Uma ontologia eucarística intersubjetiva    
An intersubjective eucharistic ontology   

Agemir Bavaresco*
Danilo Vaz-Curado. R. M. Costa**

*Doutor em Filosofia pela Universidade Paris I (Pantheon-Sorbonne). Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: abavaresco@pucrs.br
**Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Contato: 
danilo.costa@unicap.br

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Resumo:

A pesquisa assume como hipótese que a eucaristia para garantir sua atualidade na economia do cristianismo, enquanto presença real de Cristo, precisa ser interpretada de modo relacional e intersubjetivo. Como afirmar a presença real de Cristo na eucaristia através do pão e do vinho em sentido eclesiológico e pneumatólogico? Explicita-se, em primeiro lugar, com base em Zeno Carra as insuficiências do modelo tomista-tridentino para a explicação do fato eucarístico, mostrando os problemas metafísicos da assunção da categoria de substância aristotélica por Tomás de Aquino e as dificuldades teológicas oriundas desta escolha por ele. Ao apresentar os limites da leitura substancialista, estática e dualista, o texto recorre, depois, a Hegel para articular uma leitura ontológica da eucaristia desde bases intersubjetivas e relacionais. Enfim, apresenta-se a ontologia eucarística intersubjetiva como ação pneumatológica que une, ao mesmo tempo, o evento da presença real de Cristo e o ato litúrgico eclesiológico realizado em comunidade. 

Palavras chave: Ontologia; Eucaristia; Presença real; Substância; Intersubjetivo 

Abstract

The research assumes as a hypothesis that the Eucharist, in order to guarantee its relevance in the economy of Christianity, as a real presence of Christ, needs to be interpreted in a relational and intersubjective way. How to affirm the real presence of Christ in the Eucharist through bread and wine in an ecclesiological and pneumatological sense? First, based on Zeno Carra, the insufficiencies of the Thomist-Tridentine model for the explanation of the Eucharistic fact are explained, showing the metaphysical problems of the assumption of the category of Aristotelian substance by Thomas Aquinas and the theological difficulties arising from this choice by he. By presenting the limits of a substantialist, static and dualist reading, the text then turns to Hegel to articulate an ontological reading of the Eucharist from an intersubjective and relational basis. Finally, the intersubjective Eucharistic ontology is presented as a pneumatological action that unites, at the same time, the event of the real presence of Christ and the ecclesiological liturgical act performed in community.  

Keywords: Ontology; Eucharist; Real Presence; Substance; Intersubjective 

Introdução 

D e modo geral, pode-se afirmar que o conceito de religião é a relação entre Deus e o ser humano e, de modo específico o cristianismo é uma religião da intersubjetividade, pois, com a ideia da encarnação essa relação é tematizada explicitamente pela religião cristã. O cristianismo tem na cristologia e na pneumatologia uma articulação intersubjetiva que se fundamenta na Trindade imanente ou intradivina. A estrutura interpessoal de Deus faz parte dos momentos da Trindade como estruturas intra-subjetivas, ou seja, constitutivamente, intersubjetivas. No acontecimento de Cristo realiza-se a verdade sobre a relação de Deus com o ser humano, de um lado, precisa ser interiorizada e, de outro, exteriorizada intersubjetivamente na instituição, pois em Pentecostes temos a consumação da Páscoa, o verdadeiro sentido da ressurreição. Ao contemplar a história constatamos que o sujeito é incluído no processo através de Cristo que assumiu a humanidade e a constituição da comunidade. A morte de Cristo desvaneceu sua presença empírica para ser sua presença espiritual, transformando sua individualidade subjetiva em comunidade intersubjetiva. “A comunidade é, portanto, a verdade do cristianismo: nela realiza-se o princípio que subjaz à religião cristã – a intersubjetividade que culmina no amor” (HÖSLE, 2007, p. 717). 

O objetivo desta pesquisa é apresentar os limites de uma leitura substancialista da eucaristia, que opera a partir de uma ontologia estática e dualista, base-ada numa relação sujeito-objeto. Essa relação tende a estabelecer uma relação coisificada com a eucaristia como um ente coisificado, em que se reduz a experi-ência da presença de Cristo a um objeto externo sem implicações intersubjetivas e constitutivas de comunidade. Face a essa ontologia objetivista o desafio é ela-borar uma ontologia eucarística intersubjetiva que permita ao crente contempo-râneo uma resposta mais consistente à questão: Como perceber a presença real de Deus no mundo, de modo geral, e como perceber a presença real de Cristo na eucaristia, de modo especial?  

Nossa hipótese é de que a relação com Deus enquanto Tu, ocorre intersubje-tivamente na celebração eucarística, como reconciliação intersubjetiva dos fieis com Deus pela mediação pascal de Cristo, enquanto presença real na prática litúrgica comunitária. Ou seja, a estrutura relacional simétrica e transitiva cele-brada na eucaristia como “já realizada” no passado, torna-se real e presente na felicidade da humanidade e o multiverso reconciliado em Deus, como empuxo para o futuro de relações intersubjetivas simétricas e transitivas de plenitude em comunidade. 

Em primeiro lugar, apresentamos a teologia fundamental da presença de Cristo na eucaristia de Zeno Carra que descreve criticamente o modelo tomista--tridentino; depois, ele tematiza o novo modelo eucarístico emergente no século XX; e, conclui propondo o modelo de teologia fundamental e sacramental sobre a eucaristia. No segundo momento, desenvolvemos uma proposta de superação de uma ontologia substancialista por uma ontologia relacional a partir das es-truturas lógico-dialéticas hegelianas como superação de estruturas estáticas e objetivadas do real em conceitos de organicidade intersubjetivos. Por fim, a pes-quisa entende que o problema da transubstanciação precisa ser resignificado e reinterpretado a partir de uma estrutura relacional intersubjetiva, enquanto uma resposta de sentido ao crente contemporâneo para compreender e experimentar a presença real de Cristo na eucaristia.

1 – Presença de Cristo na Eucaristia a partir de Zeno Carra

Apresentamos uma breve reconstrução do livro de Zeno Carra sobre a presença de Cristo na eucaristia a partir de uma perspectiva de teologia fundamental (2018). O problema da pesquisa do livro é posto na Introdução: “Como o Senhor está presente em nossos dias” (CARRA, 2018, p. 11)? O problema é delimita-do para o caso específico de como compreender, hoje, a presença de Cristo na eucaristia. Para responder a esse problema, Carra elabora um modelo teórico conforme a teologia fundamental. No 1º capítulo, “O modelo tomista-tridentino” explica que essa tradição separou o “ente” do rito, ou melhor houve uma enti-ficação da eucaristia com implicações cristológicas, epistemológicas e antropo-lógicas. Este modelo atravessou os séculos e perdurou até século XX, quando emergiram os movimentos litúrgicos que provocaram mudanças nessa tradição (capítulo 2). No 3º capítulo, o autor apresenta o seu modelo em chave de teologia fundamental. Ele critica o modelo clássico que reduz o sacramento a fixidez está-tica da presença de Cristo e, propõe a “forma do sacramento”, como uma relação processual em ação. Isso implica superar o modelo que se identifica com a “tran-substanciação”, reduzida às palavras proferidas sobre o pão e o vinho. Ao passo que a celebração eucarística o todo desde a liturgia da palavra, a preparação dos dons, a oração eucarística, a fração do pão e a comunhão: “Realizar tal ação é a forma estrutural da missa” (Id. p. 207)1

1.1 Modelo tomista-tridentino

Esse modelo foi articulado como uma resposta às disputas medievais e mo-dernas através de Tomás de Aquino e do Concílio de Trento. O modelo é estru-turado em seis eixos. 

a) Eixo ente - rito: O ponto de referência da eucaristia torna-se o ente e o rito é desconsiderado enquanto elemento constitutivo da celebração. Os qua-tro momentos rituais da ceia (tomou, deu graças/abençoou, partiu, deu) são subordinados ao segundo (deu graças/abençoou) que por sua vez repete a instituição: “Isto é... Este é”. Os outros três momentos perdem a pertinência ontológica, sobretudo, o momento da comunhão, em que “o fato da eucaris-tia já é cumprido com a consagração; a comunhão é uma consequência dela, definida como uso do sacramento” (Id. p. 114). 

b)    Eixo Cristo - ente: Neste eixo Cristo está presente e não agente da celebra-ção. O que ocorre é a mudança metafísica do ente substancial do pão e vinho em ente substancial divino (transubstanciação). Essa mudança metafísica é que garante em si a presença de Cristo. Então, ocorre um predomínio do ente sobre o evento histórico-salvífico de Cristo (Páscoa), em que a celebração se torna uma representação linguístico-mental dos entes consagrados. As controvérsias medievais e modernas estão preocupadas em garantir a pre-sença real de Cristo nos entes enquanto substância metafísica estática (cf. CARRA, 2018, p. 115).

c)    Eixo Cristo - rito: A patrística usa os conceitos figura, imagem e similitude como mediações de participação eucarística. Uma figura ou imagem do 1º testamento recebe em Cristo a sua realização como verdade no 2º testamen-to, ou ainda, um protótipo tem em Cristo a realização do tipo em sua plenitu-de. Então, a celebração da Igreja como protótipo da ceia participa do tipo da ceia de Cristo que estabelece um vínculo unitivo entre a figura e a verdade. Essa tradição patrística é substituída pela teologia do sacrifício dos entes. O rito repetido não faz mais memória da mediação da ação salvífica de Cristo. Cristo é deslocado para o centro ôntico substancialista dos entes e foca-se no rito vazio e nas repetições alegóricas sem participação da assembleia litúrgica (cf. CARRA, 2018, p. 116).

d)    Eixo ser humano – ente: O rito eucarístico é reduzido à sua dimensão ôntica e o acesso dá-se pelo intelecto. Os entes pão e vinho após a consagração em sua nova realidade metafísica realizada pela transubstanciação apenas po-dem ser acessados pelo pensamento e não pelos sentidos. Então, a conexão entre os entes e o ser humano recebem o significado dualista de alimento espiritual (noético) e alimento corporal (ôntico) (cf. CARRA, 2018, p. 117).

e)    Eixo ser humano – rito: O ser humano entra no rito como um expectador em que a eucaristia é uma representação que se oferece diante dele como um sinal externo de uma presença ôntica incompreensível. A eficácia do rito é automática, pois, basta o ser humano acessar pelos sentidos e aderir pela fé o que está “atrás/dentro” dos entes que aparecem durante o rito. O rito segue uma lógica ôntica externa e dualista (cf. CARRA, 2018, p. 118).

f) Eixo eucaristia – igreja: Para a patrística o fato eucarístico constitui a igreja, pois, há um vínculo recíproco entre a presença de Cristo na eucaristia e o corpo eclesial. A celebração do rito é a participação em uma ação consti-tutiva que cria vida eclesial. O modelo tomista-tridentino centraliza-se na presença ôntica e não na participação rito-ação. Nesse caso, a Igreja torna-se algo externo à eucaristia. Esse modelo baseia-se na teoria transubstancia-lista que impacta todos os eixos acima descritos: a cristologia passa a ser estático-natural; a relação “ente – rito” acentua o instante da consagração e desequilibra o sentido do momento de comunhão eclesial para o lado do acesso individual intelectual, ao invés, do comunitário corporal integral; ou seja, a igreja torna-se secundária pois, o que importa é a prática intimista devocional do fiel no rito (cf. CARRA, 2018, p. 120).

Nesse 1º capítulo, o autor analisou o modelo tomista-tridentino, de um lado, apontando o esforço de Tomás e o Concílio de Trento para resolver o problema das disputas eucarísticas medievas e o fisicísmo eucarístico; de outro, descre-vendo os limites da experiência eucarística, por exemplo, nas práticas litúrgicas (cf. CARRA, 2018, p. 90 - 111). Diante disso, ele propõe um novo modelo de teologia eucarística em seu 2º e 3º capítulos. 

1.2 – Emergência do novo modelo no século XX

O autor descreve as origens do novo modelo embasado no Movimento Litúrgico e na Reforma Litúrgica, bem como no debate epistemológico sobre a presença de Cristo na eucaristia entre os anos 1950 e 1960 em seu 2º capítulo. 

a) Movimento Litúrgico: O debate sobre liturgia introduz o tema da “ação”, ou seja, a liturgia como um ato celebrativo. Zeno Carra reconstrói o debate en-tre M. Festugière e R. Guardini a respeito das categorias tempo e espaço, na medida em que destacar o acesso espacial ao ente consagrado é valorizar a sua presença substancial, enquanto o acesso temporal centra-se no processo temporal. A dimensão temporal reforça a forma litúrgica como ação que a Sacrosanctum Concilium irá tematizar. 

b)    Sacrosanctum Concilium (SC): Pode-se identificar no documento três as-pectos que tratam da presença de Cristo na eucaristia que reformulam o modelo tomista-tridentino. 1) a dimensão histórico-salvífica da liturgia (SC,

1-    13) destaca uma dupla dimensão na eucaristia: ela é sacramento e sacrifí-cio, isto é, presença do sacrifício pascal de Cristo. Ou seja, a eucaristia é a presença de um ato em que se celebra a presença do agente. Não é uma mera presença ôntica estática (sacramento), mas uma ação salvífica (sacrifício)(cf. p. 196); 2) a liturgia é um polo articulador da ação pascal, e não diversos modos fragmentados da presença de Cristo (SC, 7). O autor percebe, porém, que o texto conciliar ainda mantém uma dupla linguagem, isto é, a clássico-

-    substancial e a ativo-formal; 3) A liturgia é a participação ativa e não uma mera assistência passiva, isto é, há uma diferença entre “partem capere” (tomar parte) e ad-stare (estar). Tomar parte é uma participação no aconte-cimento celebrativo em ação (cf. CARRA, 2018, p. 201), e não apenas estar como um expectador diante de Cristo substancialmente presente.

c)    O Novo missal introduz uma forma fundamental da missa que estrutura a forma da eucaristia em quatro ações de Cristo e da igreja: accepit (tomou), gratias egit (deu graças), fregit (partiu) e dedit (deu), isto é, a igreja atualiza as quatro ações como apresentação dos dons, oração eucarística, fração do pão e comunhão. Então, o acontecimento eucarístico não se reduz a proferir as palavras sobre a matéria do pão e do vinho para muda-las substancial-mente, mas trata-se de participar de um acontecimento em ação que atraves-sa diacronicamente a história e estrutura organicamente a assembleia dos fiéis, a palavra proclamada, o espaço arquitetônico e todo o real reunido no tempo litúrgico. Portanto, “realizar tal ação é a forma substancial da missa” (Id. p. 207). A nova fórmula da consagração destaca os verbos de ação (to-mar, comer e beber) como uma ação em processo acontecimental, dinâmico e histórico (cf. CARRA, 2018, p. 210).

d)    Debate epistemológico e o problema da presença real de Cristo:  Nos anos 1940-1950, os teólogos Selvaggi e Colombo debatem o impacto da ciência moderna sobre o pensamento eucarístico com o objetivo de salvaguardar o valor ontológico da eucaristia, ou seja, a presença de Cristo na eucaristia é física e metafísica. Porém, para Zeno Carra este debate não avança além do modelo tomista-tridentino. 

O debate sobre a presença real de Cristo propõe reformular a teoria da tran-substanciação através de dois congressos teológicos: 1) Chevetogne/Bélgica (1958) destacam-se Leenhardt, De Baciocchi e Ratzinger que discutem o aspec-to fenomenológico religioso, operando um deslocamento do problema da pre-sença de Cristo do plano ontológico para o da relação e com isso recuperam a dimensão pascal da eucaristia. Eles entendem que a teoria da transubstanciação no modelo tradicional elimina ou reduz o estatuto da autonomia do real tanto no sentido criatural como escatológica. 2) Passau/Alemanha (1959) destacam-se Welte, Schillebeecx e Rahner e tratam da perspectiva ontológico-relacional da presença real de Cristo na eucaristia para superar o modelo tradicional de uma ontologia metafísica estática na relação sujeito-objeto. A estratégia é usar as ca-tegorias “dom” e “sinal”, porém, no entender de Zeno Carra apesar do esforço de criticar o modelo onto-gnoseológico cartesiano, acabam por reduzir o acesso puramente noético à presença de Cristo ma eucarístia e não incluem a dimensão da ação como acontecimento histórico. 

Enfim, a encíclica Mysterium Fidei (1965, Paulo VI) intervém advertindo sobre os riscos e bloqueia a reflexão em torno da presença real e retrocede para defender o modelo tradicional como único critério de discernimento. De fato, tal magistério é incapaz de dialogar com o sensus fidelium que não pode mais compreender a repetição de fórmulas de fé que se tornam flatus vocis, vazias de sentido e sem impacto prático celebrativo e existencial: “A verdade não está em um fluxo noético de ideias atemporais subterrâneo à história, mas sim na própria experiência da história dos fiéis” (CARRA, 2019, p. 184). Após reconstruir os debates sobre a novo modelo no século XX, Carra apresenta, no capítulo 3, a sua nova teologia eucarística.

1.3 – Modelo sistemático: teologia fundamental e sacramental

a) Linhas teológico-fundamentais: Zeno Carra expõe a superação do modelo tomista-tridentino em três níveis: a) o nível sincrônico/diacrônico articula os polos Cristo, ser humano, igreja, rito e objetos rituais de modo a reformular a doutrina na compreensão do dogma e heresia; b) do nível abstrato ao todo real e prático: superar a doutrina entendida como uma verdade ahistórica de conteúdo noético escondido em discursos e formulações herméticas e pensamentos abstratos que move a história. Ao contrário, Zeno afirma que é preciso reconhecer o todo real em seus polos estruturantes (a palavra bí-blica, os sacramentos e as práticas) como lugares da inserção da verdade divina (cf. CARRA, 2018, p. 222-224). c) compreensão mais adequada dos dogmas como um esforço de compreensão hermenêutico do sensus fidelium para explicitar e orientar as formas da fé (cf. CARRA, 2018, p. 226). A verdade não é uma simples inferência intelectual de correspondência com o objeto, mas uma relação entre sujeito e objeto intersubjetivamente constitu-ído e mediado em interação com o real. 

b) Linha sacramental: O autor descreveu os problemas do modelo tradicional tomista-tridentino; herdou os debates do movimento litúrgico do século XX e as orientações do Concílio Vaticano II. Então, o diagnóstico é que há necessidade de propor um novo modelo de teologia eucarística a partir da dimensão cristológica, sacramental e ontológica.

1º) Cristo: o presentificado: Nesta dimensão cristológica, Zeno Carra, destaca que a presença de Cristo é a sua memória enquanto ação do “crucificado--ressucitado” e não o seu corpo histórico físico. Ou seja, é a dimensão pascal em sua presença real enquanto promessa que todo o corpo humano será ressuscitado em sua forma relacional. Então, a presença corpórea e a pre-sença pessoal são um corpo pascal unido em comunhão. O espaço histórico dessa corporeidade crística de plena relacionalidade é o processo dinâmico de uma forma estrutural de conexões relacionais e não um espaço estático entificado. Ou seja, a realidade já realizada de Cristo crucificado-ressucitado é atualizada em cada celebração como forma crucis e forma Christi nas pró-prias nas ações da ceia: tomou, abençoou-deu graças, partiu e deu. Então, o espaço sacramental como forma relacional diacrônica é uma experiência da presença de Cristo na eucaristia (cf. CARRA, 2018, p. 234 – 241).

2º) O sacramento: O fato do sacramento não é um rito em que se muda um ente espacialmente situado, mas é o processo em que uma forma realiza no tem-po histórico uma ação mediadora com o pão e o vinho articulado na ceia em ações interativas entre o celebrante, os dons oferecidos e os participantes. É o processo ritual como um todo litúrgico que é essencial para o sacramento. O modelo tradicional tinha como pressuposto uma metafísica ôntica grega em que as palavras e o pronome pronunciado efetuavam a correspondência entre o celebrante e os entes. Ao invés disso, uma leitura fenomenológica descreve o sacramento como uma ação ritual em que o pão e o vinho são a realidade da ação de um acontecimento da história salvífica. Por isso, o modelo da transubstanciação não é tão adequado para explicitar a tensão escatológica do sacramento. O pão e o vinho transubstanciados não expres-sam o movimento da irrupção progressiva do eskaton (a plenitude última), ou seja, os entes na celebração em sua forma crucis e forma Christi apontam para o destino final de toda a criação em processo de realização plena de um novo céu e uma nova terra. “O modelo que estamos esboçando, afirma Zeno, permite a reivindicação escatológica: a presença do ressuscitado emerge na história através da conexão formal-relacional entre os elementos. Estes, por-tanto, não perdem a si mesmos, mas se cumprem na sua relacionalidade com todo o resto, precisamente por serem assumidos na posição da forma sacramental” (CARRA, 2018, p. 247).

c) A ontologia eucarística supera a visão estática e ocasional do modelo tradi-cional. O acesso ao Cristo ressuscitado é dado através de uma forma relacio-nal dinâmica ao invés de uma entidade ôntica substancial. Ou seja, os polos de conexão da forma e seus elementos estruturantes articulam um conjunto processual em movimento do todo eucarístico. A igreja em sua relação com a eucaristia é o corpus Christi como realidade mediadora da presença onto-lógica crística. A igreja como povo de Deus é o espaço da presença corpórea de Cristo pascal, ou seja, trata-se de uma realidade ontológica formada pela presença de Cristo não como um coleção de elementos postos um ao lado de outro de forma estática, mas um todo em movimento formado de múltiplos polos internos “da presentificação real, corpórea e não ocasional (portanto, substancial) do próprio Cristo crucificado e ressuscitado” (CARRA, 2018, p. 252). Temos, portanto, uma nova ontologia como condição de tematizar a presença de Cristo na eucaristia.

2 – Da ontologia substancialista à ontologia relacional

Nosso objetivo é, primeiramente, explicitar o conceito de substância aris-totélico e, depois, mostrar que a metafísica antiga cristalizou a substância, tor-nando-a um ente estático. Por isso, há a necessidade de transformar o conceito de ontologia substancialista para uma ontologia relacional conforme o modelo hegeliano. 

O termo substância (ούσία) é tratado por Aristóteles em sua Metafísica em três momentos: 

a) Substância sensível e perceptível é aquela que tem uma maté-ria que se distingue da forma (ARISTÓTELES, 2002, XII, 2). Ela é finita porque a forma está separada e exterior a matéria. Ela sofre a mudança em sua qualida-de, quantidade e lugar, portanto, a matéria é a simples potência. Os momentos da matéria em geral são o substrato da mudança indiferente ao oposto que é a forma e o 1º motor. O ato é a unidade da forma e da matéria, sendo que o ato é o negativo como idealidade, o oposto e, portanto, aquilo que deve tornar-se. 

b)     A substância enquanto ato é aquilo que deve tornar-se, cujo conteúdo é o fim (ARISTÓTELES, 2002, IX, 2; VII, 7; XII, 3). A alma é a enteléquia, não como uma atividade formal cujo conteúdo provêm de outra fonte, mas da própria realidade. Os dois extremos são a matéria como potência passiva e o pensamento como efetividade ativa. Em nenhum desses dois momentos está a mudança, pois eles estão em si como formas contrapostas.

c)    A substância absoluta (ARISTÓTELES, 2002, XII, 6-7; IX, 8) é a unidade da potência, da atividade e da enteléquia. Ela é o imóvel em e para e, ao mesmo tempo, infunde movimento, sendo sua essência atividade pura, sem ter matéria, pois está o momento passivo onde se opera a mudança (HEGEL, 1995, 259 – 261).

Na idade média, substância significa matéria, uma coisa permanente e independente de seus acidentes, atributos ou modos; ela é a essência permanente de uma coisa, isto é, o conteúdo essencial. Na modernidade, Descartes explica substância uma coisa que existe e que não depende de outra para existir, isso é o caso da substância absoluta, Deus. Spinoza entende, igualmente, a existência de uma única substância. Para Kant a substância é o que persiste através de toda a mudança, podendo ser o próprio eu ou a matéria. Para Hegel, há apenas uma substância que está em constante atividade, que gera e dissolve seus acidentes.

Hegel elabora uma nova ontologia da substância. A substância aparece em seus acidentes, sendo que estes são a própria dialética em aparência, isto é, a aparência do ser substancial produz os acidentes e a substância apenas é subs-tância na medida em que produz e dissolve os acidentes. Então, os acidentes são e incluem a substância, assim como a substância se relaciona com os acidentes. 

Hegel propõe uma virada ontológica fundamental no Prefácio da Fenomenologia do Espírito quando afirma que “tudo decorre de entender e expri-mir o verdadeiro não como substância, mas também, precisamente, como sujeito” (HEGEL, 2002, § 17, p. 34). Ele entende que a substância deve tornar-se sujeito, ou seja, movimento relacional de sua estrutura conceitual. Na Fenomenologia desenvolvimento da substância em consciência, autoconsciência e razão é a apresentação da desconstrução da substância estática da metafísica antiga e mo-derna a partir da reflexividade dialética em estruturas reflexivas e fluidas entre sujeito e objeto. Então, supera-se o dualismo substância e acidente na reflexi-vidade dialética constitutiva de uma ontologia relacional. A explicitação lógica desta nova ontologia é estruturada na Lógica da Essência, através da relação de substancialidade enquanto uma relação interativa entre causa e efeito: “O curso da substância  através da causalidade e da ação recíproca é portanto apenas o pôr que a ‘autonomia é a relação negativa infinita para consigo’ -  relação negativa em geral, na qual o diferenciar e o mediar se tornam uma originariedade de [ter-mos] efetivos autônomos uns relativamente aos outros” (HEGEL, 1995, § 157). A substância torna-se uma relacionalidade de ação recíproca entre polos autôno-mos em relação uns com outros, ou seja, torna-se uma substância com estruturas de reflexividade subjetiva: “A verdade da substância é o conceito – a autonomia que é o repelir-se de si mesmo para [termos] autônomos diferentes, enquanto esse repelir é idêntico consigo, e esse movimento alternado, que permanece junto a si mesmo, o é somente consigo” (HEGEL, 1995, § 158). Portanto, a verdade da substância é o conceito, isto é, uma estrutura autônoma que, ao mesmo tempo, se diferencia (repulsão) e fica junto a si mesmo (atração, identidade) enquanto subjetividade que é desenvolvimento do conceito em silogismo de universalida-de, particularidade e singularidade. Essa é a nova ontologia que se estrutura de forma subjetiva e intersubjetiva.   

3 – Da transubstanciação à intersubjetividade

Em primeiro lugar reconstruiremos a apropriação tomista-tridentina do con-ceito de substância aristotélico e depois, apresentamos a aplicação tomista de substância no conceito de transubstanciação. A hipótese é que a substância aris-totélica é compreendida por Tomás de uma forma estática. Esta aplicação nas substâncias do pão e do vinho retiram deles sua autonomia pela transformação de seu ente pela explicação teológica da transubstanciação. As substâncias de pão e do vinho tornam-se acidentes da substância divina pela explicação da transubs-tanciação. Então, temos uma entificação estática das substâncias do pão e do vi-nho com graves consequências para a verdade do real, pois, a transubstanciação torna o real separado de sua idealidade divina. E assim, a dimensão escatológica de todo o real como irrupção histórica de Deus no eskaton (a plenitude última do real) perde sua tensão emergente da divinização do real, quando “Deus será tudo em todos” e em que “haverá um novo céu e uma nova terra”. 

Na opinião de Christian Iber2, do ponto de vista do pensar de Aristóteles, não pode haver uma transubstanciação de uma substância natural.  Tomás de Aquino quer tornar a filosofia de Aristóteles compatível com a fé cristã. A ideia da incorporação do pão e do vinho, que devem ser transformados no corpo e no sangue de Cristo na consumação do ato sacramental da Eucaristia, é baseada no conceito divino. Desde Tomás de Aquino, a Igreja Católica insiste na presença real de Deus na realização do sacramento. 

A eucaristia foi submetida a uma reavaliação por Lutero: Deus não está pre-sente realmente ou substancialmente, mas está presente na palavra falada. Lutero visa uma verbalização e, portanto, a espiritualização do ritual. A solidariedade da comunidade não é constituída apenas pela presença real de Deus, mas por sua palavra. Deus está presente na comunidade através de sua palavra e não através da transubstanciação real do pão e do vinho.

Com Max Weber pode-se dizer que com Lutero há um desencantamento da magia divina pela espiritualização da eucaristia. O perigo é, naturalmente, que as fontes sagradas da integração social através da eucaristia se percam, conclui Iber.  

O problema dessas considerações é que eliminam o problema ontológico da presença de Cristo na eucaristia. Nós, entendemos que se trata de reconstruir a ontologia substancialista em formato de ontologia relacional, como fez Hegel em sua Lógica da Essência e, enfim, explicitar essa ontologia em formato inter-subjetivo como é proposto por V. Hösle (2007).   

3.1 – Transubstanciação em Tomás de Aquino

Há uma herança das disputas medievais sobre o problema de como Cristo está presente com seu corpo e sangue nos elementos materiais do pão e do vinho. O cerne da questão gira em torno da substância conforme a tradição aristotéli-ca, que é o fundamento permanente do ato de ser, isto é, do ente em si mesmo. No caso da eucaristia o que interessa é a relação entre substância e acidentes enquanto esses são contingentes e permitem o acesso ao conhecimento através dos sentidos. “A presença de Cristo em seu corpo e sangue é colocada no nível fundamental da substância, enquanto permanecem os acidentes do pão e vinho como o termo sobre o qual nossos atos rituais inferem: pegar, mover, mostrar, partir, comer” (CARRA, 2018, p. 36). Então, a mudança ocorre na substância dos entes do pão e vinho: 

A transubstanciação é uma mutação da substância dos ele-mentos na substância do corpo e sangue de Cristo: não é uma substituição para a qual o primeiro daria lugar ao segundo por meio de sua aniquilação3; nem se trata de uma coexistência das duas substâncias lado a lado (consubstanciação). A subs-tância do pão e a do vinho são convertidas pelo poder de Deus, contida como virtude criada nas palavras da consagração4 confiadas por Cristo aos sacerdotes, na substância do corpo e sangue de Cristo. Esta conversão não é gradual, mas ocorre instantaneamente, no último, e no instante não identificável do proferimento das palavras consacratórias (id. p. 36). 

Importante observar que não se trata de uma substituição, nem de uma coe-xistência de duas substâncias uma ao lado da outra (consubstanciação), mas de uma mudança substancial, ou seja, os entes não são mais substâncias materiais de pão e vinho, mas mudam suas substâncias em corpo e sangue de Jesus. Esse é o fenômeno da transubstanciação em que os acidentes permanecem para os sentidos, enquanto o intelecto capta a substância divina por debaixo dos entes. Há uma mutação ontológica. 

Embora, Tomás tenha o mérito de ter enfrentado as disputas medievais sobre o fisicismo e o simbolismo ocasionalista, a teoria da transubstanciação apresenta um problema epistemológico quando muda o conceito de substância e acidente, pois, os acidentes são o meio de acesso aos sentidos e a substância apenas é al-cançada pelo intelecto. Para Aristóteles esses dois momentos não são separáveis no nível real, uma vez que não há conhecimento intelectual da substância que seja independente da passagem sensorial dos acidentes.

No entanto, a operação, realizada por Tomás para dar conta do mistério da eucaristia, de separação verdadeiramente pos-sível dos acidentes, subsistindo autonomamente e operando no nível sensorial, de uma substância que não é adequada para eles e, portanto, não funciona como um sujeito, em nossa opi-nião, compromete a unidade real da gnoseologia aristotélica (CARRA, 2018, p. 58).

A ruptura da epistemologia aristotélica operada por Tomás, no caso da euca-ristia, é que o intelecto precisa alcançar o objeto que é a substância sobrenatural do corpo e do sangue de Cristo, indo além do que os sentidos percebem que são as espécies do pão e do vinho. Ou seja, há uma lacuna entre os acidentes e a subs-tância de Cristo após a consagração que estabelece um dualismo real e lógico no ato de conhecer e experimentar a eucaristia entre o que os sentidos percebem e o que o intelecto capta pela fé. Para Zeno Carra esse problema epistemológico da teoria da transubstanciação impacta num dualismo em vários níveis teórico-práticos, tais como, “sacramento-sacrifício; refeição sacramental - refeição es-piritual; corpo-alma; acidentes-substância; sentidos-intelecto” (id. p. 60), e tam-bém nos campos da liturgia, antropologia e ontologia. Por isso, entendemos que é preciso fazer uma atualização da teoria da transubstanciação, ou seja, operar uma leitura intersubjetiva.

3.2 – Ontologia eucarística intersubjetiva

Conforme Paulo a eucaristia é ágape, isto é, festa das comunidades cristãos que consiste em uma refeição comum com a qual celebra-se o rito eucarístico (1 Cor 11, 17-26). Trata-se de uma dimensão intersubjetiva em que os cristãos em uma refeição partilham alimentos em comum e fazem o ato litúrgico vincu-lado ao memorial fundacional da história da libertação repetindo, as fórmulas da Páscoa do Êxodo e atualizadas na Páscoa de Jesus. Paulo articula aqui a dimen-são diacrônica da refeição eucarística: o passado da Páscoa do Êxodo, a presenti-ficação na Páscoa de Jesus, e o futuro escatológico: “De fato, sempre que comeis este pão e bebeis esta taça, anunciais a morte do Senhor, até que volte” (1Cor 11, 26). Paulo acentua que a eucaristia é o ato da unidade e da comunhão da comuni-dade que tem implicações éticas de práticas intersubjetivas entre os comunitários que levam seus alimentos e os partilham com os pobres. O partilhar o pão em comunidade acentua a dimensão eclesiológica através das práticas litúrgicas. 

A eucaristia como refeição convivial explicita a ontologia intersubjetiva eu-carística, por exemplo, nas palavras sobre a taça de vinho: “E tomando a taça, pronunciou a ação de graças e deu-a e todos beberam dela. Disse-lhes: Este é o meu sangue da aliança, que se derrama por todos. Eu vos asseguro que não voltarei a beber do produto da videira até o dia em que o beber de novo no reino de Deus” (Mc 14,23-25). Trata-se de ato que aponta para a refeição escatológica inclusiva de todos, além dos doze. Por isso, o debate sobre o sangue derramado por “muitos” ou por “todos”, em uma dimensão de escatologia intersubjetiva é universal, ou seja, supera o reducionismo da salvação restrita a um grupo de eleitos.

“A presença real de Jesus Cristo nos elementos do pão e do vinho realiza--se através da atualização pneumática do evento de Cristo, assim como evento da ‘presença atual comemorativa’. Neste sentido o pão e o vinho são designa-dos como imagem, símbolo, similitude ou reprodução do corpo e do sangue de Cristo” (EICHER, 2008, p. 210). Atualização pneumática, ou seja, pelo Espírito realiza-se a dimensão da intersubjetividade do evento eucarístico, isto é, os ele-mentos do pão e do vinho são conectados intersubjetivamente entre a memória da subjetividade crística e dos comunitários eclesiais.

Nos primeiros séculos a patrística grega acentua a ideia de participação na realidade da presença de Jesus Cristo na eucaristia. Na igreja oriental mantém-se a tensão entre encarnação e escatologia a partir do esquema arquétipo-imagem, ou seja, a refeição eucarística “já” é a presença de Cristo e “ainda não”, na me-dida em que aponta para o futuro como promessa da realização em plenitude de sua presença constitutiva. A igreja latina tem uma propensão ao elemento indivi-dual e ético, enquanto a igreja latino-africana acentua a marca eclesial como em Agostinho (cf. EICHER, 2008, p. 211). 

As controvérsias medievais sobre a oposição entre dado simbólico e dado real (cf. Ratramno de Corbie e Berengario de Tours) cinde a unidade do sinal sacramental e a realidade significada. Esse problema é resolvido com a teoria da transubstanciação, porém, se prolonga com as controvérsias da Reforma. O conceito de transubstanciação separa o nível metafísico do físico que gera um dualismo epistemológico com implicações antropológicas e eclesiológicas igual-mente dualistas (Id. p. 212).  

A reflexão teológica conciliar e pós-conciliar avança para uma nova com-preensão do conceito de transubstanciação: “a celebração eucarística a partir de um entrelaçamento de relações (assembleia de pessoas – ekklesia; banquete – alimento eucarístico; anúncio – evento salvífico; presidente – o Cristo que age), na qual é inserida a relação do pão e do vinho com o corpo e sangue de Cristo” (EICHER, 2008, p. 214). A eucaristia tem uma estrutura relacional como presen-ça pessoal e presença atual comemorativa do evento pascal enquanto presença real do seu corpo intersubjetivo. 

O conceito transubstanciação é ampliado para transignificação, ou seja, o significado de um evento resulta da estrutura de relacionamentos. Então, o con-ceito de substância é resignificado como uma estrutura intersubjetiva de rela-ções recíprocas em permanente movimento e mudança, que supera o conceito de substância como um ente ou realidade estática (F. Leenhardt; Schoonenberg). Então, “a confissão de fé ‘na presença real, viva e operante de Cristo na eucaris-tia’ não é necessariamente vinculada a terminologia da doutrina da transubstan-ciação” (EICHER, 2008, p. 215). 

A dimensão pneumatológica do evento eucarístico funda-se na profissão de fé: “Creio no Espírito Santo” enquanto confissão da ação histórica do Espírito na igreja; e “creio na comunhão dos santos” enquanto a comunidade eucarística tem uma implicação pneumatológica. A comunidade eucarística é, conforme 1Cor 10,16s, o corpo de Cristo, ou seja, a comunhão dos fieis é edificada e alimentada pela participação eucarística. A Sacrosanctum Concilium afirma que o sujeito litúrgico da celebração eucarística é todo o povo de Deus (números 7; 44). Nesse contexto é fundamental compreender a invocação da descida do Espírito Santo (epiclese) não apenas sobre o pão e o vinho, mas sobre toda a comunidade reuni-da, que pela força do Espírito toda a celebração torna-se transignificada. “Desse modo a comunidade dos fieis pode ser entendida ainda, em tudo e por tudo, como ‘sujeito’ da celebração eucarística” (EICHER, 2008, p. 216). Então, a constitui-ção do sujeito ‘igreja’ opera-se pelo Espírito de Jesus Cristo como uma conexão de relações intersubjetivas. 

Conclusão

Para Schillebeeckx a afirmação da fé na presença de Cristo na eucaristia pre-cisa de uma nova interpretação a partir dos seguintes aspectos: 1º) Conflito entre a filosofia natural aristotélica e a filosofia contemporânea: A filosofia moderna questionou a existência de uma realidade “atrás” do mundo fenomênico. A física quântica não explica as realidades materiais como substâncias, mas como energia dinâmica que constitui todo o real. Filósofos e teólogos que buscam relacionar mundo físico e teologia da eucaristia, afastam-se de reduzir a eucaristia a um fato de estruturas físico-químicas, ou seja, supera-se a compreensão do fisicismo sacramental. Passa-se de uma ontologia natural para uma ontologia sacramental. 

O 2º aspecto enfoca o sacramento em nível do ‘signo’: O concílio de Trento destacou os sacramentos como instrumentos da graça para opor-se aos Reformadores e assim deixou na obscuridade o valor-signo dos sacramentos. Porém, recuperou-se o valor-signo e a função –signo para explicitar a presença real, isto é, trata-se de uma ação-signo na eucaristia como unidade de sentido. O ponto de vista gnosiológico entende o signo como uma indicação de uma realidade ausente, ao contrário, o pensamento fenomenológico situa a realidade do signo a partir de uma antropologia de ação simbólica. A consideração do ato--signo distancia-se dos sacramentos como realidades objetificadas e estáticas e coloca as categorias da dinâmica intersubjetiva, ou seja, os sacramentos como encontros interpessoais em que Deus e os seres humanos se revelam eficazmente um ao outro, num ambiente de realização da realidade da graça (cf. JOSEPH, 1969, p. 136).

Um 3º aspecto é a nova interpretação da ideia de substância – A teolo-gia eucarística dos Reformadores levou a superar o conceito de substância de Trento, que estava baseada numa filosofia aristotélica-tomista entificada. Enfim, a Sacrosanctum Concilium afirma a múltipla presença real de Cristo tendo na liturgia uma densidade própria, porém, todas são presenças reais. A multiplici-dade de modos de presença tem a função de expressar a união entre Cristo e os membros da comunidade como espaço de efetivação de sua presença real, não ocasional, mas ontologicamente constitutiva.

Schillebeeckx entende que houve uma confusão de níveis sobre a teologia eucarística em geral, e sobre a transubstanciação em especial, ao perguntar: O pão cotidiano é ainda pão depois da consagração? No entender dele, essa pergun-ta carece de sentido pois ela pula do nível do culto para o físico. Pode-se fazer uma pergunta física, mas não se pode responder em nível do culto, ou seja, em nível teológico. Uma resposta física a uma pergunta sacramental pode dizer algo físico, porém, essa resposta é irrelevante sob o ponto de vista do sacramento eucarístico. “Por essa razão não é possível olhar a transubstanciação eucarística fora da esfera do significado próprio dos signos sacramentais. Esta pergunta tem que se fazer num contexto especificamente pascal de Cristo que se dá a si mesmo [...] eximindo-se de considerações meramente físicas” (JOSEPH, 1969, p. 139). 

Então, a função do pão e do vinho como atividade simbólica especifica-mente religiosa assinala que os sacramentos não são coisas, mas ações humanas em que os objetos materiais funcionam como meios de significado e realidade religiosa. No contexto da eucaristia, o pão e o vinho recebem o significado da doação de Cristo. As palavras da consagração não se dirigem simplesmente ao pão e ao vinho, mas são dirigidas aos crentes. A presença real de Cristo está nos cristãos através dos elementos do pão e do vinho, ou seja, a presença sacramen-tal dá-se pela ação mediadora de doação de Cristo, unida a ação da igreja como comunidade congregada na eucaristia. Schilleecbx reitera: “A presença de Cristo na igreja é ‘co-constitutiva’ da eucaristia mesma” (JOSEPH, 1969, p. 140). Os dados do pão e vinho não são coisas, mas são o corpo eucarístico pela ação eu-carística da igreja em comunhão com Cristo.  


Referências

AQUINO, Tomás. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2003. 

ARISTÓTELES. Metafísica. V. II. São Paulo: Loyola, 2002. 

BÍBLIA DO PEREGRINO. Luís Alonso Schökel (org.). São Paulo: Paulus, 2006. 

CARRA, Zeno. Hoc Facite. Studio teologico-fondamentale sulla presenza eucaristica di Cristo. Assis: Cittadella, 2018, 287pp. 

EICHER, Peter. Biblioteca di Teologia Contemporanea. I concetti fondamentali della Teologia. V. 2. Brescia: Queriniana, 2008. 

HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la Historia de la Filosofía. II. Fondo de Cultura Económica: México, 1995. 

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2002. HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas. V. I. São Paulo: Loyola, 1995. 

HÖSLE, Vittorio. O sistema de Hegel. O idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade. São Paulo: Loyola, 2007. 

GRILLO, Andrea. Nova teologia eucarística. ‘’Hoc Facite’’, de Zeno Carra. Artigo disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/577335-nova-teologia- -eucaristica-hoc-facite-de-zeno-carra-parte-1 

IBER, Christian. A verdade em Aristóteles e Tomás de Aquino. Albert-Ludwigs-Uni-versität Freiburg. Philosophisches Seminar. Wahrheit in der Geschichte der Philosophie. Sommersemester 2021.Handout. 

JOSEPH, Powers M. Teología de la Eucaristía. Buenos Aires/México: Ediciones Carlos Lohlé, 1969.  

Notas

[1] Ver resenha de Andrea Grillo. Nova teologia eucarística. ‘’Hoc Facite’’, de Zeno Carra em quatro partes disponível em IHU online, abril 2018: http://www.ihu.unisinos.br/578069   

[2] Opiniões escritas em e-mails pessoais entre o autor e o Prof. Christian Iber da Universidade de Freiburg. 

[3] Cf ST III, 75, 3. 

[4] Cf ST III, 78, 4