A religião cristã em perspectiva pós-moderna: diálogo entre Gianni Vattimo e René Girard    
The christian religion in post-modern perspective: dialogue between Gianni Vattimo and René Girard     

Paulo Sérgio Lopes Gonçalves*
Natã Gomiero** 

*Doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG); pós-doutorado em Filosofia pela Universidade de Évora, em Portugal (2008-2009); pós-doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, de Belo Horizonte, Brasil (FAJE). Professor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC Campinas). Contato: paselogo@puc-campinas.edu.br 
**Bacharelando em Teologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).Contato: 
natan.luis.vicente@gmail.com 

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Resumo 

Objetiva-se neste artigo, analisar teoricamente a religião cristã em perspectiva pós-moderna, presente no diálogo realizado entre o pensador Gianni Vattimo e René Girard. Justifica-se o nosso objetivo, a categoria pós-moderna cunhada a partir das considerações de Gianni Vattimo, em que “pensiero debole” e cristianismo não religioso, delineiam um novo cenário epistemológico. Pós-modernidade então, não se configura em desenlace com a fé cristã, mas é a autorrealização desta religião. O pensamento de Vattimo é recepcionado pelo francês René Girard, que a partir de sua teoria mimética e estudo acerca do sentido do sacrifício nas grandes culturas humanas, desenvolve novas considerações para a religião cristã, realçando sua originalidade de cunho antropológico. Não obstante, a caridade cristã, para ambos os autores, se sobrepõe a qualquer interpretação institucional da fé e é o elemento nuclear do processo revelatório de Deus em Jesus Cristo. Por isso, nos cabe a pergunta: basta ao cristianismo ser uma religião de caridade para configurar- -se como verdadeira religião. Para responder essa pergunta e visando atingir o objetivo proposto, tomar-se-á como objeto material o diálogo entre esses pensadores, presente na obra Cristianismo e Relativismo, a obra Crer que se crê de Gianni Vattimo, a obra O Bode expiatório de René Girard e comentadores do assunto. 

Palavras-chaves: religião; cristianismo não religioso; sacrifício; caridade 

Abstract
The aim of this article is to theoretically analyze the Christian religion in a post- -modern perspective, present in the dialogue between the thinker Gianni Vattimo and René Girard. Our objective is justified, the post-modern category coined from the considerations of Gianni Vattimo, in which “pensiero debole” and non-religious Christianity outline a new epistemological scenario. Post-modernity, then, is not configured as an end to the Christian faith, but it is the self-realization of this religion. Vattimo’s thought is welcomed by the Frenchman René Girard, who, based on his mimetic theory and study of the meaning of sacrifice in the great human cultures, develops new considerations for the Christian religion, highlighting its anthropological originality. Nevertheless, Christian charity, for both authors, supersedes any institutional interpretation of faith and is the core element of the revelatory process of God in Jesus Christ. Therefore, the question remains: it is enough for Christianity to be a religion of charity to configure itself as a true religion. To answer this question and aiming to achieve the proposed objective, the dialogue between these thinkers will be taken as material object, present in the work Christianity and Relativism, the work Believing what is believed by Gianni Vattimo, the work O Scapegoat by René Girard and commentators on the subject. 

Keywords: religion; non-religious Christianity; sacrifice;charity 

Introdução  

O objetivo deste artigo é analisar teoricamente a religião cristã em perspectiva pós-moderna, presente no diálogo realizado entre Gianni Vattimo e René Girard. Para o nosso objetivo, serão abordados alguns elementos constituintes da pós-modernidade sublinhados por Vattimo, como pensiero debole e o cristianismo não religioso. Tais elementos são recepcionados por René Girard, e a sua teoria mimética atrelada aos seus estudos antropológicos, desnudam uma nova concepção acercado sacrifício de Cristo. 
Pierpaolo Antonello, em Cristianismo e Relativismo, verdade ou fé frágil (2010), expõe o diálogo entre tais autores. Ele sublinha as “guerras de religião”, presento no contexto contemporâneo, em que está vigente uma necessidade de articulação religiosa, que promova um ambiente propício para a realização das religiões. Os temas religiosos que compõem este ambiente pós-moderno, estão presentes em tais autores e suas contribuições, atestam para um novo caminho hermenêutico, sobretudo para o cristianismo. Ambos os autores, hauridos de uma experiência imiscuída na instituição religiosa católica, sublinham uma nova perspectiva para a religiosidade cristã, a qual, em tempos pós-modernos, ganha novas interpretações, ressignificando assim, o caráter revelatório do próprio Deus na história. 

Tais autores, então, perscrutando o momento da pós-modernidade, se conjugam e apresentam a religião cristã em sua centralidade. O sacrifício amoroso de Cristo, inaugura na cultura humana, o desvelamento do caráter violento do sacrifício. Desse modo, nos caberia a pergunta: poderia a religião cristã se configurar apenas como religião da caridade, livre de todo ou qualquer consideração mítica da pessoa de Jesus de Nazaré, que passou fazendo bem e inaugurando o “Reino de Deus”? Para responder a esta pergunta trazendo à tona o debate entre os autores, apresentar-se-á o pensamento de Gianni Vattimo, autor da tese do “cristianismo não religioso” explicitando sua filosofia da vida, a superação da metafísica e a categoria pensiero debole, que é tão própria de sua filosofia e crucial para referida tese. Em seguida, explicitar—se-á analiticamente a teoria do sacrifício elaborada por René Girard, com a qual debate a tese vatttiminiana. Ao final, considerações são suscitadas que sintetizam o debate apontam a possibilidade de uma forma de religião cristã situada na pós-modernidade, centrada na caridade. 

Uma filosofia da vida

Gianni Vattimo, nasceu em Turim em 1936. Sua filosofia hermenêutica encontra raízes em Hans-Georg Gadamer, pelo qual conhecera Nietzsche e Heidegger. As reflexões de Vattimo, partem sobretudo de sua experiência na Igreja Católica, através de sua militância cristã juvenil. Em sua época, o tomismo presente no pontificado de Leão XIII, sobretudo em sua carta encíclica Aeterni Patris (1879), encontrava seus fundamentos através da teologia de Pierre Rousselout e Joseph Maréchal, no personalismo de Monier, e no humanismo integral de Jacques Maritain. (cf. GONÇALVES, 2018).  

Vattimo em Crer que se crê (2018), vê no mundo pós-moderno1 um retorno à religião. É um retorno a uma relação desprezada pelo homem; um reencontro, porém, que ocorre em meio à secularização2. A experiência religiosa, então, não ocorre de forma desconexa com a secularização. Antes, ocorre no palco da história do homem: “A historicidade designa aquela constituição básica e própria do homem pela qual está situado no tempo precisamente como sujeito livre, e pela qual um mundo lhe está à disposição, mundo que ele deve criar e sofrer na liberdade, assumindo-o em ambas alternativas.” (RAHNER, 2015, p. 56). O homem, então, está intrinsecamente permeado por mundo que lhe é pré-existente e é no contexto da secularização que efetivará ou não a sua fé.  É nessa perspectiva que Vattimo, elabora a sua proposta de leitura para o mundo pós-moderno, considerando que o homem é um ser que anseia pela sua transcendência. (cf. VATTIMO, 2018, p. 12). 

A partir do momento em que os incidentes acontecem e interrompem na vida humana, revelam a fragilidade e vulnerabilidade do mesmo. E a promessa cristã, para Vattimo, muito além que uma teoria, vai ao encontro da finitude do homem, justamente por apresentar um projeto que não se esvai na história, mas que garante uma vivência em prospectiva da existência do homem. No entanto, o homem da pós-modernidade reconhece certo estranhamento diante de algumas questões conflitantes com o pensamento religioso, como: “[...] questões relativas especialmente à bioética, da manipulação genética às questões ecológicas, além de todos os problemas ligados à explosão da violência nas novas questões da existência da sociedade massificada.” (VATTIMO, 2018, p. 13). Tais questões, que são constitutivas da vida humana, no entanto, acabam por fomentar a inimizade do homem pós-moderno e Deus. Há assim, uma teologia que garante uma total transcendência do homem, mas que se sobrepõe às vicissitudes da vida humana:

Pode muito bem acontecer que, no horizonte desses preconceitos, a transcendência divina apareça particularmente nessa perspectiva, mas a experiência de fé bem podia ser voltada à consumação e à dissolução dessa aparência inicial – seguindo mote evangélico ‘já não vos chamo servos, mas amigos” –, enquanto que determinada teologia e também certo modo de viver a religião, e até mesmo o autoritarismo da Igreja Católica, parecem querer fixá-lo como definitiva e verdadeira.(VATTIMO, 2018, p. 14).

É desse modo que Vattimo elenca a problematização do mundo pós-moderno. A partir de sua filosofia, que vai de encontro com sua experiência existencial, Vattimo busca a conciliação de sua experiência religiosa na instituição católica e sua emancipação da mesma.3 

A ideia de “superação” no pensamento de vattimo

O mundo moderno, dominado pela técnica e pela ciência, que prometera respostas ao homem se vê limitado. Para o homem pós-moderno, é necessária uma nova postura epistemológica, hermenêutica, caracterizada por Vattimo, pela consumação do niilismo, representativa do “fim da Modernidade”. A soberania das categorias metafísicas, que até então eram capazes de responder a questões intimamente ligadas à vida do homem, na modernidade se veem ameaçadas, e a experimentação desencadeia um novo paradigma: “Nesse estágio, a imaginação religiosa e a argumentação metafísica estão subordinadas à observação empírica desenvolvida pela visão positiva dos fatos, a qual abandona a consideração das causas dos fenômenos e torna-se pesquisa de suas leis, entendidas como relações constantes entre fenômenos observáveis.” (GONÇALVES, 2015, p. 195). Se na Modernidade há uma total emancipação do homem diante de todas as categorias transcendentais e total fiabilidade na ciência objetiva, na pós-modernidade, encontramos uma: “[...] dissolução das principais teorias filosóficas que acreditavam ter liquidado a religião: o cientificismo positivista, o historicismo hegeliano e depois o marxista. Hoje não há mais razões filosóficas fortes plausíveis para ser ateu ou, em todo caso, para rejeitar a religião.” (VATTIMO, 2018, p. 17).

É neste sentido que Vattimo ao falar de Pós-Modernidade, compartilha da ideia de “superação” (Verwindung)4 de Heidegger. Segundo Baleeiro (2010, p. 40): “A pós-modernidade em filosofia é pensada principalmente a partir da obra de Heidegger, como superação da metafísica em todos os seus desdobramentos, seja como razão forte, como história como progresso linear, ou como o sujeito moderno, por quem a verdade se torna verdadeira.”. A superação, neste sentido, não se refere a um rompimento definitivo com a religião, mas uma retomada da crença com uma nova perspectiva. Gonçalves (2018, p. 248), acerca dessa nova perspectiva afirma: “A morte de Deus não significa ateísmo em seu sentido estrito, nem desaparecimento pleno da religião, mas a necessidade de que à questão de Deus se requeira uma nova atenção ontológico-hermenêutica e de que a religião seja vista em uma nova realidade, marcada pelo pluralismo e pelo sincretismo.” Vattimo assim, a partir das considerações heideggerianas se utiliza do termo rimettersi para designar Verwindung, ou seja, a pós-modernidade é o período de restabelecer-se, de remendar-se, de convalescência diante do pensamento forte, originário da metafísica. É desse modo, que Vattimo se refere à pós--modernidade como um período em que há a cura para a enfermidade metafísica, e é justamente que por isso, por apresentar uma nova epocalidade do ser, que propõe uma nova hermenêutica, pautada pelo niilismo e pelo enfraquecimento do ser. Este enfraquecimento do ser, garantirá que Vattimo fale de um retorno à religião e sua consideração de si mesmo, como um cristão niilista.

Em O fim da Modernidade, Vattimo assume o significado do niilismo consumado5 como o destino da civilização pós-moderna. Segundo o pensador italiano, as filosofias de Nietzsche e Heidegger incidem diretamente sobre uma nova postura epistemológica que supera a modernidade e que se concatenam entre si. Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche aborda que o mundo verdadeiro se tornou uma fábula. A filosofia de Platão, ao pensar a verdade numa perspectiva metafísica, no mundo das ideias, em seu caráter estável e definitivo, propiciou o engessamento das reflexões acerca das experiências cotidianas da vida do homem. No entanto, após as reflexões kantianas, delineou-se uma nova perspectiva epistemológica. O mundo da experiência, construído pela própria ação humana, é a “coisa em si”, que captamos, aquilo que está a nível da existência é que é a verdade. (Cf. VATTIMO, 2018, p. 19).

Na filosofia de Nietzsche, Vattimo vê a consumação do niilismo, que destruindo as definições da metafísica, definiu que o que é real, é o: “[...] fato ‘positivo’, ou seja, o dado certificado pela ciência, mas justamente a certificação é uma atividade do sujeito humano (embora não do sujeito individual), e a realidade do mundo de que estamos falando se identifica com aquilo que é ‘produzido’ pela ciência, em seus experimentos, e pela técnica, com seus aparatos.” (VATTIMO, 2018, p. 19). Não há mais um “além-mundo”, como a outra realidade de Platão, que determinaria o mundo construído pelos homens, mas o mundo real é justamente aquele construído pelo próprio homem em sua capacidade hermenêutica niilista. Enquanto para Nietzsche, o processo do niilismo se define pela morte de Deus e pela desvalorização dos valores supremos, Heidegger aponta para o problema do aniquilamento do ser diante do seu real valor. A compressão niilista no sentido heideggeriano defende a autonomia do ser, uma tentativa de salvaguardar o homem de sua alienação a seu valor de troca. (VATTIMO, 1996, p. 4). O ser para Heidegger, não é, então, passível de mensurabilidade ou de calculabilidade, a modo da empiria científica. E é neste sentido, que para Vattimo:

O pensamento de Heidegger parece-me radical e consequente com relação à experiência que fiz e faço da condição humana na Modernidade tardia, experiência cujas características niilistas me parecem evidentes: a ciência fala de objetos cada vez menos comparáveis aos da experiência cotidiana, motivo pelo qual não sei bem o que devo chamar de ‘realidade’ – o que vejo e sinto ou que encontro descrito nos livros de física ou de astrofísica; a técnica e a produção de mercadorias configuram meu mundo como um mundo artificial, onde mesmo as necessidades ‘naturais’, essenciais, não se distinguem mais daquelas induzidas e manobradas pela publicidade. (VATTIMO, 2018, p. 21).

 Na secularização, ocorre uma mudança epistemológica não só a nível religioso, mas também a nível filosófico. A liberdade, a historicidade e a finitude são os novos temas da filosofia e refletem acerca das influências da tecnociência na vida do homem. No mundo moderno, Vattimo descobre através de Heidegger, que a subjetividade humana é cúmplice da metafísica. O desenvolvimento do objetivismo tecno-científico que fez do sujeito objeto, é fruto do consentimento do próprio sujeito à metafísica na medida em que o sujeito busca uma essência estável: “Isso significa que as teses fundamentais da modernidade acerca da autonomia do homem e do advento da ciência moderna, concentrada na concepção de experiência como empiria e em seu caráter messiânico, passaram a ter consistência relativa com o advento do niilismo nietzscheniano e da ontologia hermenêutica heideggeriana.” (GONÇALVES, 2018, p. 247). 

 A morte de Deus sentenciada por Nietzsche e a necessidade de superação da decorrente desvalorização do ser a seu valor de troca6, sublinhado por Heidegger, expressa em Ser e Tempo, delineiam um niilismo consumado. Desse modo, Vattimo vê o sujeito da pós-modernidade, pautado por uma sociedade cientificista positivista, não mais em posse de si, mas no: “[...] dis-correr do valor, nas transformações indefinidas da equivalência universal.” (VATTIMO, 1996, p. 6).  O sujeito não está mais em posse de si, mas se perde no valor e é justamente por isso, que Vattimo, em Crer que se crê, descreve um retorno à religião, que coadunado com as ideias de Nietzsche e Heidegger, se afasta do dogmatismo eclesiástico, responsável pela mitologização da Revelação. Não obstante, Vattimo compartilha com Heidegger a ideia da influência positiva da herança cristã à níveis epistemológicos. Para ele, a cultura ocidental é “trabalhada” e forjada pela herança cristã, e as filosofias de Nietzsche e Heidegger estão em harmonia com tal herança.7 

Pensiero debole

É neste caminho interpretativo da pós-modernidade, buscando identificar uma correlação entre niilismo e cristianismo, Vattimo cunha, a partir de Carlo Augusto Viano, a expressão “pensamento fraco” 8, já presente em seu ensaio de 1980. Para o pensador de Turim, tal expressão identifica o momento presente pelo qual se encontra estruturado o pensamento moderno, onde a metafísica objetivista não é mais o referente às respostas humanas. O homem pós-moderno está emancipado diante do pensamento metafísico e por isso, Vattimo sublinha uma “ontologia fraca” como proposta hermenêutica, fruto do reencontro do cristianismo com o resultado de sua herança. (cf. VATTIMO, 2018, p. 26). Acerca do pensamento fraco, diz Perez (2012), que este possibilitou: “[...] a mensagem cristã ser pensada filosoficamente como o anúncio de uma ontologia do debilitamento que abre, por sua vez, a possibilidade para uma experiência religiosa não violenta e não absoluta.” (PEREZ, 2012, p. 198). É neste sentido, que em Crer que se crê, Vattimo identifica essa nova epocalidade do ser como “pensamento fraco”. 

Compreender o pensamento como pensiero debole é reconhecer o caráter provisório das afirmações e que todo pensamento é situado espaço-temporalmente. Renuncia-se à pretensão do universalmente válido, a favor do reconhecimento da finitude intrínseca, horizonte limitado, da interpretação do evento do ser que se dá sempre a partir de um lugar. Portanto, pensiero debole é um pensamento de ultrapassamento da metafísica, sem a pretensão de negá-la ou de superá-la. (ROTTERDAN; SENRA, 2015, p. 101).

O processo de secularização propiciou uma desmitificação da Revelação e desse modo, desnudou a centralidade da fé cristã, a kenosis de Deus: “[...] o único grande paradoxo e escândalo da revelação cristã é justamente a encarnação de Deus, a kenosis, ou seja, a inabilitação de todas as características transcendentais, incompreensíveis, misteriosas e, creio, também bizarras que, no entanto, muito comovem os teóricos no salto da fé.” (VATTIMO, 2018, p. 52). O retorno da religião9, acontece então, a modo do processo de kenosis de Deus, que ao se despojar de sua onipotência epistemológica amparada pela estrutura forte da metafísica, se realiza na secularização: 

O processo de secularização, que é o correlato da antropomorfização de Deus, todavia, não purifica a fé de seus elementos religiosos. A morte de Deus não mata a religião, pois o que morre é o fundamento absoluto, é o ser como fundamento, é a realidade como fundamento último. Ao contrário, possibilita a emergência da mensagem cristã: Jesus veio para revelar e desmentir a violência metafísica do sagrado natural. (PEREZ, 2012, p. 206)

Com o enfraquecimento das estruturas fortes e objetivas da metafísica na sociedade pós-moderna, a antiga concepção metafísico-naturalista de Deus se tornou insustentável para o homem moderno. E neste novo cenário, a razão humana busca a “demitologização”10, tanto no âmbito moral, quanto religioso. Seguindo as considerações de René Girard, Vattimo, identifica a principal relação entre Encarnação e secularização como um processo de abandono do sagrado violento. A superação da metafísica propiciou diretamente a morte do Deus forte, onipotente, como enunciada por Nietzsche: “[...] essa sentença se relaciona à morte do Deus criador e todo-poderoso da metafísica e da ruptura dos paradigmas metafísicos que amparavam as concepções de homem e mundo.” (GONÇALVES, 2018, p. 249). Ou seja, o enfraquecimento de Deus em sua encarnação, se identifica com o processo da civilização moderna, de sua secularização, que efetivou retorno religioso ao Deus bíblico cristão. A secularização enquanto processo de emancipação do homem, é vista então, de maneira positiva. Seria então a secularização um processo de fé purificada? Tal é o questionamento de Vattimo em Crer que se crê. Para o autor, a secularização, não significa a despedida dos valores cristãos, mas é o momento em que ocorre a “transcrição” dos elementos mais centrais do cristianismo para a civilização moderna.11 Deus então, continua a agir e a se revelar na história humana, educando o homem para a superação da violência, seja no campo religioso ou na vida social. (Cf. VATTIMO, 2018, p. 43). No entanto, as Escrituras devem ser reinterpretadas, tanto quanto a moral e os dogmas:

Esse investimento hermenêutico vattimiano na Escritura possibilita remeter a Gioacchino de Fiore, um monge beneditino medieval que visualizou três eras da humanidade: a do Pai — do antigo testamento —, a do Filho — novo testamento — e a do Espírito — a era da Igreja ou da humanidade moderna. A concepção gioacchiniana acerca do Espírito — ruah, pneuma, spiritus — e sua ação na história indica a vitalidade da revelação cristã presente na Escritura e na história em geral. (GONÇALVES, 2018, p. 253). 

Em Crer que se crê, Vattimo salienta que este retorno à religião, que é um retorno sob o aspecto fraco, se dá através da busca por transcendência do homem, através de situações que são limitantes a este homem. Desse modo, Vattimo identifica que este homem pós-moderno continua aberto à sua transcendência, à esperança cristã, mas, porém, devido à sua razão laica, se distancia das formulações doutrinais da Igreja.12 Este retorno identificado por Vattimo13, parte de suas interpelações pessoais, em sua própria vida fé, que não se pautando pela literalidade das verdades da fé propostas pela Igreja, busca: “[...] interpretar a palavra evangélica como Jesus mesmo ensinou a fazer, traduzindo a letra frequentemente violenta dos preceitos e das profecias em termos mais de acordo com mandamento supremo da caridade.” (VATTIMO, 2018, p. 80). Tais asserções vattiminianas, identificam que há então, uma transcrição dos valores cristãos na sociedade pós-moderna. A sentença de Nietzsche, proclama a morte do Deus metafísico, onipotente, e consequentemente, violento. As formulações doutrinais, são rechaçadas por este novo paradigma epistemológico de enfraquecimento, no entanto, o caráter mais nuclear religioso é preservada, a fé:

A morte de Deus não significa ateísmo em seu sentido estrito, nem desaparecimento pleno da religião, mas a necessidade de que à questão de Deus se requeira uma nova atenção ontoló-gico-hermenêutica e de que a religião seja vista em uma nova realidade, marcada pelo pluralismo e pelo sincretismo. Assim sendo, a religião não desaparece da vida e retorna ao cenário histórico sem a conotação dogmática, moralista e jurídica de antes, mantendo-se em seu tema propriamente religioso: a fé. No entanto, retornar à fé tematicamente não é uma redução da fé, porém tomá-la como sentido da própria existência do homem, principalmente na relação estabelecida com Deus. (GONÇALVES, 2018, p. 249).

Vattimo, em Crer que se crê, sublinha o aspecto mitológico contido nos conteúdos da fé católica, sobretudo no âmbito moral.14 E desse modo, numa perspectiva filosófica-existencial, o autor sublinha cada vez mais a sua religião cristã sob os moldes niilistas: “[...] trata-se de retorno da religião e da religião como retorno. Retorno entendido como proveniência de um núcleo de conteúdos de consciência esquecidos, recusados, as não necessariamente inconscientes, relativos a uma outra época de nossas vidas.”15 Este retorno à fé, lido através de sua própria experiência religiosa, faz Vattimo, se considerar um cristão niilista. Longe de toda institucionalidade, que segundo o filósofo, colocou uma roupagem mítica nos dados da Revelação de Deus. 

René Girard e a ideia de sacrifício

Com tais considerações acerca do pensamento de Vattimo, notamos sua aproximação com as ideias de René Girard, sobretudo ao falar de cristianismo não religioso. Segundo Gonçalves (2018), as teses girardianas, servem de base para a identificação do cristianismo não religioso na sociedade pós-moderna: “Vattimo apoia-se nas teorias sobre sacrifícios religiosos de René Girard, para afirmar o cristianismo como via de secularização, em que a tradição judaico-cristã adere ao sacrifício cruento e violento para exprimir a expiação dos pecados e a aliança com Deus. [...]”. (GONÇALVES, 2018, p. 250). 

René Girard (1923-2015), graduou-se em filosofia, em Avignon em 1941. Especializou-se em história em 1947 na École Nationale des Chartes, em Paris. Seu doutorado se deu através da tese, “França na opinião dos norte americanos, 1940-1943” (1950), na Indiana University, USA.16 Girard, que crescera na religião católica, assume o ceticismo como viés epistemológico e se afasta da instituição, desmitificando o texto literário. Girard vincula sua conversão às considerações de Dotoiévski, e retorna à instituição católica: “Após a conversão intelectual que lhe trouxe paz e serenidade, faltava a conversão existencial. Foi o medo humano de ter um câncer de pele, na quaresma de 1959, que provocou em Girard a experiência de conversão existencial.” (GODOY, 2012, p. 121). Tal experiência angustiante, atrelada à fé da Igreja católica, leva Girard à conversão, reverberando então, em suas reflexões antropológicas. E assim, Vattimo, em Crer que se crê, remete à Girard ao analisar, como supracitado, uma transcrição dos valores cristãos no processo de secularização, sobretudo ao falar da dissolução do sagrado violento: 

Para seguir o caminho de um reencontro niilista do cristianismo basta ir um pouco além de Girard, admitindo que o sagrado natural seja violento não apenas enquanto mecanismo vitimário que supõe uma divindade sedenta por vingança, mas também enquanto atribui a essa divindade todas as características de onipotência, absolutismo, eternidade e ‘transcendência’ com relação ao homem, que são os atributos conferidos a Deus pelas teologia naturais, inclusive aquelas consideradas preâmbulos da fé cristã. Em suma, o Deus violento de Girard, nessa perspectiva é o deus da metafísica, aquele a quem a metafísica chamou também de ipsum et subsistens, que sintetiza em si, de forma eminente, todas as características do ser objetivo como ela o concebe. (VATTIMO, 2018, p. 30). 

Neste desvelamento do Deus violento da metafísica, René Girard, em sua obra O Bode Expiatório (1982), atesta para o processo do mecanismo violento do bode expiatório contido nas grandes tradições da civilização humana. Na referida obra, após dessacralizar as concepções sagradas construídas hermeneuticamente presentes nos mitos, o autor salienta, sua teoria mimética. Para Girard, no homem, há um impulso de imitar o seu semelhante, que pode ter como elemento motivador, um desejo obstinado de se apropriar de determinada coisa do outro gerador de violência: “Dessa guerra resulta a necessidade de ter um bode expiatório que é sacrificado para selar a paz entre os que guerreiam. Esse bode expiatório assume atributos sagrados, conferindo ao seu sacrifício vitimário uma conotação soteriológica.” (GONÇALVES, 2018, p. 251). 

Nos textos védicos, Girard, segundo Pierpaolo Antonello17, busca compreender a significação do simbolismo e do caráter violento. Na antropologia girardiana, tal violência é inerente à natureza humana, e está presente nos mitos e em todas as culturas humanas.18 As perseguições coletivas, ocorrem desde os primórdios da vida humana, decorrem de momentos de crises sociais e está presente em sua cultura:  

Falo aqui apenas de perseguições coletivas ou com ressonâncias coletivas. Por perseguições coletivas entendo as violências cometidas diretamente por multidões assassinas, como o massacre dos judeus durante a peste negra. Por perseguições com ressonâncias coletivas entendo as violências do tipo caça às bruxas, legais em suas formas, mas geralmente encorajadas por uma opinião pública superexcitada. [...] As perseguições que nos interessam se desenvolvem de preferência em períodos de crise que provocam o enfraquecimento de instituições normais e favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer uma pressão decisiva sobre elas. (GIRARD, 2004, p. 21). 

Há um mecanismo persecutório deflagrado nos das culturas, por Girard. A história contada nos mitos, é a história descrita a partir das perspectivas dos perseguidores, que em seus elementos textuais e linguísticos, buscam dar credibilidade ao motivo violento de sua perseguição. A busca pela satisfação do desejo, que nem sempre é alcançado, com supracitado, gera as perseguições: “O desejo é a matriz da violência que alimentada pelo ódio progressivo dos rivais, numa relação de reciprocidade negativa, envolve toda a comunidade, ameaçando a ordem social e a própria sobrevivência do grupo.” (GODOY, 2012, p. 127). O mecanismo vitimário então, se faz necessário para as relações miméticas. As rivalidades se tornam progressivas e para que determinada sociedade se mantenha em equilíbrio, é necessário um ritual sacrificial, envolvendo uma vítima e uma culpabilidade: 

Quando as rivalidades miméticas ultrapassam um certo limite de intensidade, os rivais esquecem, perdem ou destroem os objetos pelos quais brigavam e brigam mais diretamente uns com os outros. O ódio do rival predomina então em relação ao desejo do objeto. É o instante em que tudo parece perdido, e em muitos casos, talvez essa perda seja efetiva. Em outros, ao contrário, tudo é salvo, nos o vimos pelo sacrifício. (GIRARD, 2011, p. 62). 

Desejo e sacrifício então, para Girard, se conjugam. Segundo Antonello, o desejo: “De fato, o desejo é a força primitiva que move o universo; é o desejo que desce ‘em princípio’ até o inominado centro da criação; único movimento certo no interior de uma dialética entre ser e não ser que descreve o mundo da origem. Não por acaso é definido como ‘o primeiro sêmen e embrião da mente’.”19 O desejo, enquanto grande impulso da humanidade, gera rivalidade entre os homens e com isso, a necessidade sacrificial. A violência então, se levanta quase que como um dogma nas tradições humanas. O sacrifício se faz então, nas comunidades humanas, inevitável. As relações miméticas, ao se enfraquecerem, solicitam o sacrifício de uma vítima. Tal análise de Girard, está presente e sua obra O Sacrifício (2011), na qual o autor, desenvolve seu estudo acerca das Brâmanas. Para esta cultura, o sacrifício é indispensável pois resolve as rivalidades inerentes ao homem: 

Esta confiança no sacrifício não é absurda no seu princípio, creio, mesmo que com o tempo, necessariamente, passe a ser. Os brâmanes falam de sacrifício como se fosse de uma técnica puramente humana, como se soubessem que o poder da paz e da ordem que ele encarna, por mais real que pareça, não depende de uma transcendência propriamente religiosa, mas deum fenômeno desconhecido e suas únicas condições de desencadeamento são conhecidas. Portanto, o essencial é respeitar escrupulosamente essas condições de desencadeamento que são uma coisa só, em princípio, com as regras rituais. Mesmo aqui, a convergência com a teoria mimética é surpreendente. (GIRARD, 2011, p. 62). 

As perseguições coletivas, por sua vez, desencadeiam acusações estereotipadas que polarizam20 os grupos de determinada sociedade. Para exemplificar a distorção persecutória, Girard utiliza do poema de Guillaume de Machaut21. A acusação presente neste poema e em diversos mitos, assume diferentes formas e se utiliza de elementos estereotipados da sociedade para fomentar a aversão ao bode expiatório, como os crimes sociais, a violação, o incesto e a bestialidade. Desse modo: “É a acusação estereotipada que autoriza e facilita esta crença, desempenhando com toda evidência um papel mediador. Ela serve de ponto entre a pequenez do indivíduo e a enormidade do corpo social”. (GIRARD, 2011, p. 25). Tais perseguições, geram um bode expiatório. Para Girard, este fenômeno está articulado e fundamenta a sua teoria do sacrifício. Através dos Brâmanas, o antropólogo analisou as polarizações da sociedade em questão e encontrou o motivo da instituição da vítima: as rivalidades, por isso: 

O sacrifício é a instituição primordial da cultura humana. Ele está enraizado no mimetismo, mais intenso nos homens do que nos animais mais miméticos, portanto, mais conflituoso. A relação dominante-dominado, constitutiva das sociedades animais, não se pode mais s estabilizar. Crises miméticas ocorrem, resolvidas pelos primeiros fenômenos de bode expiatório e pelas primeiras repetições rituais. É assim, que deve começar a sociedade especificamente humana, baseada nos sacrifícios e nas instituições que resultam disso. (GIRARD, 2011, p. 94). 

O cristianismo, para Girard, inverte totalmente essa perspectiva violenta presente nos mitos. No sacrifício de Cristo, está presente um sacrifício totalmente inédito: a vítima não é passível de culpa e a sua reabilitação não ocorre por causalidade mágica22

O modelo bíblico é virado às avessas, seja em relação à vítimas, seja em relação aos perseguidores. Em vez das turbas enlouquecidas que se tornam enlouquecidas que se tornam violentas sem um motivo real, muitos mitos apresentam os cidadãos que recorrem certamente à violência por motivos legítimos: eles devem salvar a comunidade. Um bom exemplo é a tragédia de Édipo. O herói, certamente, não é um bode expiatório do ponto de vista do mito: ele realmente cometeu o parricídio e o incesto dos quais é acusado, e os tebanos têm não só o direito mas também o dever de destroná-lo e lança-lo às trevas. (VATTIMO, Gianni; GIRARD, René. 2010. p. 106). 

Nos evangelhos, porém, e em toda cultura bíblica, está presente a inocência da vítima. E para Girard, está presente desde o Antigo Testamento, representando então, uma verdadeira novidade em relação aos mitos. A hermenêutica utilizada por Girard, esbarra nas concepções heideggerianas, embora o autor não se considere um bom leitor do filósofo existencialista.23 A culpabilidade de Édipo, é de fato, efetiva, mas na interpretação dos mitos bíblicos, em contraposição, a vítima é inocente: 

A pergunta que o texto mítico e o texto bíblico colocaram é a mesma: “É culpado?”. O mito responde sempre positivamente: Édipo é culpado, e os seus parentes, ou amigos têm o direito de expulsá-lo; enquanto que na história do Antigo Testamento, a resposta é oposta: José é inocente, e os seus irmãos, que são ciumentos, expulsam-no injustamente e se enfurecem de modo mimético contra ele. Portanto, desde o início a Bíblia se apresenta como uma interpretação da mitologia e como sua desconstrução. (VATTIMO, Gianni; GIRARD, René, 2010, p. 68). 

As teses de Girard atestam que o cristianismo trouxe uma originalidade para a cultura humana. No sacrifício amoroso de Deus, está em evidência a inculpabilidade da vítima e o mecanismo persecutório é desnudado. Sob a ótica de sua teoria mimética, o pensador francês lê os evangelhos e contribui para que a centralidade do cristianismo seja efetiva como religião, a saber: a verdadeira caridade, longe de toda e qualquer violência geradora de um bode expiatório. Não obstante, para Girard, o Crucificado identifica-se com o Ressuscitado, através da ação do Paráclito24. A violência presente no sacrifício gratuito e amoroso de Cristo, é transposta pelo envio do Paráclito feita por Ele mesmo, e assim: “O Espírito elabora na história para revelar o que já revelou, o mecanismo do bode expiatório, a gênese de toda mitologia, a nulidade de todos os deuses da violência, em outras palavras, na linguagem evangélica, o Espírito completa a derrota e a condenação de Satanás.”25

Considerações finais 

Ao analisar a religião cristã em perspectiva pós-moderna, notamos então, em Vattimo e em Girard, um entrelaçamento de suas ideias quanto a um processo de niilismo consumado na sociedade pós-moderna e do secularismo como herança do cristianismo. Este diálogo do pensamento de tais autores está presente na obra organizada por Pierpaolo Antonello, Cristianismo e Relativismo, Verdade ou fé frágil? (2010). Tanto para o antropólogo quanto para o filósofo, a religião cristã não apresenta uma via de oposição no mundo secularizado, mas antes, se realiza neste. A originalidade antropológica, presente no sacrifício inocente de Cristo, deflagra um mecanismo de desprezo construído sobre o bode expiatório escolhido pela sociedade.26 Na ambivalência de tais autores, sobretudo da concepção de “cristianismo não religioso” e da “teoria do sacrifício”, que se efetivam num contexto pós-moderno, podemos nos perguntar o que é a religião cristã na era pós-moderna; era marcada por paradoxos, flexibilidades, nomadismo e pelo fim da metafísica. 

Piepaollo Antonello analisa bem este contexto pós-moderno e apresenta temas centrais, que de início, se apresentam como inconciliáveis. Com as considerações de tais autores, evidencia-se que tais temas se articulam e assim, denotam um novo paradigma para essa religião que se realiza no mundo pós-moderno. Assim, “cristianismo e modernidade”, “fé e relativismo” e “hermenêutica, autoridade, tradição”, parecem estar de “mãos dadas” no pensamento de tais autores, e suas contribuições atestam para o novo cenário criado pela secularização. 

Quando nos referimos à presença cristã na contemporaneidade, automaticamente nos deparamos diante de um novo fenômeno religioso. Vattimo elucida bem este novo cenário em sua filosofia. Partindo de sua própria experiência na Igreja Católica, ele bem demonstra, como supracitado, um retorno à religiosidade, porém, com ressalvas. Não é mais possível, após a sentença de Nietzsche, acerca da morte de Deus, se apoiar numa concepção religiosa que se construa a partir instrumentos metafísicos. Não é mais possível, pois a centralidade da fé cristã, num processo de desmitificação, foi desnudada. A centralidade do cristianismo, porém, elucidado pelo princípio da caridade, não foi rejeitado pela sociedade pós-moderna. Secularismo não é apartamento da fé, mas antes, um processo de fé purificada. A purificação da fé no âmbito do secularismo evidencia o mesmo processo de vulnerabilidade vivido pelo Deus da bíblia em sua kénosis. Secularismo e cristianismo estão, então, interligados, não se contrapõem, mas se autorrealizam. Não obstante, a compreensão do caráter sacrificial de Girard, apresenta uma novidade antropológica a partir do cristianismo: a deflagração do aspecto violento das religiões sacrificais. Cristo é, pois, a única vítima inocente, na qual é descabível qualquer culpabilidade, por justamente se tratar do sacrifício de Deus. 

Posta a nova epocalidade do ser, sendo que este se constrói hermeneuticamente e distante dos pressupostos metafísicos, nos perguntamos acerca do que é a religião cristã na modernidade. Para Vattimo, que se considera um “cristão niilista”, a herança cristã está intimamente ligada ao processo de secularização, como podemos notar ao longo deste estudo. É notório que a experiência com o transcendente, que faz parte da busca humana ao longo do seu processo de vida, é afetada pelos ideais cristãos. Este fato, salientado no pensamento de Vattimo, atesta que a caridade de Deus revelada em Jesus Cristo, transcende qualquer instância institucional e afeta a experiência religiosa pós-moderna, marcada pelo distanciamento institucional. O sujeito pós-moderno então, não enterrou o Deus crucificado de Jesus de Nazaré, como anunciara Nietzsche, mas sim o Deus violento criado pela metafísica e aludido pela Igreja Católica em seu âmbito normativo. A revelação de Deus, enquanto processo contínuo em que Deus se dá a conhecer na história humana, não é estanque ou desarticulado do processo epistemológico vivido pelo homem. Ao contrário, a fé em Jesus de Nazaré se apresenta como referencial existencial transcendental e efetiva a prática da caridade nas relações interpessoais humanas, constituindo assim, toda a família humana como sociedade escatológica em seu peregrinar presente. 

É neste sentido, que as elocubrações de René Girard, dialogam com as ideias de Vattimo, justamente por elucidar a novidade cristã frente à concepção de sacrifício. Há uma mudança na perspectiva antropológica trazida pelo cristianismo. A culpabilidade do bode expiatório, presente nas mais primitivas culturas, que urge do caráter violento motivado pelo mimetismo do homem, encontra seu desvelamento no sacrifício do próprio Deus. A motivação violenta do mimetismo humano, geram bodes expiatórios na sociedade. Pensar numa religião cristã sob esta perspectiva antropológica girardiana, nos revela o quanto as motivações interiores do homem são geradoras de violência e o quanto a religião pode estar no desserviço do anúncio amoroso cristão. No momento em que a religião é utilizada como mecanismo de poder e de interesses pessoais, a sentença de Caifás, de que é necessário que um só morra pelo bem de todos, o sentido sacrificial de Cristo, estará subjugada somente à vitória da representação persecutória. Não obstante, o Crucificado, o Deus encarnado na história, ressurge e envia seu Paráclito, o qual, propaga na história, a vitória do verdadeiro e pleno sacrifício amoroso, feito por amor, com amor e pelo amor. A última palavra sobre o sacrifício, não é então o mecanismo dos perseguidores, mas o amor de Deus revelado em Jesus, a favor dos homens. 

Referências

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GIRARD, René. O Bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004. GIRARD, René. O Sacrifício. São Paulo: Realizações, 2011. GODOY, Edvilson de. Enfoques do pensamento de René Girard. In: Revista de Cultura Teológica. v. 20. n. 80 - OUT/DEZ 2012. Disponível em: < https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/14408>. Acesso em 06 de Jun. 2021. 

GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Religião e ética no cristianismo não religioso: Uma abordagem a partir de Gianni Vattimo. in: Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 10, n. 2, 244-268, maio/ago. 2018. Disponível em: < https://periodicos.pucpr.br/index.php/pistispraxis/article/view/23854>. Acesso em 23 de Out. 2020 

GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes. Fé cristã e ciência na Era Contemporânea. In: Reflexão, Campinas, 40(2):193-209, jul./dez., 2015. Disponível em: < https://seer.sis.puc-campinas.edu.br/seer/index.php/reflexao/article/view/3297>. Acesso em 03 de Maio de 2021. 

VATTIMO, Gianni. Crer que se crê. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2018. VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.  

VATTIMO, Gianni; GIRARD, René. Cristianismo e Relativismo: Verdade ou fé frágil? Aparecida, Sp: Editora Santuário, 2010 PEREZ, Léa Freitas. Acreditar em acreditar com Gianni Vattimo. In: Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, p. 187-215. Disponível em: < https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/view/21842/11891>. Acesso em: 02 de fev. 2021. 

ROTTERDAN, Sandson; SENRA, Flávio. O cristianismo não religioso de Gianni Vattimo: considerações para o senso religioso contemporâneo. In: Religare, ISSN: 19826605, v.12, n.1, junho de 2015, p.96-127. 

SALES, Omar Lucas Perrout Fortes de. A vocação niilista da hermenêutica filosófica de Gianni Vattimo radicada no processo da secularização cristã. In: Revista Horizonte, Belo Horizonte, v. 13, n. 39, p. 1580-1608, jul./ set. 2015 – ISSN 2175-5841. Disponível em: < http://periodicos.pucminas.br/ index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2015v13n39p1580> . Acesso em: 05 de set. 2020. 

Notas

[1]  O autor conceitua, então, a pós-modernidade como paradoxo marcado pela simultânea descontinuidade e continuidade da modernidade. Isso significa que as teses fundamentais da modernidade acerca da autonomia do homem e do advento da ciência moderna, concentrada na concepção de experiência como empiria e em seu caráter messiânico, passaram a ter consistência relativa com o advento do niilismo nietzscheniano e da ontologia hermenêutica heideggeriana. (cf. GONÇALVES, 2018, p. 247).   

[2]  Secularização significa, exatamente e antes de tudo, relação de proveniência de um cerne de sagrado do qual nos afastamos e que, todavia, permanece ativo, mesmo em sua versão ‘decaída’, distorcida, reduzida a termos meramente mundanos etc. (cf. VATTIMO, 2018, p. 9).  

[3] Pirpaolo Antonello, elucida esta correspondência entre a experiência pessoal do pensador italiano e o desenvolvimento de sua filosofia. Segundo Antonello, Vattimo se sente em débito com a religião católica, por ser a instituição que lhe fornecera sua formação cultural e moral. (cf. ANTONELLO, Pierpaolo. Introdução in GIRARD, René; VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo. Verdade ou fé frágil. Aparecida: Editora Santuário, 2010. p. 15) VERIFICAR A NECESSIDADE DE COLOCAR AQUI A REFERÊNCIA. Nas outras notas de rodapé você colocou somente o sistema AUTOR, data, página, não colocou a referência completa. 

[4] Ao falar sobre a condição de superação da metafísica, Heidegger utiliza o termo Verwindung, traduzido por Vattimo por rimettersi, considerando os sentidos da palavra em italiano: restabelecer-se, sarar de uma doença, remeter-se a algo ou a alguém. O estado de convalescência implicado apresenta imagem bem clara para se compreender tal situação, pois ainda que o doente não se encontre mais tomado pela enfermidade, tampouco dela completamente se libertou. Neste caso, situa-se num momento de passagem e o alcance da cura pressupõe o reconhecimento e a vivência da enfermidade cujos traços ainda se fazem presentes. Ademais, a vivência da enfermidade transforma e modifica o mundo do sujeito, mesmo após a cura. (SALES, 2015, p. 1598). 

[5] O termo niilismo, a partir das considerações de Gianni Vattimo, de modo geral, compartilha do significado convergente dado por Nietzsche e Heidegger: a situação em que o homem rola do centro para o X. No entanto, tanto a compreensão nietzschiana e heideggeriana não figuram para uma compreensão psicológica ou sociológica, mas concernem que a partir do ser como tal nada mais há. Enquanto que para Nietzsche o processo do niilismo se resume na morte de Deus e na “desvalorização dos valores supremos”, para Heidegger, o ser é aniquilado a medida em que se limita em valor de troca. (Cf. VATTIMO, 1996, p. 4). 

[6] Segundo Vattimo, Heidegger propôs uma necessidade de ir além do valor de troca, numa lógica diametralmente oposta à lógica da permutabilidade, expressa pelo existencialismo desenvolvido em Ser e Tempo. (Cf. VATTIMO, 1996, p. 7).  

[7] Cf. VATTIMO, 2018, p. 23. 

[8] Pensamento Fraco, para Vattimo, significa não tanto, ou não principalmente, uma ideia do pensamento mais consciente dos próprios limites, que abandona as pretensões das grandes visões metafísicas globais etc., mas sobretudo, uma teoria do enfraquecimento como caráter constitutivo do ser na época do fim da metafísica. (VATTIMO, 2018, p. 25).  

[9] “Na concepção vattimiana, é impossível esperar na caridade pela mediação da metafísica que possibilitou o dogmatismo da fé, da moral e de prescrições jurídicas em relação ao comportamento, aos sacramentos e à liturgia.” (GONÇALVES, 2018, p. 253.) 

[10] Vattimo propõe a demitologização da fé, ou seja, a eliminação mito construído a partir das concepções metafísicas que torna escandaloso qualquer doutrina ou posicionamentos morais. (Cf. VATTIMO, 2018, p. 51). 

[11] O argumento é construído a partir de uma interpretação do dogma da encarnação, compreendo-o como kenosis, isto é, rebaixamento de Deus ao nível do ser humano, deslocamento do lugar que lhe era atribuído pela metafísica, desmentido dos traços “naturais da divindade”. (Cf. PEREZ, 2012, p. 206). 

[12] Cf. VATTIMO, 2018, p. 12.  

[13] Com a sua filosofia pós-moderna de centralidade no pensamento débil, Vattimo analisou filosoficamente a religião ao organizar “O Seminário de Capri”, em 1994, conjuntamente com Jacques Derrida, contando com a presença reflexiva de Hans-Georg Gadamer e outros filósofos italianos, e ao escrever outras obras, em especial, Credere di credere em 1998 (1999) e Dopo La cristinità (2001). (GONÇALVES, 2018, p. 248). 

[14] Vattimo, enquanto católico praticante-militante, enfatiza a problemática da questão moral sexual católica em sua época. Para o filósofo, o pavor da instituição em relação à homossexualidade tal como a promoção de uma ideia antifeminismo, são verdadeiras superstições, que o levaram diretamente ao se afastamento da instituição. (cf. VATTIMO, 2018, p. 75-76). 

[15] Cf. PEREZ, 2012, p. 206. 

[16] Cf. GODOY, 2012, p. 120. 

[17] Professor de literatura Italiana da Universidade de Cambridge. 

[18] René Girard identifica nas grandes tradições humanas, estereótipos da perseguição. Em seus estudos, se debruça na análise dos mitos e busca elementos textuais referentes à perseguição coletiva. Assim o faz, desnudando a violência presente no mito de Édipo. Em seus elementos analíticos, busca por se perguntar, se em determinado mito, está presente a descrição de uma crise social, a busca por crimes “indiferenciadores” de acordo com o estereótipo e se os autores mencionados possuem marcas de seleção vitimaria, e ainda, a presença da própria violência. (Cf. GIRARD, 2004, p. 37-47).  

[19] Cf. ANTONELLO, Pierpaolo. Introdução in GIRARD, René; VATTIMO, Gianni. Cristianismo e Relativismo. Verdade ou fé frágil. Aparecida: Editora Santuário, 2010. p. 22. 

[20] Quanto mais a pessoa se distancia do status social mais comum, em um ou outro meio, mais crescem os riscos de perseguição. Vemos isso sem dificuldade para aqueles que se situam na parte baixa da escala. (GIRARD, 2004, p. 30). 

[21] Em sua análise filológica, René Girard, identifica no poema de Guillaume de Machaut, Julgamento do Rei de Navarra (séc. XVI), um contexto psicossocial. Há no poema, uma distorção persecutória. No paradoxo entre verossímil e inverossímil nos elementos presentes no texto de Machaut. O massacre dos judeus é real, é justificado pela opinião pública de um possível envenenamento por parte destes. O contexto de epidemia causado pela peste negra, foi atrelado aos judeus como os grandes responsáveis. (Cf. GIRARD, 2004, p. 5-11). 

[22] Idem, p. 159. 

[23] Em Cristianismo e Relativismo (2010), Girard ao explicitar suas considerações acerca da hermenêutica, autoridade e tradição, compartilha das considerações heideggerianas interpretativas para o Antigo e Novo Testamento. Para o antropólogo, Vattimo, como um “heideggeriano criativo”, soube interpretar filosoficamente Heidegger, dando ao seu pensamento, novos rumos. (Cf. VATTIMO, Gianni; GIRARD, René, 2010, p. 67-72). 

[24] Parakleitos, em grego, é o equivalente exato do português advogado ou do latim ad- -vocatus. (Cf. GIRARD, René. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004, p. 309). 

[25] Idem, p. 308. 

[26] Cf. GIRARD; VATTIMO, 2010, p. 26.