Papa Francisco e suas reformas para uma igreja em saida diante de novos apelos da humanidade
Pope Francisco and his renovation to church in exit towards the new appeals to humanity.

Waldir Souza
Doutor em Teologia pela PUC/RJ. Pós-Doutorado em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo. Contato: 
wacasouza@yahoo.com.br

Rivael
Doutorando e Mestre (2010) em Teologia PUC/PR Contato: 
pe.rivael@gmail.com



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Resumo: 

O artigo tem como objetivo apresentar o papa Francisco e seu projeto de renovação interna na Igreja, como chave em saída. Desde o início de seu pontificado, em 2013, ele revelou-se um grande reformador, seu objetivo principal é o de conclamar a todos para um novo rosto da igreja, esta que sai ao encontro da humanidade. O termo não é novo, pois já havia sido mencionado por João Paulo II, porém, na ocasião, ficou apenas no campo dos anseios. O papa argentino defende incansavelmente a ideia que a igreja precisa acompanhar esse processo de renovação. Para se entender essa nova concepção, os elementos serão aqui apresentados através de quatro eixos básicos. O primeiro abordará a necessidade da “igreja em saída”, chave para uma conversão pastoral e mudança de mentalidade, uma esperança do Concílio Vaticano II nestes seus quase 60 anos. O segundo elemento tratará sobre a misericórdia de Deus, para os não batizados que não estão presentes na igreja. O terceiro é a referência à cultura do encontro, este é uma ideia essencial no pensamento de Francisco. E, o último aponta uma igreja em saída que sempre está se reformando. O método usado no artigo é o dedutivo com uma metodologia qualitativa bibliográfica. O pontificado de Francisco é marcado pelo anúncio do Reino de Deus e sua atualização no mundo, no cenário urbano, indicando novas ações pastorais e revelando a esperança no meio das fragilidades.

Palavras-Chaves: Francisco - Esperança - Misericórdia - Igreja em saída – Conversão Pastoral – Reino de Deus.

Abstract

The article has a goal to present the Pope Francisco and his project of internal renovation of the church with key in exit. Since the start of his pontificate in 2013, he revealed himself as a great reformer, his main goal is to call all to present the new church’s vision, leaving towards the humanity. The term is not new, but it was mentioned by João Paulo II, on the occasion, it was only in the dreams. The Argentinian Pope defends unconditionally the idea that the church needs to follow the new concept, the elements here presented through the three basic topics. The first topic will approach the need of the church in exit, the key to the pastoral conversion and change the mentality, the hope of the Vatican Council II throughout its 60 years of existence. The second topic deals with the Mercy of God, to the baptized people that are not present in the church. The third topic, it will be the reference of the culture of the meeting. It is the essential idea of Pope Francisco’s thought.  The last topic the indicates a church in exit that may be reformed. The method used in this article is the deductive with a qualitative methodology and bibliography. The pontificate of Francisco is marked by the proclamation of God’s Reign and his update in the world urban scenario indicating new pastorals actions and revealing hope around the weaknesses.  

Keywords: Francisco - Hope – Mercy - Church in exit – Pastoral Conversion – God’s Reign


INTRODUÇÃO

O anúncio da frase “Habemus Papam”, de 2013, apresenta o Cardeal argentino José Mario Bergoglio, como Papa da Igreja Católica e concretizou esperança de uma nova primavera na eclesialidade. O início de um pontificado sempre traz a esperança de dias melhores e este não seria diferente, não somente para a igreja, mas para toda a humanidade. Em 2013, a revista Time elegeu o Papa Francisco como personalidade do ano.

A revista Rolling Stone concedeu-lhe uma capa. Outras publicações atribuíram-lhe honra do mesmo teor (...). A revista Fortune colocou-o em primeiro lugar na lista dos “50 líderes mundiais”, à frente de outros como Ângela Merkel, Alan Mullally (...), Warrren Buffer, Bill Clinton, ou Aung San Suu Kyi. Eis o argumento da Fortune: ‘Definindo energicamente uma nova direção. Francisco eletrizou a Igreja e atraiu legiões de admiradores não católicos’. (REGO, 2015, p.120)

 Em 2013, o novo Papa já era observado com muita simpatia e atraia sorrisos e aplausos dos não católicos. No meio católico foi visto não somente como “um novo João XXIIII, ou como um novo carismático João Paulo II, mas porque não dizer é um reformador, missionário para uma igreja em processo de construção, que precisa ser atualizada e concretizar os apelos da Nova Evangelização. Francisco torna-se esperança de concretização de uma nova realidade eclesial.

O que se pode destacar no início do seu pontificado, vem se configurando nos anos que se seguiram do seu governo, uma continuidade dos apelos do Concílio Vaticano II. Esta continuidade favorece uma nova evangelização que clama por testemunho, a aproximação de uma igreja que sai ao encontro dos que sofrem, diante do povo de Deus que precisa de referências, neste tempo em que falta a esperança e a solidão perdura.  

O pontificado de Francisco é pautado na esperança que motiva as pessoas a caminharem com alegria rumo a uma renovação eclesial intensa. Há a necessidade de motivação da fé e esta se torna uma tarefa para todos os que são batizados e, sua esperança profética se abre em uma perspectiva global para a humanidade toda.

Nos últimos anos, a humanidade vem se distanciando da religiosidade. Há uma lacuna de espiritualidade e o banimento da religião da vida do ser humano. É necessário ir ao encontro das pessoas para a conservação da memória, da palavra e da vida, do mistério e do transcendente, uma fé a contemplar o mistério de Deus no próximo. Desta maneira, para a transmissão da fé é urgente um forte empenho em ir ao encontro das pessoas. O homem não pode crer sozinho, pois não se trata de um ato isolado; e sim, entre Deus, o ser humano e seu semelhante.  É urgente e necessária uma abertura para o amor e para o próximo, fundamentada no mistério de Deus. 

O tempo também é importante para a proximidade e para a fecundidade de um novo olhar da fé em virtude do testemunho para a superação da indiferença que fere e mata neste tempo presente e para uma nova maneira de evangelizar, como já sugeria o Concílio Vaticano II. Eis a leitura que o Papa Francisco faz do tempo presente:

Na nossa época verifica-se com frequência uma atitude de indiferença em relação à fé, que deixou de ser considerada na vida do homem. Nova evangelização significa despertar no coração e na vida de nossos contemporâneos a vida de fé. A fé é um dom de Deus, mas é importante que nós cristãos que vivemos a fé de maneira concreta, através do amor, da concórdia, da alegria e do sofrimento, porque isso desperta interrogações como no início da caminhada da Igreja: por que vivem assim? O que os impele? São perguntas que levam ao cerne da evangelização, que é o testemunho da fé e da caridade. Do que precisamos, especialmente nesta época, são testemunhas de credibilidade que com a vida e a palavra, tornem o Evangelho visível, despertem atração por Jesus Cristo e a beleza de Deus. (FRANCISCO, 2013, p.1)

 O que Francisco mostra para a humanidade, nestes tempos de indiferença, é que o vazio das relações perpassa todo o contexto social e a fé não é mais atrativa, por isso faz-se necessário um novo olhar: prático, com ternura e próximo. A urgência, em sua ótica, é dar continuidade aos passos do Concílio Vaticano II e livrar-se das falsas seguranças que limitam o cristão em novas ações em detrimento da fé e uma nova visão pastoral.

Nesta dinâmica, esse artigo vai sugerir quatro passos importantes, segundo o Papa Francisco: um olhar de proximidade de uma igreja em saída, que vai ao encontro do próximo; uma igreja que tem inspiração na misericórdia e que adota nova maneira de pensar pastoralmente a nova evangelização, que segundo Francisco é aquela centrada na misericórdia, que conta com uma igreja samaritana que compartilha a vida de Jesus com entusiasmo e fé, como sugere o título de sua primeira exortação apostólica, Evangelli Gaudium. No terceiro passo se abordará a reforma de Francisco centrada no que é essencial, uma aplicação da proximidade, centralidade do Concilio Vaticano II. E o último, diante de tantos desafios, uma igreja que para sair precisa se reformar sempre para atender os novos apelos da humanidade no amor e na justiça.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEOLÓGICA E PASTORAL

Para a compreensão e abordagem deste artigo, se apresentarão alguns elementos importantes da teologia do magistério eclesial. Esta provém da eclesiologia do Concílio Vaticano II e que permeia as ações do Papa Francisco.

O centro da teologia de Francisco é o ser humano que se coloca em saída em missão, como também é o centro do Concílio Vaticano II, o ser humano e suas indagações do tempo. Francisco aplica toda a eclesiologia do Vaticano II e sugere uma igreja em transformação, ou seja, em saída para vencer o individualismo, esta que brota do coração humano mergulhado na indiferença:

Quando a vida interior se fecha aos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da alegria de seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é uma escolha de uma vida digna, plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado. (EG 2)

O ser humano é convidado a colocar-se no caminho e ir ao encontro de seu semelhante e assim promover o Reino de Deus. É uma nova visão eclesiológica oriunda do Concílio Vaticano II que conclama uma igreja servidora e acolhedora. A evangelização se faz na acolhida, para a edificação do Reino de Deus. 

Paulo VI assim se expressa sobre o reino de Deus, em Evangelli Nuntiandi: “O reino de Deus, de tal maneira importante que, em comparação com ele, tudo mais passa ser “o resto”, que é “dado por acréscimo””. (EN 8)

E com esta visão do Reino de Deus e a vida provinda dele que aqui se faz esta reflexão pautado em uma Igreja que sai para buscar a proximidade, para dialogar, para revelar a misericórdia de Deus e porque não dizer para dizer algo novo de si mesma.

O Papa Francisco seguindo a continuidade e aplicação do Concílio Vaticano II reafirma o Pentecostes que foi o Concílio Vaticano II para a Igreja, pois este não foi absorvido em sua plenitude. O conteúdo pastoral de toda a eclesiologia destes últimos anos se pauta na Gaudium et Spes que aponta para mudanças e diálogo, que é o que Francisco propõe em todo seu pontificado. 

Para isso, é necessário a compreensão de um novo conceito fundamentado na alteridade[1] que se contempla na primeira encíclica de Francisco, Evangelii Gaudium e a sugestão da continuidade do método hermenêutico[2] e histórico com um olhar transformador social e revelador de uma igreja em saída que necessita de método.

O método teológico e dialético que Francisco usa, busca contemplar o ser humano inserido na história e conta com o apoio de outras ciências. A compreensão desta maneira só pode ser hermenêutica, pois há necessidade da experiencia, nesse sentido ele orienta uma nova maneira de olhar o pobre e com o desejo de uma economia de inclusão. Na estrutura de uma igreja em saída, com foco no absoluto em Deus, mas com olhar social, além-fronteiras.

Há uma necessidade de saída e que esta integre toda a realidade humana, pois no mundo global se vê uma multidão de excluídos e muitas injustiças (EG 202). É necessário que se abram os olhos e as mentes para compreender a ditadura da economia que perdura no tempo presente, ou a chamada “globalização da indiferença” (EG 54). O Papa Francisco sugere nova mudanças que rejeite uma ideologia neoliberal e absolutizações dos mercados financeiros em relação a produtividade e trabalho.

O Papa Francisco insiste que a igreja proclame o ‘coração da mensagem de Jesus Cristo’ (EG 34) que consiste na 'beleza do amor salvífico manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado’ (EG 36). É um novo olhar na esperança vivifica na força em Cristo e na esperança do seu Reino, no dom da fé.

Esta mensagem de fé só pode ser compreendida no coração de Cristo, na salvação que procede dele e a beleza de seu amor em sua vida, morte e ressurreição. A igreja que Francisco propõe é uma igreja que sai, se abre ao diálogo e conversa com a cultura desse tempo. Há necessidade de atualização da igreja sempre em suas reformas com a ótica do Concílio Vaticano II. O teólogo Mario França de Miranda contextualiza a realidade eclesial desafiada pelo Papa Francisco:

Herdamos uma Igreja ainda com nítidas características da época da cristandade: cultura cristã generalizada, batizados não evangelizados, separação entre fé cristã e vida pessoal, ênfase nas formulações doutrinais e exigência no cumprimento de normas morais que, para muitos, deformavam a igreja como sacramento da salvação, vendo-a sobretudo como uma entidade autoritária, moralista, demasiado segura de suas verdades e, de certo modo, distante da dura realidade vivida por seus filhos.  (MIRANDA, 2017 p.13)

Neste contexto são necessários as ações do Papa Francisco se tornam alavancas para mudanças e um estudo apurado para compreender os passos significativos de uma mudança de mentalidade que gera nova conversão. Os passos que foram dados no Concílio Vaticano II são importantes para a reforma eclesial e Francisco, neste pontificado tem demonstrado em seu agir e em seu ser atualizações de uma igreja viva e dinâmica motivada pela força do Espírito Santo. Criativas para a superação do egoísmo e da violência.

 A conversão se faz necessário para a promoção da vida, do Reino de Deus, com a luta pelo bem comum, e para que a justiça se abra e os pobres tenham acesso aos bens da criação. A missão de Francisco é promover a conversão de todos para uma promoção humana, uma conversão que ajude em uma nova mentalidade, e supere uma sociedade de injustiças, corrupção e violência. O caminho é experimentar a misericórdia divina, para isso, o ser humano precisa reconhecer Deus e converter o seu coração para uma igreja em saída e para o diálogo.

A fé fundamenta nossa vida em Deus, tornando-nos livres ao relativizarmos tudo o que não seja de Deus. O contrário que nos paralisa em nossas seguranças humanas e impede de nos abrimos à novidade do Espírito. A conversão que deve nos acompanhar ao longo da vida como atitude básica do cristão consiste numa prontidão de autotranscender, seja em seu horizonte de compreensão, seja em sua motivação para ação, seja em sua vivência da fé como resposta no amor infinito prévio. Vemo-la concretizada na pessoa do Papa Francisco, em sua liberdade, em sua coragem, em seu ensinamento, em sua demasiada atitude profética. Mas a reforma da Igreja depende também de todos nós que somos a igreja! (MIRANDA, 2017.p.27)

O enfoque teológico é o desejo de conversão do ser humano para um caminho novo, para uma proximidade consigo mesmo e seu próximo. Por isso, a compreensão da presença de Deus, da conversão do ser humano e sua ação profética neste mundo. Os elementos que se seguirão ampliarão esta reflexão do sair, da “igreja em saída”, uma teologia que aqui se abordará em quatro passos. 

2.1. SAIR PARA FAZER-SE PRÓXIMO

Neste primeiro item se abordará algo que é muito relevante neste pontificado e são as lentes do Papa Francisco para todo o seu magistério, uma igreja em saída, indo ao encontro do próximo. O que seria esta igreja em saída?

A igreja “em saída” é a comunidade de discípulos missionários que “primeiream” que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo- tomam a iniciativa!   A comunidade missionária que o Senhor tomou iniciativa, precedeu-a no amor (cf. 1 Jo 4, 10), e por isso ela sabe ir à frente, sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos. Vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia infinita do Pai e sua forma difusiva. (EG 24)

Aqui é retratada a chave de leitura para a compreensão das reformas de Francisco, apostando em um pontificado de evangelização, de uma igreja que sai, procura as pessoas e oferece os frutos da salvação e da promoção da vida. Para que a evangelização frutifique, celebra em pequenos passos a alegria de anunciar o Evangelho e promover a fé, mostrando a alegria do Evangelho. A fé, a partir de uma evangelização na vida urbana, que valorize a palavra dentro dos novos cenários do mundo.  

Em 2011, Francisco fez um pronunciamento, ainda quando arcebispo de Buenos Aires, sobre a nova evangelização, pontuando sobre o testemunho de uma igreja em saída, com necessidades de valorização da cultura e a certeza que Deus habita na cidade e, diante do caos urbano, o ser humano é chamado a experienciá-lo.

Deus vive na cidade e a Igreja vive na cidade. A missão não se opõe a ter que aprender com a cidade – com sua cultura e mudanças – enquanto saiamos para lhe pregar o Evangelho. E isso é fruto do próprio Evangelho, onde interage com o terreno onde cai feito semente. Não só a cidade moderna é um desafio, mas sempre o foi e será toda a cidade, toda a cultura, toda a mentalidade e todo o coração humano. A contemplação da Encarnação que santo Inácio apresenta nos exercícios espirituais, é um bom exemplo do olhar que se propõe aqui. Um olhar que não fica atolado nesse dualismo que vai e volta constantemente entre o diagnóstico e o planejamento, mas sim que se envolve drasticamente na realidade da cidade e se compromete com ela junto na ação. O Evangelho é um kerigma e que nos impele a transmiti-lo. As mediações vão sendo abordadas à medida em que vivemos e convivemos” (25 de agosto de 2011). (VIDAL, 2013. p.64)

Para ir ao encontro do próximo e testemunhar uma igreja em saída é necessária a compreensão da cultura e suas mediações no ritmo da convivência humana. Sérgio Rubin e Francesca Ambrogetti em sua obra: “O Papa Francisco, conversas com Jorge Bergoglio”, publicado pela editora Verus, em 2013, retratam em um capítulo o pensamento do Papa Francisco sobre a importância de se ir ao encontro das pessoas. 

 A entrevista tem tudo a ver com o título desse artigo, pois coloca Francisco em diálogo com o mundo e os desafios deste tempo, ou seja, diante da “privatização da fé”, da religiosidade subjetiva em que se encontram as pessoas e do distanciamento dos batizados em todos os continentes, Francisco reforça a necessidade de ir além das estruturas físicas da igreja.

Uma igreja que se limita a administrar o trabalho paroquial, que vive trancada em sua comunidade, é igual a uma pessoa presa: atrofia-se fisicamente e mentalmente. Ou se deteriora como em um quarto fechado, onde o mofo e a umidade se espalham. Uma igreja autorreferencial é a mesma coisa que uma pessoa autorreferencial: fica paranóica, autista. É verdade que ao sair à rua, pode acontecer o mesmo a qualquer um: acidentar-se. Mas prefiro mil vezes uma igreja acidentada a uma igreja doente. Em outras palavras, acredito em uma igreja que se reduz ao administrativo, a conservar seu pequeno rebanho, é uma Igreja que, com o tempo, adoece. O pastor que se tranca não é o verdadeiro pastor de ovelhas, e sim um ‘escovador’ de ovelhas, que passa o tempo fazendo cachinhos nelas em vez de ir buscar outras. (RUBIN, 2013. p.65)

A dinâmica de ir ao encontro das pessoas faz parte da missão da igreja. E, o Papa Francisco vai além ao afirmar que faz-se necessário ir onde não existam estruturas prontas. Ao analisarmos de maneira mais aprofundada o pensamento citado, concluiremos que ele nos exorta para a ação, pois, para que a igreja que se pretende aconteça, há muito a se caminhar, há uma necessidade de se superar “estruturas caducas” que não evangelizam como nos orienta a Evangelim Gaudium, nos números 28 e 29. Nesse contexto, a igreja deve se aproximar das pessoas dentro da dinâmica da cidade. 

Desta maneira, se vê uma necessidade do anúncio da fé cristã que não pode ser simplesmente uma informação. O Evangelho é um anúncio que precisa ser proclamado, pois o mundo precisa de mudanças. Como afirma o evangelista Marcos: “Completou-se o tempo, e o Reino de Deus está próximo, convertei-vos e credes no Evangelho” (Mc 1, 15). Em relação a essa máxima, não basta simplesmente conhecê-la. É preciso que o ser humano creia, mas, principalmente, mude sua postura e testemunhe esse projeto e faça-o acontecer. Com base nisso, o Papa Argentino impele a todos nós para que sejamos “Uma igreja em saída”:

Saiamos, saiamos para oferecer a todos a vida de Jesus Cristo! Repito aqui, para toda a igreja, aquilo que, muitas vezes, disse aos sacerdotes e aos leigos de Buenos Aires: prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada, por ter saído pelas estradas, a uma igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. (EG 49)

Uma igreja em saída para atender aos “novos samaritanos” com suas feridas abertas; muito mais evidentes com a pandemia presente no mundo neste último ano, diante dos desafios da exclusão e da indiferença que a cultura moderna em seu contraste oferece: 

A igreja semeia o pequeno grão de mostarda através do testemunho, mas fá-lo no próprio cerne das culturas que se vão gerando no seio das cidades. O testemunho concreto de misericórdia e de ternura, que procura estar presente nas periferias existenciais e pobres, incide de forma direta sobre os imaginários sociais, gerando orientação e sentido para a vida urbana. Desta maneira, como cristãos, nós contribuímos para construir uma cidade na justiça, na solidariedade e na paz. (Discurso do Papa Francisco aos participantes do Congresso Internacional da Pastoral nas Grandes Cidades, 2014).

O Papa Francisco recorda não somente a igreja, mas a toda a humanidade que é necessário discernimento para ir ao encontro das pessoas, uma “cultura do encontro”, que aproxima as pessoas e que de maneira evidente nestes últimos tempos tornou-se indispensável.  Esse tema foi abordado de forma enfática em sua Homilia de terça-feira, 13 de setembro de 2016. 

O tema deixa claro o que ele já vivia em Buenos Aires, em uma cidade grande, onde há necessidade de ‘primeirear’ as relações, mas serve para toda a igreja. Uma cultura que se aproxime e busque o ser humano decaído e fragilizado para que experimente o amor de Deus, pleno em Jesus, como os grandes místicos da igreja.

No desespero da pandemia causada pelo COVID-19, o sumo pontífice ainda ressaltou a importância deste tema em uma de suas homilias na Páscoa de 2020. 

É o sopro do Espírito que abre horizontes e desperta a criatividade e nos renova na fraternidade para dizer ‘presente’ (ou eis-me) perante a enorme e inadiável tarefa que nos espera. É urgente discernir e encontrar a pulsação do Espírito para dar impulso, juntamente com outros, a dinâmicas que posso testemunhar e canalizar a nova vida que o Senhor quer gerar neste momento concreto da história. Este é o tempo favorável do Senhor, que nos pede para não nos conformarmos, nem nos contentarmos e, ainda menos, para não justificarmos com lógicas substitutivas ou paliativas, que nos impedem de suportar o impacto e as graves consequências dos que estamos a viver. Este é o momento propício para encontrar coragem de uma nova imaginação possível, com o realismo que só o Evangelho pode oferecer. O Espírito que não se deixa instrumentalizar com esquemas, modalidades e estruturas fixas ou caducas, propõe-nos que nos unamos ao seu movimento, capaz de “renovar todas as coisas” (Ap 2, 15). (FRANCISCO, 2020, p.49)

Nesta visão, somos levados a refletir que a dor nos impele a nos aproximarmos das pessoas, busquemos então a criatividade pastoral e um olhar de misericórdia, que é o próximo tema a ser retratado nesse artigo. Para uma superação de isolamento que distancia o ser humano de seus semelhantes e o torna míope diante das situações de miséria que a humanidade enfrenta. 

A igreja tem como missão, caminhar testemunhando o amor. Que toda a humanidade possa se inspirar na promoção da cultura do encontro que aproxima, cura e liberta o ser humano de todos os cárceres que o impossibilita de alegrar-se com a vida.

2.2. SAIR PARA DIALOGAR

Francisco insiste em uma igreja que sai para dialogar. Um diálogo interno, mas também aberto com outras religiões e as culturas. Seu pensamento é fruto das decisões do Concílio Vaticano II e do pensamento eclesial presente nas conferências episcopais. No Concílio, a igreja é compreendida como luz dos povos na união com o mistério divino e todo gênero humano (LG 1; 9, 48).

O Papa Francisco desde sua primeira aparição insiste no diálogo e imprime sua marca de diálogo, tentando compreender o ser humano em sua história, em sua pobreza, em suas lutas e diante de um mundo marcado por angústia e necessitado de justiça.

Para dialogar é necessário docilidade, sem grita. (...). ‘Dialogar é difícil, mas pior que tentar construir uma ponte com um adversário é deixar crescer no coração o rancor contra ele. Deste modo, ficamos isolados neste caldo amargo do nosso ressentimento’. Um cristão, ao contrário, tem como modelo, Davi que vence o ódio com ato de humildade.  (FRANCISCO, 2015, p. 389-390). 

O que o Papa Francisco inspira em suas palavras é o desejo de conversão da humanidade na busca da unidade, a defesa do bem, além das tradições religiosas, uma convivência pacífica entre todos os povos e a conservação da criação. Por isso, a necessidade de uma igreja que sai para dialogar. É necessária uma igreja que dialogue com as aflições deste tempo.

 O tema de uma igreja em saída fica bem evidente no capítulo VI da Encíclica Fratelli Tutti, que leva o nome de “diálogo e amizade social”. Uma igreja se faz no diálogo e na sua amplitude em aproximar-se e esforçar-se para buscar o aprimoramento das relações interpessoais.

Aproximar-se e expressar-se, ouvir-se, olhar-se conhecer-se esforçar-se, procurar pontos de contato: tudo isso se resume no verbo ‘dialogar’. Para nos encontrarmos e ajudarmos mutuamente, precisamos dialogar. Não é necessário dizer para que serve o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que mantiveram unidas pessoas e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não é noticiado com as desavenças e conflitos; contudo de forma discreta, mas além do que podemos notar, ajuda o mundo a viver melhor. (FT 198)

O diálogo é uma ponte que supera a cultura de morte que impera no mundo de hoje, o que o Papa Francisco insiste é que o diálogo se torne uma alavanca para o bem, pois se torna a esperança para a unidade, para o desenvolvimento econômico e construção da paz nas famílias. Nesta paz a solidariedade impera e o compromisso de todos em comum é a promoção da dignidade humana. 

Ainda neste ponto para encerrar esse item se destaca que o diálogo é motivador da verdade, se faz necessário para toda a igreja sempre buscar a verdade e a misericórdia, ambos constroem a paz e a justiça. Francisco em sua homilia na casa de Santa Marta em 24 de janeiro de 2014, reforça a importância da paz e que aqui se associa ao diálogo.

O importante é ‘buscar a paz o mais cedo possível’, com uma palavra, um gesto. Antes uma ponte que um muro, como aqueles que por muitos anos dividiu Berlim. Porque ‘também no nosso coração existe a possibilidade de ele se tornar uma Berlim como muro com os outros’. (FRANCISCO, 2015, p.390)

Assim, se irradia a paz e atualiza-se também a mensagem do Documento de Aparecida onde as comunidades são centros de irradiação da vida em Cristo (DAp 479-480), e se comunicam (DAp 484-490), em torno da cultura (Dap 479-480) e na vida pública (DAp 501-508). Todo este contexto para ressaltar a importância do diálogo, na perspectiva da igreja que sai e revela o dom da justiça pautado no diálogo e também um Deus misericordioso que é o tema do próximo tópico.

2.3. SAIR REVELANDO O ROSTO DA MISERICÓRDIA

Em 11 de abril de 2015, Francisco proclamava para toda a Igreja o “Ano Santo da Misericórdia”. Esse é um dos temas-chaves de seu pontificado e é definido por ele da seguinte forma: “O Salmo 136 afirma que ‘eterna é a sua misericórdia’, no entanto, a misericórdia de Deus é infinita. Logo, a missão do Papa Francisco, dentro do contexto de seu pontificado, é apresentar um Deus misericordioso e reconciliador. É necessária uma Igreja em saída para revelar a misericórdia de Deus. O que seria esta misericórdia?

Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato último supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com os olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação de nosso pecado. (MV 2)

A misericórdia de Deus não é somente um pressuposto espiritual, na ótica de Francisco, mas marca todas as situações da vida e insere Deus no meio de seu Povo, e na comunhão com o divino dom da gratuidade da salvação. Ela vai ao encontro da vida do ser humano, fragilizada no meio da crise ambiental, como aponta “Laudato Si”, carta encíclica, sobre o cuidado da casa comum, publicada em maio de 2015, uma crise provocada pelo egoísmo e ambições econômicas que se atenuaram ainda mais no mundo pós-pandemia. Na humanidade há a necessidade de um novo clamor por misericórdia, para o benefício do Reino de Deus e ao desenvolvimento da sociedade.  Nestes anos de 2020 e 2021, essa primordialidade foi vivenciada intensamente, pois a partir da dor gerada pelo vírus, verificou-se a urgência pela pregação do Reino de Deus, Reino da vida.

Portanto, Francisco confirma que Jesus não somente prega uma mudança das relações pessoais com Deus e com os outros, mas também o Reino de seu Pai ou um reino social e ‘público de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos’. O seu princípio de discernimento e a universalidade, conforme indicava São Paulo VI em relação ao desenvolvimento: ‘todos os homens e o homem todo’, ou todas as dimensões da existência, todas as pessoas, todos os ambientes da convivência dos povos. (SCANNONE, 2018, p.240)

O Papa Francisco aponta um caminho a ser seguido que perpassa o coração de todos os batizados. Toda comunidade evangelizadora é chamada a experimentar a força de um Deus Misericordioso, é um “amor visceral” (MV 6), para tornar fecunda a verdade do Evangelho. O apelo é para que a misericórdia de Deus esteja sempre presente nas “estradas da existência”, no caminhar em tempos de interrogações e de novos cenários culturais pautados pelas tecnologias da informação. Nesse contexto a urgência é para a necessidade de que haja cada vez mais “promotores da misericórdia”. 

Na homilia para a canonização, que ocorreu em 2000, João Paulo II realçou que a mensagem de Jesus Cristo à Irmã Faustina se situa temporalmente entre duas guerras mundiais, e está muito ligada à história do século XX. E olhando para o futuro afirmou: ‘O que nos trarão os anos que estão diante de nós’. Como será o futuro dos homens sobre a Terra? A nós não é dado a sabê-lo. Contudo, sem dúvida ao lado de novos progressos infelizmente não faltarão experiências dolorosas. Mas a luz da divina misericórdia, que o Senhor quis como que entregar de novo ao novo mundo através do carisma da Irmã Faustina, iluminará o caminho dos homens do terceiro Milênio. É claro! Em 2000 tornou-se explícito, mas era algo que no seu coração já amadurecia havia muito tempo. (VIGINI, 2015, p. 90)

Francisco, ao citar um de seus predecessores, São João Paulo II, recorda a importância da misericórdia diante dos contextos culturais da pós-modernidade, e alerta que o mundo tem se transformado em um caos, justamente pela falta de misericórdia e de perdão. Em seguida, ele apresenta ao mundo um “Ano Jubilar Santo”. Dessa forma, ele nos convida a refletir sobre o papel desempenhado pela misericórdia na vida de todos os povos, de uma humanidade que caminha na “via crucis” e que exige um novo protagonismo de todos.

Diante dos sinais do tempo, aparecem necessidades de curas para toda a humanidade, principalmente a cura da falta de amor, que é mais perigoso que o COVID-19. Mas, Francisco continua recordando a toda a humanidade que, em meio à escuridão, Deus está presente com seu amor. E, diante de Deus aparece a fragilidade de toda a humanidade. É preciso uma abertura para a misericórdia, para a superação da indiferença egoista, uma ação misericordiosa no meio da comunidade global, diante da fragilidade e do caos:

Somos todos frágeis, todos iguais, todos preciosos. Oxalá mexa conosco dentro o que está acontecer: é tempo de remover as desigualdades, sanar a injustiça que mina pela raiz a saúde da humanidade inteira! Aprendamos com a comunidade cristã primitiva, que recebera misericórdia e vivia usando de misericórdia como descreve o livro dos Atos dos Apóstolos: os crentes ‘possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um’ (At 2, 44-45). Isto não é ideologia é cristianismo. (FRANCISCO, 2020, p.54)

Esta frase se configura dentro da reforma de Francisco como uma grande novidade: apresentar à humanidade uma igreja misericordiosa e samaritana, diante do ser humano doente. Para esta ação, é bom lembrar-se das dicas que os Bispos do Brasil ofereciam em 2011, em abertura a uma nova mentalidade. As palavras que marcaram os anos anteriores e que são frutos da Conferência de Aparecida eram e continuam sendo atuais: alteridade e gratuidade.

As atitudes de alteridade e gratuidade marcam a vida do discípulo missionário de todos os tempos. Alteridade se refere ao outro, ao próximo, aquele que, em Jesus Cristo é meu irmão ou minha irmã, mesmo estando do outro lado do planeta.  É o reconhecimento de que o outro é diferente de mim, e esta diferença nos distingue, mas não nos afasta. As diferenças nos atraem e nos complementam, convidando ao respeito mútuo, ao encontro, ao diálogo, à partilha e ao intercâmbio de vida e solidariedade. Fechar-se no isolamento, no individualismo e em atitudes que transformam pessoas em mercadorias é cair no pecado da idolatria e semear a infelicidade. A vida só se ganha na entrega, na doação. ‘Quem quiser perder a sua vida por causa de mim a encontrará!’ (Mt 10, 39). (CNBB, 2011, p.20)

A igreja, à luz profética de Francisco, caminha para a solidariedade e deseja promover o direito básico de todas as pessoas. A misericórdia serve para a saída da inércia e da passividade que atuam neste tempo presente. O Papa argentino motiva a tomada de novas atitudes na alteridade e na gratuidade do Reino de Deus. Na Cracóvia, em terras de São João Paulo II, e por ocasião da XXXI Jornada Mundial da Juventude, ele reforça o pensamento de que a Igreja do amanhã deve estar totalmente comprometida com a misericórdia.

Conhecendo a paixão que põe na missão, ouso repetir. A misericórdia tem sempre o rosto jovem. Porque um coração misericordioso tem a coragem de deixar a comodidade; um coração misericordioso sabe ir ao encontro dos outros, consegue abraçar a todos. Um coração misericordioso sabe ser um refúgio para quem nunca teve casa ou perdeu-a, sabe criar um ambiente de casa e de família para quem teve de emigrar, é capaz de ternura e compaixão. Um coração misericordioso sabe partilhar o pão com quem tem fome, um coração misericordioso abre-se para receber um refugiado e o migrante. Dizer misericórdia a vocês é dizer oportunidade, é dizer amanhã, é dizer compromisso, é dizer confiança, é dizer abertura, hospitalidade, compaixão, é dizer sonhos (...). (WOLTON, 2018, p.194)

Francisco, na Jornada Mundial na Polônia, inspirado pelo ambiente e o fervor da presença da juventude, recorda ao mundo os efeitos benéficos da misericórdia, elementos que superam o egoísmo. E, em 2020 o pontífice enfatizou que fechar os olhos diante do sofrimento alheio assombra a humanidade.

A misericórdia não abandona quem fica para trás. Agora enquanto pensamos numa recuperação lenta e fadigosa da pandemia, é precisamente este perigo que se insinua: esquecer quem ficou para trás. O risco é que ainda nos atinja um vírus ainda pior: o da indiferença egoísta. (...) Esta pandemia, porém, lembra-nos que não há diferenças nem fronteiras entre aqueles que sofrem. (...) Aprendamos com a comunidade cristã primitiva, que recebera misericórdia e vivia usando a misericórdia, como descreve o livro dos Atos dos Apóstolos: os crentes ‘possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um’ (At 2, 44-45). (FRANCISCO, 2020, p. 54)        

A misericórdia de Deus alcança a todos, este tema é sugestivo em todas as exortações do Papa Francisco, mostrando a todos os seres humanos sua vulnerabilidade. Deste modo, a igreja é chamada a despertar seu olhar e viver a misericórdia sempre de acordo com a justiça, para com os fragilizados, pobres e distanciados da fé e da força de Deus. E ao encerrar este tema percebe-se também na fala do Papa um clamor para a justiça que está intrínseco no tema da misericórdia, pois a força para vivê-la é a justiça, é o amor. É o amor que dá vida a este “hospital de campanha”. que é a igreja. 

O Papa Francisco, com a imagem que à primeira vista, pode receber um contra-ataque, fala da igreja como ‘hospital de campanha’. É uma metáfora que traduz o estilo de Jesus expresso na parábola do Bom Samaritano, que São Paulo VI fez própria para exprimir o que quis ser e fazer, com o Vaticano II, a Igreja. (CODA, 2019, p.86)

No “hospital de campanha” de Francisco a misericórdia é um pilar fundamental para a compreensão de seu contexto de reforma e desta maneira ele se torna promotor e concretizador da nova evangelização. Não que o Evangelho tenha se tornado obsoleto, pois este sempre é Palavra viva, mas o Sumo Pontífice recorda a todos que promover a verdade e a beleza de Deus refletida no ser humano como dom da Criação é o que a igreja sempre se propôs a fazer, mas talvez tenha desviado seu olhar, em algum momento, diante de tanta falseabilidade. Eis a necessidade de caminhar, de sair e de testemunhar a misericórdia.

2.4. PARA SAIR É NECESSÁRIO REFORMAR

O título desse subtítulo sugere o Papa Francisco como motivador de uma igreja em saída, e concretizador do que foi pensando no magistério eclesial no pós-vaticano, em que se propõe uma nova maneira de evangelizar, uma nova evangelização.

São João Paulo II, em 1999, já recordava a todos, da igreja, para o desejo desta nova evangelização. Desde muito tempo, atentava-se para a necessidade de o Evangelho ser propagado a partir de novo método e com muito ardor. Era algo que ele já tinha pensado e afirmado na XIX Assembleia do Conselho Episcopal Latino-Americano, em seu discurso de abertura no Haiti no ano de 1983. 

A comemoração do meio milênio de evangelização terá pleno significado se for um compromisso vosso, como bispos, junto com vosso presbitério e fiéis, compromisso não de reevangelização, mas, sim, de uma nova evangelização. Nova em seu ardor, nova em seu método, nova em sua expressão. (JOÃO PAULO II, 1983, p.3). 

O tema teve um reforço teórico com o papa polonês e na Exortação pós-sinodal Ecclesia in America e foi estudado com empenho pelos seminaristas deste período em toda a igreja no Brasil. Em Curitiba, o estudo foi muito motivado pelo arcebispo emérito Dom Pedro Antônio Marchetti Fedalto. O papa polonês percebia as lacunas da história e oferecia pistas de ação para os ministros ordenados e para o laicato na América Latina. Uma nova evangelização a partir da cultura e que buscasse novos métodos, novo ardor e nova linguagem.  

Ao iniciar seu pontificado, Francisco retoma as ideias do Concílio Vaticano II, e busca, à luz dos documentos eclesiais deste evento que marcou toda a igreja visando uma abertura e diálogo com os “sinais dos tempos”, ideias essenciais para seu ministério petrino. Aqui se apresenta um pequeno esboço do que foi traçado a partir de 2013 como elementos fundamentais para uma conversão pastoral e uma igreja em saída.

É uma nova postura pastoral que sugere uma teologia do encontro, algo que é essencial em seu pensamento evangelizador. Há um clamor no mundo todo por novas atitudes que despertem o ser humano para uma cultura de proximidade. Francisco diz à humanidade que há a necessidade de uma nova comunicação que supere a neutralidade das mídias e que motive o cristão para ir às periferias existenciais. A solução para um novo proceder pastoral, para uma nova evangelização sonhada para a igreja do século XXI é uma igreja em saída que é uma proposta inovadora do pensamento do pontificado de Francisco.

O testemunho cristão não se faz com o bombardeio de mensagens religiosas, mas com a vontade de seu doar aos outros ‘através da disponibilidade para se deixar envolver pacientemente e com respeito, nas suas questões e nas suas dúvidas, no caminho de busca da verdade do sentido da existência humana’. É preciso saber se inserir com os homens e mulheres de hoje para compreender, os seus anseios, dúvidas, esperanças e oferecer-lhes o Evangelho, isto é, Jesus Cristo, Deus feito homem, que morreu e ressuscitou para nos libertar do pecado e da morte. O desafio requer profundidade, atenção à vida, sensibilidade espiritual. Dialogar não significa renunciar às próprias ideias e tradições, mas a pretensão de que sejam únicas e absolutas. (Discurso do Santo Padre Francisco para o XLVIII dia Mundial das comunicações sociais, Domingo 01 de junho de 2014)

O essencial se dará em uma nova comunicação para levar o ser humano ao encontro com Cristo, é também uma chave missionária que necessita de uma profunda transformação. E, uma inédita contribuição é a “conversão pastoral”, dentro de seu pontificado e que se torna essencial para a compreensão de uma nova dinâmica e para uma aproximação do outro. Essa aceitação implica em novas mudanças para as pessoas e para as estruturas.

Espero que em todas as comunidades se esforcem por atuar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão missionária que não pode deixar as coisas como estão. Neste momento não nos serve uma ‘simples administração’. Constituamo-nos em ‘estado permanente de missão”. (EG. 25)

Um estado permanente de missão para uma nova visão de eclesialidade, uma conversão pastoral, para favorecer uma nova cultura, a cultura do encontro. A essência do encontro parte da cura das feridas da alma, da superação das inseguranças, dos medos causados, principalmente no caos gerado durante a pandemia do COVID 19, e que muitas outras situações surgiram com dramas existenciais que necessitam de soluções na prática do amor. É um novo paradigma que surge dedicado à humanidade inteira.

No pensamento de Francisco, as “ferramentas” para a construção de um mundo mais justo e fraterno se encontram no interior do coração humano e é necessário um empenho para que todos descubram estas para ajudar o mundo ser melhor. Outros temas também surgirão como chaves neste pontificado, como a ecologia, a família e a juventude chamada à santidade, à paz e à concórdia para os povos. Mas, nota-se que os temas são propostos para uma igreja que caminha, em saída, que testemunha a misericórdia para a promoção de uma cultura do encontro que é uma ideia bem original no magistério do pensamento de Francisco.

Um paradigma que tem de investir, o modo de imaginar e gerir as relações sociais, políticas, econômicas e com um olhar que move dos pobres, dos marginalizados, dos descartados, das periferias geográficas e existenciais, e de guiar e plasmar o desenvolvimento técnico-científico segundo uma lógica determinada pela casa comum. (CODA, 2019, p.93)      

Francisco revelou à igreja, nestes anos à frente da Sé de São Pedro, a concretização não somente de uma nova evangelização como a sonhada por João Paulo II, no Haiti; citada neste artigo, mas também o “aggionamento”, que é uma expressão de João XXIII, que marca o Concílio Vaticano II. Francisco revela em seu modo de pensar um novo paradigma teológico na e para uma cultura do encontro, centrada na proximidade das pessoas e que gera uma conversão pastoral. Esta conversão pastoral tem sua essência na ação misericordiosa de Deus.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Papa Francisco, nos seus quase 10 anos de pontificado, vem atualizando e interpretando os sinais dos tempos, dando lições de sabedoria e continua sendo profeta para anunciar o Reino de Deus e sua proximidade com o ser humano. 

Ele é um arauto da nova evangelização que com seu candeeiro aceso nas mãos, e com seus mais de 80 anos apresenta ao mundo uma chama que não se apaga, acende os “lampiões existenciais” de todos, na humanidade inteira. Na dinâmica da vida nas cidades se percebe uma urgência em os concretizar os apelos do passado. E no pós-Vaticano II uma continuidade de novas visões pastorais, novos olhares para uma Nova Evangelização. É um desafio este tema da continuidade e releitura do passado para serem trabalhados, devido a tantas lacunas e as mudanças nestes novos tempos. O cenário urbano exige muito, pois se transforma a cada dia, e a vida rural passa a ficar muito distante. Esta era vista com mais simplicidade e as relações humanas mais intensas. Para a superação deste quadro de mudanças há necessidade de novas atitudes e coragem profética para a promoção da vida, do amor, e uma nova catequese revelando um Deus misericordioso.

O cenário atual, é ambíguo, marcado por luzes e sombras. Entre outras características, pela emancipação do sujeito, a pluralidade, o avanço de novas tecnologias que permitem cuidar melhor da vida, entre outros. Consta-se por outro lado, a globalização, pelo secularismo, pelo relativismo, pela liquidez, pelo indiferentismo. Neste contexto, a igreja enfrenta um desafio que está diretamente relacionado com sua missão: a transmissão integral da fé no interior de uma cultura, em rápidas e profundas transformações, que experimenta forte crise ética com a relativização do sentido de pecado. (CNBB, 2019, p.27)

Na evangelização no Brasil há a necessidade de novas atitudes, como o Papa Francisco tem oferecido ao mundo em seu testemunho pastoral, diante da pluralidade e a mentalidade secular instaurada na sociedade. Os elementos aqui apresentados são transversais, se entrelaçam e revelam soluções que não são originais, mas ações que provêm da fonte do Evangelho, com sua novidade, em uma dinâmica que é necessária, principalmente nestes tempos de pandemia e pós-pandemia. 

Desta maneira, a Nova Evangelização e as relações interpessoais precisam ser pensadas a partir de uma teologia do encontro, na proximidade do ser humano com Deus e o seu próximo. Ele ainda convida toda a igreja para que adotem atitudes positivas e que tenham coragem e ousadia para manter viva a esperança.

Quantas vezes, nós cristãos, somos tentados pela desilusão, pelo pessimismo... Às vezes abandonamo-nos à lamentação inútil ou então permanecemos sem palavras e nem sequer sabemos o que pedir, o que esperar... Mas vem de novo em nossa ajuda o Espírito Santo, suspiro da nossa esperança, que mantém vivos os gemidos e as expectativas do nosso coração. O espírito vê por nós além das experiências negativas do presente, revelando-nos desde já os novos céus, e a nova terra que o Senhor continua a preparar para a humanidade. (FRANCISCO, 2018, p.54)

Com esperança e alegria, Francisco testemunha a presença do Reino de Deus no mundo com o dom da misericórdia divina desafiada em se tornar cada vez mais um hospital de campanha e aberto para o mundo inteiro. Este é um pontificado de esperança, de uma nova primavera na igreja para superar o inverno do esquecimento do que a igreja sempre se objetivou: curar as feridas físicas e as da alma com alegria de  anunciar a ternura de um Deus bom e compassivo. Os passos que Francisco oferece são importantes para a reforma da igreja em sua estrutura humana e espiritual que faz gerar a alegria e felicidade. Neste sentido, a reforma de Francisco continua a lembrar a humanidade toda que “Deus faz crescer as suas flores mais bonitas no meio das pedras mais áridas” (FRANCISCO, 2018, p.77).

Esta última frase é muito adequada para concluir esta reflexão pois reforça a esperança que o magistério do Papa Francisco transmite à igreja, sua reforma se encontra na alegria pelo anúncio do Evangelho, em meio às dores. Esta esperança é suscitada em um” novo céu e uma nova terra” (Ap 21, 1), muito própria para levar os cristãos a testemunharem a pedagogia da ternura de Deus em um mundo que precisa de novos protagonismos na pós-pandemia, que assola a humanidade inteira neste tempo. Uma “igreja em saída”, que luta para que o amor sobreviva em todos os âmbitos, até mesmo nos que são desfavoráveis. Os tópicos aqui apresentados não se esgotam, pois o tema é amplo e a reflexão diante de tantas crises que a humanidade vem sofrendo aspira esperança de caminhada e que todos saiam e testemunhem uma igreja samaritana e misericordiosa.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1]Alteridade (a.) é um conceito que pode ter várias acepções. Em seu sentido básico, podemos compreender a. com a relação como diferente. Ou seja, a percepção de que nenhum ser humano é isolado, e apesar de individuo único, se faz em relação constante com o outro. O “eu -individua” só se constitui a partir de sua interação com o outro. Esse “outro” é o mesmo tempo aquele que é igual e diferente. A consciência da diferença é que possibilita a transformação e a construção do próprio ser.  (PASSOS, João Décio; Sanches Wagner Lopes. In Alberigo, G. Dicionário do Concílio Vaticano II, 2015.p.13)

[2]  Segundo Joao Batista Libanio, o método hermenêutico é: “A dúvida, a suspeita, a crítica bateram as portas da pretensão objetivista e empirista da ciência. A experiencia científico exemplar máximo do dado objetivo, é envolvida pela suspeita hermenêutica e ideológica. Hermenêutica, ao afirmar que não há puro dado. (LIBANIO, 2011, p. 74).  Libanio nos mostra que o método hermenêutico sugere sempre interpretação, o método foi muito usado no Concilio Vaticano II e também aplicado nas reflexões atuais do Papa Francisco.