Teologia da eucaristia em Teilhard de Chardin  
Theology of the Eucharist in Teilhard de Chardin    

Tiago de Fraga Gomes*
Everton Ricardo Berny Machado**

*Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: tiago_mail@yahoo.com.br 
**Mestrando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: 
evertonocd@yahoo.com.br

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Resumo:

Na tradição cristã a celebração eucarística sempre ocupou um lugar central. O Concílio Vaticano II reconhece-a como fonte e cume de toda a vida cristã. Embora a Eucaristia ocupe um lugar de grande relevância na fé cristã, a sua compreensão não está isenta de questionamentos propostos pela cultura moderna. Uma reflexão atualizada da teologia da Eucaristia é uma tarefa necessária e permanente para manter viva a fé sacramental da Igreja e expressar de forma atual o que de fato se crê. Contudo, essa reflexão não pode ignorar as contribuições da Sacrosanctum Concilium e a renovação litúrgica das últimas décadas. O presente estudo visa confrontar a contribuição do Concílio Vaticano II com a teologia litúrgico-eucarística do jesuíta Teilhard de Chardin que contribuiu consideravelmente para um diálogo entre ciência e fé. Parte-se da tese de que é possível encontrar pontos afins capazes de propor uma compreensão da Eucaristia na sua dimensão cósmica. 

Palavras chave: Teilhard de Chardin; Eucaristia; Liturgia Cósmica; Sacrosanctum Concilium 

Abstract

In the Christian tradition, the Eucharistic celebration has always been central. The Second Vatican Council recognizes it as the source and summit of all Christian life. Although the Eucharist occupies a place of great relevance in the Christian faith, its understanding is not exempt from questions raised by modern culture. An up-to-date reflection on the theology of the Eucharist is a necessary and permanent task to keep the sacramental faith of the Church alive and to express in an up-to-date way what is actually believed. However, this reflection cannot ignore the contributions of the Sacrosanctum Concilium and the liturgical renewal of recent decades. The present study aims to confront the contribution of the Second Vatican Council with the liturgical-eucharistic theology of the Jesuit Teilhard de Chardin, who contributed considerably to a dialogue between science and faith. It starts with the thesis that it is possible to find similar points capable of proposing an understanding of the Eucharist in its cosmic dimension. 

Keywords: Teilhard de Chardin. Eucharist. Cosmic Liturgy. Sacrosanctum Concilium. 

Introdução 

Apresente pesquisa é movida pelas seguintes questões: Como apresentar a presença de Jesus na Eucaristia de tal forma a ser acessível aos nossos contemporâneos, sem renunciar ao seu sentido original? Quais novas compreensões do mistério eucarístico podem ajudar a expressar plenamente o mandato do Senhor de fazer isto em sua memória? É possível buscar superar o dualismo clássico que espiritualizou o mistério eucarístico?1 Como apresentar a Eucaristia na sua relação com a consciência ecológica atual? (cf. LS 237). A tradição tomista e tridentina elaborou um modelo epistemológico da presença eucarística que isolou os sujeitos eclesiais do rito, influenciando a compreensão teológica da presença real de Cristo nos atos litúrgicos. 

O Concílio Vaticano II, com a Constituição Sacrosanctum Concilium, se ocupou da renovação litúrgica, recolhendo diversas discussões e debates apresentados pelo Movimento Litúrgico. Embora alguns críticos apresentem lacunas no documento conciliar, não deixa de ser um marco na compreensão teológica do mistério eucarístico e na forma de celebrá-lo. Assim, a atual busca por uma nova compreensão do mistério da presença de Jesus na Eucaristia precisa dialogar com os textos conciliares.

Acredita-se que o físico Teilhard de Chardin tem uma contribuição signi-ficativa para uma compreensão atual da teologia eucarística. Não só pelo seu pensamento, que se localiza na fronteira entre fé e razão, mas por ter se ocupado, ainda que de forma breve, do tema da Eucaristia. Seu escrito A missa sobre o altar do mundo traz elementos novos na compreensão do acesso à presença de Cristo na Eucaristia. Para Teilhard de Chardin, a missa tem um prolongamento e uma dimensão cósmica, de tal modo que na matéria se pode encontrar a diafania de Deus. Essa compreensão, que não deve ser entendida de forma panteísta, mas sim, panenteísta2, permite ao ser humano moderno superar o dualismo clássico presente em boa parte das expressões religiosas ocidentais. Além disso, tal compreensão permite o resgate da natureza como espaço sagrado, que possui a sua liturgia própria e que, por isso, deve ser respeitada e cuidada. A Eucaristia Cósmica compromete ao cuidado ecológico.

1. Eixos teológicos da Sacrosanctum Concilium na compreensão da eucaristia

A fim de se obter uma melhor compreensão e valorização dos textos conciliares, convém realizar um breve resgate histórico dos antecedentes do Concílio Vaticano II. O Movimento Litúrgico foi um dos grandes precursores do Concílio Vaticano II. Ele anima, promove e dá fundamento para a reforma litúrgica levada a cabo pelos Padres Conciliares. A esse respeito, Annibale Bugnini afirma: “Um caminho rumo à recomposição ganhou terreno com o Movimento Litúrgico, que se propôs devolver à liturgia plenitude expressiva e santificadora, reconduzir os fiéis à sua ampla participação e compreensão” (BUGNINI, 2018, p. 39).

O papa Pio X contribuiu com essa efervescência litúrgica promovendo a participação ativa dos fiéis na missa, além da reforma do canto litúrgico e o encorajamento da comunhão frequente. Já o Papa Pio XII contribuiu nesse debate publicando em 1947 a Encíclica Mediator Dei, onde incorpora as principais demandas do Movimento Litúrgico. Contribuições significativas, como a restauração da Vigília Pascal, ocorreram graças à Comissão Piana promovida pela Congregação dos Ritos. As diversas publicações e congressos no âmbito da liturgia, ajudaram significativamente na conscientização sobre a necessidade de uma profunda renovação litúrgica.3

Essa consciência da necessidade da renovação litúrgica permitiu a Sacrosanctum Concilium ser o primeiro documento conciliar promulgado. Ao mesmo tempo que tal fato indicava para a maturidade e a relevância do tema, supôs alguns riscos e limites consideráveis. Não faltou nesse cenário quem se opusesse veementemente à reforma liturgia proposta pelo Concílio. Nesse sentido, as palavras do Papa Paulo VI no encerramento da segunda sessão do Concílio são sintomáticas a respeito das dificuldades daquele momento:

Se introduzimos agora alguma simplificação nas expressões do nosso culto e se procuramos torná-lo mais compreensível ao povo fiel e mais adaptado à sua linguagem atual, não quer dizer que pretendamos diminuir a importância da oração, colocá-la depois de outros cuidados do ministério sagrado ou da atividade pastoral, nem ainda empobrecê-la na sua força expressiva e no seu valor artístico; queremos apenas torná-la mais pura, mais genuína, mais próxima das suas fontes de verdade e de graça, mais capaz de se tornar patrimônio espiritual do povo (PAULO VI, 1963).

O objetivo da renovação litúrgica era, nas palavras do Papa Paulo VI, tornar a liturgia mais “pura”, “genuína”, “próxima das suas fontes”, “capaz de se tornar patrimônio espiritual do povo”. Esse audacioso projeto possuía um caráter eminentemente pastoral. A preocupação dos Padres Conciliares recaiu, sobretudo, nas consequências práticas e pastorais de tal renovação. As implicações teóricas e a mudança de paradigma na compreensão do mistério eucarístico não foram suficientemente abordadas. Essa crítica encontramos em Zeno Carra que afirma: “Os Padres ainda não enxergam a conexão intrínseca entre a reforma da prática litúrgica e o acesso global aos dados da presença eucarística, incluindo o seu aspecto doutrinal” (CARRA, 2018, p. 194). De fato, o objetivo do Concílio não era estabelecer novos dogmas, mas permitir que a Igreja transmitisse de forma compreensível a sua doutrina. Os Padres Conciliares tiveram o cuidado de não enveredar por um perigoso labirinto doutrinal que poderia paralisar o processo de renovação. Optou-se por focar no aspecto pastoral da celebração eucarística.

Na sua análise sobre a Sacrosanctum Concilium, Zeno Carra, propõem três núcleos centrais da doutrina sobre o acesso à presença de Jesus na Eucaristia presentes no documento conciliar: nível histórico-salvífico da liturgia; presença de Cristo nas ações litúrgicas; e centralidade da participação dos fiéis (CARRA, 2018, p. 195). O objetivo da presente pesquisa, ao analisar esses três núcleos, é diferente do autor citado. Aqui, serve-se desses núcleos teológicos presentes no texto conciliar como fundamento de uma teologia eucarística atualizada, como emana do próprio Concílio Vaticano II.

1.1 A liturgia na sua dimensão histórico-salvífica

Os padres conciliares procuraram localizar a liturgia no mistério da Igreja, enfatizando a sua ligação com o mistério salvífico. Acentua-se que na liturgia, “especialmente no divino sacrifício da Eucaristia se atua a obra da nossa re-denção” (SC 2). Assim, o mistério eucarístico celebrado “atua” ou “realiza” a redenção humana no hoje da história. Portanto, há uma estreita relação entre celebração, redenção e história humana. O que é celebrado, realiza a salvação humana de forma sacramental, processual e plena. A dimensão processual se refere ao tempo e ao espaço em que ocorre a vida humana. A dimensão plena se refere a uma plenitude já obtida pelos méritos de Cristo, mas ainda assimilada de forma gradual pela humanidade.

A Sacrosanctum Concilium afirma que a liturgia “simboliza através de sinais sensíveis e realiza em modo próprio a cada um a santificação dos homens” (SC 7). O texto conciliar recorda que o desígnio de Deus é a salvação de todo o gênero humano. O Deus de Israel se manifesta na história concreta do povo. O cume desse projeto de salvação encontramos em Jesus, o Messias esperado, o enviado do Pai. Jesus Cristo pela sua vida, morte e ressurreição restaurou a ligação de Deus com suas criaturas. Ele é o instrumento de salvação. A liturgia eucarís-ica faz memória desse evento ímpar celebrado na Cruz e perpetuado através dos séculos em cada celebração eucarística.

É importante ressaltar também a dimensão escatológica da celebração eucarística. O Concílio afirma: “na liturgia da terra nós participamos, saboreando-a já, da liturgia celeste, que se celebra na cidade santa de Jerusalém, para a qual nos encaminhamos como peregrinos” (SC 8). Esse aspecto conecta a nossa rea-lidade histórica com a realidade escatológica. A liturgia nos permite “saborear” a plenitude que aguardamos na parusia. A compreensão da Igreja é de que a história humana se destina à plenitude em Cristo. Essa convergência de todas as coisas em Cristo está presente na liturgia celebrada pela Igreja. O documento conciliar afirma: “Contudo, a liturgia é o cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda a sua força” (SC 10). Com essa rica imagem – fonte e cume – a Igreja ressalta o lugar elevado da liturgia e sua função salvífica. De fato, Cristo é o princípio e o fim de todas as coisas. A liturgia torna presente essa verdade da fé de forma sacramental e escatológica.

1.2 presença de Cristo nas ações litúrgicas

A Sacrosanctum Concilium n. 7 trata da presença de Cristo na liturgia. O texto enuncia os diversos lugares dessa presença: “na sua Igreja”, “nas ações litúrgicas”, “no sacrifício da missa”, “na pessoa do ministro”, “nas espécies eucarísticas”, “nos sacramentos”, “na sua Palavra” e “quando a Igreja ora e salmodia”. Essa presença de Cristo é compreendida como a forma de Cristo associar a si a sua esposa, a Igreja. Na liturgia, a Igreja une a sua voz à voz do Cristo e apresenta a oferta dele ao Pai como sua. Na liturgia é Cristo, sacerdote da nova e eterna Aliança que apresenta ao Pai o seu próprio sacrifício para a reconciliação do gênero humano.

O sacerdócio de Cristo, por meio de sua Igreja, é o que permite essa “abundante” presença. No entanto, a Igreja distingue as diversas formas de presença, dando o adjetivo de “por excelência” para as espécies de pão e vinho consagrados. Essa distinção que, no pensamento de Zeno Carra bloqueia a compreensão do novo modelo proposto por ele, “arriscando fazer o fato da presença de Cristo cair em um discurso um tanto indiferente e, portanto, em última análise, insignificante” (CARRA, 2018, p. 199), contudo, não afeta o que se pretende propor na presente pesquisa partir da Missa sobre o altar do mundo de Teilhard de Chardin, pois a presença cósmica de Cristo é um prolongamento da presença eucarística, presente na matéria do pão e do vinho.

1.3 Centralidade da participação dos fiéis

O terceiro núcleo teológico que encontramos no documento conciliar sobre a liturgia é a participação dos fiéis. Os padres conciliares almejavam a participação consciente, ativa e frutuosa dos fiéis (SC 11). A participação na celebração do mistério eucarístico não pode ser compreendida como mero ato de compreender o que se celebra, mas de vivenciar o mistério celebrado. A tradução dos textos litúrgicos para a língua vernácula, diversas vezes recomendada pelo Concílio Vaticano II (SC 36; 54; 63; 101), é o meio e não o fim da intuição conciliar. O objetivo não é a mera compreensão do que se reza; isso, por si só, não garante a plena participação dos fiéis. Para que a liturgia chegue à sua plena eficácia, são necessárias disposições pessoais para isso.

A Sacrosanctum Concilium n. 11 afirma que “para chegar a essa eficácia plena, é necessário que os fiéis se acerquem da sagrada liturgia com disposições de reta intenção, adaptem a mente às palavras, e cooperem com a graça divina para não a receber em vão”. Por isso, se recomenda que os pastores procurem “que os fiéis participem dela conscientemente, ativa e frutuosamente”. O número 48 da Sacrosanctum Concilium retoma a mesma recomendação quando se refere especificamente à celebração eucarística: “Por isso, a Igreja procura, solícita e cuidadosa, que os cristãos não assistam a este mistério de fé como estranhos ou expectadores mudos, mas participem da ação sagrada, consciente, piedosa e ativamente”.

A participação plena dos fiéis na Eucaristia será possível na medida que se desenvolver uma espiritualidade eucarística que envolva e impregne a vida inteira do fiel. A vivência eucarística não pode reduzir-se a participar do ato litúrgico. A Eucaristia tem uma prolongação cósmica, como dirá Teilhard de Chardin. A construção de uma espiritualidade eucarística aprofunda elementos que emanam da doutrina eucarística, como: a dimensão da gratidão e da gratuidade, da doação e do serviço, da partilha e da solidariedade, da promoção da vida e da superação das injustiças.

2 Pensamento de Teilhard de Chardin sobre a eucaristia

Pensar uma teologia eucarística atualizada, que seja fiel às intuições conciliares e supere uma compreensão reducionista da Eucaristia como um ente desvinculado do seu entorno teológico e eclesial, é um desafio para o pensamento teológico. Uma contribuição significativa para isso pode ser encontrada no pensamento de Teilhard de Chardin, físico jesuíta, que embora tenha focado seus estudos no fenômeno humano4, deixou uma preciosa contribuição em um pequeno ensaio intitulado A missa no altar do mundo. Pretende-se analisá-lo e depois verificar as pontes que se podem estabelecer entre esse pensamento e as intuições conciliares.

2.1 A missa no altar do mundo

Esse breve escrito de Teilhard de Chardin é fruto de suas vivências místicas e de seu apurado estudo sobre a matéria do ponto de vista científico. A ocasião é narrada por ele mesmo: “Senhor, já que mais uma vez, não nas florestas do Aisne, mas nas estepes da Ásia, eu não tenho nem pão, nem vinho, nem altar”. Em plena expedição científica, privado dos elementos materiais para celebrar a Eucaristia propõem um novo caminho de acesso à presença de Jesus. Prossegue em sua narração: “elevar-me-ei, acima dos símbolos, até a pura majestade do Real e vos oferecerei, eu, vosso sacerdote, sobre o altar da Terra inteira, o trabalho e a fadiga do mundo” (TEILHARD DE CHARDIN, 1978, p. 191).

Teilhard de Chardin não explicita o que significa “elevar-se acima dos símbolos da fé”, porém, é possível interpretar essa afirmação como “ir além de uma matéria específica (pão e vinho), para toda a matéria (o mundo criado)”, elemen-tos onde a Eucaristia é celebrada. Na introdução a edição francesa encontra-se uma nota de esclarecimento de N. M. Wildiers sobre esse ponto:

Ele refletia então sobre a irradiação da Presença eucarística no Universo. Certamente não confundia essa presença, fruto da transubstanciação propriamente dita, com a presença univer-sal do Verbo. Sua fé no mistério eucarístico era não só ardente: era tão precisa quanto firme. Mas, justamente, essa fé se apre-sentava suficientemente forte e suficientemente realista para que dela descobrisse as consequências ou como dizia, os “pro-longamentos” e as extensões (WILDIERS In: TEILHARD DE CHARDIN, 1978, p. 202-203).

A presente pesquisa concorda com a interpretação de Wildiers, haja visto que em sua argumentação resgata textos de Teilhard Chardin que confirmam esse parecer.5 Nesse sentido, ao mesmo tempo que se discorda de Zeno Carra, que vê na transubstanciação um impedimento para se acessar a presença de Cristo na Eucaristia, se defende que a mesma seja compreendida com uma implicação cósmica. Assim, para o físico jesuíta, a missa cotidiana, celebrada nos mais recônditos cantos da Terra, tem uma função cósmica que pode ser acessada em qualquer tempo e espaço.

Para Teilhard de Chardin, as palavras consacratórias ultrapassam o pão e o vinho sobre o qual são pronunciadas e se estende a todo o Cosmos, fazendo nascer o Corpo Místico de Cristo. Assim, a matéria inteira sofre uma lenta e irresistível consagração. A consagração não se limita à parcela material nas espécies eucarísticas, mas se prolonga à toda matéria. Esse processo de divinização cósmica deve ser entendido a partir da vocação escatológica de unificação em Cristo de todas as coisas. Contudo, a hóstia permanece sendo o “corpo inicial” ou “corpo primário” de Cristo eucarístico. O “corpo cósmico” ou o “corpo místico” será um prolongamento desse primeiro.

O texto elaborado por Teilhard de Chardin naquele dia da Transfiguração em 1923 é muito inspirador, pois mescla uma linguagem poética, com convicções científicas e vivências místicas. Não é fácil dar-lhe a devida interpretação. Mas, a opção do autor pela linguagem simbólica em si já revela o conteúdo inefável da sua vivência eucarística naquela manhã. O texto se encontra dividido em cinco partes: ofertório, o fogo no mundo, o fogo acima do mundo, comunhão e oração.

Teilhard de Chardin, na Missa sobre o altar do mundo, identifica em toda a matéria uma liturgia eucarística. O grande objetivo da consagração da matéria é chegar à comunhão plena de todo o Cosmos em Cristo. Ele não ignora a di-mensão sacrifical que compõe o mistério eucarístico e se identifica com toda a desagregação. O fogo que consome e transforma tudo é o símbolo evocado para expressar o desejo do uno.

2.2 Processo de cosmogêneses e história da salvação

Na construção de uma teologia eucarística atualizada, pretende-se, nessa parte da pesquisa, estabelecer uma aproximação entre os núcleos teológicos da renovação litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II e o pensamento de Teilhard de Chardin. Parte-se da hipótese de que o pensamento do físico jesuíta colabora para se pensar uma Eucaristia Cósmica. A consequência dessa hipótese seria ocasião para conduzir à um “alargamento cósmico” da teologia eucarística.

Na última página do seu diário, datado três dias antes de sua morte, Teilhard de Chardin propõem uma síntese de seu pensamento por meio de um esquema expresso na sequência de palavras: “Cosmos = Cosmogêneses → Biogêneses → Noogênese → Cristogêneses” (TEILHARD DE CHARDIN, 1978, p. 249). Para Teilhard de Chardin, a evolução constante que sofre a matéria converge para um sentido comum, que ele chama de Cristogêneses. No entanto, tudo começa com a Cosmogêneses. Claude Tresmontant explica o conceito de Cosmogêneses da seguinte forma:

A evolução, em seu sentido pleno – quer dizer, estendida ao conjunto do real –, significa que o real não apareceu de uma só vez, instantaneamente, senão que, ao contrário, a realida-de está inventando-se, desde milhares de milhares de ano. O conceito de evolução significa que nos encontramos, situados não num cosmos acabado, mas arrastrados em um processo de cosmogêneses (TRESMONTANT, 1966, p. 16).

Para o físico jesuíta, a realidade está “inventando-se progressivamente”. O Cosmos não está acabado, mas em um processo de “cosmogêneses”. Portanto, nos encontramos em um universo inacabado, em evolução, em “constante gênesis”. Porém, essa cosmogêneses não está orientada ao acaso, mas possui um sentido, uma finalidade. A originalidade do pensamento de Teilhard de Chardin está exatamente nesse sentido para o qual converge a evolução.6 Aqui se pode estabelecer um paralelo entre essa evolução destinada a um fim e a economia da salvação. Ambos apontam para uma realidade histórica em crescimento e a um fim de plenitude.

A cosmogêneses está orientada para um prazo de maturação, que em termos metafísicos, pode ser identificado com a plenitude dos tempos. A compreensão cristã da economia da salvação crê em um Deus que conduz a história para a sua plenitude. Esse processo gradual está orientado para uma plenitude vindoura que se estabelecerá em Cristo. A liturgia é o lugar onde se atualiza de forma sacramental o designo salvífico de Deus. Assim, há uma profunda ligação entre o que se chama na tradição cristã de “história da salvação” e o processo de cosmogêneses proposto por Teilhard de Chardin.

2.3 O ponto ômega e a cristificação do universo

Teilhard de Chardin demostra como na natureza as coisas convergem para uma unidade. Exemplo disso se dá na forma como acontece um agrupamento de células em um organismo biológico, assim como se dá, de modo semelhante, um agrupamento de indivíduos em um organismo social. Portanto, pensar em uma convergência da evolução cósmica, não é algo sem propósito. Nesse sentido, Tresmontant confirma que “a existência de um ponto Ômega cósmico se concretizou desde o momento em que se impôs a nosso espírito a evidência de que o universo era psiquicamente convergente” (TRESMONTANT, 1966, p.53).

O universo tende a convergir em um ponto único. Essa união não anula as partes. Os indivíduos não estão destinados a perder-se no todo. As partes perma-necem em sua realidade, mas sempre em relação com os demais. A esse respeito esclarece: “Haja visto que não há fusão, nem dissolução das pessoas elemen-tares, o centro em que estas se unem deve necessariamente ser distinto delas, ou seja, tem sua própria personalidade” (TRESMONTANT, 1966, p. 55). Para Teilhard de Chardin o ponto Ômega é a maturação do processo cósmico total. O término do mundo não pode ser outro do que a unidade real dos seres na diversi-dade das suas pessoas. A criação parece orientada para uma personalização, que ele denomina com a letra ômega. Cristo ocupa o posto do ponto Ômega para o qual converge todas as coisas e no qual todas encontram a sua plenitude.

Essa teoria formulada a partir do desenvolvimento da matéria encontra um respaldo bíblico na Carta de São Paulo aos Efésios. O hino sobre o “plano divino da salvação” (Ef 1,3-14) expressa que o designo de Deus é recapitular todas as cosias em Cristo. Cristo confere um sentido unitário a toda a obra da criação. Ele redime e resgata o mundo decaído com o seu sacrifício na Cruz. Os Novos Céus e a Nova Terra almejados são fruto dessa recapitulação em Cristo, onde Deus será tudo em todos (1Cor 15,28).

2.4 A liturgia cósmica

O pensamento de Teilhard de Chardin conduz a pensar uma liturgia cósmica na qual a história de salvação segue seu processo evolutivo destinado à sua concretização em Cristo, o ponto Ômega. Embora o termo “liturgia cósmica” possa parecer algo novo, a intuição já se encontra presente nas Sagradas Escrituras. O Salmo 19 é um exemplo de que a criação proclama a glória do Senhor, em uma liturgia silenciosa que se estende pelos tempos.

Os céus contam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia entrega a mensagem a outro dia, e a noite a faz conhecer a outra noite. Não há termos, não há palavras, nenhuma voz deles se ouça; e por toda a terra sua linha aparece, e até aos confins do mundo a sua linguagem (Sl 19,2-5).

Há também outro texto muito representativo desse pensamento que é o hino de Daniel onde toda a criação é convocada a bendizer o Senhor. “Vós todos, obras do Senhor, bendizei o Senhor” e conclama cada um dos elementos a se unir nessa liturgia cósmica: “Céus”, “águas acima dos céus”, “sol e lua”, “estrelas do céu”, “chuvas e orvalhos”, “ventos”, “fogo e calor”, “frio e ardor”, “orvalhos e aguaceiros”, “gelo e frio”, “geadas e neves”, “noites e dias”, “luz e trevas”, “relâmpagos e nuvens”, “terra”, “montanhas e colinas”, “tudo o que germina sobre a terra”, “fontes”, “mares e rios”, “peixes e o que se move nas águas”, “pássaros do céu”, “animais selvagens e domésticos” e os “filhos dos homens”; proclama que tudo cante os louvores do Senhor (Dn 3,51-90).

Teilhard de Chardin escreveu também o seu Hino à matéria, onde se une com toda a matéria cósmica no mesmo louvor do Criador. Nos mesmos moldes do “Louvado sejas, meu Senhor”, de São Francisco, escreve: “Bendita sejas, áspera Matéria”. No seu escrito, Missa sobre o altar do mundo expressa que o universo celebra incessantemente uma Eucaristia Cósmica, da qual o ser humano, como parte da criação, também pode entrar em comunhão. Essa compreensão eucarística permite superar o dualismo que viu o material como oposição ao espiritual.

O Papa Francisco na Laudato Si’, onde manifesta a sua preocupação pelo cuidado com a casa comum, no capítulo em que trata da “educação e espiritualidade ecológicas”, cita a dimensão cósmica da Eucaristia, se referindo ao pensamento de Teilhard de Chardin: “Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico. Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar de uma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo” (LS 236). Na sequência justifica essa dimensão a partir do seu caráter escatológico. “A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo, saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico, a criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador” (LS 236).

Em situações como a que se vive atualmente, em meio à pandeia, quando nem sempre é possível celebrar a Eucaristia na sua dimensão sacramental, sem-pre será possível participar da Eucaristia Cósmica celebrada no altar do mundo. Tal liturgia possui um caráter ecológico, já que interliga os seres humanos com os demais seres criados em uma atitude de respeito e veneração. Ao ser humano convém unir-se à criação no único e mesmo louvor ao Criador para concretizar o convite do salmista: “Todo o ser que vive, louve a Deus” (Sl 150,5).

Conclusão

A Eucaristia, como fonte e cume da vida cristã, permanece um mistério insondável, incapaz de traduzir-se em conceitos teológicos ou metafísicos. No entanto, como mistério que se destina à economia da salvação, precisa ser refletido e apresentado de forma adequada à compreensão contemporânea. Se a revelação é algo já dado, a compreensão e a interpretação da mesma segue o seu processo evolutivo. Assim, uma teologia eucarística atualizada se coloca no horizonte de fidelidade e aggiornamento para uma maior compreensão do mistério divino e para contemplá-lo e vivenciá-lo no cotidiano da vida.

Nesse itinerário, destaca-se a importância do Concílio Vaticano II que visou tornar a liturgia mais pura, genuína, próxima das suas fontes, capaz de se tornar patrimônio espiritual do povo. Passados algumas décadas desse grande evento eclesial, embora se tenha avançado muito, percebe-se um longo caminho a percorrer. Infelizmente, atualmente, reaparecem movimentos restauracionistas, fundamentalistas e integristas, que provocam retrocessos teológicos e pastorais. Contudo, alguns princípios teológicos permanecem firmes, como a história da salvação que se atualiza na liturgia, a presença de Cristo nas ações litúrgicas e a participação plena dos fiéis no mistério celebrado.

Na presente pesquisa, percebeu-se que é possível realizar uma aproximação com o pensamento de Teilhard de Chardin. A cosmogêneses, pode ser entendida como um processo evolutivo que tende ao ponto Ômega. Esse processo crístico é o que se vivencia na Eucaristia. Porém, não é um processo meramente humano, mas de toda a criação. A matéria inteira vivencia uma liturgia eucarística. Essa Eucaristia Cósmica ainda precisa ser aprofundada e detalhada. A presente pesquisa se limita a indicar a viabilidade de tal pensamento em consonância com a doutrina da Igreja. Nesse sentido, o Papa Francisco, em sua Carta Encíclica Laudato Sí’ chamou atenção para a Eucaristia como um ato de amor cósmico.

A consciência da Eucaristia Cósmica provoca a assumir outra atitude frente a vida, uma atitude contemplativa, que supera a atitude de dominação que produz consequências ecológicas nefastas. A Eucaristia Cósmica interliga todos os seres em uma liturgia de louvor ao Criador. Assim, todos interlaçados pelos laços da existência, tornam-se responsáveis não apenas pelo seu futuro, mas pelo futuro de todos os seres vivos.

Referências

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TRESMONTANT, Claude. Introdución al pensamiento de Teilhard de Chardin. 5. ed. Madrid: Taurus, 1966. 

Notas

[1]  Zeno Carra, em sua obra Hoc Facite, apresenta a problemática a respeito da compreensão do acesso à presença de Jesus na Eucaristia. Segundo Carra, o modelo tridentino-tomista se impôs durante séculos como a única compreensão, trazendo consequências na forma de celebrar a missa e no culto eucarístico. Carra acredita que essa compreensão reducionista da Eucaristia está na raiz do afastamento dos fiéis da participação da missa.  

[2] Segundo Boff, “o ‘panenteísmo’ (em grego: pan = tudo; en = em; theos = Deus). Quer dizer: Deus está em tudo e tudo está em Deus. Esta palavra foi proposta pelo evangélico Friedrich Krause (l781-1832), fascinado pelo fulgor divino do universo. O panenteísmo deve ser distinguido claramente do panteísmo. O panteísmo (em grego: pan = tudo; theos = Deus) afirma que tudo é Deus e Deus é tudo. Sustenta que Deus e mundo são idênticos; que o mundo não é criatura de Deus, mas o modo necessário de existir de Deus. O panteísmo não aceita nenhuma diferença: o céu é Deus, a Terra é Deus, a pedra é Deus e o ser humano é Deus. [...] Tudo não é Deus. As coisas são o que são: coisas. No entanto, Deus está nas coisas e as coisas estão em Deus, por causa de seu ato criador. A criatura sempre depende de Deus e sem Ele voltaria ao nada de onde foi tirada. Deus e mundo são diferentes. Mas não estão separados ou fechados. Estão abertos um ao outro. Se são diferentes, é para possibilitar o encontro e a mútua comunhão” (2012). 

[3] Para um adequado resgate desses fatos históricos, indica-se: BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica. 

[4] “Não sou filósofo nem teólogo, mas sim um estudioso do ‘fenômeno’, um físico no antigo sentido grego” (TEILHARD DE CHARDIN apud TRESMONTANT, 1966, p. 16).    

[5] “Quando o Cristo desce sacramentalmente em cada um de seus fiéis, não é somente para conversar com eles [...], quando Ele diz, através do padre: Hoc est corpus meum (Isto é o meu corpo), essas palavras ultrapassam o pedaço de pão sobre o qual são pronunciadas; fazem nascer o Corpo Místico inteiro. Para além da hóstia transubstanciada, a operação sacerdotal se estende ao próprio Cosmos. [...] A matéria inteira sofre, lenta e irresistivelmente, a Grande Consagração. [...] Quando o Cristo, prolongando o movimento da sua encarnação, desce ao pão para substituí-lo, sua ação não se limita à parcela material que sua Presença vem, por um momento, volatizar. Mas a transubstanciação se aureola de uma real, ainda que atenuada, divinização de todo o Universo. Do elemento cósmico em que se inseriu, o Verbo age para subjugar e assimilar a Si todo o resto. [...] Para interpretar dignamente o lugar fundamental que a Eucaristia ocupa na economia do mundo [...], penso ser necessário dar um grande lugar, no pensamento e na oração do cristianismo, às extensões reais e físicas da Presença eucarística [...] Assim como chamados propriamente ‘nosso corpo’ o centro local de nossa irradiação espiritual [...], é preciso dizer que o Corpo inicial, o Corpo primário do Cristo, está limitado às espécies do pão e do vinho. Mas [...] a hóstia se assemelha a um foco ardente donde irradia e se propaga a sua chama” (WILDIERS, N.M. Notas. In.: TEILHARD DE CHARDIN, 1978, p. 203).  

[6] “Sobre o fato geral de estarmos situados em um Universo inacabado e em gênese, ou seja, sobre o fato de haver uma evolução, todos os sábios já estão de acordo. Mas, na questão de saber se a evolução deste Universo é orientada, direcionada, se tem um sentido, o mesmo não acontece” (TRESMONTANT, 1966, p. 20).