O “conflito” da Metafísica da realidade de Xavier Zubiri (Re)abrindo o horizonte intramundano    
The metaphysics “conflict” of Xavier Zubiri’s reality (Re)opening the intramundane horizon    

José Fernández Tejada*
Matheus da Silva Bernardes** 
 
*Doutorado em Filosofia pela Universidade Gama Filho. Atualmente é professor do Centro Universitário Augusto Motta Centro Universitário Augusto Motta (UNISUAM).
**Mestrado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção. Contato: matheus.bernardes@puc-campinas.edu.br  
 

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Resumo

O pensar e a Filosofia criaram uma arena de discórdias no lugar de uma ágora na polis mundial. A sociedade em crise se digladia inventando “novos saberes científicos”, que se fundamentam, porém, nos mesmos princípios conceituais que criticam, pretendendo enterrar a Metafísica. A Fenomenologia e a Física Quântica começaram a usar o método descritivo, deixando em segundo plano o explicativo; a experiência humana é anterior aos conceitos e às teorias. O século XX foi uma época de grandes interrogações, invenções e progresso, mas também de guerras e desigualdades. Xavier Zubiri, que viveu nesse século inseguro e criativo, não se limitou a repetir ou anexar saberes concipientes; ele teve a inspiração radical de que a realidade é anterior ao ser e identificou, como raiz da problemática de seu tempo, o dualismo da realidade humana e das formas representativas do real; na tentativa de enriquecer a essência, surgiram formas representacionais e subjetivas. Em sua inspiração, o filósofo espanhol, juntamente com as Ciências, provocou o giro da Filosofia concipiente: das ideias para o real, da representação do real para sua apresentação; ele abriu passo para um saber metafísico do real num caminho senciente apontando um horizonte intramundano, real e senciente do qual o ser humano não devia ter saído.      

Palavras-chaves: Saber; Metafísica; Zubiri; Saberes representativos e apresentativos; Horizonte intramundano 

Abstract

Thinking and Philosophy have created a discord arena instead the agora in the global polis. The society in crisis fought off inventing “new scientific knowledges”, but they still have the fundaments on the same conceptual principles they criticized trying to bury the Metaphysics. Phenomenology and Quantic Physics started using the descriptive method leaving in the background the explanatory one; human experience is before concepts and theories. The 20th century was a time of great questionings, inventions, and progress, but also wars and inequalities. Xavier Zubiri lived in that insecure and creative century, did not just repeat, or append conceptive knowledges and identified, as root of his time’s problem, the dualism between human reality and the representative forms of the real; attempting to enrich the essence representational and subjective forms came about. He had the radical inspiration that reality is before being. In that inspiration, along with Sciences, the Spanish Philosopher provoked the turning point of conceptive Philosophy: from ideas to real, from representing the real to presenting it; he opened the path to a metaphysic knowledge of real in a sentient way indicating an intramundane horizon, real and sentient where man should not have left from. 

Keywords: Thinking; Metaphysics; Zubiri; Representative and presentative knowledge; Intramundane horizon 


[...] Os filósofos são homens que não estão de acordo, mas no fundo se entendem entre si. E esta unidade estranha entre entender-se e não estar de acordo em nada é o que, positivamente, constitui um conflito. Eu quis desenhar diante de suas mentes esse conflito em que estamos submersos – um conflito do qual não se pode sair por combinações dialéticas, mas pondo em marcha, cada um dentro de si mesmo, o penoso, o penosíssimo esforço do trabalho filosófico. (CLFCI, p. 259-260) 

Introdução  

Possivelmente, já ouvimos falar sobre a “morte da metafísica” e que os “saberes humanos” são insuficientes, quando não inúteis, para uma vida melhor. O que está acontecendo com os filósofos – mas também com os cientistas e com o povo em geral – para que duvidemos da Metafísica ou queiramos enterrá-la quando nos perguntamos por uma sociedade melhor? Por que essa estranha preocupação no moderníssimo mundo que hoje tenciona viver em Marte? Mudaremos ou fugiremos todos da Terra para morar nas nuvens? O mundo e o ser humano precisam da Metafísica? 

Se a resposta à nossa pergunta é não, certamente temos nos emprenhado em coloridas sabedorias sem questionar os sábios e os saberes. Como instigar a busca humana para dar conta do ser humano se não temos o desafio de um pensamento mais radical? No que ele consiste? Será que os seres humanos mesmo “não concordando em nada” devem viver nessa discórdia sem saída e estéril? 

O efervescer da Ciência desde a modernidade e, em especial desde a metade do século XIX, teve que substituir tal pensamento retrógrado, surgido há mais de dois mil anos na Grécia e na Índia. Parece que esses sábios metafísicos seriam uma espécie de astrólogos ou adivinhos, possessores de “autoconhecimento”, capazes de ver o futuro. Por que “tanta sabedoria” para preocupações inúteis? 

Sempre nos deparamos com a crise do Pensamento, quando queremos nos entender e melhorar. Entretanto, sempre nos queixamos da crise e nos acomodamos num “deixa pra lá”. Para que pensar se em nada podemos intervir. Temos que seguir, portanto, chorando ou nos alienando. Esqueçamos toda pretensão teorética e nos ocupamos com que precisamos no momento. Fugimos de um pensamento confuso para uma solução urgente oferecida por um saber imediato. 

Teremos o futuro da Ciência ou da humanidade nesse saber imediato? Será que estamos no meio de um conflito humano incorrigível, por isso de discórdias e de desavenças das quais temos que nos desfazer, ou seja, enterrar a Metafísica? Qual é a encrenca diante das perguntas que sempre fazemos a nós mesmos diante das coisas? Os animais se fazem perguntas? 

Parecera que chegamos à conclusão de que o ser humano é uma criatura malfeita, derrotada e que poderá ser destruída. Mas, como seguir na vida desprezando o que ela nos legou? Teremos que transformar o humanismo em roboticismo e em transhumanismo? Desse modo, ficaríamos livres de vez do peso metafísico que vem do além afinal somos terrestres e não ET’s. Ainda que a humanidade possa ser um projeto malfeito, nos aproveitamos hedonisticamente de suas possibilidades para viver. O Estoicismo e o Relativismo de milhões de formas seriam a melhor posição. Tudo é descompromisso, porque somos provisionais; tudo é questão de liberdade de expressão. 

Como conseguimos tanto bem-estar e avanços tecnológicos? De onde surgiram? Poderemos viver sem eles? Poderemos prescindir do ser humano que os alcançou para seu uso? Poderemos viver sem o ser humano, sem o que somos? É melhor, então, que a Metafísica seja enterrada e que nos deixe em paz para seguir a vida; basta-nos o dia a dia. Mas de que vida estamos falando? Quais sãs as possibilidades humanas dessa vida? 

Se a resposta à nossa pergunta inicial é sim devemos avaliar e deliberar afirmando que nela se joga a vida, a direção e realização da humanidade. Mas, o ser humano precisa da Metafísica? As culturas de povos originários e dos povos orientais têm algum saber, alguma Metafísica. Mas eles possuem os mesmos problemas do pensamento ocidental oriundo dos gregos? 

Se reparamos na história, nos surpreenderemos do crescimento humano desde as pinturas das cavernas até os nossos arranha-céus e computadores quânticos; orgulhamo-nos dessas proezas. Com os algoritmos, aprendemos a guardar e manipular milhões de conhecimentos, mas para que isso se a humanidade está para acabar? 

O ser humano surge e sempre esteve no meio das coisas; também as admira porque se sente habitante no meio delas. O seu interior inquieto cobra sabedoria para se realizar. Sim! Sempre partindo de dentro dele. A história, também dentro da reflexão filosófica, sempre foi uma tentativa na busca dessa superação humana, não simplesmente material de pura evolução, mas de uma apropriação insuficiente. Os seres humanos sempre se sentiram surgidos da terra e não para morar além dela, ainda que levados por essa força contemplavam o firmamento das estrelas, que os acolhia. Sempre perceberam alguma ligação enriquecedora e especial com as coisas: do ser humano consigo mesmo, com sua terra e com universo, seu oikós. O ser humano sempre se sentiu em diálogo com o firmamento. “Não somente o meio tem um caráter ecológico, senão que ademais tem um caráter de biosfera. Porque a vida se difunde e se dispersa por todo o planeta” (EDR, p. 170). 

Assim, foram surgindo muitas respostas e costumes culturais, religiosos diferentes e aparentemente contraditórios. Porém, buscando sempre uma explicação e uma ligação para viver e seguir crescendo. A sabedoria do ser humano é a energia e a força da mente de todas e todos. A resposta que procuramos é uma religação do ser humano consigo mesmo. Graças a essa tarefa obrigatória e livre, os seres humanos foram descobrindo meios e lugares de vida pelas artes, mitos, religiões, ciências e filosofias, e formas de conviver procurando o bem, o bom e o belo para a humanidade, tentando realizar a polis global, sem descartar a polis celestial. 

Poderemos renunciar a essa eterna busca substituindo-a ou nos resignando com os saberes encontrados? Será que o problema desesperante da experiência humana ou dos caminhos trilhados não provém da inteligência desviada, das tentativas apressadas, das vias urgentes e nem sempre bem escolhidas e refeitas? Será que desenvolvemos apenas sabedorias representativas dessa contemplação da vida, do universo e do próprio ser humano? 

Por que nos perdemos em algumas formas da sabedoria e ficamos confusos e até duvidando de nós mesmos nesse imparável caminhar da humanidade? Por que teimamos em nos conhecer representando nosso surgir humano dentro do horizonte do movimento grego e do nada da modernidade, já experimentados como insuficientes? Por que não nos arriscamos em no verdadeiro horizonte do homem real? 

1. O conflito de Xavier Zubiri com o saber metafísico: “Não se pode sair por combinações dialéticas” 

É verdade que X. Zubiri não se preocupou com filosofias segundas. Teria se desligado do ser humano e de sua sociedade? Não! Sua temática desde início foi: Natureza, História, Deus, isto é, a experiência radical e apresentativa do ser humano; não uma experiência entitativa e fragmentada, representativa. Buscou mediante uma Filosofia primeira os fundamentos para o viver humano, porque identificou um grande desvio da fundamentação do “saber pensar”. 

J. Conill, pesquisador do pensamento zubiriano, indica que podemos encontrar traços dessa busca eterna no problema metafísico, no meio da confusão da morte da Metafísica, indicando a radicalidade do pensamento filosófico. Embora, tenhamos consciência de que essa busca imperiosa não pode ter uma linguagem comum, concordamos em sua urgência, mesmo que possamos nos perder na empreitada. 

[...] A crise da metafísica tem introduzido um processo de transformação profunda que impede sua morte, como, também, sua restauração. Não se trata, pois, de regressar a velhos sistemas metafísicos, nem tampouco de criar outros. A transformação da metafísica não conduz, a meu juízo, senão a reconhecer [... que] no pensamento contemporâneo persistem traços e pretensões imprescindíveis, aos que devemos chamar de “metafísicos” pelas suas peculiares características: devemos chamá-los “metafísicos” porque conservam a marca da filosofia primeira e da teoria da realidade. (CONILL, 1998, p. 07-08) 

Cansamos de ouvir sobre a morte da Metafísica durante a crise da razão moderna e pós-moderna; unidos e eufóricos com as Ciências e o progresso, cantamos aos sete ventos sua morte e seu enterro. Com esse enterro, estaríamos livres de todos os entraves intelectuais e humanos? Construiríamos um mundo melhor? A saída seria construir nosso mundo no horizonte antimetafísico. Como pensamos que a Metafísica da inteligência seguida por todos, não servia mais, entramos em um pseudo-horizonte glamoroso de relativismo de princípios e de fundamentos insuficientes, de teorias e conceitos soltos, numa orgia mística de saber sofístico. 

Nesse ambiente confuso, efervescente e atritante, viveu X. Zubiri (1898- 1983). Quando já se falava sobre a importância das partículas elementares para o desenvolvimento, ele se perguntava: para que serve a Metafísica? Ela ainda tem algum valor diante das perguntas últimas do ser humano e da sociedade? Ela se desviou? Para responder era preciso encontrar a justificação da inteligência, que estaria fora e além de nós ou dentro das coisas e do ser humano? 

Essas interrogações agitadas reinavam entre filósofos desde antes do século XX. Nem todos se debruçaram sobre esse desafio com a mesma dedicação e zelo intelectual. Tivemos pregadores de todas as preocupações e gostos intelectuais. Entretanto, X. Zubiri não aceitou participar dessa lamúria e leviandade; não se uniu a esses coros fúnebres de confusa despedida. Ele pesquisou e elaborou a possível luz da inteligência humana. Será que nessa rara procissão do saber metafísico estaríamos encerrando nossas possibilidades e chances de nos realizarmos como pessoas no mundo real? 

Deparamo-nos com uma esperança inédita da proposta zubiriana: a realidade é anterior ao ser. O filósofo espanhol teimou e confiou em sua inspiração. Todavia, ele não teve pressa para cantar soluções urgentes só para agradar. Nossa realidade pessoal é anterior a nosso ser e existir, pelo menos, assim é apreendida por nós, que nos sentimos implantados entre as coisas para enfrentar o caminho de nossa realização. Não somos jogados no universo e deixados ao desdém. 

X. Zubiri vive essa dúvida desnorteada da Metafísica em seu país, a “España invertebrada” retratada por M. Unamuno. O povo espanhol estava necessitado de um novo Dom Quixote de la Mancha e de seu companheiro Sancho Panza; ansiava pela Metafísica rigorosa de F. Suárez para enfrentar a situação. Como reerguer sua terra nesse quase abismo? O caminho proposto por J. Ortega y Gasset foi a continuação desse espanto cruel dos espanhóis: “la concoja” de M. Unamuno; embora também tenha indicado uma saída através da germanização pela efervescência intelectual de Alemanha. Assim transmitiu a seu discípulo X. Zubiri; viu no jovem espanhol o talante intelectual de enfrentar o problema radical de filosofar que ele mesmo perseguia. Presenteou-lhe com um original do Ser e o Tempo de M. Heidegger apontando um caminho aberto a desbravar. 

X. Zubiri estudou três anos na Alemanha, mas não seguiu o conselho de estudar somente com M. Heidegger; passou um ano com E. Husserl, a quem vinha investigando e questionando desde sua tese doutoral. Sempre repetia em suas aulas: era preciso aprofundar na radicalidade das coisas, o que a Fenomenologia pura pretendia. Por outro lado, X. Zubiri, pelos seus estudos sobre as fenomenologias incluindo a do próprio E. Husserl, já tinha a clareza que, desde 1920, caíram no Idealismo, como o de G. W. Hegel e tantos outros, destacando a consciência-de e permanecendo na objetividade-de. G. W. Hegel nunca se perguntou filosoficamente pela realidade; sua solução foi concebê-la. A inspiração levantada pela volta às coisas da Fenomenologia ficava de novo no ar, porque acabava privilegiando o método da explicação, de fora para dentro, e não o método da descrição, de dentro para fora. 

X. Zubiri se entusiasmou com E. Husserl, porque ele se perguntava, humildemente, sobre o poder das coisas como os gregos. Da mesma forma, X. Zubiri perseguia e entendia que deveria existir uma Metafísica do ser humano, o que o conduz à busca da realidade anterior ao ser. 

Em seguida, estuda com o jovem M. Heidegger para resolver suas dúvidas e encontra avanços para sua inspiração e elaboração até o interrogante ser esquecido dos gregos. Contudo, ele já tem uma inspiração própria: a realidade é anterior ao ser. Ele, formulará mais tarde, e com clareza, que o mundo se encontrava diante de quatro substantivações: o tempo, o espaço, a consciência e o ser; no ser se resumiam todas as falsas substantivações que a Metafísica foi propondo, mas deixando sem encarar a realidade das coisas. M. Heidegger se fechou no ser e não conseguiu desentranhá-lo. 

Assim, o jovem filósofo espanhol enfrenta o oceano confuso da Filosofia dentro do horizonte da Metafísica do ser que não apontava soluções – nem pelo movimento, nem pela niilidade – mediante racionalidades que são substituições e substantivações dos modos de inteligência. A Filosofia, nos diz X. Zubiri, no final de sua última etapa estava presa, por um lado, à ideia de essência e substância e, pelo outro, a uma inteligência reduzida ao juízo; o produto dessa Filosofia foi uma Metafísica do ente, do fundamento metafísico além do mundo, além das coisas reais. Foi a entificação da realidade e do próprio ser humano. 

A humanidade ficou andando com os pés nas nuvens ou com a cabeça na terra. Como podia dar certo se nos obrigaram viver patas arriba? Como o ser humano poderia ser reduzido ao ente ou pior a um resíduo, se é ele quem faz as perguntas às estrelas? Essa preocupação filosófica, e por tanto humana, era o substrato e o fundamento da inquietação de X. Zubiri sobre a pessoa em todos os momentos de trabalho filosófico; o que ele levou a cabo desde Naturaleza, Historia, Dios (1942) até El Hombre y Dios (1983). 

Dentro desse desafio, o autor buscou nas Ciências, em plena renovação, alguma luz para ver o problema com mais nitidez. As Ciências que discutiam o determinismo da Física tradicional tiveram a W. Heisenberg que propôs o Princípio de Indeterminação. X. Zubiri, nesse sentido, mostra que “a realidade, porém, com que se mede o valor das aproximações práticas não é algo independente de nossa observação, mas o limite estatístico delas: o limite no sentido de Bernouilli” (NHD, p. 320) e a Física Quântica põe em xeque o fracasso da razão, já questionado por L. Wittgenstein. “Mas, uma exigência da evolução mesma das ciências, que começou com Einstein e chegou aqui ao seu grau máximo: a subordinação da teoria à experiência” (NHD, p. 321). O filósofo espanhol dirá mais tarde em seus cursos: as estrelas não existem nos livros de astronomia; o desafio humano é continuar contemplando as estrelas, porque estão no universo com parte do fundamento da vida humana. 

Todavia, X. Zubiri não parou nas Ciências exatas, buscou elementos nas novas Ciências humanas, se abrindo também à Psicologia experimental e à Antropologia. Ainda vê a necessidade de estudar a linguagem filosófica para saber como expressa as coisas, como acusa (categorias) as coisas. Debruçandose sobre a Etimologia, se adentra na Filologia e descobre em outras línguas, como as semíticas, estruturas linguísticas diferentes: as estruturas constructas, distintas das estruturas preposicionais das línguas indo-europeias. Esses idiomas constructos manifestam, com menos elementos, o que as coisas são por dentro e possuem, portanto, uma estrutura mental e gramatical diferente, o que podemos apreciar também nos idiomas indígenas; expressam-se mais próximas da experiência da captação das coisas. Como, então, cuidar da pessoa imersa na sua realidade? Se a Ciência mudou porque estava insatisfeita, a Filosofia também deve mudar, assim como nós. 

X. Zubiri se preparou para dar conta da teimosa inspiração; iniciou duvidando daquela Metafísica vigente, porque nos levou a horizontes estranhos. Espelhou-se, então, em Sísifo, que desejava escalar a ladeira conceitual das dificuldades construídas pela Filosofia e pelas culturas; alcançará, depois de muitas quedas, a contemplação de um novo horizonte diametralmente oposto ao do ente (movimento e niilismo), não um horizonte de dissolução, nem de restauração. 

Agora, X. Zubiri será um novo Sócrates, como expõe em Naturaleza, Historia, Dios, caminhando em outro horizonte, que todos podem até entender, mas dificilmente aceitarão. X. Zubiri superará a Metafísica da inteligência para se adentrar na Metafísica da realidade. Está aberto o horizonte intramundano, não mais o da mobilidade grega e o da nada da Modernidade; nosso horizonte é o intramundano. 

2. Onde começa o “saber metafísico”? 

Referindo-se aos antigos sábios que se faziam perguntas sobre o universo e sobre o ser humano, X. Zubiri diz: “quando se fala desses homens não me refiro a que serão uma espécie de metafísicos ambulantes” (EDR, p. 218). E ainda, quando pergunta se pode haver outros mundos e outras realidades, responde: “não pensem que o metafísico tem uma soberba satânica de saber, já de antemão, tudo quanto há que saber da ordem transcendental, e que o único que necessita é aplicar aos pobres homens, que século trás século quebram a cabeça para saber o que é a luz, ou que o ácido nucleico. Não! Isso é quimérico” (EDR, p. 244). 

Repetimos com X. Zubiri diante do suposto enterro da Metafísica, do menosprezo dos metafísicos e de seu papel e lugar na sociedade: eles não são metafísicos ambulantes procurando falsos moinhos do vento produzidos pelos gritos humanos. Tampouco possuem uma sabedoria satânica de tudo quanto há da ordem transcendental para aliviar os sofrimentos e desvios humanos. São mulheres e homens conseguem sentir o problema humano e da inteligência de um modo muito especial: o modo senciente comum a todos os seres humanos. Não têm vergonha, senão um singular atrevimento de seguir buscando, uma e mil vezes, no próprio ser humano a presença da luz que ilumina. 

Sabedoria é saborear e degustar o que as coisas são; o sábio não sabe de antemão o que está fazendo, ele deve saborear para falar e dialogar; ele sabe sabendo, em contato com o universo e consigo mesmo. É no contato com as coisas, como todos nós fazemos, que o sábio vai sabendo e aplicando seu saber; tem que ir apreendendo o real em sua realidade para saber algo. O sábio não se faz só entendendo os conteúdos das coisas, mas a respectividade de umas coisas com as outras porque elas são transcendentais: formamos um campo de realidade. Assim, estamos no mundo; não jogados, mas situados no meio das coisas, delas temos que viver e dar conta. 

A sabedoria surge da maneira como as apreensões de cada dia são sentidas e levam a descobrir o que são e como são; não surge somente do sentido das coisas, que vem depois, mas da respectividade das coisas em sua realidade. Os seres humanos não são apenas coisas concretas ou indivíduos isolados, mas são indivíduos que exigem a alteridade radical e real do universo e dos demais. O sábio ajuda a contemplar a manifestação dessa relação constitucional do universo e do próprio ser humano. O que nos une e dinamiza é o fato de que somos reais e, por isso, devemos nos apropriar das possibilidades diante do universo. 

Como viver na realidade? X. Zubiri se questionava, em 1935: “o sentir é a realidade primária da verdade [...], como o sentir assegura a posse ciente da realidade?” (NHD, p. 83-84). Dessa forma, os fatos refletidos até aqui nos levam a perguntar sobre a necessidade do sentir para o saber humano, físico e metafísico. De quem é o saber e onde ele se fundamenta? Onde está a estrutura do saber como início do surgimento humano em relação com o universo, com a natureza e com os demais? Em que consiste o desenvolvimento do saber? O saber é limitado e pode se perder? 

Na busca desse mistério humano, X. Zubiri chega a afirmar, nas últimas décadas de sua vida, que a matéria é viva no gigante embate com G. W. Hegel em Estructura dinámica de la realidad. “Não cabe dúvida de que a matéria sente. Naturalmente. Estamos habituados a um conceito puramente geométrico da natureza, que deriva de Descartes, e no máximo a um conceito mecânico da matéria, que predominou até os últimos anos do século XIX” (EDR, p. 175). Que é essa vida do universo e do ser humano? Como ele usa seu saber para se orientar e se dirigir no universo? 

Esse saber, que reclamamos, parece ser hoje pura especulação – assim o questionamos –, um emaranhado de teorias artificias, e de um sem-fim de conceitos, um ensimesmamento. Não procuramos apoios e princípios sólidos no real, mas simplesmente soltos ou inventados. X. Zubiri enxergará, no estudo e na crítica do saber grego, o problema dessa especulação através dos séculos; ainda que diferente, mas o problema mantém alguma semelhança com a especulação volátil de hoje sem compromisso com as coisas e nem com o ser humano. Como podemos sentir as coisas se as reduzimos a meios mecânicos e sensórios? 

O que é e o que significa a especulação do ser humano dentro do universo? Como foi nossa especulação ao longo dos séculos? Parecera que os satélites e as naves espaciais mudaram nossa especulação dominada até então pela técnica. É verdade que muitos cientistas técnicos continuam se maravilhando dessa amplitude e profundidade da especulação do universo e da Terra, como A. Einstein quando veio para o Brasil em 1935. A especulação, como admiração e contemplação do que somos dentro do universo, é necessária para a Ciência, entendida e acompanhada em continuidade da realização da humanidade e das sociedades. Assim, brotaram a sabedoria e a Ciência, o que hoje chamamos de teorias. 

A especulação é fruto do olhar humano para as coisas, como observador, participante e integrante; assim é e assim nos diz a experiência, é o que essa admiração reflete sobre o espelho do universo e do próprio ser humano. O enfrentamento dessa admiração é o que chamamos de especulação originária. Não somos uma força, uma dynamis, como interpretou Aristóteles; por outro lado, o Estagirita mesmo nos fala sobre o érgon, a energeia pura como a primeira apreensão da especulação grega e na qual X. Zubiri se aprofundará. A energeia do real, como poder do real, gera nossa força vital sempre em andamento. 

O filósofo espanhol se debruçará sobre esses saberes especulativos, que apontam respectivamente o universo, a Ciência e a Filosofia, como saber metafísico. Entende que neles está a raiz de toda discussão sobre a vitalidade da especulação e da admiração humana. Entretanto, ele identifica em sua elaboração o perverso dualismo corpo e mente através da logificação da mente e da entificação do real. E expressa que essas formas especulativas são precisamente o problema da inteligência; quer entendê-las e criticá-las para fazer sua proposta. 

Desse modo, o problema que nos ocupa está em quase todos os textos, cursos e livros seus como se fosse um denominador comum que o mantém pensando. 

Entretanto, as obras de Zubiri nas que nos apoiamos são Natureza, História, Deus de 1942, Sobre la esencia de 1962, Estructura dinámica de la realidade de 1968, Los problemas fundamentales de la metafísica occidental de 1970 e Inteligência e realidade de 1980. Assim, poderemos observar todo conhecimento do autor e o direcionamento transformador de como entendeu o problema da inteligência, de onde sai todo o saber. 

O sabor do que vê e apalpa, a sabedoria do ser humano em todos os cantos da terra, é algo nosso, “especulação (admiração) da mente de todos os homens”, porque desde dentro olha para fora; o problema da inteligência é de todas e todos. Quando o ser humano se sente situado na Terra apreende que ele é real dentro de um universo real. E aí começa toda admiração e sabedoria: desde as cavernas, todas as culturas e todas as possiblidades atuais do saber. Podemos reafirmar o que X. Zubiri diz da Filosofia: nós não possuímos a sabedoria, ela toma conta de nós e nos possui. Mas como surge e como nos possui? O ser humano não tem uma tekné externa para saber e se dirigir, ele a tem dentro de si: sua inteligência é parte constitutiva de sua realidade. O problema é como ela realiza sua tarefa. X. Zubiri buscará uma forma para se expressar e nos orientar; aqui começa o problema da inteligência: escolher uma forma que acuse (categorias) a original especulação de forma representativa ou apresentativa. Esse dilema foi o que ocupou X. Zubiri, porque segundo sua experiência – e a de todos – só é possível admirar o que está presente, que nos é atualizado. 

O saber vem de uma admiração de todas e todos e de uma busca constante dessa admiração grávida de realização humana. Ela sempre será o início do saber. O que contemplamos? O que sabemos? Como o sabemos? 

3. A proposta de Zubiri. “Pondo em marcha, cada um dentro de si mesmo, o penoso, o penosíssimo esforço do labor filosófico”. 

Não é de estranhar que Sobre la esencia pareça uma obra hermética e difícil para muitos leitores despreparados. Ela não resolve nada, não promete soluções “metafísicas” e não trata aparentemente dos problemas humanos. É verdade que a Metafísica surgiu como forma suprema do saber humano; foi assim estudada, mas, infelizmente, acabou por se desviar sendo criticada e abandonada. Os gregos centralizaram esse saber no ser, que até hoje nos intriga. X. Zubiri buscou um saber real humano como todos experimentamos dentro de nós. Essa experiência exige que a nossa inteligência encontre novos caminhos. Estamos implantados no real e jamais deveríamos ter saído dele! 

Depois de trinta anos, em 1962, X. Zubiri começa a escalada do Sísifo aos “Andes”, que não foi nada fácil, porque sofreu de uma espécie de loucura, como Dom Quixote pelos entortos que maltratavam a humanidade. Muitos se encantaram com sua loucura, mas não entenderam a invenção daqueles moinhos de vento. X. Zubiri procurou um saber que atualizasse a união do pensamento com a realidade: não um saber representativo, mas apresentativo do real. Por isso, teve que brigar com o gigante Aristóteles depois de ter discordado do mestre Platão. 

X. Zubiri, como bom filósofo, revolve toda história da Filosofia e descobre seus labirintos, motivos e desvios, mas, também, dentro dela, descobre o elo aristotélico com que liga sua inspiração: essência-realidade das coisas, não a essência substancial-subjetual. Se, segundo ele, Aristóteles não acertou foi porque tratou a essência como substância (subjetualidade), deixando sem tratar como o sentir chegava também à verdade. 

Se o estilo e a linguagem zubirianos em Sobre la esencia parecem duros, foi porque seu trabalho de reflexão filosófica foi árduo para entender e seguir a tarefa dos gigantes da Filosofia refletindo a passos lentos e buscando precisão intelectual no pensamento. Envolve-se com os segredos da Linguagem, da Hermenêutica e da Filosofia. Porém, partirá do senso comum, como todos os verdadeiros pensadores, criando neologismos – mais de 120 na obra toda! – para poder expressar o que sua inspiração o forçou a elaborar. Não parará mais nesse sofrido, mas sempre cheio de esperança, caminho de Sísifo. 

O conceito de essência trabalhado por Aristóteles e definido confusamente (hypo-keímenom = sub-stans = irredutível subjetualidade) como a essência substancial é a base das elaborações posteriores, que resumirá nos cinco primeiros capítulos de Sobre la esencia. O filósofo espanhol expressa a preocupação de várias formas com o racionalismo: “a essência é o representado objetivamente no conceito, como tal, é anterior ao fundamento de sua realidade numa triple dimensão: como medida ou verdade ontológica do real, como possibilidade interna do real, como coisa ideal em si mesma” (SE p. 62). Mais adiante indica que “ter confundido aquilo, sem o qual a coisa não pode ter realidade formal, com aquilo sem o qual a coisa não pode ser concebida: este tem sido grave o erro do racionalismo em nosso problema” (SE, p. 73). 

Feita a exposição clara do surgir pujante da Metafísica, X. Zubiri descobre os motivos de Aristóteles para se arriscar ainda mais em suas elaborações posteriores e começa a aproveitar tudo isso, em seu forcejo intelectual, como material inspirador. Depois de um resumo maravilhoso de todo caminho percorrido, inicia sua demorada e abrupta elaboração assentando a primeira pedra sobre a qual gravitará coerentemente toda sua obra: “É realidade tudo e somente aquilo que atua sobre as demais coisas ou sobre si mesmo, em virtude, formalmente, das notas que possui” (SE, p. 104). As coisas são reais e físicas, não inventadas e artificiais por qualquer motivo posterior a elas, não são intencionais. As próprias coisas possuem estrutura suficiente para se determinar, configurar e ter força de existência. As coisas são suficientes de seu (de suyo), de dentro delas porque são reais. A realidade não é essência nem substância, mas substantividade que se apoia em si mesma. Assim, as coisas e o ser humano são realidade, não são substanciais, mas substantividades. Inaugura-se o horizonte intramundano. 

Precisamente para elaborar uma teoria da realidade, que não identifique, sem mais, realidade e subjetualidade, é o porquê tenho introduzido uma distinção até terminológica: a estrutura radical de toda realidade, embora, ela envolva um momento de subjetualidade, tenho chamado de substantividade à diferença da substancialidade, própria somente da realidade enquanto subjetual. A substantividade expressa plenitude de autonomia entitativa (SE, p. 87). 

X. Zubiri está subindo a dura montanha da Metafísica concipiente, mas não está de acordo com suas elaborações racionalistas. Usará seus estudos filosóficos, das Ciências e o domínio da Linguagem, da Semântica e da Filologia para criar e perfilar palavras que apreendam melhor a realidade das coisas. E a razão formal da substantividade é um sistema de notas, que tem suficiência constitucional. 

Sendo assim, o ser humano é um sistema constitucional suficiente “que forçosamente deve resolver por decisão, com vista posta em diferentes possibilidades” (SE, p. 160), que ele mesmo deve determinar por apropriação. 

Para tal empreitada, depois da essência substantiva (não substancial!) ou realidade suficiente, o autor se debruça nas construções linguísticas, culturais, religiosas e científicas. A realidade é única, porém, de muitos modos segundo as notas que possua. E isso até a radicalidade do fundamento último da própria realidade, isto é, Deus. 

Dentro dessa elaboração lenta em Sobre la esencia, do novo conceito de realidade vai tirando algumas conclusões que buscava, que já tinha elaborado durante os cursos orais antes dessa explanação. O ser humano é animal de realidades, não só de racionalidades, embora tenha que se arriscar nelas. E sua inteligência é radicalmente senciente, não concipiente – também seu logos e sua razão. Assim, o específico do entender e do elaborar humano é um sentir intelectivo, porque o homem não é uma realidade dualística e dicotômica, como uma máquina que liga e desliga a contento ou necessidade. 

Não é possível sustentar o dualismo da realidade humana tão entranhado e usado pela Filosofia e pelas Ciências até hoje, mesmo que o neguem. A pessoa é uma realidade aberta precisamente pelo sentir inteligente ou pela inteligência senciente; não é fechada como outros seres que respondem a simples estímulos. O ser humano pode escolher as melhores possibilidades em sua insondável realidade para sua plena realização; ele está imerso na realidade, se surpreende nascido nela, sua inteligência sente a realidade e deve viver dela modesta, porém problematicamente. Ele tem que dar conta da realidade mediante campo aberto pelo logos e pelo movimento da razão. O ser humano tem que se fazer, segundo sua própria realidade. 

X. Zubiri começa a construção de seu conceito de realidade, “formalmente pelas notas que possui”, introduzindo um vocábulo técnico tirado do povo: as coisas são em próprio, de seu (de suyo). Ele explica: “ao falar de ‘notas’ (não no sentido aristotélico ídon = proprium) estou me referindo não somente a estas ‘propriedades’ das coisas, senão a todos os momentos que possui. Incluindo entre eles, que acostumamos falar de ‘parte’ da coisa, quer dizer, a matéria, sua estrutura, sua composição química, as ‘faculdades’ de seu psiquismo etc.” (SE, p. 104). 

Portanto, ante E. Husserl e M. Heidegger afirma, “as propriedades surgem da realidade e se fundam nela; as possibilidades surgem do sentido que as coisas reais têm na vida e se fundamentam em dito sentido; as chamaremos ‘coisas- -sentido’.” (SE, p. 105). Tendo deixado isso esclarecido, X. Zubiri dá mais um passo acunhando coisas-realidade para descobrir o que é realidade. Introduz essa distinção, quando fala de como as línguas constructas captam a realidade, não inicialmente por definição. As notas da realidade são nota-de não em genitivo possesivo, senão estrutural; são respectivas não no sentido gerante, nem modificante, mas reflexivo. E, fica como aliviado dizendo: 

estamos nos esforçando de verdade, por dar uma conceituação metafísica da essência e de suas notas, como momento da substantividade, à diferença do usual da essência como momento de substancialidade (subjetualidade). Por isso, necessitávamos encontrar um órgão conceitual diferente, também do usual; e este órgão adequado nos subministra o estado construto (das línguas). Não se trata, pois, de uma mera descrição ou ilustração linguística, senão de uma estrutura real e física, independentemente das limitações de sua expressão gramatical. (SE, p. 293). 

Segue esse caminho unindo seus discípulos amigos no Seminário de Investigación Xavier Zubiri (1972) até a elaboração Trilogia da inteligência senciente (1980-1983). Nesse diálogo da elaboração de sua inspiração cada vez mais clara, vai caminhar por esse vasto e inédito horizonte que abriu. X. Zubiri e discípulos, no calor e força da mesma fornalha, com o diálogo e o som dos martelos alternados guiados pelo mestre, repetem e melhoram a peça incandescente da inteligência senciente. Foram verdadeiros ourives de um pensamento suficiente e coerente. Assim aquela elaboração dura e rigorosa de Sobre la esencia adquire uma elaboração fluída, clara e pormenorizada. 

Essa é a experiência da qual todos devemos partir e alcançar com rigor intelectual e precisão científica e filosófica. O que poderiam investigar as Ciências e a Filosofia? Quais as formas das estruturas reais e por que nos detivemos nas formas concipientes? Qual a melhor maneira de apreender o real e a realidade das coisas? X. Zubiri busca a forma de realidade de seu (de suyo) do povo e encontra a mesma significação em sua língua materna, o euskera: berez, o que o anima a continuar buscando essa experiência radical de dizer e captar nas línguas e suas estruturas, preposicional ou constructa, as categorias filosóficas necessárias. Não há uma única língua determinada para expressar o esforço filosófico; J. Ortega y Gasset traduziu o significado da palavra alemã Erlebnis (já estudada por Nietzsche) por vivência, hoje usada normalmente por todos os hispanófonos, como pelos lusófonos. 

Por isso, o autor, elabora e recria o sentido das palavras para poder ser coerente com essa inspiração do fundamento da realidade como formalidade de seu (formalidad de suyo): talidade e transcendentalidade do real. A inteligência é senciente porque há apreensão da realidade; não só inteligência concipiente de conceitos e de sentidos, tampouco mero resultado de puros mecanismos biológicos. Na inteligência, porque é senciente, se dá a atualização da realidade das coisas. 

X. Zubiri expressa o modo como podemos captar a realidade presente que se apresenta e se atualiza na inteligência senciente. Toda sabedoria é uma forma de entender o mundo, todavia continuará sendo um saborear. Como pensador e filósofo, X. Zubiri encontra uma formalidade (constitutiva e substantiva) mais adequada e coerente com a nossa experiência para mudar, entender e dar conta da realidade, que sempre será incógnita para o ser humano. Nela está o que somos e a nossa riqueza incomensurável, pois desde que o humano é humano quis entender o mundo e sua vida por de formas de sabedoria; enfrenta-se com as coisas, já que sua inteligência não é uma simples copiadora do real, a tabula rasa dos gregos que tanto criticamos. A admiração do universo como início do despertar para essa tarefa que não pode ser parada foi uma forma radical de entender e viver dentro dele. Os sábios indianos e gregos realizaram essa experiência e encontraram formas de enfrentamento nunca fartos do poder que sentiam da realidade. Poderíamos superá-la? Poderíamos desviá-la? 

A Filosofia resumiu todo esforço especulativo na mens descoberta pelos gregos, primeiramente com as formas de natureza, com o ser, com a essência e a substância. Tiveram que abrir o caminho do movimento do ser para tal tarefa. Em contato com o Cristianismo, a Filosofia experimentou outra forma: o ente como aquele que recolhia todas as formas anteriores. Todos eles estariam resumidos nos conceitos ser, ente e consciência. Entretanto, a dualismo (mente e corpo) iniciada pelos gregos permanecia sem resolução – e continua até hoje! A modernidade inicia com Humanismo a valorização dos sentidos, apenas como sensórios e matemáticos, como instrumentos. E nela se desenvolve a mens encarcerada, que sempre desafiará a realidade. A mens deixa de ser força de um mistério humano sempre a desvendar, convertendo-se em uma forma racionalista- -representacional. 

Assim, foram desenvolvidos os princípios da lógica que se impuseram sobre a grandeza da mente. Essa falta de tratamento conduziu não só ao dualismo mente e corpo, mas também sentir e inteligir. O ser humano tem uma só mente e distinguiria nela duas faculdades, duas forças: uma do sentir e outra do entender. Não é assim que a experiência humana nos mostra. Como já se expressou na década de 1930, X. Zubiri diz: “o sentir é a realidade primária da verdade” (NHD, p. 83). Mas se perguntou: “como o sentir assegura a posse ciente da realidade?”. É o problema do homem e da sociedade, é o problema da inteligência. 

Esse dualismo, segundo Zubiri, foi o grande erro da Filosofia, que se tornou concipiente e impediu a busca do real dentro das coisas, se descolando delas. Dessa maneira as formas de pensar e suas categorias vão se desenvolvendo de forma de representacional da realidade: ideias, tabula rasa, lógica, juízos, conceitos e raciocínios, consciência e inconsciente; hoje também perspectivas e paradigmas. Mas do quê? Assim, a mens vai se separando da admiração do universo e do ser humano. 

O sentir é caminho da sabedoria, caminho para chegar à verdade. Isso foi indicado por Aristóteles – não só a dynamis, também a energia (NHD, p. 88), ele, porém, não esclareceu os termos o que nós tampouco fazemos. Sem o sentir, podemos afirmar que a inteligência se espantaria com o universo e poderia somente especulá-lo e a si mesma; seria seu próprio espelho mantendo a força de especulação da realidade. Caber-lhe-ia representar a realidade no lugar de constituir modos de sentir e apresentar a realidade que está presente. X. Zubiri tem clareza que o dualismo foi o grande desvio do tratamento da inteligência, o que limitou o pensamento à pura representação do real das coisas e à especulação da própria mente. É “o frenesi romântico dessa especulação, [...] obra genial do idealismo alemão de Fichte e Hegel” (NHD, p. 82). “O saber especulativo desenvolveu todo o problema para o lado da verdade, deixando em suspenso, tão somente como propósito firme, a realidade do que é” (SE, p. 83). 

O filósofo espanhol está certo de que a realidade é anterior ao ser, aquilo que possibilita o ser e a existência. Ele insiste ao longo de sua trajetória: a realidade é anterior ao ser em todas as formas clássicas e modernas que adquiriram asas conceituais a partir desse espanto. Assim, X. Zubiri interpreta toda a filosofia; por isso, a estuda detalhadamente e a crítica no desafio para encontrar melhores formas e caminhos para o saber humano. A inteligência senciente será o caminho vivo trilhado, como apreensão, a apresentação e atualização da realidade no lugar de sua mera representação. 

O real está na linguagem do povo, ele o vive: de seu (de suyo), em próprio é elevado por X. Zubiri a linguagem técnica para a Filosofia e a Metafísica. As categorias propostas por ele apontam ao real presente e não primeiramente representado. Só assim daremos mais um passo: o real transcendental e respectivo. 

Para fechar esse tema, esclareçamos as formas da Metafísica da realidade propostas por X. Zubiri, isto é, a realidade como sistema suficiente como formalidade “de seu”. Essa realidade que está nas coisas mesmas, dentro delas e em nós é também conceitual e formal? Não primariamente, porque o real é um sistema de notas que configuram a realidade de cada coisa, independente de como a compreendemos. As estrelas não estão nos livros e nem o ser humano está configurado por qualquer ideia, teoria ou projeto intelectual e política – está nas ruas e praças. Por outro lado, sim é conceitual e formal, porém não de modo concipiente, ou seja, a partir da explicação sempre pura da razão, do juízo e de essências subjetuais objetivistas ou idealistas. A realidade é formal e conceitual a partir de um aprofundamento que transforma a formalidade da experiência humana pelo método da descrição fenomenológica. 

O ser humano tem que abandonar, como um grande começo, a forma tradicional de tabula rasa da inteligência para entender o real e abandonar as formas idealistas do eu penso absoluto que criaria a realidade. A consciência tomou as todas as forças do eu penso e o defende como consciente ou subconsciente, porém caiu na armadilha do ser, da existência, do acontecer. Como cultivadores do saber, como Sócrates e suas formas maiêuticas, não podemos nos acomodar, se queremos viver; temos que nos aprofundar sempre para atualizar o real, do qual também nascemos. 

X. Zubiri não inventou sua proposta do nada ou, como falamos, em sua cômoda escrivaninha, mas contemplando a realidade da pessoa e sua existência. Seguiu e continuou com a melhor tradição filosófica grega, escolástica, moderna e pós-moderna, entre as ideias de Platão e physis de Aristóteles. O logos e a razão não podem perceber a realidade de maneira fotográfica; isso seria nosso fim! Seríamos animais objetivos, realidades fechadas. 

Não somos copiadores da realidade, nem por percepção, nem por intuição; nem a priori, nem por puros conceitos ou pela consciência. Não somos puras representações jogadas à mercê das racionalidades e seus dualismos; somos presentes e implantados na realidade. A inteligência não é uma faculdade anexada à realidade humana; ela é estruturalmente senciente e intelectiva. Lidamos com as coisas para nos realizarmos, mas não as usamos como objetos ou pelo capricho de sujeito. Uma inteligência assim seria fácil e tediosa para os seres humanos que ser converteriam em animais ou máquinas – ainda que algorítmicas – copiadoras ou repetidoras. 

X. Zubiri estudou e enxergou claramente o problema da inteligência humana. Nesse desafio, o ser humano inseparável das estrelas e de si mesmo nem sempre escolheu uma formalidade que lhe permitisse apreender a provocação do real. 

O problema da Metafísica é encarar sencientemente, sem subterfúgios, o que somos dentro da realidade e formando parte dela e construir caminhos coerentes e suficientes sempre abertos que permitam ao ser humano se perguntar, com os pés no chão, pela sua incógnita misteriosa do real. Sim, ele continuará buscando a resposta nas estrelas ou nas entranhas da terra para com atrevimento livre cair no real sendo sempre o mesmo, mas formas muito diferentes. Do contrário, adiaremos dias melhores e perderemos o tempo para nossa plena realização. 

Foi uma dádiva dos gregos oferecida à história do pensamento impulsionar a busca constante por quem nós somos; trata-se de uma provocação insondável: finita e infinita. Dom recebido, tradente de pai para filho, de geração para geração, trabalhado e transformado por X. Zubiri radicalmente. Ele acolheu essa dádiva e descortinou para nós um novo horizonte, do qual jamais deveríamos ter saído: o horizonte de nossa realidade intramundana. Não queremos recuperar uma Metafísica concipiente, não queremos participar de seu enterro murmurando “foi assim o antigo e triste caminho”. X. Zubiri conseguiu transformar a Metafísica, a sabedoria última e radical. 

Conclusão desafiadora: o conflito intelectual e filosófico continuará, porque todos nós somos animais de realidades 

O ser humano, sim, precisa da Metafísica! O acompanhamento minucioso dos saberes humanos, a análise das vias desenvolvidas e os diagnósticos dos caminhos do pensamento feitos por X. Zubiri, nos apontam novas vias e formas sencientes para continuar esperando na Metafísica. Ao longo da história do saber da humanidade, fomos desenvolvendo um caminho dualista que nos desviou, quase sem perceber, para formas concipientes e representativas: uma crise para a humanidade e o surgimento de um saber confuso em todos os cantos do planeta. Precisamos, sim, da Metafísica, mas como X. Zubiri no diz: uma Metafísica senciente, nunca concipiente. 

Ele diagnosticou que o dualismo mente e corpo, como entendido pelos gregos, nos desviou na busca do ser. As reações das Ciências e da Filosofia foram muitas, como os racionalismos apresentados resumidamente no início de Sobre la esencia. A Metafísica se extraviou por uma enxurrada de ondas de sofistas separando pensar e a realidade; isso ainda nos maltratará, se, inconsequentemente, permanecemos nas asas de uma consciência sem corpo. 

Não se resolve o problema humano guiado por uma inteligência separada do corpo. Deixamos a realidade, da qual brotou a força da mente, e desenvolvemos ideias e conceitos, tivemos boas intenções, elaboramos racionalidades soltas como representações da realidade. Lamentavelmente, nem a dissolução e nem a restauração, são pensáveis para esta Metafísica. Ao contrário, devemos encarar a crise da Metafísica como problema da inteligência em processo de transformação profunda, que impede sua morte, como, também, sua restauração. X. Zubiri nos mostra o caminho para a almejada transformação. 

Deixemos de pretender enterrar o que nos é o mais íntimo e dinâmico: a vida humana e da natureza. O que oferece o filósofo espanhol, em meio a tanta crise – pessoal, social e histórica – nos afasta do enterro da Metafísica, mas também de sua simples restauração. Não podemos perder tempo com tentativas repetitivas e camufladas de cores realistas e idealistas, mas sempre dualistas. Infelizmente, hoje, elas ainda se propagam na velocidade da moda por interesses puramente econômicos e tecnológicos. 

O ser humano, porém, é real (em próprio, de seu); ninguém pode mudar isso! Sua existência em todos os lugares e todas as épocas seguirá a melhor configuração de sua realidade não jogada, mas imposta e imersa na realidade, uma existência doada. Não podemos deixar de lado o real, não podemos logificar a inteligência que o apreende, nem entificá-lo; não podemos aceitar que seja um fruto do eu penso, dos a priori e dos conceitos absolutos; não podemos reduzi- -lo a matéria ou linguagem. Não somos puramente existir, somos existir do real. 

No meio dessa crise da história, X. Zubiri, abriu ou reabriu o horizonte do real com os pés no chão: o horizonte do viver intramundano. Podemos andar nele sábia e metafisicamente e sempre nos surpreendemos constitutivamente humanos sentindo e inteligindo. Não podemos ficar nas formas do saber representativo do real; o saber está dentro de nós, porque somos reais. X. Zubiri saberá expor claramente que o caminho senciente é apresentação e atualização do real pela mens senciente. 

A metáfora da luz, como resposta à primeira metáfora do “mestre J. Ortega y Gasset”, ainda nos é muito desafiadora; X. Zubiri a enfrentou em seu diálogo com G. W. Hegel, em 1931. Depois, lembra a segunda, “na qual não é um pedaço do universo (primeira metáfora), senão que é algo, em cujo saber tudo o que universo é está contido”. (NHD, p. 272-273). Ele tampouco concorda com essa metáfora e afirma como desafio: “não consistiria o homem em ser um pedaço do universo, em seu envolvedor, mas simplesmente em ser a autêntica, a verdadeira luz das coisas [...] De onde parte, em que consiste em última instância, a última razão da existência como luz das coisas?” (NHD, p. 274). X. Zubiri na época não tinha a resposta, mas a formulou na grande inspiração e desafio para a sua Filosofia da realidade. 

Todos podemos ser translúcidos em nossos papéis do sentido da vida. O filósofo diz que o ser humano é agente, ator e autor de sua vida; só teremos autonomia em nossa existência, se nos atualizarmos sempre que somos reais. A realidade é o foco luminoso que ilumina e, por isso, seremos translúcidos. Devemos procurá-la sempre! 

Acompanhamos, nesta reflexão, X. Zubiri em conflito com toda a Filosofia. Ele também foi um filósofo que não conseguiu se entender com demais, mas falou do mesmo que elaboraram: o saber nas raízes e formas de entender, orientar e dirigir a realização da humanidade. Não se contentou discordando e repetindo as elaborações sem estudá-las. Mas entendeu por que buscavam o mesmo: o saber real humano. Por quê? Porque se trata do problema da humanidade e do problema de inteligência. 

Então, vejamos finalmente o que Pintor-Ramos diz a respeito dessa repetitiva e viciosa representatividade do real: 

Não somente de fato, senão também por exigências teóricas, o que determina o tratado zubiriano é o predomínio da dimensão representativa, na qual deve se articular a apelativa e a expressiva. A própria concepção intelectiva de Zubiri torna indispensável essa ordenação. [...] A filosofia é fundamentalmente obra da razão. Essa razão jamais parte de si mesma, senão que, desde o dado, marcha para o ignoto abrindo uma via ulterior que perfila um esbozo racional. (PINTOR-RAMOS, 1995, p. 28-29). 

Para captar melhor a conclusão de nossa reflexão, trazemos a interpretação poética de M. Fernandes sobre as puras representações e suas consequências. Dentro do percurso de sensibilidade criativa, ele se depara com Tippi, menina criada pelos pais fotógrafos na África selvagem, e solta sua linguagem repleta de poesia: 

O mundo de Tippi não é um mundo repleto de representações falseadas da realidade. Nelas, a imaginação não se perde em meandros sem saída de imagens estéreis, de impotência desvitalizada e de contínuos autoenganos. [...] É assim porque apreende o contínuo da realidade não como algo que está apenas a lhe desafiar. Ao contrário, percebe-a como algo que contém o eu próprio em contínua modificação dada as suas próprias potências criativas e imaginativas. [...] Não lhe é necessária a imposição de imagens e sensibilidades externas embutidas de significados outros, que não são aqueles apreendidos na liberdade atuante de seu espírito – e que gradualmente lhe ensina como fazer crescer seu potencial senciente. [...] (FERNANDES, 2019, p. 222-223). 

Embora com mais de oitenta anos, X. Zubiri nos revela felizmente que chegou aonde pretendia chegar: “Graças a isso, o homem fica inadmissivelmente retido na e pela realidade: fica nela sabendo dela. Sabendo o quê? Algo muito pouco, do que é real. Mas retido constitutivamente na realidade. Como? É o grande problema humano: saber estar na realidade” (IRA p. 282). 

Aprendamos a cair no real, na vida e no cultivo intelectual; não por duvidosas representações, mas porque a inteligência, sendo senciente, nos atualiza a presença do real. Dessa forma, podemos sonhar em nos realizarmos e usufruiremos de uma sociedade e história plenas dentro do horizonte intramundano não construído por conceitos. 

Referências

CONILL, J. El crepúsculo da metafísica. 1ª ed. Barcelona: Ed. Anthropos, 1998. 

FERNANDES, M. Fator Leonardo. Ação criativa mais primordial. 1ª ed. Curitiba: Ed. Ideário. 2019. 

PINTOR-RAMOS, A. La filosofía de Zubiri y su género literario. 1ª ed. Madri; Fundación Xavier Zubiri, 1995. 

ZUBIRI, X. Cinco lecciones de filosofía – con un curso inédito. (CLFCI) 1ª ed. Madri: Alianza Ed., 2009. 

ZUBIRI, X. Estructura dinámica de la realidad. (EDR) 1ª ed. Madri: Alianza Ed., 1989. 

ZUBIRI, X. Inteligência e realidade. (ISIR) 1ª ed. São Paulo: Ed. É Realizações, 2011. 

ZUBIRI, X. Inteligência e razão. (IRA) 1ª ed. São Paulo: Ed. É Realizações, 2011. 

ZUBIRI, X. Los problemas fundamentais de la metafisica occidental. (PFMO) 1ª ed. (3ª reimp). Madri: Alianza Ed., 2008. 

ZUBIRI, X. Natureza, História, Deus. (NHD) 1ª ed. São Paulo: Ed. É Realizações, 2010. 

ZUBIRI, X. Sobre la esencia. (SE) 1ª ed. (5ª reimp). Madri. Alianza Ed., 1985.