia o acesso ao sentido ou ao significado; o corpo como moldado pela memória cultural; o corpo em relação à atual demanda do emocional no âmbito religioso e, por último, o corpo na relação com Deus. É impossível sintetizar as múltiplas ideias aqui, mas é imperioso retomar o cabide sob o qual o editor, Chauvet, pendura todas as pesquisas citadas. A saber: o da antropologia sacra-mental. 

Antropologia sacramental, naquela edição da Concilium, fazia referência ao artigo militante de Marie-Dominique Chenu, Por uma antropologia sacramen-tal, publicado duas décadas antes. No texto, o dominicano argumentava que o valor do sacramento não estava na recepção de seus efeitos, mas no co-envolvi-mento da pessoa na realização do gesto sacramental (por exemplo, o mergulho, no caso do batismo), considerando sua unidade com o mistério celebrado (o ba-tismo de Jesus no Jordão, a água que jorrou do lado aberto dele na cruz...) e seus símbolos (água, óleo, vela...). Atualmente, a liturgia, com o mesmo intuito, se vale da antropologia da ritualidade. Ou propõe uma antropologia ritual ou, ainda, litúrgica. Em nossa reflexão, debruçar-nos-emos sobre a última.

A liturgia, como recorda a Sacrosanctum Concilium (n.7), é obra divina (de sua glorificação) e humana (de sua santificação). O papel da antropologia litúr-gica, dirá Martín (1994, p. 23), “é compreender o alcance da mediação humana na liturgia”. Dito de outro modo, a antropologia litúrgica é um modo pelo qual se pode conhecer o rito em ato, sendo executado por pessoas, e não somen-te prescritos por antigos rituais ou descritos para execuções futuras. De fato, o Ordo litúrgico só encontra efetividade quando realizado na celebração. Embora a Sacrosanctum Concilium não apresente uma antropologia própria, a Gaudium et Spes, especialmente no número 22, no mesmo fôlego do Vaticano II, o faz. Nela, afirma-se que a humanidade só pode ser compreendida a partir do Verbo encarnado. O mesmo se poderia dizer sobre a liturgia: ela só é razoável quando encarnada (por corpos). Do mesmo modo como não é possível receber a fé senão pela mediação das experiências do corpo, igualmente não é possível refletir so-bre a ação litúrgica sem a participação-presença dos corpos. 

Por séculos o estudo da liturgia ficou restrito aos seminários, posta dentro do arcabouço da teologia sistemática e ensina por professores, em geral, canonistas, que diziam o que validava ou invalidava o sacramento. A formação reduzia-se às instruções sobre os ritos, ou ainda às aporias litúrgicas. O Movimento Litúrgico e a Sacrosanctum Concilium recuperaram a dimensão antropológica da liturgia ao enfatizar a importância da participação consciente, ativa e frutuosa nos ritos. Se, por um lado, a participação consciente requer o envolvimento mental, psi-cológico, mas também afetivo – e, por isso, a esfera espiritual – seu desdobra-mento em ativa e frutuosa implica diretamente o envolvimento do corpo, como horizonte de uma realização com consequências incidentes sobre a realidade do fiel e o meio-mundo em que esse desenvolve a vida. Tudo isso tornou possível a Grillo (2003) afirmar que a ciência litúrgica seja filha do século XX. Com o seu nascimento, tornou-se possível a reflexão sobre rito no âmbito litúrgico. Por conseguinte, ficou evidente que rito não é teoria, mas, antes, é proposição de experiências.

Experiência é aquilo que nos toca, nos acontece, nos alcança. Na relação entre o sujeito e a experiência, o sujeito é como um território de passagem onde a experiência se manifesta. Por isso, o sujeito da experiência não é ativo, no sen-tido de ser responsável por propiciá-la. Enquanto a experiência se dá, ela é como uma paixão – um padecimento, um apaixonamento – da qual o sujeito é passio-nal. Todavia, ele porta uma força própria que é capaz de transformar a experiên-cia que lhe atravessou em um saber em forma de práxis. É por isso que o saber de experiência não é comparável ao saber coisas. Aliás, as informações sabidas e as opiniões, antes atrapalham que ajudam na efetivação de experiências. Afinal, a experiência é o que nos acontece e não o que nos dizem. É nesse sentido que a antropologia litúrgica quer ser um contributo para a reflexão sobre a experiência litúrgica e para a prática pastoral no âmbito da liturgia. 

Por uma conclusão dialógica: aberta a novas responsividades

A liturgia é o lugar do encontro, da experiência com o Senhor. Desde os escritos evangélicos até o magistério do Papa Francisco, há afirmações de que a presença do Senhor no meio de seu povo, depois de sua ascensão, é mediada pelos sinais sensíveis. Do mesmo modo, a Revelação de Deus sempre foi media-da por acontecimentos históricos e transmitida pelas narrativas comunicadas de geração em geração. O principal evento histórico, diz a Constituição dogmática sobre a Revelação Divina – a Dei Verbum – (n. 2) é a “manifestação da pessoa de Jesus Cristo”. Em posse deste dado, é possível afirmar que a revelação não se dá no nível do intelecto, mas no nível da experiência. A liturgia, do mesmo modo, por ser uma “urgia” e não uma “logia”, dá-se no nível da ação, dos movimentos, da experiência sensorial. Os sinais sensíveis e as narrativas atuam de modo a causar sensações no corpo humano. Dito de outro modo: a liturgia faz coisas com os nossos corpos.

Além disso, a liturgia depende dos corpos que atuam para realizá-la. São muitos os que trabalham para que a execução de uma liturgia seja bela e provei-tosa. Há os que preparam o espaço, os cantores, instrumentistas, leitores, os que acolhem nas entradas, o que preside e os que o auxiliam, os que carregam as ve-las, o incenso, a cruz, os que distribuem comunhão, os que seguram os livros. E cada um deles se comporta de uma maneira específica, mas dentro de um conjun-to harmonioso. Se um deles, por distração, se equivoca quanto a um movimen-to, entonação ou momento da execução, certamente não passará despercebido. Como numa ciranda, todos os corpos compartilham da mesma energia. Cantam juntos. Traçam sobre si os mesmos sinais ao mesmo tempo. Ajoelham-se juntos. Dão-se as mãos. Em síntese: são os corpos que fazem a liturgia. 

O papel da antropologia litúrgica é ajudar aos grupos de pastoral litúrgica a compreender que a experiência depende de mediações sensíveis. Tal compre-ensão nivelaria a importância dos discursos à boa execução dos ritos. Por boa execução dos ritos entendemos: a valorização dos sinais sensíveis (que a hóstia, por exemplo, seja pão com aspecto de pão, e não com aparência de papel); o zelo pelo espaço (que contribua para que a assembleia se sinta celebrando e não assis-tindo a um teatro); a experiência se antepondo à verborreia (que o ministro mer-gulhe o neófito e o faça sentir a morte iminente e a ressurreição libertadora em vez de explicar que as três gotas de água que pinga na cabeça significa a morte para o mundo e o renascimento em Cristo); os sentidos corpóreos contemplados (com incensos e óleos que perfumem mesmo, flores belas e naturais, aspersões que não respinguem somente uma gota, monições concisas, acomodações con-fortáveis e bem localizadas...); a boa condução do presidente, inclusive por seus gestos (que, por exemplo, dirija os olhos aos céus quando o texto eucológico for de caráter dialógico entre a assembleia e Deus, ou que rasgue o pão como quem degola o Cordeiro), entre outros.

Há, certamente, muitíssimos requisitos elencáveis para que um rito possi-bilite, da melhor forma possível, uma experiência do fiel com o Senhor. Aqui, elencamos alguns sobre os quais, de modo direto ou indireto, tratamos quando refletimos sobre a relação corpo e liturgia. É fato também que, a experiência é sempre pessoal e, por isso, a responsabilidade por ela acontecer ou não, jamais recairá somente sobre o rito executado. Aliás, muitas vezes recairá sobre o pró-prio fiel, marcado pelo que ele tem vivido, pelas motivações que o trouxeram à celebração e que estão impregnadas profundamente em seu corpo, pelo modo como tem dormido, se alimentado, sido acariciado, compreendido ou não etc. Todavia, este fato não exime ninguém da responsabilidade de executar os ritos de modo que eles expressem verdade.

Compreender a liturgia, fundamentalmente, como ritual implica abandonar a postura de explicadores dos sentidos e significados dos ritos. As explicações cognitivas não contribuem para a experiência ritual. Aliás, quem procura a li-turgia, muitas vezes está procurando o sentido de suas vidas e não o sentido da liturgia. Está em busca, antes, de encontrar o Senhor e não de catequese. Liturgia é chegada, encontro, canto, movimento, acolhimento, banho, unção, perfume, gesto, iluminação, louvor, serviço, silêncio, respiração, escuta, diálogo, contem-plação, compromisso, súplica, entrega, abraço, sabor, deglutição, benção, des-pedida, partida... e tudo o mais que se faça com o corpo na oração comunitária eclesial. É por isso que podemos dizer que a liturgia é o modo pelo qual o corpo reza e, decorrente disso, que uma pessoa – que é fundamentalmente corpo – só pode rezar por meio da mediação litúrgico-ritual.


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Notas

[1]  Do prisma da sociologia ritual, o rito é uma representação que atualiza o mito fundador. Nesse sentido, é como se ele tivesse dois pés, um inserido na temporalidade dos mitos, da eternidade ou dos antepassados (na diacronia) e, outro, no tempo histórico presente (na sincronia). Cf. Cazenueve (s/d, p. 24-25). Da perspectiva teológico-litúrgica, o rito é o limiar que coloca a assembleia em relação com os eventos da história da salvação. Cf. Giraudo (2003) e Mazza (2003).