Wilner Charles*
Luiz Carlos Susin**
*Doutorando em Teologia sistemática na PUCRS. Sou religioso da Congregação dos Oblatos de São Francisco de Sales e trabalho na paróquia Santa Isabel em Viamão/RS. Contato: charleswilner@yahoo.fr
**Professor em teologia fundamental e antropologia teológica no Programa de Pós-graduação em teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Contato: lcsusin@pucrs.br
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Resumo:
Este artigo aborda a temática da presença real de Cristo na Eucaristia a partir do Concilio de Trento às novas perspectivas atuais. Investiga-se como o Concílio de Trento entende a presença real de Cristo na Eucaristia. E determina novos entendimentos possíveis da presença real de Cristo hoje. A eucaristia é o núcleo central da interpretação da presença real de Cristo no pão e no vinho, mas ao mesmo tempo é possível interpretar essa presença a partir dos outros entes. O Concílio de Trento destaca duas maneiras da presença de Cristo: natural e sacramental. A presença natural é no sentido de que Cristo está à direita do Pai. A presença sacramental é a profissão de fé de que Cristo está na Eucaristia. Cristo está presente em todos os atos litúrgicos. Isto é nos momentos celebrativos da vida inclusive numa celebração de aniversário. Está presente em todos os fiéis que assumem seu compromisso batismal seguindo e atuando o projeto de Deus revelado por Cristo.
Palavras chave: Concílio de Trento; Cristo; Eucaristia ; Presença real
Résumé
Cet article aborde le thème de la présence réelle du Christ dans l’Eucharistie du Concile de Trente à de nouvelles perspectives actuelles. Il étudie comment le Concile de Trente comprend la présence réelle du Christ dans l’Eucharistie. Et il détermine de nouvelles compréhensions possibles de la présence réelle du Christ aujourd’hui. L’Eucharistie est le noyau central de l’interprétation de la présence réelle du Christ dans le pain et le vin, mais en même temps, il est possible d’interpréter cette présence du point de vue d’autres entités. Le Concile de Trente met en évidence deux formes de présence du Christ : l’une naturelle et l’autre sacramentelle. La présence naturelle est dans le sens où le Christ est à la droite du Père, la présence sacramentelle est la profession de foi que le Christ est dans l’Eucharistie. Le Christ est présent dans tous les actes liturgiques. C’est à dire dans les moments de fête de la vie, y compris une fête d’anniversaire. Le Christ est présent dans tous les fidèles qui assument leur engagement baptismal en suivant et en agissant dans le projet de Dieu révélé par le Christ.
Mots-clés: Concile de Trente ; Christ; Eucharistie; Présence réelle
Aeucaristia como fonte e o ápice da vida cristã tem um suporte de dois pilares: charis e eleos. Estes últimos são respectivamente graça e misericórdia. Partindo da etimologia charis a Eucaristia é ação de reconhecimento e de agradecimento. Nesse sentido, eucaristia é ação de graça, é gratidão. Está na ordem do bom/bem, substantivado pela ação, por isso toma uma denominação muito particular no hebraico: tob/todah. Também a eucaristia é ligada ao contexto do ato de culto, mas não no contexto da tefila que quer dizer liturgia e súplica (MAZZAROLLO, 1994. p. 110 -111).
Todah é agradecimento. É gratidão. No Antigo Testamento a Eucaristia está na relação, particularmente na celebração da Aliança. A todah é a manifestação da gratidão. É o resultado da percepção da graça e da misericórdia. A todah é a resposta à charitas em sentido de graça recebida de Deus (MAZZAROLLO, 1994. p. 110 -111). Eucaristia é ação sacramental celebrada a cada domingo como centro e raiz da comunidade cristã. Para São Paulo é uma herança que Cristo nos deixou, um testamento (1Cor 11,17-34) (BUYST, JOÃO FRANCISCO, 2014, p. 31).
A eucaristia é o núcleo central da interpretação da presença de Cristo no pão e no vinho, mas é possível interpretar essa presença a partir dos outros entes. Esta é uma discussão que perpassa vários momentos na história do cristianismo, por isso em sintonia com certos pontos históricos delimitamos nossa reflexão tra-balhando a temática “da presença real de Cristo na eucaristia: na perspectiva do Concílio de Trento às novas perspectivas atuais.” A luz desta temática, respon-deremos as duas interrogações seguintes: “Como o concílio de Trento entende a presença real de Cristo na Eucaristia? E quais novos entendimentos possíveis podem atribuir a presença real de Cristo?”. Estas interrogações serão esclareci-das no esquema da organização dessa reflexão cujo objetivo é entender o modo da presença real de Cristo no Concílio de Trento e as novas hermenêuticas atuais da mesma. Então, procedemos três momentos para desenvolver esta reflexão.
No primeiro momento, apresentaremos as consequências da reforma litúr-gica a partir do Concílio de Trento. Essas serão percebidas a partir da análise de uma contextualização e do nascedouro da Reforma Protestante, das posturas e críticas dos Reformadores em relação à prática Eucarística; e, das Atitudes do Concilio de Trento em relação à postura dos reformadores.
No segundo momento, apresentaremos uma hermenêutica da presença real de Cristo na visão do Concilio de Trento. Nisso, apresentaremos certos ante-cedentes históricos da reforma e da hermenêutica de Trento, tendo presente as três posturas seguintes: Padres gregos, Padres Latinos e a Teologia medieval. A seguir, trataremos da Hermenêutica do Concílio de Trento sobre a presença real.
E, por fim, no terceiro momento, apontaremos as novas formas atuais da presença real de Cristo com dois elementos chaves: a presença real de Cristo à luz da sagrada Escritura e das múltiplas formas da presença real de Cristo à luz do Concílio Vaticano II. Como método, seguiremos uma ordem bibliográfica com citação direta e indireta.
No período de 1545-1563, celebrou-se o Concílio de Trento. Foi uma reação ao movimento protestante em oposição a uma série de abusos existentes dentro da Igreja. Esse movimento revoltou também contra muitas práticas da liturgia. Diante desse movimento, o Concilio de Trento promoveu algumas reformas li-túrgicas (BUYST; DA SILVA, 2003. p.48.).
A missão do povo na liturgia era apenas como assistentes. Era cumprir ape-nas uma obrigação de estar presente inativamente. Daí, oriundo os reformadores que tiveram como protagonista, Lutero. Esses exigiram reformas. Acusaram a decadência da liturgia. Essa última, segundo os reformadores, não tinha o espí-rito evangélico. A liturgia era rezada em língua latina. A recitação das orações era em voz baixa. Então os reformadores foram contra estas práticas e exigiram que a liturgia fosse rezada na língua do povo, em voz alta e com a participação efetiva do povo nas celebrações (BUYST; DA SILVA, 2003. p. 49).
Decorrente a contextualização que acabamos de apresentar, nascem várias posições dos Reformadores Protestantes. Podemo-nos mencionar três refutações1 que parecem ser as que mais afetam a área litúrgica: 1) Calvino nega o caráter de sacrifício da eucaristia; 2) Lutero afirma a presença real na eucaristia, mas não aceita a transubstanciação; 2 3) Exigência da comunhão nas duas espécies, como Jesus realizou na última ceia.
Em relação a todas estas provocações, o Concílio de Trento propõe uma re-forma litúrgica para estudar a situação das celebrações de modo especial da mis-sa. Elaborou a lista dos principais abusos que foram introduzidos nas celebrações eucarísticas. Diante disso, foi aprovado um decreto, no dia 17 de setembro de, sobre o que devia ser observado e evitado na celebração eucarística. Na verdade, a decisão do Concílio ao invés de ajudar agravou a situação. Não procurou resol-ver as reinvindicações dos reformadores protestantes. A celebração eucarística permanece em latim. Continuam rezando as orações em segredo. A participação do povo nas celebrações continua apenas como uma obrigação (BUYST; DA SILVA, 2003. p. 49).
No que diz respeito à reforma litúrgica, o Concilio de Trento focalizou mais sua atenção em assuntos de tipo dogmático em torno dos sacramentos. A missa como sacrifício e a presença real de Cristo na eucaristia foram negados pelos reformadores, mas o Concílio analisou a questão e busca elucidá-la teologica-mente afirmando com mais argumento o caráter sacrificial da missa e a presença real de Cristo na Eucaristia (BUYST; DA SILVA, 2003. p. 49-50).
O que mais interessava ao Concílio de Trento era responder as posturas teológicas de Lutero, Calvino e Zuínglio. Trento se preocupava em corrigir os abusos da prática eucarística (ALDAZÁBAL, 2002. p. 190). Quando Trento aborda teologicamente a eucaristia, a doutrina foi apresentada em três sessões diferentes: 1) sessão XIII: presença real; 2) sessão XXI: a comunhão; 3) Sessão XXII: sacrifício. Tudo isso agravou, depois, a busca de uma síntese na doutrina da eucaristia. Na prática, levou os católicos a enxergar o altar e o sacrário como realidades totalmente separadas (BUYST; DA SILVA, 2003. p.50).
No Concílio de Trento, é possível resgatar aspectos positivos como tam-bém aspectos negativos. Em relação aos aspectos positivos, podemos ressaltar a busca de correção de muitos abusos, os esclarecimentos teológicos sobre os sacramentos em geral e a eucaristia de modo especial. De outro lado, o aspecto negativo do Concílio de Trento é a não aceitação de muitas das reinvindicações pastorais dos reformadores (BUYST; DA SILVA, 2003, p. 50).
Entre os reformadores não havia uma comunhão de posição. Dividiram-se entre eles. O debate dos reformadores se baseia em três pilares: sacrifício, a presença real e o cálice dos leigos. Sobre a Eucaristia havia várias posturas opos-tas. Havia de um lado a postura dos reformadores e de outro lado às discussões entre os vários teólogos e padres conciliares. O Concílio não quis resolver estas discussões, mas buscou formulações “neutras”, sobre a natureza do sacrifício ou sobre os modos concretos de explicar a conversão do pão e do vinho. O Concílio de Trento, afinal, foi obrigado a tratar ao mesmo tempo da teologia e da práxis da celebração eucarística, assim como exigiram os reformadores em seu protesto (ALDAZÁBAL, 2002, p. 191).
Os reformadores criticavam vários aspectos negativos da Eucaristia. Aspectos esses que já foram percebidos pelos fiéis católicos. Os aspectos são estes: debili-dade da participação dos fiéis na comunhão, a superstição, a avareza, o comércio eucarístico pelos sacerdotes denominados altaristas, as missas privadas nas quais só o padre comunga, missas secas, explicações alegóricas e outros. Tudo isso era considerado como abusos eucarísticos (ALDAZÁBAL, 2002, p. 192).
Convém ressaltar a visão dos reformadores. Para eles “a reserva eucarística e o culto eram considerados como idolatria e como uma inovação que o NT não admitia”. Na perspectiva dos reformadores, a presença de Cristo na eucaristia não permanece depois. Cristo não é para ser adorado depois da celebração e também não é para ser guardado (ALDAZÁBAL, 2002, p. 193). Segundo os pro-testantes, as missas em que só comunga o sacerdote não são lícitas e devem ser abolidas. Reclamam que os fiéis devem comungar sob as duas espécies. Porque, segundo eles, Cristo não está inteiro em cada uma das espécies.
Lutero: Este não desconhece a presença real de Cristo na Eucaristia, porém não aceita a transubstanciação como modo de explicar essa presença. Lutero defende uma verdadeira presença de Cristo com corpo e sangue, mas considera o conceito de transubstanciação como um sofisma sutil, que nada vale. No lugar da Transubstanciação, ele usa a seguinte fórmula: Jesus está presente em, com e sob os elementos de pão e vinho (SCHNEIDER, 2012, p. 261). Ele parte do conceito de Consubstanciação que é rejeitado por Trento. A consubstanciação de Lutero supõe uma união menos estável e que pode ser mais compatível com a fé na presença de Cristo só durante a celebração e não fora dela.
Segundo Lutero, nas espécies do pão e do vinho não existe nenhuma con-versão ontológica de corpo e sangue de Cristo. Em sua explicação ressalta que o corpo e o sangue de Cristo estão junto com o pão e o vinho. Estes últimos não deixam de sua essência. Segundo a compreensão de Lutero, de acordo com o Novo Testamento, as espécies continuam sendo pão e vinho (ALDAZÁBAL, 2002, p. 205).
A presença real de Cristo no pão e no vinho, no entendimento de Lutero, não é vista pela conversão, mas sim pela ubiquidade de Cristo como Deus para fazer--se presente onde quer. Argumenta, a partir do Evangelho, de que Cristo já nos disse de uma vez por todas, está realmente no pão e no vinho da Eucaristia. Mas para isso, não precisa se recorrer a uma mudança substancial (ALDAZÁBAL, 2002, p. 205). Lutero pensou que a eucaristia é para ser comida e não para ser adorada.
Calvino: Este nega a presença real. Como argumento, parte de uma cristo-logia que acentua na humanidade de Jesus. Cristo subiu à gloria na ascensão e está à direita do Pai, portanto não pode estar ao mesmo tempo em outros lugares. Calvino focaliza mais na teologia da ascensão do que na teologia da encarnação. Ascensão é a migratio ab uno loco in alterum e, portanto, é entendida como algo corporal. Para Calvino, na Eucaristia não pode dar-se uma presença de Cristo, uma presença entendida, sobretudo como local (ALDAZÁBAL, 2002, p. 202). Segundo ele “A ceia mesma é uma dádiva de Deus, que era de receber-se com ação de graças, o sacrifício da missa se imagina pagar a Deu um preço que rece-ba como satisfação” (SCHNEIDER, 2012, p. 251).
Calvino defende que “a Eucaristia não é um sinal vazio: do céu, Cristo por seu Espírito nos atrai para si e nos comunica sua força salvadora” (ALDAZÁBAL, 2002, p. 202). Na Eucaristia não se dá um movimento descendente, mas se dá um movimento ascendente, pois é Cristo que nos eleva para si pelo Espírito. Isto não se faz apenas pelo pão e pelo vinho, mas também pela palavra e pela oração (ALDAZÁBAL, 2002, p. 202).
O mérito da posição de Calvino é a sua insistência no protagonismo do Espírito, na importância do corpo glorioso de Cristo e na dinâmica ascensional que impregna a Eucaristia. Porém, a carência de sua posição é não saber integrar esses valores com a convicção bíblica e eclesial da presença real desse Cristo glorioso na Eucaristia (ALDAZÁBAL, 2002, p. 204).
Lutero também se posiciona contra a Eucaristia como sacrifício. Segundo o seu entendimento, o cristianismo não pode ser entendido como oferecer algo a
Deus (sacrificium), mas como receber dele, que é único que nos dá a graça (be-neficium). Para Lutero o único que oferece algo a Deus em sentido ascendente é Cristo. Segundo ele, afirmar que a Eucaristia é sacrifício é uma ofensa e uma blasfêmia contra o valor e a unicidade do sacrifício de Cristo. No seu modo de ver, não podemos ser protagonistas, oferendo algo a Deus. O protagonismo é Deus, por Cristo, concedendo-nos tudo a nós. Para Lutero a Eucaristia é testa-mento, sacramento, benção, ação de graças, mesa do Senhor, comunhão, mas nunca é sacrifício (ALDAZÁBAL, 2002, p. 197). Então, como o Concilio de Trento reagirá diante destas posturas? É o que vamos apontar agora.
Os méritos do Concílio de Trento eram as tentativas de corrigir certos abu-sos da eucaristia. Por exemplo: convidou os fiéis a comungar. Trento se opôs às missas privadas em casas particulares que se multiplicavam por devoção pesso-al, por memória de defuntos ou por interesses econômicos. Diante de tudo isso, o Concílio de Trento colocou um freio geral no modo de celebrar. O que foi muito crítico, é que as decisões de Trento tiveram uma debilidade na questão pastoral (ALDAZÁBAL, 2002, p.193).
Na verdade, as orientações sobre a Eucaristia no Concílio de Trento foram decisões de enfrentamentos aos reformadores. Por isso estas orientações pas-saram longe de uma visão pastoral eucarística (ALDAZÁBAL, 2002, p. 193). Diante da posição dos reformadores, o Concílio de Trento defendeu que não só durante a celebração da eucaristia que se contempla a presença de Cristo, mas também depois. Afirma que é coerente o culto de adoração a Cristo e os seus adoradores não são idólatras. É lícito levar a eucaristia aos enfermos (ALDAZÁBAL, 2002, p. 193).
O Concílio decretou que em cada missa os fiéis assistentes comungassem a fim de que o fruto deste sacrífico chegasse mais abundante a eles, mas se não o fizerem, seria exagero dizer que isso invalida a Eucaristia (ALDAZÁBAL, 2002, p. 193). Trento argumenta que é falso dizer que Cristo não está inteiro em cada espécie. Cristo está inteiro em cada espécie (ALDAZÁBAL, 2002, p. 194).
Para responder a Lutero sobre o caráter sacrificial da Eucaristia, Trento trata a Eucaristia como o memorial, representação e aplicação do sacrifício pascal. Eucaristia, como a ceia pascal dos Judeus, é memorial e atualização do grande acontecimento salvador do êxodo (ALDAZÁBAL, 2002, p. 198). Em Trento a memória “é algo mais do que recordatio Passionis ou nuda commemoratio sa-crificii in cruce peracti, como para os protestantes.” Memória é representação do sacrifício da Cruz. É idem sacrificium, não é outro. A Igreja oferece esse sacrifí-cio com o protagonismo do próprio Cristo (ALDAZÁBAL, 2002, p. 199). Ainda segundo Trento, o sacrifício da Eucaristia como memorial e representação do sacrifício da cruz, é em verdade propiciatório para o perdão dos pecados porque é o mesmo da cruz. Demostra a diferença de como acontece cada um. Assim na cruz o sacrifício foi cruento e na eucaristia incruento, mas o sacerdote é o mes-mo e a vítima, Cristo Jesus. A distinção está apenas no modo da oferenda, “ratio offerendi diversa” (ALDAZÁBAL, 2002, p. 199).
Diante de toda a reação do Concílio de Trento no que diz respeito a celebra-ção eucarística vamos então no ponto a seguir apresentar uma hermenêutica do Concílio de Trento sobre a presença real de Cristo.
Para aproximar a hermenêutica do concílio de Trento em relação a presença real de Cristo, é necessário entender alguns antecedentes históricos anteriores aos reformadores como também a Trento. Porque as posturas de Trento procu-ram seguir um caminho histórico. Temos, por exemplo, a teologia eucarística dos padres gregos, latinos e dos medievais. São posturas que se divergem e ao mesmo tempo convergem em vários pontos. Porém, a percepção de Trento é uma síntese desta caminhada buscando eliminar tudo o que não for tão necessário na prática da fé. Por isso, antes de abordar a hermenêutica da presença de Cristo na visão do Concílio de Trento, é mister notar a posição dos Padres gregos, latinos e a teologia medieval no que tange à presença real de Cristo na Eucaristia e por último apresentaremos a hermenêutica de Trento.
Os padres gregos trabalham em relação à presença real de Cristo na Eucaristia o conceito de anamnese. A eucaristia é a memória presentificadora, nela a história salvífica se torna presente, toda a história de Jesus, desde a en-carnação até a morte de cruz, ressureição e ascensão, e com ela o sujeito dessa história: Jesus Cristo como atuante (Presença atual), mas Jesus também se torna presente oferenda sacrificial em seu corpo e sangue. Assim, amplia-se a presen-ça atual do efeito salvífico para a presença real do corpo e do sangue de Jesus (SCHNEIDER, 2012, p.256).
Então para os padres gregos a ideia de presentificação é transmitida em ca-tegorias diferentes. A Eucaristia é imitação (Mimesis), figura (eikon), imagem (typos, antitypos), parábola (homoioma), símbolo (Symbolon) do Senhor glorifi-cado e de sua história (SCHNEIDER, 2012, p. 256).
Segundo Santo Ambrósio, antes de executar a consagração o pão é pão. Quando acrescentar as palavras de Cristo, é corpo de Cristo. Da mesma forma, antes das palavras de Cristo, o cálice está cheio de vinho e água. As palavras de Jesus fizeram efeito, surge sangue, que redime o povo. Santo Ambrósio focaliza assim na transformação das oferendas (SCHNEIDER, 2012, p. 256). Já, Santo Agostinho, focaliza mais no caráter sinal do sacramento. O que lhe interessa é inter-relação simbólica dos níveis: Pão-corpo terreno de Cristo-comunhão da Igreja.
Agostinho responde a pergunta de Calvino e outros que disseram “como o corpo de Cristo, que subiu ao céu e que agora está sentado à direita do Pai, pode-ria estar no pão e no vinho”? Assim responde
Se quiseres entender corpo de Cristo, então ouve o que diz o apóstolo aos crentes: vós sois o corpo de Cristo. Se, portanto, vós sois o corpo de Cristo, então o vosso mistério está depo-sitado na mesa do Senhor. Vós recebeis o vosso mistério. Ao que respondeis Amém. Tu ouves: corpo de Cristo, e respon-des: Amem. Sê um membro do corpo de Cristo afim de que teu amém seja Verdadeiro (SCHNEIDER, 2012, p. 257).
A diferença que existe entre Agostinho e Ambrósio é que o primeiro está in-teressado na realização da comunhão eclesial, enquanto o segundo é interessado no consentimento confessional da transformação substancial de pão e de vinho (SCHNEIDER, 2012, p. 257). Para os santos Padres, Eucaristia tem como foco o mistério celebrado, isto é, ações rituais e as palavras que as acompanhavam. Focalizam-se na mistagogia. Podemos dizer que do ponto de vista da teologia, a eucaristia parte da ação ritual eucarística.
Na Idade Média, foi rompida a unidade entre teologia e celebração. Tornou-se mais importante a consagração e a comunhão. A Eucaristia teve como base três eixos: sacramento como presença real, sacrifício como relação entre a eu-caristia e morte de Jesus na cruz, e comunhão como abordagem mais espiritual teológica. Então, na idade Média, essa teologia teve como objetivo explicar ra-cionalmente o sacramento da eucaristia. Se no período da patrística a preocupa-ção mistagógica foi necessária para uma vivência do mistério, pelo contrário, na idade Média era mais necessária a busca por uma explicação racional (BUYST; JOÃO FRANCISCO, 2003, p. 32).
Concentra-se num pensamento mais realista do que simbolismo. Cresce mais distanciamento e mais entre imagem e verdade, sinal e coisa sinalizada, símbolo e realidade, de maneira que não se pode mais dizer como os padres gregos “real porque é representado na imagem”. Pelo contrário, pode-se perguntar “imagem ou realidade?”. Esta visão medieval põe em crise a tradicional teologia do sacramento pensado em termos de simbolismo real (SCHNEIDER, 2012, p. 257).
“A mentalidade da Idade Média primitiva (...) vê no pão transubstanciado uma espécie de remédio, a espiritualidade da alta Idade Média, de orientação mais pessoal, apoiada na ideia da contemplação salvífica, procura o contato com Jesus Cristo na contemplação da hóstia” (SCHNEIDER, 2012, p. 257). Na “li-turgia, a atenção se concentra no momento da transubstanciação que, a partir do século XIII, é destacada pela elevação da hóstia e do cálice, por genuflexão e repicar da sineta da consagração. Desde o século XI, se substitui o pão a ser par-tido na celebração por discos de hóstias pré-fabricados” (SCHNEIDER, 2012, p. 257). Entre o século XII e XIII começa-se a subtrair o cálice aos comungantes. O que faz desaparecer o caráter da ceia. A comunicação com Cristo se dá por meio de contemplação veneradora. Isto se focaliza mais na festa do Sagrado Coração de Jesus que nasceu em Liège, e que se tornou universal na Igreja a partir de 1264. Focaliza também pela veneração de Cristo na custódia eucarísti-ca que foi desenvolvida a partir do século XIV (SCHNEIDER, 2012, p. 257). A Transubstanciação do pão e do vinho torna-se, na teologia medieval, o tema prin-cipal da teologia eucarística. A discussão gira em tornar de “imagem ou realida-de”. Havia muitas interpretações objetivas e espiritualistas da presença de Cristo.
Pascácio Radberto acentua a identidade do corpo de Cristo eucarístico com o terreno. Ratramno orientado em Agostinho defendeu a opinião de que a transubstanciação de pão e vinho não deveria ser entendida corporalmente, e sim espiritualmente, figurativamente. Para Berengário de Tours o pão e o vinho são como símbolos da presença de Cristo, porém, não poderia estar presente na Eucaristia, porque encontraria no trono celestial à direita de Deus até a Parusia (SCHNEIDER, 2012, p. 258). É bom lembrar que este Berengário foi condenado várias vezes e foi obrigado a assinar uma confissão de fé extremamente realista em Roma, pelo Cardeal Humberto de Silva Cândida, “depois da consagração, pão e vinho não são apenas sacramento, e sim, verdadeiro corpo e verdadeiro sangue de Jesus Cristo, os sacerdotes os manuseia e parte, e doentes dos fiéis os mastigam sensualmente não apenas de modo sacramental, e, sim, de verdade” (SCHNEIDER, 2012, p.258).
Na teologia medieval, toda discussão girou-se em torno de “apenas sacra-mental” contra “de verdade”. Essas discussões são uma perda de sintoma em termos de simbolismo da Igreja antiga e das posições opostas nascem entre o simbolismo extremo (apenas símbolo) e extremo realismo (sensualista), que não toma sério a realidade do pão e do vinho. A Confissão de fé de Berengário for-mula uma transformação substancial.
Guitmundo: Este procura diferenciar entre substância e acidentes: “trans-forma-se a substância das coisas, mas o gosto anterior, a cor e os demais aciden-tes sensuais permanecem” (SCHNEIDER, 2012, p. 258).
Com isso abre o caminho para a doutrina da transubstancia-ção, aceita pelo magistério da Igreja no IV Concílio de Latrão (1215) e que é ampliada pela teologia da alta escolástica no sentido da metafísica aristotélica: acidentes referem-se à re-alidade, vista pelo intelecto espiritual. Transubstanciação diz que muda a essência, não, porém, os acidentes (SCHNEIDER, 2012, p. 258).
Com essa diferenciação se tornou possível expressar a tensão, própria do con-ceito de sacramento, entre sinal real (pão e vinho) e realidade sinalizada (corpo e sangue), sem que houvesse necessidade de reduzir um em detrimento do outro. Foi útil essa terminologia enquanto se tinha consciência de que substância representa uma categoria metafísica de ser assim, passamos a entender sob a substância a di-mensão do físico, erra-se com termo transubstanciação justamente a convicção por causa da qual o conceito foi introduzido (SCHNEIDER, 2012, p.258).
Observa-se, no período medieval, toda teologia sobre a presença real de Cristo que se concentra na oferenda do pão e do vinho e sua transformação. Em relação à Escritura e patrística, a visão medieval sobre a teologia eucarística é uma visão reduzida, pois não volta o evento eucarístico da ceia como um todo (SCHNEIDER, 2012, p. 259).
Conforme a tese de Zeno Carra, o Concílio de Trento foi um concílio que marcou a prática do Cristianismo e que hoje nos faz pensar um novo modelo sob a presença real de Cristo na eucaristia. Este concílio, contém cânones e doutri-nais. Os cânones e os elementos doutrinais nascem à base de várias discussões dos reformadores. Neste contexto, para entender a postura de Trento sobre a pre-sença real de Cristo na eucaristia é preciso entender as discussões que surgiram naquele tempo (CARRA, 2018, p. 71).
Os cânones de maior peso estão em Trento, são breves enunciados de regu-lamentação jurídica da linguagem. Os cânones de Trento contêm dois níveis: o nível estrutural vinculado à prática e o nível lexical vinculado à reflexão teológi-ca. Em princípio, os cânones proscrevem sentença lexical, pois em sua matéria de fé não revelam a “eclesialidade”. Havia um paralelo entre a prática eclesial e a reflexão teológica. Assim, os cânones de Trento não tiveram como objetivo ser uma doutrina, mas sim, excluir afirmações teológicas desvinculadas com a prática eclesial daquele tempo. Podemos afirmar que os cânones de Trento visam a identificar os heréticos. O objetivo do Concílio de Trento era de condenar here-sias e não expor doutrinas. Basta ressaltar que o cânone não é uma fonte positiva de verdade doutrinaria, mas é um ato jurídico de barreira contra um léxico antie-clesial (CARRA, 2018, p. 71). Esta análise sobre a posição de Trento leva a um duplo nível, correspondentes ao duplo nível dos textos: 1) responde a um perigo para a eclesialidade e a fé. 2) Propor conteúdo.
Apesar de todos os movimentos opostos em relação à presença real de Cristo na Eucaristia, em nenhum momento o Concilio de Trento se cansou em defender a presença real de Cristo mediante seus cânones. O Concílio buscou argumentar sua fé. Assim, reafirma a presença verdadeira, real e substancial de Cristo na Eucaristia. Vejam os seus modos de proceder, a seguir, sobre a eucaristia:
Cap. 2. Portanto, nosso Salvador, ao deixar este mundo para ir ao Pai, instituiu este sacramento, no qual como que derramou as riquezas do seu amor divino para com os homens, “deixan-do o memorial de suas maravilhas” (Sl 111,4), e ordenou-nos que, ao recebê-lo, celebrássemos “sua memória” (1Cor 11,24) e proclamássemos sua morte, até que ele mesmo venha julgar o mundo (1Cor 11,26).
Cân. 1. Se alguém negar que, no sacramento da Santíssima Eucaristia, está contido verdadeira, real e substancialmente o corpo e o sangue, juntamente com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo e, portanto, o Cristo inteiro, mas disser que só estão como que em sinal ou em figura ou na eficácia: seja anátema.
Cân. 3. Se alguém negar que sob a espécie só do pão é rece-bido o Cristo todo e inteiro, fonte e autor de todas as graças, porque, como alguns afirmam erroneamente, não se recebem ambas as espécies segundo a instituição do próprio Cristo: seja anátema.
Cân. 11. Se alguém disser que na Missa não se oferece a Deus um sacrifício verdadeiro e próprio, ou que o ser oferecido não é mais do que Cristo ser dado a nós em alimento: seja anáte-ma. 3
O Concílio de Trento explica que depois da consagração do pão e do vi-nho está contida verdadeira, real e substancialmente nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e homem, sob a aparência daquelas coisas sensíveis. Reafirma a convicção secular da presença real: Cristo está presente realmente e substan-cialmente. Para o Concílio de Trento há duas maneiras de presença: uma natural e outra sacramental. De ponto de vista da presença natural na mesma linha de Calvino ressalta que Cristo está à direita do Pai. O Concilio não rejeita a teolo-gia da ascensão de Jesus resgatado por Calvino, mas busca também resgatar a teologia da encarnação rejeitada por ele. Para a presença sacramental ressalta a profissão de fé de que Cristo está na Eucaristia. No entendimento do Concílio de Trento a presença real de Cristo na Eucaristia é sacramental. O mérito deste Concílio é o fato de distinguir a presença real segundo o modo natural de existir e sacramental (ALDAZÁBAL, 2002, p. 203-204). Calvino reconhecia apenas a presença natural e desconheceu a presença sacramental.
Segundo Trento, a razão de ser da Eucaristia é memorial da morte de Cristo até que ele volte e é para o momento presente alimento, fortaleza e vida. É antí-doto contra o pecado. É penhor da felicidade futura e símbolo do corpo eclesial e de sua unidade (ALDAZÁBAL, 2002, p. 204).
Em Trento, a presença real de Cristo na Eucaristia é explicada a partir da transubstanciação, e não como Lutero, à base de consubstanciação. Assim, como escreve Grillo, “não se trata de “definição” da presença real, mas sim de uma explicação de autoridade, mas não definitiva, dela”. 4
A transubstanciação é um termo que, historicamente, teve a função de “salvaguardar um conteúdo” em um contexto polê-mico. Tal função, hoje, deve ser conjugada com uma reivindi-cação diferente, ou seja, a de recuperar as “formas mais ade-quadas e mais ricas” desse conteúdo. Para essa recuperação, a noção de transubstanciação parece ser não apenas uma antiga riqueza, mas também uma nova pobreza5.
No dizer de Grillo6, Giuseppe Colombo em sua obra Teologia sacramen-taria afirma que a transubstanciação “é considerada (…) não como uma ver-dade distinta da presença real, no sentido de se propor como objeto próprio e à parte da fé católica; mais simplesmente, como uma explicação possível, mas, em todo o caso, não necessária, da presença real”.
“A presença Eucarística de Cristo começa no momento da consagração e perdura, enquanto subsistirem as espécies eucarísticas. Cristo está presente intei-ro em cada uma das espécies e inteiro em cada uma das partes de maneira que a fração do pão não divide o Cristo (CIC, n.1377)”. Esta compreensão do Concilio de Trento não exclui outras presenças reais de Cristo. O Concilio se preocupou em explicar a presença real de Cristo na Eucaristia, mas deixa em aberta para outras hermenêuticas da presença de Cristo.
É correta a explicação de Trento sobre a presença real de Cristo na Eucaristia, mas esta explicação apresenta certas carências rituais. Grillo nos apresenta em seu artigo intitulado “a sineta na consagração e a transubstanciação” 7 algumas destas carências que assim ressaltamos: 1) O centro do rito da eucaristia se transforma em ato interno a oração eucarística e perde gradualmente o contexto orante que o estrutura. 2) A centralidade da dinâmica ampla entre oração/sacrifí-cio/comunhão foi substituída pela relação estreita entre palavras de consagração e matéria eucarística.
Na missa, se oferece a Deus um verdadeiro sacrifício. A missa não é uma repetição do sacrifício na cruz, mas é uma representação de sua memória e da dispensação de seu poder. No sacramento da Eucaristia, estão contidos verdadei-ro, real e substancialmente (vere, realiter e substancialiter) o corpo e o sangue, juntamente com alma e com divindade de nosso Senhor Jesus Cristo não está apenas como sinal, na imagem ou na eficiência, mas é real. Sobre a transfor-mação do pão e do vinho da essência Trento confirma essa doutrina usando o conceito de transubstanciação. Este conceito em si não é objeto da fé, mas fala de uma transformação a qual a Igreja católica chama de modo muito apropriado de transubstanciação (SCHNEIDER, 2012, p. 261). Esta última é muito mais estável e intrínseca, uma conversão do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo. É mais coerente com o culto depois da celebração (ALDAZÁBAL, 2002, p. 206).
Neste ponto, propomos de ampliar a presença real de Cristo para além do rito da consagração do pão e do vinho. Esse ensaio, para uma nova teologia eu-carística é necessário para nossa evangelização no mundo atual. Como já elen-camos, o Concilio de Trento defendeu muito bem a presença real de Cristo na Eucaristia. Sua reflexão diz respeito ao contexto o qual se refere. Porém, hoje em nossa realidade Latino Americana, cristo não está presente apenas numa parte de uma celebração. Então, nosso objetivo nesse capítulo, é ampliar num primeiro momento a presença real de Cristo para além da consagração do pão e do vinho de modo que essa presença se torna visível em todas as partes da celebração. E também ampliar a presença real de Cristo para além de uma celebração ritual.
Segundo a hipótese da tese de Carra “a presença eucarística não pode mais ser dita e praticada na categoria ÔNTICO-ESPACIAL do conteúdo (substân-cia), mas na dinâmica relacional da entrega processual de uma forma” (CARRA, 2018, p. 259).8 A posição de Carra sobre a presença real de Cristo poderia servir como uma das belas contribuições do assunto se não fosse uma posição exclu-siva. Deveria ser um complemento e não eliminar a presença real de Cristo na Eucaristia. Mesmo que a presença real de Cristo seja uma presença relacional, isso não deveria excluir a posição de Trento que proclama a presença real de Cristo, no pão e no vinho, quando são consagrados por um presbítero, pois isto não elimina outras contribuições.
Carra problematiza assim “a partir dessa hipótese sobre a presença eucarís-tica, não poderíamos interpretar a presença divina na história, ou seja, a forma pela qual Deus se faz presente na história?” Carra partiu de um pressuposto que pode nos ajudar a identificar várias formas da presença real de Cristo que não era de fato o objetivo do Concilio de Trento. Este Concílio buscou aprofundar um aspecto da presença real de Cristo. Sua posição não nos impede de aprofundar outras formas de presença.
A presença real de Cristo em pão e vinho deve ser vista em contexto maior. A presença real de Cristo é uma presença escatológica. O próprio Cristo está pre-sente em seu Espírito. É sujeito do evento eucarístico. Não é presentificado por manipulação humana, mas é ele mesmo que cumpre sua promessa e concede sua proximidade. A presença real de Cristo está além de uma celebração ritual, pois o próprio Cristo disse em Mateus “onde duas ou três pessoas se reuniram, ele também está presente entre elas” (Mt18, 20). Em outras palavras, diríamos que Cristo entra na roda dos que estão reunidos em seu nome: no anúncio da pala-vra, na anamnese da última ceia, no partir do pão, na distribuição das oferendas. Então, a presença de Cristo é um processo dinâmico.
Cristo vem com sua história. O evento da ressureição de Cristo é uma base de sua presença real. Pois o ressuscitamento do Senhor é a vigência de sua histó-ria da vida, porque o Senhor exaltado carrega em seu corpo as marcas de sua vida e de seu sofrimento por todos os tempos (Jo 20,20). Nesse sentido, a esperança na vinda do Ressuscitado torna sempre presente sua vida e sua paixão, seu amor e o sacrifício que esse amor custou (SCHNEIDER, 2012, p. 266).
A presença real de Cristo é uma presença solidária. Considerando o Evangelho de João (12, 8) Conforme Mateos e Barreto (1989, p. 515), a presen-ça de Jesus com os seus tem duplo aspecto. O primeiro, é a identificação com sua pessoa (Jo14, 20) pelo Espírito, a glória que ele recebe do Pai e comunica aos seus. Assim, realiza a união com ele e com o Pai. Isso mostra que Jesus está presente na comunidade, mais do que como termo de relação, como fonte de vida, que é o princípio e capacidade de relação com toda a humanidade. A rela-ção pessoal com Jesus assim consiste em permanecer com ele. Aceitar a vida que dele emana (Jo15, 4-5).
O segundo aspecto entende a presença de Jesus como termo exterior de re-lação; esta presença termina com sua morte. O termo da relação será constituído daí por diante pelos pobres, que permanecem sempre. Jesus, presente na comu-nidade, comunica-lhe o dinamismo do seu amor e, a través dela, alcança a pessoa dos outros (BARRETO; MATEOS, 1989, p. 515).
A luz da Sagrada Escritura, não duvida em reconhecer a presença real de Cristo nas espécies do pão e do vinho. Os próprios discípulos no caminho de Emaús reconheceram Jesus, o Ressuscitado no partir do pão: “E aconteceu que quando se acomodou, se acomodou à mesa com eles, tomando o pão, deu graças, partiu-o e o distribuiu entre eles. E os olhos deles se abriram e o reconheceram” (Lc 24,30-31).
A presença real de Jesus é confirmada mediante várias aparições nos evan-gelhos. Em João (20,19-23) apareceu aos discípulos e depois a Tomé (Jo 20,26). Não temos dúvida que as aparições em João como nos sinóticos confirmam a fé dos discípulos na ressureição de Cristo, para que assim possam continuar a missão com fé e esperança de que Cristo continua sendo presente no meio deles. Mas também as aparições de Cristo nos ajudam a entender a presença real de Jesus no pão e no vinho que pode ter diversas significações para o mundo cristão do século XXI.
A unidade perdida entre o período da patrística e da Idade Media, ou seja, entre teologia e ação ritual foi aos poucos se recuperando no concilio Vaticano II. Este último, assume o resultado dos estudos bíblicos e patrísticas sobre a eu-caristia (BUYST; DA SILVA, 2003. p. 32.).
A eucaristia é estruturada por dois elementos fundamentais que são a oração eucarística unida à comunhão comunitária. Tomado numa dimensão horizontal a oração e a comunhão comunitária têm caráter da ceia. A oração eucarística é a benção da mesa que supõe espontaneamente a comunhão comunitária. Podemos acrescentar uma dimensão vertical ao lado da dimensão horizontal. A dimensão horizontal é a comunidade reunida e a dimensão vertical é a beraká, é o louvor a Deus por nossa criação e nossa salvação em Cristo. A oração eucarística e a comunhão formam uma estrutura indissolúvel. Constituem uma unidade funda-mental e estrutural da celebração eucarística (VERHEUL, 1982, p. 80-81).
“A Eucaristia é misterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceita pela fé” (JOÃO PAULO II, 2003, n.16). A Eucaristia é um mistério de fé. Sua ação é uma ação de sinais. O Pão e o vinho são sinais que podem ser fecundos se a comunidade os celebra realmente com fé (VERHEUL, 1982, P. 84). “A Eucaristia é o verdadeiro banquete, onde Cristo se oferece como alimento” (JOÃO PAULO II, 2003, n.16).
O Concílio Vaticano (SC, p.21) II já explica de que modo Cristo está presen-te na eucaristia. Cristo está presente na Igreja e nas ações litúrgicas. Esta é uma visão que nos faz entender diversas formas da presença real de Cristo. Quando o Concilio afirma que Cristo está presente na Igreja, logo devemos perguntar o que significa Igreja para o Concilio? Igreja é povo de Deus. Então, Cristo está presente no Povo de Deus. E dizer que Cristo está presente nas ações Litúrgicas é dizer que está presente em todos os atos celebrativos do povo de Deus. Estas formas de presença não desconhecem a presença real nas espécies do pão e do vinho, mas amplia essa presença.
O Senhor vem entre os seus de muitos modos, que exigem não simplesmente o “ritus servandus” de uma única “fórmula”, de uma única “matéria” e de um único “ministro”, mas sim a celebração comunitária de uma forma ritual, de uma matéria simbólica e em uma dinâmica eclesial entre assembleia cele-brante, conjunto ministerial e presidência. 9
Cristo está sempre presente nas ações litúrgicas, no sacrifício da missa como na pessoa do ministro. A presença de Cristo se manifesta na força dos sacra-mentos. Cristo está presente na palavra. Enfim, Cristo está presente na missão da Igreja que se realizam em prol dos necessitados. A luz do Concilio Vaticano II expressado em “Sacrosanctum Concílum” a liturgia é o exercício do múnus sacerdotal de Cristo (SC, n.7).
A presença real de Cristo se percebe onde existe: solidariedade, amor, fra-ternidade e comunhão. A partilha torna-se símbolo por excelência da presença real de Cristo nas comunidades cristãs. A presença real de Cristo hoje se percebe onde a paz e a justiça reinam sobre o medo e a injustiça. Eucaristia é a fonte da presença real de Cristo. Mas esta eucaristia precisa ser expressiva na vivência diária. A presença real de Cristo na Eucaristia é uma presença atuante no com-promisso de cada batizado com o projeto de Deus revelado em Jesus.
Como expressa no Documento de Aparecida (DA, n.256) “Jesus está pre-sente em meio a uma comunidade viva na fé e no amor fraterno. Jesus presente em todos os discípulos que procuram fazer sua existência de Jesus, e viver sua própria vida escondida na vida de Cristo (Cl 3,3).” Os discípulos experimentam a força da ressurreição de Cristo até se identificar profundamente com Ele: já não vivo eu, mas é Cristo que vive em mim (Gl 2,20) (DA, n.256). Cristo está pre-sente em todas as pessoas que se identificam como Ele mediante atos e palavras. Jesus está presente nas pessoas que “dão testemunho de luta pela justiça, pela paz e pelo bem comum” (DA, n. 256). Jesus está presente nos pobres, aflitos e enfer-mos que exigem compromisso e dão testemunho da fé, paciência no sofrimento e constante luta para continuar vivendo (DA, n.256).
No reconhecimento da presença real de Cristo, na proximida-de e na defesa dos direitos dos excluídos encontra-se a feli-cidade da Igreja a Jesus Cristo. O encontro com Jesus Cristo através dos pobres é uma dimensão constitutiva de nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa dignidade, Ele mesmo nos revela, surge nossa opção por eles. A mesma união a Jesus Cristo é a que nos faz amigos dos pobres e solidários com seu destino (DA, n. 257).
Carra, em Sua tese, nos ajuda a entender tudo o que viemos expor sobre a presença real de Cristo para além de uma celebração ritual. Nada contradiz a presença real de Cristo numa celebração ritual, nada também diz tampouco à presença real de Cristo, está apenas numa celebração ritual. Então, podemos di-zer que uma das formas da presença real de Cristo é a celebração ritual. E nessa ainda, Cristo está presente nela e em cada parte que forma o todo.
A presença real de Cristo dentro de uma celebração ritual é uma presença re-lacional. Essa se dá no presidente da celebração e nos participantes enquanto se relaciona com os outros. A presença real de Jesus se dá em atos e palavras, mas sempre num processo relacional. Para além da forma que são as palavras institu-ídas por Cristo, pode também levar em conta as ações de Cristo continuadas nos batizados como sua presença real. Para além do pão e do vinho a matéria da pre-sença real de Cristo pode ser considerada como justiça e paz. A forma é sempre a maneira propícia para construir uma nova humanidade com respeito e dignidade.
Esta reflexão sobre a presença real de Cristo na Eucaristia teve seu ponto de partida a partir do Concilio de Trento averiguando a compreensão da presen-ça real de Cristo, segundo a visão de Trento e apontando novas formas dessa presença na realidade atual. Procuramos, num primeiro instante, determinar as consequências da Reforma do Concílio de Trento onde nos elencamos algumas situações das celebrações que fizeram alguns teólogos se revolucionarem e exi-girem tal reforma.
O Concilio de Trento foi uma reação oposta ao movimento protestante que reagiu fortemente em relação à prática da Igreja. Entre os reformadores havia várias posturas opostas sobre a presença real de Cristo. Então, depois de aludir algumas posições divergentes e, às vezes, complementos entre os reformadores, trabalhamos a hermenêutica da presença real de Cristo na eucaristia conforme a visão de Trento e por fim elencamos novas formas da presença real de Cristo.
De fato, o Concílio de Trento adota como explicação da presença real de Cristo o conceito de transubstanciação. Historicamente, este conceito, teve a função de salvaguardar um conteúdo em um contexto polêmico. Para Trento a presença Eucarística de Cristo começa no momento da consagração e perdura enquanto subsistirem as espécies eucarísticas. Cristo está presente inteiro em cada uma das espécies e inteiro em cada uma das partes de maneira que a fração do pão não divide o Cristo.
O Concílio de Trento destaca duas maneiras da presença de Cristo: uma natural e outra sacramental. A presença natural é no sentido de que Cristo está à direita do Pai. A presença sacramental é a profissão de fé de que Cristo está na Eucaristia.
A forma de entendimento do Concilio de Trento da presença real de Cristo é limitada na matéria “pão e vinho” e na forma “as palavras da consagração”. Sem dúvida Cristo está presente nas espécies do pão e do vinho. Porém, esta forma de entendimento sequestra a presença real de Jesus em um determinado momento e desconhece essa presença em outras partes do mesmo rito da celebração.
Apontamos novas formas da presença real de Cristo tendo como pano de fundo a sagrada escritura e concílio Vaticano II. Cristo está presente em todos os atos litúrgicos. Isto é nos momentos celebrativos da vida inclusive numa ce-lebração de aniversário. Está presente em todos os fiéis que assumem seu com-promisso batismal seguindo e atuando o projeto de Deus revelado por Cristo. Concluímos repetindo que a presença real de Cristo hoje no nosso continente se percebe onde existe: solidariedade, amor, fraternidade e comunhão.
ALDAZÁBAL, José. A Eucaristia. Petrópolis: Vozes, 2002.
BARRETO, Juan; MATEOS, Juan. O Evangelho de São João: Grande comentário bíblico. São Paulo: Paulinas, 1989.
BÍBLIA. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 2018.
BUYST, Ione; DA SILVA, José Ariovaldo. O Mistério celebrado: Memória e compromisso I: Teologia litúrgica. São Paulo: Paulinas, 2003.
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CNBB: 2013. CONSTITUIÇÃO SACROSANCTUM CONCILIUM: A sagrada Liturgia. CNBB, 2003.
ESCOLA MATER ECCLESIAE. História da Liturgia: A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica Textos complementares e exercícios. Disponível em https://textosparaestudo.files.wordpress.com/2014/08/apostila-de-liturgia-1b.pdf acesso em 26/05/2021 em 26/05/2021.
GRILLO, Andrea. A sineta na consagração e a transubstanciação. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/573421 Acesso em 28/06/2021.
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JOÃO FRANCISCO, Manoel; BUYST, Ione. O mistério celebrado: Memória e compromisso II. São Paulo: paulinas, 2003.
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica: Ecclesia de eucaristia# 185. São Paulo: Paulinas, 2003.
SCHNEIDER, Theodor. Manual de Dogmática. Volume II. Petrópolis: Vozes, 2012.
VERHEUL, Ambroos. A estrutura da fundamental da eucaristia. São Paulo: Paulinas, 1982.
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[1] ESCOLA MATER ECCLESIAE. História da Liturgia: A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica Textos complementares e exercícios. Disponível em https://textosparaestudo.files.wordpress.com/2014/08/apostila-de-liturgia-1b.pdf acesso em 26/05/2021.
[2] Zwínglio diz ser em sentido figurado, pois Cristo está à direita do Pai e não pode estar na hóstia consagrada; Calvino, por sua vez, prega que Cristo não desce dos céus, mas nos leva até ele pelo Espírito
[3] ESCOLA MATER ECCLESIAE. História da Liturgia: A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica Textos complementares e exercícios. Disponível em https://textosparaestudo.files.wordpress.com/2014/08/apostila-de-liturgia-1b.pdf acesso em 26/05/2021.
[4] GRILLO, Andrea. Presença real e transubstanciação: conjecturas e esclarecimentos. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/574938-presenca-real-e-transubstanciacao-conjecturas-e-esclarecimentos- -artigo-de-andrea-grillo Acesso em 28/06/2021.
[5] GRILLO, Andrea. A sineta na consagração e a transubstanciação. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/573421 Acesso em 28/06/2021
[6] GRILLO, Andrea. Presença real e transubstanciação: conjecturas e esclarecimentos. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/574938-presenca-real-e-transubstanciacao-conjecturas-e-esclarecimentos- -artigo-de-andrea-grillo Acesso em 28/06/2021.
[7] GRILLO, Andrea. A sineta na consagração e a transubstanciação. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/573421 Acesso em 28/06/2021.
[8] La presenza eucaristica non più nella categoria ontico-spaziale del contenuto (sostanza), ma in quella dinamico-relazionale del darsi processuale di una forma.
[9] GRILLO, Andrea. Presença real e transubstanciação: conjecturas e esclarecimentos. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/574938-presenca-real-e-transubstanciacao-conjecturas-e-esclarecimentos- -artigo-de-andrea-grillo Acesso em 28/06/2021.