O retorno à grande disciplina: o pontificado de João Paulo II e a Igreja dos pobres no Brasil      
The return to the great discipline: the pontificate of John Paul II and the Church of the poor in Brazil      

Rodrigo Portella* 
Nilmar de Sousa Carvalho**

*Doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: rodrigo@portella.com.br 

**Mestre em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Contato: nilmarcarv@hotmail.com 

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Resumo 

Karol Wojtila, primeiro Papa não italiano em 456 anos, esteve à frente da Igreja Católica de 1978-2005. Eleito pelo seu perfil conciliador, ao assumir o papado apresentou um projeto que se baseou no que aqui se denomina de “retorno à grande disciplina”. Na sua primeira viagem à América Latina (1979) teve contato com os novos modelos de Igreja que estavam surgindo no continente, frutos da interação entre vários movimentos religiosos, tais como as CEBs e a Teologia da Libertação. Na contramão desta nova perspectiva eclesial, o projeto eclesial, social e político do Papa João Paulo II para o Brasil foi marcado por uma série de medidas que dificultaram a consolidação e pleno desenvolvimento das novas faces da Igreja brasileira. Dentre tais medidas destacam-se a divisão da Arquidiocese de São Paulo, para limitar o poder do seu cardeal, à época, Paulo Evaristo Arns; mudanças nos critérios de escolha dos novos arcebispos e bispos; combate à Teologia da Libertação, que fora acusada de proximidade com o marxismo e punição, por Roma, aos seus idealizadores. O presente artigo busca compreender as formas e significados dessa intervenção papal através do aporte interpretativo da história, sociologia e teologia, apresentando a dinâmica daquilo que aqui se denomina “o retorno à grande disciplina” durante o pontificado de João Paulo II.  

Palavras-chaves: Igreja Católica; Doutrina Social da Igreja; Teologia da Libertação; Comunidade Eclesiais de Bases; João Paulo II 

Abstract
Karol Wojtila, the first non-Italian Pope in 456 years, was at the head of the Catholic Church from 1978-2005. Chosen for his conciliatory profile, upon assuming the papacy he presented a project based on what is called here “return to great discipline”. On his first trip to Latin America (1979) he had contact with the new models of Church that were emerging on the continent, the result of the interaction between various religious movements, such as CEBs and Liberation Theology. Against this new ecclesial perspective, the ecclesial, social and political project of Pope John Paul II for Brazil was marked by a series of measures that hindered the consolidation and full development of the new faces of the Brazilian Church. Among such measures, we highlight the division of the Archdiocese of São Paulo, to limit the power of its cardinal, at the time, Paulo Evaristo Arns; changes in the criteria for choosing new archbishops and bishops; combat against Liberation Theology, which had been accused of proximity to Marxism and punishment, by Rome, of its creators. This article seeks to understand the forms and meanings of this papal intervention through the interpretative contribution of history, sociology and theology, presenting the dynamics of what is called here “the return to the great discipline” during the pontificate of John Paul II. 

Keywords: Catholic Church; Social Doctrine of the Church; Liberation Theology; Base Ecclesial Community; John Paul II 


Introdução  

O pontificado de João Paulo II teve início em 22 de outubro 1978 e estendeu-se por vinte e sete anos, sendo interrompido em função da sua morte em 2 de abril de 2005. Foi o terceiro Papa mais longevo da história da Igreja Católica. Eleito com 103 dos 109 votos, o cardeal Polonês Karol Wojtila, com 58 anos e o primeiro Papa não italiano desde 1522, foi o escolhido a conduzir a Igreja rumo ao terceiro milênio (CORNWELL 2004, p. 82). 

A ideia de um Papa não italiano ganhou o apoio do cardeal brasileiro Aloiso Lorscheider, então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) e do cardeal de Viena, Franz König. König havia sido escolhido por João XXIII, no início dos anos 60, como uma espécie, segundo Bernstein e Politi “de quebra-gelo nos países comunistas da Europa Oriental”. Mais tarde Paulo VI o nomeou para a direção do secretariado para os nãos crentes, “porque ele sabia lidar com os marxistas, tanto cultural como politicamente”. Lorscheider e König reconheciam no discurso de Wojtyla uma preocupação para com os problemas de justiça social, de defesa da colegialidade e como estando em sintonia com o Concílio Vaticano II. Como havia sobrevivido/convivido ao/com (o) regime soviético na Polônia, certamente manteria o diálogo com os países separados pela cortina de ferro do leste Europeu, através da política diplomática do Ostpolitik. Portanto, ambos tiveram um papel central na escolha do novo Pontífice (BERNSTEIN; POLITI, 1996, p. 167-169). 

Havia neste momento algumas expectativas na Igreja quanto ao perfil do novo Papa, sendo que um grupo defendia o espírito de renovação pós-Concílio Vaticano II e acreditava que Wojtyla daria celeridade às reformas previstas nos documentos do Concílio; no entanto, outra ala da Igreja vislumbrava a possibilidade do polonês restabelecer a disciplina que teria sido desprezada pelos seus dois predecessores, além de banir qualquer esperança alimentada por católicos que se sentiam atraídos por teorias advindas do materialismo histórico. Havia também aqueles que desejavam um Papa que conseguisse reestabelecer a unidade, que dialogasse com estas duas visões de Igreja e que evitasse que a instituição mergulhasse no caos litúrgico, doutrinário e institucional que parecia tão inevitável nesse momento histórico, segundo Cornwell (2004, p. 81). 

Cornwell (2004, p. 83,150) afirma que, ao assumir o trono de Pedro com o slogan “não tenham medo”, João Paulo II começou a imprimir o seu modus operandis baseado nos princípios de autodisciplina e disciplina institucional. Deu a indicação de que assumiria a responsabilidade, em sua plenitude, de que iria “pegar a Igreja pelo cangote e restabelecer a ordem”. O teólogo João Batista Libânio (2013, p. 49-50) ressaltou que esse movimento de retorno à “grande disciplina” teve início ainda durante o pontificado de Paulo VI (1963-1978)1 . Essa tendência ficou patente quando em 1968 Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae. Brenda Carranza (2011, p. 260) ressaltou também que, no curto papado de Paulo VI, a natureza conservadora do catolicismo pareceu voltar e ganhar espaço dentro da Igreja. 

João Paulo II deu seguimento ao projeto do seu antecessor e demonstrou, logo nos primeiros dias do seu governo, que não iria corresponder às expectativas de alguns dos que o elegeram, como os cardeais Lorschaider e König. Um dos conceitos centrais discutidos pelo Concílio e que teria sido um fator decisivo no conclave que o elegera foi a ideia de colegialidade. Os conciliares acreditavam que a Igreja foi confiada a Pedro e aos apóstolos, não à Cúria romana. Atendendo a este anseio, o Papa Paulo VI instituiu o Sínodo de Bispos. No entanto, o novo Papa deu sinais de que limitaria o alcance do Sínodo e que governaria a Igreja como sendo o seu único legislador (BERNSTEIN; POLITI, 1996, p. 198). 

Cornwell (2004, p. 86) ressaltou que a primeira viagem internacional de João Paulo II, realizada quatro meses após o início do seu pontificado para participar da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano na cidade de Puebla/México, em 26 de janeiro de 1979, não foi coincidência. Aqui se encontrava a metade da população católica do mundo e uma série de problemas: pobreza, concorrência de comunidades evangélicas, conflitos entre ordens religiosas católicas e seus bispos, além de ditaduras. No entanto, o Papa via algo mais desafiador: o surgimento de ativistas políticos clericais que se inspiravam no marxismo e que havia criado uma nova hermenêutica e vivência do Evangelho, denominada de Teologia da Libertação. Lecomte (2012, p. 422) chama a atenção de que, em Puebla, o Pontífice condenou com veemência a visão de um Jesus politicamente engajado, que combatia os poderosos ou que era partidário da luta de classes. 

Ao viajar para a América Latina, João Paulo II sabia que teria que se posicionar diante desse novo modelo de Igreja que estava se consolidando no continente. A Igreja latino-americana estava dividida por divergências políticas e, segundo Bernstein e Politi (1996, p. 205), “dessa vez pelo menos, os rótulos progressista e conservador eram adequados”. Enquanto os progressistas esperavam que o Papa encorajasse os católicos a romper a sua cumplicidade para com os grupos políticos dominantes, os conservadores estavam preocupados com a infiltração marxista nas fileiras da Igreja. Ao mesmo tempo, pediam que a instituição se concentrasse em administrar os sacramentos e a difundir a doutrina tradicional. 

O arcebispo colombiano, e então secretário do CELAM, Alfonso López Trujillo, teve um papel central na preparação do novo Papa para enfrentar os desafios da América Latina. Inimigo da Teologia da Libertação, após a eleição de João Paulo II começou a pressionar o Vaticano a lutar contra essa nova reflexão teológica. Em 1976, Trujillo havia presidido no Vaticano uma conferência formada por 50 teólogos que buscavam analisar e combater a expansão mundial da Teologia da Libertação latino-americana (BERNSTEIN; POLITI, 1996, p. 205). 

Neste contexto, o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira afirmou, quanto à Igreja no Brasil, que: 

Foram tantas as mudanças que ocorreram no catolicismo brasileiro, a partir dos anos 50, que um observador que não tivesse acompanhado todo processo dificilmente acreditaria que ela pudesse ocorrer sem que houvesse uma ruptura institucional. Tratou-se de um realinhamento interno, ou estava em jogo à estrutura eclesiástica? Estava sendo gestado um cisma, ou seria a milenar instituição que se acomodava aos novos tempos para sobreviver mais mil anos? (OLIVEIRA, 1992, p. 41). 

A Igreja dos pobres no Brasil: o que João Paulo II encontrou

O Concílio do Vaticano II configurou-se como uma grande reforma nas bases do catolicismo. No discurso de abertura (11 de outubro de 1962), João XXIII ressaltou que “pretendeu afirmar, mais uma vez, a continuidade do magistério eclesiástico, para o apresentar, em forma excepcional, a todos os homens do nosso tempo, tendo em conta os desvios, as exigências e as possibilidades deste nosso tempo” e, ainda “o Concílio, que agora começa, surge na Igreja como dia que promete a luz mais brilhante”. 

O Papa dava indicação de que pretendia dialogar com o mundo outrora anatematizado. Como gesto concreto da nova perspectiva de Igreja, começou a visitar doentes e a ministrar os sacramentos nos arredores de Roma, o que o fez ser chamado de Giovanni fuori le mura. Havia um desejo de trazer para perto do povo uma Igreja antes distante, além de acolher os mais fragilizados da sociedade (VEIGA, 2009, p. 40). 

João XXIII, além de ter convocado o Concílio Vaticano II (1962-1965), publicou duas encíclicas. A Mater et Magistra (1961) afirmava que a Igreja, apesar de ter a missão de santificar as almas, não deixa de preocupar-se com as exigências da vida cotidiana dos humanos, tanto no que diz respeito ao sustento e às condições de vida, como também no que se refere à prosperidade e a civilização. Com a mesma preocupação, em 1963 publicou a segunda carta: Pacem in Terris. Nesta o Pontífice reafirmou a necessidade de garantir os direitos inalienáveis à vida, os valores morais e culturais e o direito dos cidadãos participarem ativamente da vida pública. Em sintonia com as cartas encíclicas sociais de João XXIII, o documento conciliar Gaudium et Spes (1965) (Alegria e Esperança), apresentou uma clara demonstração da necessidade que a instituição Católica tinha de estar mais aberta aos problemas do século. Logo, a Igreja deveria se posicionar diante de tais acontecimentos históricos. O documento afirmou que:  

As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração. Porque a sua comunidade é formada por homens, que, reunidos em Cristo, são guiados pelo Espírito Santo na sua peregrinação em demanda do reino do Pai, e receberam a mensagem da salvação para a comunicar a todos. Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história (Gaudium et Spes n° 01). 

O sociólogo da religião Peter Berger ressaltou que o movimento de reforma que teve como expoente o Papa João XXIII foi bastante reprimido. Referindose à necessidade de reformas estruturais da Igreja, em função dos riscos que a instituição enfrentava, afirmou que: 

Os velhos diques mostraram os seus furos. Não que houvesse meninos prontos e dispostos a pôr os dedos em todos os buracos – havia os conservadores que assim o fizeram. E agora que todos os móveis parecem estar boiando mar a fora, podem eles dizer com justiça: bem que lhes dissemos que isto ia acontecer (BERGER, 2018, p. 36). 

Na América Latina, o episcopado com o anseio de pôr em prática as diretrizes estabelecidas pelo Concílio, convocou a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, que foi realizada na cidade colombiana de Medellin, em 1968 e, dez anos depois, a III Conferência Geral do Episcopado realizada em Puebla/ México (1978). Estas iniciativas episcopais consolidaram configuração interna de Igreja que se fundamentava no compromisso em fazer a “opção preferencial pelos pobres” (CARRANZA, 2011, p. 260). 

As atividades que surgiram no contexto da renovação que se seguiu ao Concílio Vaticano II finalmente começaram a influenciar a Igreja em todo o continente. Quando os bispos se reuniram em Medellín, adotaram novas resoluções que, pela primeira vez, não só denunciavam as estruturas existentes, acusando-as de terem como base a injustiça, a violação dos direitos fundamentais da população e a violência institucionalizada, mas também afirmavam a solidariedade da Igreja com a aspiração do povo à libertação de toda a servidão. Os bispos reconheceram que, em determinadas circunstâncias, a insurreição revolucionária era legítima (LÖWY, 2016, p. 91). 

Leonardo Boff (2014, p. 5) anota que, sob o lema “não mais o anátema, mas a compreensão, não mais condenação, mas diálogo”, a Igreja inaugurou uma nova experiência de conivência dialógica com outras expressões religiosas e organizações sociais. Em relação ao mundo moderno, tratou de se reconciliar com as realidades dos novos tempos e reconheceu a sua autonomia. Por outro lado, a Igreja definiu o seu lugar, dentro do mundo moderno, como sinal e instrumento da herança de Cristo, aprendendo deste mundo e colaborando com ele na dignificação de todos os âmbitos da vida. 

Uma primeira característica deste período foi o despertar e a explosão de utopias que estavam adormecidas. Elas anunciavam o advento de um mundo novo de justiça e de paz em que os pobres seriam reconhecidos como protagonistas de suas próprias histórias. Simultaneamente, na Igreja renasceu a utopia de que poderia renunciar os seus sonhos de cristandade para participar de forma efetiva da condição humana dos pobres, ou seja, uma Igreja pobre a serviço dos pobres (CAMBLIN, 2002, p. 47). 

A abertura protagonizada pela convocação do Concílio, portanto deu alento aos movimentos sociais católicos que já haviam se estabelecidos no Brasil. Gestados ainda durante a primeira metade do século XX, começaram a ganhar visibilidade a partir dos anos 60, com a criação da Ação Popular (AP). A AP foi idealizada pelos membros da Juventude Universitária Católica (JUC). No entanto, assumiu uma postura mais laicizada em relação à JUC. Da articulação destes grupos nasceram as Comunidades Eclesiais de Bases (PRANDI, 1997, p. 29). 

Frei Betto (1985, p. 16), referindo-se às CEBs, afirmou serem elas comunidades especificamente eclesiais por reunirem pessoas que têm a mesma fé, pertencem à mesma Igreja e residem na mesma região. Motivadas pela fé, estas pessoas viveriam uma comum-união em torno dos problemas de sobrevivência, de moradia, de lutas por melhores condições de vida e de anseios e esperanças libertadoras. São eclesiais, sobretudo, porque estão congregadas na Igreja como núcleos básicos de comunidades de fé. São de base, porque são integradas por pessoas que trabalham com as próprias mãos. Podem-se classificar como características das CEBs e suas contribuições à Igreja: ser um espaço comunitário com o mínimo de organização e hierarquização e o máximo de gratuidade e de responsabilidade compartilhada; um novo estilo comunitário de vida; uma experiência religiosa profunda e pluridimensional; uma nova articulação do público com o privado e um novo modelo de relação instituição-comunidade (SANTOS, 2006, p. 23). 

As CEBs surgiram em lugares em que não havia a presença do sacerdote regularmente. Nos anos 1960 essa escassez de padres era vista como um problema na América Latina. A Igreja, visando solucionar esta carência, passou a acolher missionários estrangeiros. Ainda assim, apesar do número grande de estrangeiros que chegaram ao Brasil, muitas comunidades continuaram sendo assistidas, religiosamente, pelos seus próprios membros. Como tais comunidades foram cada vez mais se organizando, a figura do padre começou a ser relativizada. Quando havia a presença do sacerdote, ele passou a ser bem aceito quando comungava com o ideal de autonomia do grupo (SANTOS, 2006, p. 15). 

Os bispos do Nordeste, com o apoio das CEBs, publicaram o documento “Eu ouvi os clamores do meu povo” (1973). O texto fez uma análise da realidade sociopolítica do Nordeste. Tratou dos principais temas que faziam parte da pauta de reivindicação dos movimentos populares, tais como: renda, trabalho, alimentação, saúde. O texto também elencou os fatores históricos responsáveis pela miséria: latifúndio, descaso político, indústria da seca, além de dura crítica ao regime militar (1964-1985). Na sua conclusão o documento reafirmou e justificou a necessidade de um compromisso em combater as injustiças contra os mais vulneráveis (SANTOS, 2006. p. 16). 

A partir de então a Igreja Católica foi marcando presença, cada vez mais, no cenário público, investida do propósito de lutar pelos direitos e pelas causas populares. A Igreja esteve presente na luta dos índios, posseiros, favelados e de todos que se julgavam injustiçados. A ruptura de setores da Igreja com o Estado autoritário (década de 1970) fortaleceu a atuação destes movimentos sociais, de maneira que as CEBs se tornaram um núcleo de restauração do tecido social nos meios populares (OLIVEIRA, 1992, p. 45). As CEBs passaram a representar uma nova experiência de Igreja, de comunidade, de fraternidade dentro da mais legítima e antiga tradição cristã. Teologicamente significou uma nova experiência eclesiológica, um renascer da própria Igreja e por isso uma ação do Espírito Santo no horizonte das urgências do tempo, ou como afirmava Boff (1976, p. 393), “possivelmente encontramo-nos atualmente numa fase de emergência de um novo tipo institucional de Igreja”. Já para Roberto Romano (1979, p. 190), as CEBs inicialmente se posicionaram como instrumento de renovação da estrutura interna da Igreja e como padrão civilizatório para toda a sociedade. Além disso, entre os seus objetivos vale destacar a possiblidade dela assegurar, dentre os grupos cada vez mais secularizados, as condições que permitiriam à Igreja sobrepor-se ao Estado no cuidado pelas populações marginalizadas pelo processo econômico, no campo e na cidade. 

Diante desse novo modelo de Igreja, os bispos brasileiros asseguraram à instituição católica, há anos encurralada nas sacristias e morrendo socialmente, um lugar central na política e na cena pública. No entanto, mesmo com as inovações apresentadas pelas CEBs, o processo de dominação foi preservado, posto que “a Instituição pode mudar suas estruturas e, mesmo, colocar suas decisões em mãos leigas, mas isso não configura de modo algum uma prática democrática” (ROMANO, 1979, p. 196). 

As CEBs receberam grande aporte da Teologia da Libertação, pois que esta propôs uma nova hermenêutica do Evangelho a partir da realidade sociopolítica vivida pelos povos da América Latina. A Teologia da Libertação foi uma resposta da Igreja Católica às contradições existente na América Latina entre a pobreza extrema e a fé cristã da maioria de sua população. Esta situação de pobreza representava um contrassenso aos princípios cristãos em que, em se tratando de questões sociais, defendiam a isonomia dos direitos básicos; portanto a Teologia da Libertação encontrou seu nascedouro na fé confrontada com as injustiças feitas aos pobres (BOFF 2010, p. 14). A Teologia da Libertação fundamentou-se em vários princípios, dentre eles: a luta contra a idolatria (não o ateísmo) como inimigo principal da religião; a libertação humana histórica como a antecipação da salvação final em Cristo; crítica à teologia dualista tradicional, inspirada na filosofia platônica; na opção preferencial pelos pobres e na solidariedade com sua luta pela autolibertação e, por fim, no desenvolvimento das comunidades de base cristã entre os pobres como uma nova forma de ser Igreja (LÖWY, 2016, p. 78). Conforme o cardeal Paulo Evaristo Arns (2001, p. 236), a opção preferencial em favor dos pobres, defendida pela Teologia da Libertação, determinou o objetivo geral da CNBB e das atividades de toda a Igreja no Brasil. 

Löwy (2000, p. 123) ressalta, entrementes, que a preocupação com os pobres remonta às origens evangélicas do cristianismo e que os teólogos latino- -americanos se colocaram apenas como continuadores dessa tradição. Eles romperam com o passado em um ponto fulcral: os pobres passaram a não serem mais vistos como objetos de caridade, mas como agentes de sua própria libertação. A ajuda ou assistência paternalista foi substituída pela solidariedade com a luta dos pobres por emancipação. 

Todavia, a Teologia da Libertação se entende como o pensar da fé enquanto fermento de transformação histórica. O seu objetivo seria mostrar que o Reino de Deus deveria ser estabelecido por meio das relações humanas justas e solidárias, de projetos sociais e em dimensão histórica. Esta nova mundividência exigiu que tais comunidades contribuíssem para a construção de uma sociedade sem dominação social (BOFF, 1985, p. 20). A nova Igreja dos pobres, portanto, integraria o profano e o sagrado, teologia e prática. Significaria uma verdadeira relação dialética entre sagrado e profano, ou mesmo a superação desta dicotomia. O conflito, visto antes como supressão da ordem, tornou-se um elemento de transformação profunda das estruturas. Essa novidade na teologia latino-americana sugeriu um rompimento com o imaginário clerical que procurava legitimar o natural a partir de uma ordem sobrenatural. Na nova ordem “o pobre é o lugar hermenêutico por excelência” (VEIGA, 2009, p. 44). 

No Brasil, a organização das CEBs foi fundamental para a expansão da Teologia da Libertação, e, como já sinalizado anteriormente, foi sendo aos poucos assumida pela CNBB (ou por boa parte de seus bispos). A CNBB ajudou a organizar o trabalho dos bispos, formar agentes pastorais, criar grupos de defesa dos direitos humanos, além de servir de órgão oficial da Igreja diante do Vaticano. Grande parte da equipe de teólogos que prestava assessoria ao Instituto Nacional de Pastoral, nas décadas 1970 e 1980, estava alinhada com o projeto da Igreja dos pobres (SANTOS, 2006. p. 17). Assim a Igreja dos pobres chegou à década de 1980 bem articulada e as CEBs se multiplicavam de maneira gradativa pelas mais variadas regiões do país. Com o apoio da CNBB, as comunidades discutiam os seus problemas à luz do Evangelho, enquanto os teólogos da libertação produziam uma vasta bibliografia em defesa da nova eclesiologia. Vale ressaltar também que, durante os anos de chumbo da ditadura militar (década de 1970), as CEBs se tornaram um símbolo de resistência. É diante desse cenário brasileiro que Korol Wojtyla assume o lugar mais alto da hierarquia católica. 

João Paulo II e a Igreja dos pobres

Apesar das controvérsias - marca indelével dos 27 anos do seu pontificado - João Paulo II foi um homem que lutou pela liberdade. Talvez por ter nascido num país onde o próprio pensamento de liberdade não passava de um sonho distante. Apresentou ao mundo a face de uma divindade mais próxima da humanidade e se aproximou das massas populares com tanta afeição que o povo o considerava um verdadeiro santo em vida (VEIGA, 2018, p. 23). Contudo, segundo Leonardo Boff, o projeto sociopolítico e religioso de João Paulo II pode ser associado com a ideia de 

restauração e a volta à grande disciplina. Ele não se caracteriza por uma reforma, mas por uma contra-reforma. Ele representa a tentativa de sustar um processo de modernização (aggiornamento) que irrompera na Igreja a partir dos anos 60 e que estava tomando conta de toda a cristandade. João Paulo II, a pretexto de salvaguardar a identidade católica, deu uma freada vigorosa neste processo (BOFF, 2014, p. 1). 

Segundo Veiga (2018, p. 24), o espírito antimodernista2 que havia prevalecido no período anterior ao Concílio Vaticano II é retomado no papado de João Paulo II. Houve o fortalecimento do poder papal e a reafirmação da ortodoxia. A ofensiva teológica conservadora, na Cúria formada pelo Papa polonês, coube ao então cardeal Joseph Ratzinger, que se referia à necessidade de “procurar por um novo equilíbrio depois de todos os exageros decorrentes de uma indiscriminada abertura ao mundo” (VEIGA, 2018, p. 25). 

A socióloga Danièle Hervieu-Léger (2015, p. 50), na contramão do pensamento de João Paulo II, ressaltou que a segunda metade do século XX foi marcada por uma forte disseminação das crenças que se acomodaram cada vez menos com as práticas controladas pelas instituições. Este fenômeno provocou uma desregulação da religião, de maneira que nenhuma instituição pode, de forma permanente, prescrever aos indivíduos um código unificado de sentidos e, menos ainda, impor-lhes normas. Entretanto isto não significou que se desfez a necessidade do indivíduo expressar a sua crença em grupos afins, ou que os grupos perderam o seu caráter identitário. O processo de pulverização individualista produziu paradoxalmente a multiplicação de pequenas comunidades fundadas nas afinidades sociais, culturais e espirituais de seus membros. Tais comunidades substituíram no campo da afetividade e da comunicação aquelas comunidades naturais nas quais se tinha outrora, bem como seu imaginário comum (HERVIEU-LÉGER, 2015, p. 50). 

A despeito destas teorias – ou realidades – sociológicas, houve, na Igreja regida pelo Papa polonês, o intuito de subordinar a doutrina, reflexão teológica e as experiências eclesiais à unidade institucional. João Paulo II, por meio da exortação apostólica Pastores davo vobis (1992) dirigida ao clero, procurou, além de discipliná-lo, dar aos clérigos uma feição de sacralidade. Na sequência publicou as encíclicas Veritatis splendor (1993) e Evangelium vitae (1995) que condenavam os métodos contraceptivos artificiais, o aborto, a homossexualidade e a eutanásia. O tempo do diálogo cedia aos velhos tempos do anátema. A volta à grande disciplina, considerada uma reação defensiva da Igreja, não só restabeleceu o antimodernismo da cúria romana, como ainda, retomava a estabilidade doutrinal sem qualquer compromisso com as exigências da racionalidade moderna (CARRANZA, 2011, p. 265). 

Camblin, (2002, p. 42) afirmou que a primeira iniciativa de João Paulo II quanto à questão social se deu com a publicação da encíclica Laborem Exercens (1981), que tratou do ensino social da Igreja sobre o trabalho. O Papa deu a impressão de que continuaria em sintonia com o discurso social defendido pelo Concílio e que fora ratificado pelo CELAM durante as duas conferências já citadas. No entanto, percebeu-se que a maneira como ele se relacionou com os trabalhadores da Polônia deixou muitas dúvidas sobre a essência deste discurso. 

Diante deste posicionamento, houve muitas reações por parte de setores da Igreja e da sociedade. Por analogia o mesmo posicionamento da Igreja em outros países poderia promover ações revolucionárias que ajudariam o comunismo? O Papa talvez não tenha percebido que a realidade sociopolítica da Polônia tinha as suas especificidades quando comparada com a América Latina. Naquele contexto de pós-guerra, no leste europeu, a luta da Igreja e dos operários coincidia contra o regime comunista, mas o mesmo não se observava no continente sul- -americano. Em parte, o resultado da visão que o Papa tinha do comunismo polonês proporcionou aos movimentos de libertação social serem vistos com suspeição. 

Portanto, cedo esta diferença entre a compreensão do Papa e a da Igreja latino-americana a respeito do que seria a legítima libertação humana e social se fez perceber. José Oscar Beozzo (1994, p. 224), referindo-se aos acontecimentos que marcaram o início dos atritos envolvendo João Paulo II e o episcopado brasileiro, destacou dois episódios. O primeiro foi a realização da III Assembleia Geral do Episcopado Latino-Americano (Puebla 1979) e, o segundo, foi a primeira viagem do Papa ao Brasil, em julho de 1980, que teria tido como objetivo a tentativa de enquadrar a Igreja do Brasil às novas pautas da Igreja universal. Em uma preleção para os bispos em Recife/PE (1980), João Paulo II afirmou que a Igreja não é deste mundo e que a Igreja do Brasil deveria prestar mais atenção à doutrina social papal e que todos os esforços deveriam ser dispensados para manter a unidade eclesial. Por fim, em uma clara objeção à Teologia da Libertação, defendeu que a Igreja deveria continuar praticando o amor aos mais pobres, mas que se evitasse a luta de classes (CORNWELL 2004, p. 99). 

Para Scott Mainwaring (1989, p. 245), o ano de 1982 representou o ponto de inflexão na caminhada da Igreja popular no Brasil, pois “a pressão dos conservadores contra a Igreja brasileira aumentou e ela começou a se movimentar num ritmo mais cauteloso e se tornou um agente político de menor importância”. Veiga (2018, p. 24), parafraseado Della Cava, defendeu que o projeto de restauração de João Paulo II deixava poucas dúvidas quanto à ampliação do campo conservador como a grande prioridade da Igreja naquele momento. Representou uma obediência sem desvios e universal ao magistério e às políticas do governo eclesial central; um retorno ao pensamento reto (ortodoxia) e uma reinterpretação do Concílio Vaticano II. Na esteira do que outros autores já disseram, Prandi (1997, p. 103) destacou que a restauração conservadora, promovida pelo alto controle institucional da Igreja, centralizada na autoridade do Papa, permitiu dividir dioceses, nomear bispos não alinhados à Teologia da Libertação, intervir na formação dos padres, tudo com a finalidade de obter um maior controle institucional. 

A Arquidiocese de São Paulo, por exemplo, foi fatiada para esvaziar a liderança de Dom Paulo Evaristo Arns. A prova desse fato pôde ser percebida por meio do próprio Dom Paulo Evaristo que sugeriu que os bispos das regiões episcopais pudessem continuar à frente destas áreas convertidas em dioceses. Seu pedido não ter sido atendido e ele sequer foi consultado sobre os nomes dos novos bispos sufragâneos (BEOZZO 1994, p. 287). O modelo de administração da Arquidiocese de São Paulo já havia sido aprovado pelo Vaticano. Apesar disso, Dom Paulo Evaristo foi informado que o Papa havia decidido pela sua divisão. Ao se encontrar com João Paulo II no Vaticano, Dom Evaristo, juntamente com o cardeal Lustiger de Paris, ouviram do Papa a afirmação de que não queria a divisão. Após retornar ao Brasil foi informado que a Arquidiocese havia sido divida em quatro novas dioceses: Osasco, Santo Amaro, São Miguel e Campo Limpo. O decreto foi assinado em 10 de março de 1989 (ARNS, 2001, p. 239). 

Beozzo (1994, p. 279), ao falar da escolha e nomeação dos novos bispos, afirmou que foi um capítulo difícil de ser escrito por causa da extrema discrição que envolvia o processo de escolha dos candidatos ao episcopado. O próprio cardeal Ratzinger, no seu Rapporto sulla fede, confessou que este era um aspecto fundamental do processo de restauração em curso na Igreja. Sendo assim, o cardeal reafirmou o papel singular do núncio apostólico na escolha dos nomes dos futuros arcebispos e bispos. A Santa Sé, portanto, criou outros canais de consulta, alheios às conferências dos bispos. 

No caso do Brasil foi estabelecida uma norma suplementar que defendia que o candidato fosse contra a ordenação de homens casados e a favor das normas estabelecidas pela encíclica de Paulo VI Humanae Vitae. A nomeação de novos bispos, portanto, tornou-se um assunto delicado para a Igreja no Brasil. O cardeal Sebastião Baggio, que fora núncio no Brasil e que, depois, se tornou Prefeito da Congregação para os Bispos, afirmou que “Roma poderia ainda enganar-se na nomeação de um ou outro bispo, mas não erraria na escolha dos arcebispos” (BEOZZO 1994, p. 281). 

Assim como Dom Paulo Evaristo, o mesmo aconteceu como Dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda/Recife. Em sucessivas viagens a Roma, pediu que fosse nomeado como arcebispo seu auxiliar por mais de 20 anos, Dom José Lamartine, para que não houvesse problema de continuidade na pastoral. Roma respondeu que não nomeava bispos auxiliares ao posto de arcebispos. Entretanto, contrário a esta decisão, na época o bispo auxiliar de Belo Horizonte, Dom Serafim, tornou-se arcebispo desta mesma arquidiocese (BEOZZO 1994, p. 287). 

A fragmentação das dioceses, acompanhada pela nomeação dos bispos, tornou-se por excelência um instrumento de cerceamento da ação dos clérigos no pontificado de João Paulo II. O “sistema Wojtila” consistia em tornar bispos os padres submissos a Roma e, não raro, submissos à própria figura do Papa. Nomeações por critério de excelência eram exceções. Muitos padres qualificados foram ignorados por se mostrarem de mentalidade desviantes ao establishiment em curso. Antes da sua admissão oficial nas hostes romanas, o novo bispo sufragâneo deveria pronunciar solenemente seu voto de obediência ao Papa, razão pela qual deveria se sentir responsável menos pelos fiéis e mais para com o Pontífice, devendo também, regulamente, viajar a Roma para se reportar ad limina Apostolorum (KÜNG, 2012, p. 193). No novo contexto, também houve um controle expressivo das paróquias. A eclesiologia tradicional, aos poucos, foi assumindo o lugar antes ocupado pela eclesiologia das CEBs, renovando-se os velhos anseios voltados para as questões litúrgicas e sacramentais, e limitando a iniciativa e autonomia dos leigos engajados na pastoral popular (PRANDI, 1997, p. 103). 

Segundo Oliveira (1992, p. 46) o pontificado de João Paulo II favoreceu os setores eclesiásticos mais simpáticos às elites dirigentes do país, ao frisar que “as nomeações episcopais dos dez últimos anos são inequivocamente conservadora”. Salvo raras e honrosas exceções, os novos bispos e arcebispos foram pessoas cujas prioridades eram a preservação da autoridade eclesiástica, das doutrinas e normas estabelecidas e a defesa das medidas canônicas vindas da Santa Sé. Todos os bispos que levantaram a bandeira em prol do maior engajamento social da Igreja sofreram algum tipo de suspeição. De alguma maneira todos foram censurados, “nem que fosse pela nomeação de um sucessor enviado para desfazer o que o anterior havia feito” (CAMBLIN, 2002, p. 44). Dentre aqueles que sofreram algum tipo de repreensão vale ressaltar: Dom Helder Câmara, Dom Antônio Fragoso, os primos Lorscheider, Dom Luís Gonzaga Fernandes, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Paulo Evaristo, Dom José Maria Pires, Dom Waldir Calheiros, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Tomás Balduíno, dentre outros (LIBÂNIO, 2013, p. 51). 

O esvaziamento da Igreja dita “progressista” no Brasil, durante o pontificado de João Paulo II, foi obtido, portanto, sempre através de algum tipo de censura contra bispos e padres. Um exemplo foi o que aconteceu na Arquidiocese de Olinda-Recife/PB. O substituto de Dom Hélder Câmara, Dom José Cardoso Sobrinho (1985), dedicou-se a desmantelar todo o trabalho anterior realizado por Dom Hélder. (BEOZZO 1994, p. 282). Assim como acontecera com Dom Hélder, Dom Ivo Lorscheiter, uma das figuras de prestígio do episcopado e secretário-geral (1971 e 1974) e presidente da CNBB (1979 e 1983), foi relegado, por Roma, a uma espécie de ostracismo. Nomeado bispo de uma pequena diocese no interior do Rio Grande do Sul, enquanto estavam vacantes as principais sedes arquiepiscopais do país - da Sé primacial da Bahia à capital da República, de Olinda-Recife a Manaus -, e inclusive a Arquidiocese de Porto Alegre. Aliás, por duas vezes o seu nome foi indicando pelos seus pares para substituir Dom Vicente Scherer na arquidiocese da capital gaúcha. No entanto, a nunciatura propôs um nome que recebeu veto praticamente unânime dos bispos da regional (BEOZZO 1994, p. 282). 

O retorno à grande disciplina no Brasil, além de ter reestruturado a convivência dos bispos com o Vaticano, estabeleceu uma relação de conflito com os teólogos da libertação. O caso que mais chamou a atenção foi a imposição de silêncio obsequioso ao teólogo Leonardo Boff. Em 1981, o então frade franciscano publicou uma obra que, segunda a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, destoava da ortodoxia católica. De fato, no livro Igreja, Carisma e Poder, Leonardo Boff defendeu que a Igreja nasceu da decisão de pessoas inspiradas em Jesus Cristo (BOFF, 1981, p. 240), constituindo tal teoria teologia teológica uma eclesiologia a partir de baixo e da história. Boff (1981, p. 105) defendeu ainda que a estrutura de poder na Igreja reproduz o mesmo sistema de dominação implantado em sociedades opressoras. A alternativa para superar esta contradição estaria na descentralização do poder presente na hierarquia da Igreja e, consequentemente, em uma maior participação das Comunidades Eclesiais de Bases, por exemplo, na vida institucional da Igreja. O livro de Leonardo Boff trouxe, para a Igreja do Brasil e da América Latina, a convicção, da parte de Roma, de que aqui havia surgido um inimigo que precisava ser combatido e que tomava a forma de um Evangelho identificado com determinado socialismo utópico (VEIGA, 2018, p. 26). 

O Cardeal Ratzinger, em maio de 1984, enviou uma carta ao teólogo brasileiro, refutando a tese central do seu livro. Na correspondência que foi reproduzida em edição posterior do livro Igreja: Carisma e poder, o Cardeal declarou que a Igreja de Cristo deve ser edificada na pureza da fé, mas que esta pureza da fé exige que a Igreja se liberte não somente dos inimigos do passado, mas, sobretudo dos atuais, como, por exemplo, de certo socialismo utópico que não poderia ser identificado com o Evangelho (BOFF, 1981, p. 275). Leonardo Boff foi punido como o silêncio obsequioso, que consistia na proibição de falar em público em eventos promovidos pela Igreja, de lecionar e de publicar seus livros em editoras ligadas às instituições católicas3

Parece que após promover uma centralização do poder mediante uma série de medidas, como foi visto acima, João Paulo II com o auxílio da Congregação para a Doutrina da Fé, predispôs-se a demonstrar que havia uma incongruência entre os princípios do cristianismo e do marxismo. Em agosto de 1984 o cardeal Ratzinger publicou um documento com o título Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação. O documento acusou a Teologia da Libertação de usar conceitos marxistas, como o de luta de classes4 . A Igreja dos pobres da tradição cristã teria se tornado em uma Igreja baseada em classes, classes estas que teriam se conscientizado da necessidade da luta revolucionária como uma fase no caminho da libertação. Entretanto, celebrar esta libertação em sua liturgia poderia levar a um questionamento da estrutura sacramental e hierárquica da Igreja. E, ainda, os teólogos da libertação teriam substituído os pobres da tradição cristã pelo proletariado marxista. Na contramão do que afirmava o documento, para os teólogos da libertação, entretanto, o conceito “pobre” teria conotação moral, bíblica e religiosa (LÖWY, 2016, p. 131). 

Libânio (2013, p. 51) defendeu que, diferente de como João Paulo II interpretou a Teologia da Libertação, a nova hermenêutica bíblica procurou articular a fé cristã com a ação transformadora da realidade. Ousou com liberdade crítica, mas responsável e sem comprometer a fé. Assumiu elementos das ciências sociais para interpretar os conflitos presentes na sociedade. O fato de algumas reflexões teológicas terem sido gestadas através de instrumentais teóricos marxistas não teria significado traição ao Evangelho, mas coragem de encontrar novos nortes para a reflexão teológica, sem preconceitos ideológicos. A convergência entre a Teologia da Libertação e marxismo, em certos setores da Igreja, não foi resultado de conspiração ou infiltração por parte de marxistas; outrossim foi fruto dos movimentos internos da própria Igreja. No entanto, uma questão precisa ser esclarecida: por que setores do clero e dos leigos adotaram o método do materialismo histórico de interpretação e transformação da realidade, em meados da década de 1960, na América Latina? (LÖWY, 2016, p. 123). 

O cardeal Ratzinger, na tentativa de encontrar uma causa possível, afirmou que na década de 1960 surgiu um vazio de significado no mundo ocidental. Essa realidade de perda de sentido habilitou às várias formas de neomarxismos serem reconhecidas como uma força moral. Além disso, os desafios de encontrar solução para a questão da pobreza e da opressão pareciam urgentes. Diante desses fatos, a teologia e a filosofia cristãs procuraram uma alternativa nos modelos de esperança proposto pela filosofia marxista. O resultado, segundo o cardeal, foi a emergência dos teólogos da libertação que “abraçaram totalmente a abordagem marxista básica” (LÖWY, 2016, p. 124). 

Löwy (2016, p. 125), entrementes, ressaltou que as considerações do cardeal não foram satisfatórias. Talvez a explicação esteja na própria doutrina da Igreja e do marxismo que poderiam ter favorecido, facilitado ou estimulado sua convergência. O conceito de afinidade eletiva elaborado pelo filósofo Marx Weber parece ajudar a compreender como certas afinidades, certas correspondências, podem possibilitar que duas estruturas culturais, em determinadas circunstâncias históricas, entrem em um relacionamento de atração, de escolha e de seleção mútua. Assim as duas doutrinas se aproximam em seis condições possíveis. Ambas rejeitam a afirmação de que o indivíduo é a base da ética e criticam as visões individualistas do mundo; postulam que os pobres são vítimas de injustiça, apesar dos conceitos de pobres da doutrina católica e de proletariado da teoria marxista serem diferentes; veem a humanidade como uma totalidade, cuja unidade substantiva está acima de raças, grupos étnicos ou países; dão grande valor à comunidade, à vida comunitária, à partilha de bens; criticam o capitalismo e as doutrinas do liberalismo econômico e têm a esperança de um reino futuro de justiça e liberdade, paz e fraternidade entre toda a humanidade (LÖWY, 2016, p. 125). 

A combinação do cristianismo e marxismo, a partir de 1960, deu início a um novo capítulo na história latino-americana, um período de lutas sociais, movimentos comunitários e insurreições. Um relacionamento de afinidade eletiva desenvolveu-se entre certos setores da Igreja e, com base nas analogias existentes, levou a uma convergência ou articulação entre essas duas culturas tradicionalmente opostas, resultando, em alguns casos, até mesmo em sua fusão em uma corrente de pensamento marxista-cristã (LÖWY, 2016, p. 127). 

Conclusão 

Em suma, a Igreja dos pobres tem, em muito, seu nascedouro da nova hermenêutica do Evangelho realizada pelo Concílio do Vaticano II, bem como, no Brasil, por exemplo, da articulação dos movimentos eclesiais, como as CEBs, que gestaram um modelo eclesiológico em que a figura dos marginalizados da sociedade passou a assumir a centralidade da missão evangelizadora da Igreja. Essa perspectiva se chocou com uma estrutura fortemente hierarquizada e centralizada. As consequências foram sentidas por meio da desarticulação do discurso social proferidos por essa nova reflexão e por um retorno à grande disciplina. 

Com o proposito de estabelecer o retorno à grande disciplina, João Paulo II dividiu dioceses, transferiu bispos e impôs o silêncio como forma de conter as vozes dissonantes dentro do magistério eclesial. A Teologia da Libertação foi aconselhada – mesmo constrangida - a repensar os seus conceitos por incorporar, segundo Roma, elementos da filosofia marxista. O projeto eclesiológico e político do papa polonês causou o esboroamento da Igreja dos pobres mediante duas ações: a centralização do poder e combate ao comunismo. 

Referências

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Notas

[1]  Como se depreende, emprestamos aqui – no título do artigo e em seu corpo -, o conceito de “volta à grande disciplina” do livro homônimo de João Batista Libânio, publicado por Edições Loyola em 1984. Ou seja, já no início do pontificado de João Paulo II, o teólogo jesuíta havia percebido que os ventos da barca de Pedro a insuflavam a um retorno a portos antigos da teologia considerados, por aquele pontífice, como mais seguros e disciplinadores da Igreja em relação ao seu modelo romano. 

[2]  Essa reação foi resultado da separação entre ideais que se chocam no século XIX com o fim dos antigos Estados Absolutistas e a conclusão da unificação italiana e alemã, de um lado, e de outro, o esforço da Igreja em retomar seu antigo prestígio, reduzido a uma condição meramente simbólica (Cf: VEIGA, 2018, p. 24).  

[3] .Cf: a obra “Roma locuta “, documentos sobre o livro Igreja: carisma e poder de Leonado Boff que reúne várias correspondências trocadas entre o teólogo Leonardo Boff , a Congregação para a Doutrina da Fé e outros teólogos que alinhados com o Vaticano apresentaram as suas objeções a tese boffiana. 

[4] Pode-se dizer que há uma “luta de classes dentro da Igreja?”. Sim e não. Sim, na medida em que certas posições correspondem aos interesses das elites dominantes e outras aos dos oprimidos. E não, na medida em que bispos, jesuítas ou padres que chefiam a “Igreja dos Pobres” não são, eles próprios, pobres (Cf: LÖWY, 2012, p. 76).