Gaudium et Spes: uma construção em processo
Gaudium et Spes: a construction in process

Edson Donizete Toneti
Doutor em Teologia Sistemática pela PUC-Rio, Mestre em Filosofia pela PUC-SP e Pós-graduando em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUCRS.


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Resumo

Revisitar a Gaudium et spes é oportunizar à Igreja um discernimento, sob a direção do Espírito, de dar testemunho da verdade, servir e não ser servida. No seio de uma sociedade multicultural, o presente artigo enfatiza a necessidade de formar um juízo sobre os “sinais dos tempos”, a partir de um exercício dialógico e de uma solidariedade intelectual. Num processo de continuidade com a tradição passada, o cuidado do bem comum demanda uma constante construção, no qual a mútua aprendizagem é salutar para lidar com as ambiguidades e manter uma postura fundamental da fé.

Palavras-chave: Gaudium et spes – exercício dialógico – solidariedade intelectual – bem comum.

Abstract

To revisit Gaudium et spes is to provide the Church with a discernment, under the guidance of the Spirit, of bearing witness to the truth, serving and not being served. Within a multicultural society, this article emphasizes the need to form a judgment on the “signs of the times”, based on a dialogical exercise and intellectual solidarity. In a process of continuity with the past tradition, caring for the common good demands a constant construction, in which mutual learning is beneficial to deal with ambiguities and maintain a fundamental position of faith.

Keywords: Gaudium et spes – dialogical exercise – intellectual solidarity – common good.

Introdução

A Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo, Gaudium et spes, promulgada em 7 de dezembro de 1965, trazia no seu âmago os desafios à ação pastoral e evangelizadora da Igreja na segunda metade do século XX. À luz das alegrias e esperanças, das tristezas e angústias das pessoas, sobretudo dos pobres e dos que sofrem, o documento não só reafirmou o ensino social da Igreja presente nas encíclicas anteriores, mas também assumiu essas alegrias e esperanças, tristezas e angústias como próprias dos discípulos de Cristo (GS, nº 1), potencializando fundamentos teológicos para o engajamento social. À preocupação eclesial manifestada na Gaudium et spes com todas as lutas humanas por uma vida mais digna, com a construção da solidariedade da comunidade humana e com a humanização de toda a atividade e trabalho humanos, somaram-se aspectos práticos nas esferas familiar, cultural, econômica, política e internacional. 

A perspectiva confiável e significativa dessa Constituição Pastoral marcaria sobremaneira a ação social da Igreja dali em diante, evidência esta revelada no modo como ela foi recepcionada nas Assembleias Episcopais do CELAM para a Igreja da América Latina. “Na linha traçada pela Constituição Pastoral Gaudium et Spes, voltou-se a Igreja para as escandalosas desigualdades sociais e as desumanas condições de vida da maioria de sua população, urgindo conscientização dos cristãos e reformas sociais como demonstram os textos de Medellín, Puebla e Aparecida. A opção preferencial pelos pobres, de cunho evangélico, acabou sendo um alerta para a Igreja universal. Mesmo com as melhorias dos últimos anos, ela permanece válida, dada a enorme faixa de sua população ainda carente na área de saúde, trabalho e educação” (MIRANDA, 2013, p. 115).

De modo exortativo, o pontificado de Francisco reabilitou no seu princípio uma visão social da Igreja conciliar, pobre para os pobres. Na Evangelii gaudium o Papa Francisco nota entre os "sinais dos tempos" a crise do compromisso em favor das causas comuns, as que transcendem o interesse pessoal (Cf. FAGGIOLI, 2013). Prossegue nessa mesma pegada teológica ao se dirigir a cada cristão, onde quer que esteja (EG, nº 3) e a cada pessoa que habita no mundo (LS, nº 3), conclamando-as que lancem mão não apenas de sua inteligência, mas de seus sentidos e corações nas decisões e ações individuais e coletivas, com um mais apropriado estilo de vida do Evangelho (EG, nº 168).

Das heranças teológicas mais importantes da Gaudium et spes, o princípio hermenêutico basilar dos “sinais dos tempos” permanece atualíssimo, auxiliando-nos no reconhecimento de que há fatos históricos que uma determinada expressão de fé não pode desconsiderar, sob pena de perder completamente a sua credibilidade. Assim, fiel ao seu objetivo de interpretar as condições que lhe eram contemporâneas à luz do Evangelho (GS, nº 4), e transcorrido um considerável decurso de tempo, a Constituição Pastoral “não oferece soluções prontas, e sim um modus procedendi para a Igreja que se defronta com o futuro” (FAGGIOLI, 2015, p. 10).

De fato, as mudanças sociais de outrora, assim como as hodiernas, levantam novas questões que devem ser abordadas de tal maneira que ofereçam uma resposta sensata ao desejo da humanidade por uma vida plena, livre e digna da pessoa humana. As atuais circunstâncias da pandemia revelam uma ruptura global significativa e singular, que vem alimentando divisões, acelerando as mudanças existentes e desafiando suposições sobre resiliência e adaptação. Esse movimento pandêmico cria incertezas sobre a economia, a governança, a geopolítica e a tecnologia, inclusive sobre o modus operandi dos governos para lidar com as questões daí advindas. Os “sinais dos tempos”, numa sociedade marcada pela multiculturalidade, entretanto imersa numa cultura da indiferença, reclamam uma pastoralidade e uma ação evangelizadora alicerçadas no diálogo, na solidariedade e na busca do bem comum, portanto, capaz de atualizar uma das convicções conciliares, enviesada na Gaudium et spes, de que Cristo e a Igreja podem oferecer alternativas construtivas para os desafios da humanidade. Como já afirmara o teólogo Mário de França Miranda, “... não se pode crer em Deus eliminando seu projeto para a humanidade, a Igreja deveria lutar com mais ênfase pela formação de uma consciência social em vista de uma sociedade mais humana...” (MIRANDA, 2013, p. 126).

Se a Gaudium et spes deu à Igreja um novo impulso em seu envolvimento nos assuntos sociais e políticos, desde o Concílio, porém, o engajamento eclesial na vida social e política vem percorrendo fases contextualmente distintas, cujos contornos ainda estão em processo de construção, mas que podem ser ressignificados a partir no diálogo, na solidariedade e na busca do bem comum. 

1. Exercício dialógico

Partindo do pressuposto de que a religião pode exercer uma função anfitriã de espectro abrangente, sobretudo se considerada a atual cultura da indiferença, na qual a dor outro parece nunca nos dizer respeito e, sequer, nos convoca à responsabilidade, o Cristianismo não se coloca mais como um “poder paralelo” na sociedade futura, mas como ambiente de proclamação de uma “mensagem dinâmica que a inquiete, a desinstale e a interpele” (MIRANDA, 2009, p. 141). À constatação de que lidamos com uma perda significativa do sentido de comunidade, o âmbito religioso torna-se propício como espaço que aproxima as pessoas e as predispõe a dialogar sobre suas convicções, seus valores e sua fé, sobretudo quando parcela significativa dessas pessoas consome tempo interagindo nas redes sociais, cujo desfecho pode ser mais separar do que aproximar, condená-las à solidão e à perda de empatia. A religião, enquanto anfitriã, permite às pessoas extrapolarem o vínculo com os que são mais próximos, quebrando a linha da exclusão e interpelando a sociedade como um todo para o respeito a toda e qualquer pessoa humana ou para a solidariedade universal.

Nas linhas da Gaudium et spes (GS, nº 44), a comunidade eclesial reconheceu o aprendizado adquirido junto às ciências e filosofias diversas, bem como com as diferentes culturas, exercício salutar que deve ser continuado na Igreja hoje. Essa postura de diálogo também foi ampliada por outros documentos conciliares, que defendiam novas iniciativas significativas no diálogo inter-religioso e ecumênico. Postulante dessa causa, Hans Küng endossava essa trilha de reflexão teológica: “Esta verdadeira religião, para mim e para nós cristãos, não exclui a verdade de outras religiões, mas as valoriza de modo positivo: as outras religiões não são simplesmente falsas, porém, tampouco verdadeiras sem restrições; são verdadeiras sob certas condições. E contanto que não se oponham essencialmente à mensagem cristã, certamente podem completar, corrigir e enriquecer a religião cristã” (KÜNG, 1999, p. 290).

A Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II vislumbrou o compromisso com o diálogo como uma exigência da fé cristã e da razoabilidade, sendo simultaneamente uma expressão de fidelidade ao evangelho e de respeito ao outro. Nesse sentido, o Papa Francisco ressignifica o ensinamento de que o diálogo “nasce de uma atitude de respeito pela outra pessoa, de um convencimento de que o outro tem algo de bom a dizer (…). Para dialogar é preciso saber baixar as defesas, abrir as portas de casa e oferecer calor humano” (BERGOGLIO & SKORKA, 2013, p. 12).

Na verdade, o compromisso com o diálogo se enriquece quando buscamos um caminho para a promoção de uma vida digna que faça sentido para aqueles que vivem a fé cristã, assim como também contribua para uma compreensão mais profunda por parte daqueles que estão fora da Igreja, num corolário de reconhecimento da diversidade como uma oportunidade para criar laços sociais mais fortes e enfrentar indiferenças. O diálogo contribui sobremaneira para a criação de uma comunidade mais genuinamente universal, acessibilizando uma transformação da realidade por seu encontro com o evangelho e a transformação da Igreja por meio do encontro com outras culturas. Tal universalismo não se confunde simplesmente com a proposição ou imposição de uma norma universal a outros, mas é o fruto mais genuíno do diálogo preconizado na Gaudium et spes: “Tudo quanto dissemos acerca da dignidade da pessoa humana, da comunidade dos homens, do significado profundo da atividade humana, constitui o fundamento das relações entre a Igreja e o mundo e a base do seu diálogo recíproco” (GS, nº 40).

Em suas reflexões acerca do Concílio Vaticano II, o teólogo João Batista Libânio dizia que um diálogo aberto e crítico, transformando um espírito em história, uma intencionalidade em práxis, desejos e opções na verdade dos fatos, permitiriam uma recepção sempre válida e uma força histórica sempre vívida, mesmo constatando que em termos teológicos o Concílio seja considerado um fato passado (LIBÂNIO, 2005, p. 35). Propiciando um diálogo aberto e crítico, a fé cristã implica atenção e respeito por todas as pessoas, e respeito por sua dignidade significa ouvir suas interpretações do que seja uma vida digna. Ademais, transformar desejos e opções na verdade dos fatos é reconhecer que o amor cristão exige a construção de laços de solidariedade entre todas as pessoas. Uma tal solidariedade requer esforços para compreender as diferenças, para aprender de outros e para contribuir com eles na construção da uma sociedade justa, equitativa, coparticipativa e solidária. Portanto, a fé cristã, assim como as outras religiões, tem algo a oferecer à sociedade civil, sobretudo quando “... denunciam a marginalização a que são condenados os mais pobres, bem como as injustiças de políticas econômicas..., [quando] oferecem uma esperança que sustenta e mobiliza os mais fracos... [e] oferecem motivações e intuições substantivas (e não apenas funcionais) para as questões sujeitas ao debate público... [quando] apontam para a responsabilidade de cada um e para a imprescindível rejeição de um individualismo cômodo, sem as quais a ética na vida pública ou o problema ecológico não serão solucionados” (MIRANDA, 2009, p. 139-140).

Na esteira de um modus procedendi para a Igreja, a fim de atualizar uma intencionalidade em práxis, o exercício dialógico permite um deslocamento das convicções religiosas individuais para um serviço pastoral e evangelizador aos outros ou à sociedade civil como um todo. Essa postura expressa razoabilidade e, ao mesmo tempo, acolhe as tradições históricas e encara a sociedade multicultural a sério o suficiente para ouvi-la com atenção e responder às suas questões com respeito. Para os cristãos, esse diálogo representa uma interação dinâmica entre a fé, transmitida ao longo dos séculos pela tradição cristã, e a razão. Assim, o modo dialógico de proceder é o caminho para alcançar onde se formam os paradigmas, as formas de sentir, os símbolos e as representações das pessoas e dos povos. Mais do que pautar-se pelo medo, o diálogo autêntico é abertura à alteridade e provoca, invariavelmente, a transformação.

Na lucidez que lhe é peculiar, o Papa Francisco motiva os que creem para o exercício do diálogo social como contribuição para a paz, dizendo: “A evangelização implica também um caminho de diálogo. Neste momento, existem sobretudo três campos de diálogo onde a Igreja deve estar presente, cumprindo um serviço a favor do pleno desenvolvimento do ser humano e procurando o bem comum: o diálogo com os Estados, com a sociedade – que inclui o diálogo com as culturas e as ciências – e com os outros crentes que não fazem parte da Igreja Católica. Em todos os casos, “a Igreja fala a partir da luz que a fé lhe dá” oferece a sua experiência de dois mil anos e conserva sempre na memória as vidas e sofrimentos dos seres humanos. Isto ultrapassa a razão humana, mas também tem um significado que pode enriquecer a quantos não creem e convida a razão a alargar as suas perspectivas” (EG, nº 238).

2. Solidariedade intelectual

Na Constituição Pastoral Gaudium et spes, a solidariedade é estabelecida como um conceito muito mais rico do que o Estado, embora este não esteja excluído de sua expressão. De fato, fundada numa ação divina que acolhe e salva um povo, não necessariamente um indivíduo (GS, nº 32), a solidariedade humana é um convite a transcender “uma ética puramente individualista” (GS, nº 30). Das pessoas de boa vontade requer-se um dever de justiça e de caridade que favoreça o bem comum, portanto indivíduos e grupo são chamados a cultivar e difundir virtudes morais e sociais, isto é, cultivar uma ética que enfatiza a solidariedade ativa e permite que todas as pessoas participem da vida da comunidade humana de acordo com sua dignidade.

A consecução de uma vida digna no âmbito da sociedade civil, a partir da fé cristã, e que não abdique do exercício dialógico com não cristãos, demanda um agir com espírito de solidariedade intelectual (HOLLENBACH, 2002, p. 137). Uma sociedade livre e inclusiva não se pauta somente por ações afirmativas, embora elas sejam imprescindíveis. Numa realidade multicultural, especialmente em seu aspecto religioso, que não necessariamente partilha de uma visão comum de vida digna, a busca de consenso exige um esforço intelectual, tanto para os que estão dentro como para os que estão fora da vivência da fé cristã. Esse esforço configura-se em uma forma de solidariedade, justamente por engajar as pessoas num diálogo em que elas podem escutar e falar, superando as fronteiras de opção religiosa e cultural. Ademais, este diálogo que objetiva compreender as pessoas com diferentes concepções de vida digna, permanece sendo uma forma de solidariedade mesmo quando as discrepâncias persistem. A acolhida à opinião diversa predispõe as pessoas ao cultivo de novos valores e virtudes, uma vez que podem conhecer outras compreensões de vida digna, que não aquelas que lhes são próprias. A solidariedade intelectual suscita um mútuo aprendizado entre os que possuem concepções de mundo diferentes, visto que não significam barreiras intransponíveis. Assim, o diálogo permite estabelecer conexões capazes de suplantar fronteiras entre grupos diversos e inferir que a solidariedade intelectual, enquanto virtude, é condição sine qua non para a ressignificação do bem comum numa sociedade culturalmente diversa (HOLLENBACH, 2002, p. 138).

A solidariedade intelectual considera as diferenças entre tradições um verdadeiro estímulo ao engajamento das pessoas, uma oportunidade de ensino-aprendizagem mútuo, extensível a outras esferas da vida humana, desde a aquisição de habilidades elementares até níveis elevados de conhecimento científico, imaginação literária ou saber filosófico. Numa oportuna reflexão, o Papa Francisco é provocativo ao dizer: “A quantos sonham com uma doutrina monolítica defendida sem nuances por todos, isto poderá parecer uma dispersão imperfeita; mas a realidade é que tal variedade ajuda a manifestar e desenvolver melhor os diversos aspectos da riqueza inesgotável do Evangelho” (EG, nº 40).

Se antes de existir uma atitude positiva, houver uma ação defensiva, receosa ou de suspeição diante dos que sustentam opiniões diferentes a respeito da vida digna e do bem comum, consequentemente as possibilidades intelectuais e sociais de solidariedade se estreitam. A leitura da Constituição Pastoral, dirigida aos homens e mulheres de boa vontade, corresponde a uma Igreja não ensimesmada ou prepotente, mas aberta a esse mútuo processo de ensino-aprendizagem: “... a Igreja visionada por Gaudium et Spes opera no mundo do conhecimento com sobriedade (não dependente de intensificadores espirituais ou culturais), austeridade (disciplinada e consciente de seus limites), simplicidade (acessível), agilidade mental, castidade intelectual (capaz de distinguir companheiros de viagem bons e maus), mas também magnanimidade e generosidade cultural (disposta a servir sem recompensa ou reconhecimento). Essa hermenêutica do reconhecimento significa, para o onde de uma Igreja aprendente, ir às periferias – como o Papa Francisco disse repetidas vezes e especialmente em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium. Há um quadro maior sobre a ambivalência da modernidade em Gaudium et Spes (par. 4-9): mas essa ambivalência não substitui a solidariedade fundamental da Igreja “com a humanidade e sua história” (FAGGIOLI, 2015, p. 17-18).

A superação de uma ética puramente individualista, passa primordialmente pelo enfoque comunitário, vivenciado pela fé no Deus Trinitário, que não anula, mas compreende o indivíduo como um ser fundamentalmente relacional, membro da sociedade concebida como uma interdependência de relações e na qual a autorrealização do indivíduo acontece na sua abertura ao outro, num transparente viver que é conviver. Nesse sentido, um dos desafios enfrentados pelos cristãos propensos à solidariedade intelectual junto àqueles que são alheios ao ambiente cristão, está justamente no ‘perigo’ de subserviência da moral cristã, ao permitir o influxo de considerações externas na forma e no conteúdo de seu discurso à sociedade. Ainda que sejam considerações sensatas, a comunidade cristã poderia estar renunciando à sua referência a Cristo, bem como a seu singular modus vivendi cristão. Enquanto resposta humana à revelação divina, a fé nos dá condições de compreender a complexa realidade histórica e buscar alternativas que se revelam humanizantes e ilumina todas as coisas com uma luz nova, dando a conhecer o desígnio divino acerca da vocação integral da pessoa humana e, assim, orientando o espírito para soluções plenamente humanas (GS, nº 3).

Considerada no contexto do paradigma social, teológico, eclesial e na perspectiva da mudança paradigmática em geral, visto que há uma interdependência mútua entre eles, a solidariedade intelectual não escapou à desconfiança. A razoabilidade discursiva proposta na solidariedade intelectual sugeriria um elo praticamente impossível entre tradições diversas. O teólogo norte-americano David Hollenbach sinaliza a dificuldade existente no próprio nicho cristão ao apontar autores de denominações cristãs diferentes, tais como BAXTER, Michael J. “Review Essay: The Non-Catholic Character of the ‘Public Church’” (In: Modern Theology II, no. 2 [April, 1995], p. 255-258), autor católico; HAUERWAS, Stanley. “The Church and Liberal Democracy: The Moral Limits of a Secular Polity” (In: HAUERWAS, Stanley. A Community of Character: Toward a Constructive Christian Social Ethic. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1981, p. 72-86), teólogo metodista; LINDBECK, George. The Nature of Doctrine: Religion and Theology in a Postliberal Age (Filadélfia, PA: Westminster Press, 1984), autor luterano; e YODER, John Howard. For the Nations: Essays Public and Evangelical (Grand Rapids, MI: Eerdmanns, 1997), autor menonita (HOLLENBACH, 2002, p. 147). No rastro dessas divergências, os documentos conciliares exerceram forte influência não só na busca comum de renovação da Igreja, mas também nas relações ad extra (com o mundo), ao “redescobrir a Igreja na plena luz da fé (a constituição dogmática Lumen gentium), e em vista do diálogo com o mundo (a constituição pastoral Gaudium et spes)” (ANTONIAZZI & MATOS, 1996, p. 180). Num momento histórico marcado por circunstâncias que afligiram sobremaneira a comunidade mundial, o Concílio Vaticano II soou como uma tentativa vívida, dentre outras, de dialogar com diferentes tradições culturais e religiosas a partir de uma perspectiva cristã.

“Movido pelo intento pastoral, o Concílio propiciou um clima de estima e diálogo, favorável à compreensão recíproca das diversas religiões. A propósito do tema das religiões, o contexto teológico católico do período refletia de forma dominante uma perspectiva particular de abordagem que considerava o cristianismo como ponto culminante, de remate dos valores positivos presentes nas outras tradições religiosas. Trata-se do que se convencionou chamar de teologia do cumprimento ou do acabamento. Havia um reconhecimento positivo das demais religiões, que deixavam de ser consideradas, como antes, obstáculos a vencer, e, no plano da pedagogia divina, deviam ser situadas como preparação ao Evangelho. Nessa perspectiva, só o cristianismo poderia ser considerado a única e verdadeira religião revelada. Alguns importantes teólogos que atuaram como peritos no Vaticano II partilhavam claramente, com diferentes matizes, dessa perspectiva, entre os quais Jean Daniélou, Henri de Lubac e Yves Congar” (TEIXEIRA, 2004, p. 275-276).

A Gaudium et spes expressou o propósito da Igreja de estar a serviço da humanidade, vislumbrando na atitude solidária uma possibilidade concreta de superação das fronteiras religiosas, não só por ser radicada na fé cristã, mas também pelo senso de corresponsabilidade que une cristãos e não cristãos (GS, nº 1). A despeito das diferenças no campo religioso e cultural, a solidariedade assim compreendida revela genuinamente o cerne da tradição cristã, que tem na razão, dom concedido ao ser humano, a alternativa ideal para alcançar consenso moral e social a respeito da vida digna e do bem comum, o que também é perfeitamente compatível com a tradição bíblica cristã: “… o homem é “imagem” de Deus por causa, ao menos, de seis características: 1- a racionalidade, isto é, a capacidade e a obrigação de conhecer e de compreender o mundo criado; 2- a liberdade, que implica a capacidade e o dever de decidir e a responsabilidade pelas decisões tomadas (Gn 2); 3- uma posição de comando, porém de modo algum absoluto, e sim sob o domínio de Deus; 4- a capacidade de agir em conformidade com Aquele do qual a pessoa humana é imagem, ou seja, de imitar Deus; 5- a dignidade de ser uma pessoa, um ser “relacional”, capaz de ter relações pessoais com Deus e com os outros seres humanos (Gn 2); 6- a santidade da vida humana” (PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, 2009, p. 22).

Tendo como pressuposto o exercício dialógico, o Concílio Vaticano II reconheceu que “a comunicação de ideias, as próprias palavras, que exprimem conceitos de grande importância, revestem-se de sentidos bastante diversos segundo a variedade de ideologias” (GS, nº 4). Desse modo, as normas razoáveis da moralidade social são dependentes do lugar social e das tradições culturais de cada sociedade, o que demanda abrir-se à possibilidade de um engajamento profícuo das convicções cristãs sobre o bem comum com outras concepções alternativas, sobretudo religiosas, para que melhor se possa “conhecer o que de bom e de verdadeiro têm, segundo a disposição de Deus” (OT, nº 16).

O bem comum é maior do que a soma total do interesse próprio do indivíduo e pode ser essencial para proteger e garantir o bem comum de cada indivíduo. O valor da democracia está na maneira como a maioria trata as minorias. A própria maioria não deveria ser compreendida puramente em termos de número ou de ideologia, mas em termos de um comprometimento com o bem comum e das formas adequadas de alcançá-lo. O bem comum é alcançado quando se alcança o bem de cada indivíduo que compõe a comunidade, particularmente os pobres: “... o bem comum não é uma realidade constituída pela soma dos bens individuais atingidos pelos diferentes membros da sociedade, senão que, muito pelo contrário, é o bem comum o que torna possível o bem próprio dos membros da sociedade. [O bem comum também não] pode ser atingido por meio do sacrifício de uma grande parte da comunidade, [nem o indivíduo] pode se tornar um instrumento do bem comum” (MESSNER, 1967, p. 204, 225, 229-230).

De fato, o bem comum é fundamentalmente um conceito relacional, que pressupõe uma atitude solidária, não necessariamente reduzida ao princípio da igualdade apenas, uma vez que não afirma somente o reconhecimento do outro em sua alteridade, mas também sustenta a opção de assumir os interesses do outro (indivíduo ou grupo) como sendo próprios, e a consequente responsabilidade frente às necessidades do outro. Etimologicamente, a palavra interesse vem de inter esse, isto é, estar entre, formar parte, participar. Por isso, o desinteresse é o individualismo, o não se interessar pelo outro, o não participar com o outro (BÉJAR, 2001, p. 17).

Ademais, é a ênfase no bem comum que provê o espaço exigido para cada indivíduo empenhar-se em alcançar seu próprio bem. O justo equilíbrio, no qual o indivíduo e a comunidade são vistos como dois polos em tensão, cada um definindo e dependendo do outro, permite um reconhecimento consciente e um compromisso renovado com a interdependência moral. David Hollenbach lembra que a ênfase dada à questão local deve ser complementada por uma solidariedade de âmbito mais universalizante (HOLLENBACH, 2002, p. 8), a intelectual. Este amplo espectro da solidariedade é essencial para uma visão de comunidade que não quer ser uma fonte de conflitos num mundo já bastante dividido por fronteiras frágeis, além das geográficas. O compromisso das comunidades com modos particulares de vida deve ser complementado por uma ressignificação do bem comum no plano nacional e global, além da necessidade de uma visão pautada pelo encontro hospitaleiro com tradições e povos que são diferentes uns dos outros. Como bem lembrava o Concílio Vaticano II, o Espírito de Deus está presente e ativo em cada pessoa de maneiras desconhecidas por nós (GS, nº 22).

3. Bem comum ressignificado

À crise da ideia de bem comum em alguns em ambientes cristãos católicos, pode-se atribuir um certo cinismo contra o Concílio Vaticano II, bem como o descaso com a Gaudium et spes em particular. A ausência da cosmovisão universal-cosmológica, própria da constituição pastoral, torna a sociedade moderna terreno fértil para o triunfo de narrativas identitárias. No mesmo diapasão, a crise do Estado não inviabiliza, mas protela o dever de “defender e promover o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e das instituições intermediárias” (CIC, nº 1910). A seu tempo, o papa João XXIII já advertia para o fato de que “a experiência ensina que, quando falta uma ação apropriada dos poderes políticos no econômico, no político ou no cultural, sobretudo em nossa época, ocorre um maior número de desigualdades entre os cidadãos, em setores cada vez mais amplos, fazendo com que os direitos e os deveres do ser humano careçam de toda eficácia prática” (PT, nº 63). Assim, os números 26 a 74 da Gaudium et spes também consideraram o papel das autoridades públicas e governos para suscitar e proteger as condições necessárias ao desenvolvimento integral da pessoa humana. Nas linhas da constituição pastoral a consecução do bem comum de forma dinâmica também é compreendida a partir da autoridade jurídica e segundo as normas da ordem jurídica, com a atribuição de um papel prioritário aos que governam (GS, nº 74).

O Concílio Vaticano II trabalhou com uma noção ampla de bem comum: “[...] o conjunto das condições da vida social que permitem aos grupos, bem como a cada um dos membros, atingir a própria perfeição de modo mais pleno e mais expedito” (GS, nº 26). Aqui se acentua uma cosmovisão universal, visto que o intuito dos padres conciliares parece revelar um caráter de universalidade do bem comum, compreendido como a síntese entre o bem da pessoa e o das pessoas. A Gaudium et spes solicita que seja possível a cada um ter acesso ao necessário para uma vida digna, sem indicar necessariamente a quem isto compete, e afirma os referenciais de liberdade, verdade, justiça e caridade que devem ser garantidos na ordem social estabelecida. De igual modo, o Catecismo da Igreja Católica, ao descrever o princípio do bem comum, diz que os elementos que o caracterizam são o respeito à pessoa, o bem-estar e o desenvolvimento do grupo, além da paz e a segurança da sociedade (CIC, nº 1880). De posse dessas perspectivas eclesiais, pode-se dizer que a consecução do bem comum demanda, num primeiro momento, uma ressignificação desse princípio, mas não sem um processo de metanoia (conversão) que envolva os sujeitos e a própria sociedade. Ressignificar o bem comum não é prescindir da realização pessoal, negligenciando a defesa dos direitos fundamentais e inalienáveis da pessoa humana (CIC, nº 1905, 1907 e 1912), o compromisso ativo para a promoção social do grupo (CIC, nº 1908) e a estabilidade social que a paz e a segurança tornam possível (CIC, nº 1909). A observação dessas situações faz-se imprescindível nesse processo.

O princípio do bem comum, enquanto recurso moral, apresenta-se indubitavelmente complexo, mas, ao mesmo tempo, promissor e salutar na articulação de critérios de discernimento que sirvam de guia e diretriz à reflexão moral social. É fato que este tipo de reflexão envolve, consequentemente, as opções, decisões e ações da pessoa humana. A imprescindibilidade do princípio do bem comum como recurso moral implica que este seja compreendido e, da mesma forma, que se tenha ciência do que ele comporta tanto para a pessoa quanto para a sociedade, mediante os desafios que se lhes apresentam. A consideração do bem comum como recurso moral significativo exige compreensão, discernimento, decisão e ação, tanto no âmbito pessoal como comunitário, no emaranhado universo multicultural que habitamos. A reflexão sobre o bem comum demanda uma atitude de abertura ao outro e convida a tomar consciência da tensão entre o bem não apenas dos indivíduos, mas entre grupos, entre Estados e, até mesmo, entre áreas continentais. Encarar o bem comum desse modo é reconhecer que participamos todos da mesma identidade humana e da dignidade que a caracteriza. A superação da tensão entre os bens dos sujeitos envolvidos só poderia vir a favorecer a identificação e a consecução do próprio bem comum. Obviamente que se pode encontrar reticências próprias da condição humana e social para tal intento, no entanto, o bem comum mostra-se um excelente recurso, que permite reconhecer o que há de positivo na dinâmica histórica e se presta a uma abordagem moral de fundo, capaz de orientar escolhas mais equilibradas e indicar horizontes menos obscuros.

Considerações finais

O legado do Concílio Vaticano II repercutiu, e ainda repercute, na proposta de diálogo da comunidade eclesial com o mundo, um conceito análogo àquele proposto por João XXIII: “A interdependência, cada vez mais estreita e progressivamente estendida a todo o mundo, faz com que o bem comum – ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição – se torne hoje cada vez mais universal e que, por esse motivo, implique direitos e deveres que dizem respeito a todo o gênero humano. Cada grupo deve ter em conta as necessidades e legítimas aspirações dos outros grupos e mesmo o bem comum de toda a família humana” (GS, nº 26). Não somente o Estado e a sociedade civil, mas a própria comunidade eclesial e outras religiões, podem ser vistos numa perspectiva de interdependência e inter-relação, conduzidos por um direito que equilibra e garante o seu fim público, o bem comum, já que os espaços públicos são lugares de gestão do bem comum. Esse modus procedendi exige um conjunto de virtudes éticas e cívicas, um profundo exercício dialógico, uma fecunda solidariedade intelectual e a prossecução do próprio bem comum, capazes de constituir um ethos de uma sociedade justa e solidária. O processo fica aberto para que todos possam participar, cumprindo a sua parte com alegria e esperança.  E, de tal forma alcança a sociedade atual, que a ecologia humana, como recorda o Papa Francisco, “é inseparável da noção de bem comum, princípio esse que desempenha um papel central e unificador na ética social” (LS, nº 156).

Uma tal ética social, portanto, não abdica de um processo de mútua aprendizagem, no qual consensos em torno da vida digna e do bem comum se dão através do diálogo entre as pessoas e instituições. No exercício do diálogo, a argumentação, o debate racional e transparente é que permite alcançar consensos mínimos. Será que a Igreja está à altura deste “sinal dos tempos” já profetizado na Gaudium et spes?

Referências

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BÉJAR, H. El mal samaritano: el altruismo en tiempos de escepticismo. Barcelona: Anagrama, 2001.

BERGOGLIO, Jorge Mario (Papa Francisco); SKORKA, Abraham. Sobre o céu e a terra. Tradução: Sandra Martha Dolinsky. 1ª Edição. São Paulo: Editora Paralela, 2013.

FAGGIOLI, Massimo. A “encíclica transversal” de Francisco. Publicado no jornal Europa em 27-11-2013. Tradução de Moisés Sbardelotto. In: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/526118-a-enciclica-transversal-de-francisco-artigo-de-massimo-faggioli Acesso em: 28 de maio de 2021.

FAGGIOLI, Massimo. “Gaudium et Spes” 50 anos depois: seu sentido para uma Igreja aprendente. Tradução: Luís Marcos Sander. In: Cadernos Teologia Pública. Ano XII – Volume 12 – Nº 95. Instituto Humanitas Unisinos: 2015.

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