A nova teologia eucarística católica de Zeno Carra como colaboração para o discernimento sobre a intercomunhão do cônjuge protestante      
Zeno Carra’s New Catholic Eucharistic Theology as a Collaboration for Discernment on Intercommunion of the Protestant Spouse   

Daniel Zatti*
Erico João Hammes**

*Mestrando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: daniel.zatti@gmail.com 
**Doutorado em Teologia Sistemática pela Pontificia Universita Gregoriana (PUG). Professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Contato: ehammes@pucrs.br 

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Resumo:

A aproximação ecumênica entre luteranos e católicos- -romanos se intensifica na medida em que a teologia sistemática e a teologia pastoral dialogam. O “estado da arte” neste âmbito está na investigação da possibilidade da comunhão eucarística pelo fiél protestante em um matrimônio interconfessional. O presente artigo aborda a temática e apresenta, na crítica do conceito de transubstanciação, utilizado pela teologia católica, uma forma de aproximação da mútua compreensão de Eucaristia por essas duas denominações. A partir do documento gerado pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos (PCPUC) e a Federação Luterana Mundial (FLM), intitulado “Do Conflito à Comunhão”, se analisará historicamente as compreensões católica e luterana sobre a presença eucarística. Serão expostas algumas considerações sobre o subsídio pastoral gerado pelos bispos alemães, chamado de ‘ajuda orientadora’ (Handreichung), intitulado Caminhar com Cristo: nas pegadas da unidade, sobre matrimônios interconfessionais e participação comum na Eucaristia. Finalmente abordar o tema a partir do livro Hoc Facite, de Zeno Carra, que apresenta uma crítica à transubstanciação como modelo e apresenta uma proposta original de explicar a presença de Cristo na eucaristia. Esta abordagem pretende aproximar a compreensão luterana e católica da presença real e colaborar para o avanço do diálogo ecumênico.   

Palavras chave: transubstanciação; intercomunhão; ecumenismo; matrimônio interconfessional; eucaristia 

Abstract

The ecumenical rapprochement between Lutherans and Roman Catholics intensifies as systematic theology and pastoral theology dialogue. The “state of the art” in this area is in the investigation of the possibility of Eucharistic communion by the Protestant faithful in an interfaith marriage. This article addresses the theme and presents, in the criticism of the concept of transubstantiation, used by Catholic theology, a way of approximating the mutual understanding of the Eucharist by these two denominations. Based on the document generated by the Pontifical Council for the Promotion of Christian Unity (PCPCU) and the Lutheran World Federation (LWF), entitled “From Conflict to Communion”, it will be analyzed historically as Catholic and Lutheran understandings of presence. Some considerations about the pastoral subsidy generated by the German bishops, called ‘guiding aid’ (Handreichung), entitled Walking with Christ: in the footsteps of unity, about interfaith marriages and will participate with the communist will be exposed. Finally, approach the theme from the book Hoc Facite, by Zeno Carra, which presents a critique of transubstantiation as a model and presents an original proposal to explain the presence of Christ in the Eucharist. This approach addresses the Lutheran and Catholic understanding of the real presence and helps to advance ecumenical dialogue. 

Keywords: transubstanciation; intercommunion; ecumenism; interconfessional matrimony; eucharist 

Introdução 

O apelo ecumênico tem se destacado no ambiente teológico nas últimas décadas, com tentativas multilaterais de fundamentar a aproximação e unidade da Igreja de Cristo. Em tempos de fundamentalismos, toda a busca sincera pelo diálogo deve ser valorizada. O presente artigo se debruça sobre o diálogo luterano - católico-romano em busca de aproximações, fugindo de qualquer agressão às identidades. A partir da realidade de matrimônios interconfessionais no mundo todo, os bispos alemães propuseram um documento chamado de ‘ajuda orientadora’ (Handreichung), intitulado Caminhar com Cristo: nas pegadas da unidade, sobre matrimônios interconfessionais e participação comum na Eucaristia. Uma tentativa de re-sponder uma grande demanda pastoral - aproximadamente 40% de matrimônios na alemanha são interconfessionais - e sanar uma tensão existente em inúmeras famílias que vivem sua fé de forma sincera, porém se vêem impossibilitadas de participar da mesma ceia eucarística.

Em resposta ao apelo da Conferência Episcopal alemã, o vaticano enviou retorno negativo em 2018, e no final de 2020 divulgou um documento intitulado “O Bispo e a Unidade dos Cristãos: Vademecum Ecumênico”, onde aborda a questão da intercomunhão. Em síntese, a resposta negativa é justificada pois a admissão à comunhão dos cristãos evangélicos nos casamentos interconfessio-nais é uma questão que afeta a fé da Igreja e tem uma relevância para a Igreja universal.

Diante desse debate amplo, com divergentes opiniões na teologia atual, se insere a discussão sobre uma nova teologia eucarística, que pretende revisitar as origens da doutrina e traçar uma hermenêutica adequada para a interptera-ção do dogma. Uma das compreensões divergentes entre católicos e luteranos está na expressão “transubstanciação” para explicar a presença real de Jesus na eucaristia. Uma análize do teólogo Zeno Carra critica o uso do termo, fazendo uma releitura histórica do mesmo e propõe um novo modelo para a doutrina da presença real. A teologia eucarística por ele apresentada serve de instrumento para o discernimento dos bispos para a questão da comunhão eucarística dos cônjuges protestantes, respondendo a essa demanda pastoral dos casamentos in-terconfessionais.

1. Do conflito à comunhão

Desde 1967, uma comissão nomeada pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos (PCPUC) e a Federação Luterana Mundial (FLM), vem se debruçando de forma bastante intensa sobre questões ecumênicas luterano – católico-romanas. Esta comissão gerou o documento recente intitula-do “Do Conflito à Comunhão”, expressando o interesse mútuo de caminhada de mudança de paradigma em relação ao diálogo ecumênico, que hoje, mais do que nunca, quer contribuir para a busca da unidade visível do Corpo de Cristo.

O subsídio oferece aos luteranos e aos católicos a primeira tentativa histó-rica no âmbito internacional de descrever a história da Reforma em conjunto, analisando os argumentos teológicos que estavam em jogo, traçando desenvol-vimentos ecumênicos, identificando a convergência alcançada até então e as di-ferenças ainda existentes.

Ao descrever o caminho do “conflito à comunhão”, o documento assume com mais ênfase os pontos de convergência do que os não comuns. Especialmente, partem da fé comum no Deus Trino e a revelação em Jesus Cristo, assim como o reconhecimento das verdades básicas da doutrina da Justificação. 

Vivendo em uma era ecumênica e globalizada, o documento aponta para a urgência da unidade, enquanto a divisão escandaliza e se torna contratestemunho para quem se aproxima do cristianismo. “A maneira como os cristãos lidam com diferenças entre eles pode revelar algo sobre sua fé a pessoas de outras religiões. Porque a questão de como resolver conflitos entre cristãos se coloca de forma es-pecial por ocasião da recordação do início da Reforma, esse aspecto da mudança da situação do cristianismo merece atenção especial em nossas reflexões no ano de 2017.”(PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS E FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL, 2015, p. 17)

Ressalta as diversas razões que têm para contar sua história de uma maneira original. Cita que se aproximaram por relações familiares, pelo serviço à missão mundial maior e pela resistência comum às tiranias existentes em muitos luga-res. Sem abrir mão da própria identidade, os teólogos ecumênicos decidiram não continuar suas autoafirmações doutrinais que não colaborassem para a unidade, mas sim pesquisar sobre o que é comum nas diferenças ou mesmo nas oposições, para superá-las e caminhar rumo à sonhada unidade.

Nestas pesquisas, constata-se que havia muitos entraves disfarçados de te-ologia, mas que têm outros nomes: políticos, econômicos, sociais e culturais. A Idade Média não mais é vista como idade das trevas, por protestantes, por conta dessas pesquisas. Constatou-se que a igreja não era uma entidade monolítica, mas se apresentava com um corpo de multiformes teologias, estilos e mesmo concepções eclesiológicas. Além disso, foi um período marcado por um tempo piedoso, numa forma sadia de busca por Deus. E é justamente neste cenário que Lutero se inclui. Em síntese, pode-se dizer que a teologia católica que se interessou pelo tema “Lutero”, no séc. XX, “mostraram que não foram os temas centrais da Reforma, tais como a Justificação, o que levou à divisão da Igreja, mas, antes, o criticismo de Lutero à condição da Igreja do seu tempo, que decor-ria dessas preocupações.”(PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS E FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL, 2015, p. 20)

Quando fala sobre o movimento de contrarreforma, o documento recorda que o Concílio de Trento ficou marcado pelas tentativas de reforma na Igreja Católica, mas também atrelado às respostas que deveria dar às compreensões luteranas. Na maior parte das vezes, os decretos dogmáticos não apresentavam uma expressão teológica completa da fé, mas antes se concentravam naquelas doutrinas questionadas pelos reformadores, de modo a enfatizarem as divergên-cias. Uma das divergências enfatizadas foi a da doutrina da transubstanciação, em contraste com a da consubstanciação, de Lutero.

No que tange aos sacramentos, de forma geral, o Concílio os apresentou como os meios ordinários, através dos quais se inicia, se reforça ou se restaura toda a verdadeira justiça. Além disso, declara que Cristo institui sete sacramen-tos, definindo-os como sinais eficazes que produzem a graça ex opere operato, e não a partir da fé de quem os recebe. Sobre a comunhão sobre as duas espécies, declara que tanto no pão quanto no vinho está o Cristo inteiro e indiviso.

O documento recorda que depois do Concílio tridentino, as maiores mudan-ças oficialmente ocorreram durante o Concílio Vaticano II. Sobre os sacramen-tos, este faz uma apreciação positiva do que os Católicos têm em comum com outras igrejas cristãs: as profissões de fé, o Batismo e as Escrituras. 

Lutero compreendeu o sacramento da Ceia do Senhor como um testamento (testamentum), ou seja, a promessa de alguém que está para morrer. Seu primei-ro pensamento se inclinou para a percepção de uma promessa de Cristo como prometendo graça e perdão dos pecados. Em seguida, explicitou ainda mais sua fé na própria entrega de Cristo, por seu corpo e sangue realmente presentes. É o próprio Jesus que se entrega a si mesmo, em seu corpo e em seu sangue, a quem dele comunga, independentemente de sua fé. Desta forma, não se pode afirmar que Lutero divergia com a Igreja Católica no que diz respeito à presença real de Cristo, mas apenas na forma de compreender a “mudança” na Ceia do Senhor. 

O documento recorda que no Quarto Concílio de Latrão, em 1215, a Igreja usou o verbo transubstantiare para designar a presença real de Cristo na Eucaristia. Lutero via esse modelo como uma possibilidade de explicação, porém não podia ver como essa explicitação filosófica pudesse ser vinculante para todas as pesso-as cristãs. Ainda, ressalta-se que Lutero afirmou com insistência a presença real de Cristo no Sacramento. Finalmente, enfatiza-se que “Lutero entendia que o corpo e sangue de Cristo estavam presentes “em, com e sob” as espécies de pão e vinho. Afirmava uma mudança nas propriedades (communicatio idiomatum) en-tre o corpo de Cristo e o pão e o vinho. Isso cria a união sacramental entre o pão e o corpo de Cristo, e o vinho e o sangue de Cristo. Essa nova forma de união, formada pela comunicação das propriedades, é análoga à união das naturezas hu-mana e divina em Cristo. Lutero também comparou essa união sacramental com a união de ferro e fogo num ferro incandescente.”(PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS E FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL, 2015, p. 57)

Sobre as questões católicas relativas à Eucaristia, o documento recorda que a rejeição do conceito da transubstanciação trouxe questionamentos quanto à afirmação da veracidade da doutrina da presença real de Cristo. O Concílio tri-dentino se expressou nessa terminologia ao querer explicar a presença real de Cristo, mas o documento católico-luterano ressalta que o Concílio distinguiu a doutrina da conversão dos elementos da sua explicação técnica. Além disso, destaca que “quando os católicos insistem na transformação dos próprios ele-mentos criados, eles querem destacar o poder criador de Deus, que traz a nova criação por meio da antiga” (PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS E FEDERAÇÃO LUTERANA MUNDIAL, 2015, p. 59)

Percebe-se que a construção do texto quer enfatizar o que une as compreensões católica e luterana a respeito da presença real de Cristo na Eucaristia, sem esquecer as importantes distinções. Juntos, hoje podem declarar, a partir do documento Eucarist, n. 16: “No sacramento da Ceia do Senhor Jesus Cristo, ver-dadeiro Deus e verdadeiro homem, está presente total e inteiramente, em corpo e sangue, sob os sinais do pão e do vinho”. Essa declaração conjunta expressa a posição comum todos os elementos essenciais da fé na presença eucarística de Jesus Cristo sem usar a terminologia usual “transubstanciação”. 

2. A comunhão do cônjuge protestante

A caminhada rumo à unidade, no diálogo ecumênico, tem tomado um rumo profícuo nas últimas décadas, com expressões multilaterais de esforço no diálo-go, no mútuo perdão e na superação de conflitos. Existem, porém, ainda diversas lacunas a serem enfrentadas pela teologia para uma aproximação sempre maior entre as igrejas cristãs. No nosso caso, a aproximação entre católicos e luteranos já percorreu um longo caminho e existe muito a celebrar em termos de unidade. Uma das questões ainda em pauta é a dos casamentos mistos. Famílias com membros católicos e luteranos, unidos sacramentalmente pelo matrimônio, sen-tem a tensão de não poder participar da mesma ceia eucarística.

Um intenso debate entre bispos alemães sobre a temática floresceu em uma de suas assembleias de primavera, dada em fevereiro de 2018. Ela resultou em um comunicado final que dizia: “Os bispos votaram uma ‘ajuda orientativa’ des-tinada a permitir que os parceiros evangélicos recebam esse Sacramento, em determinadas condições. O pressuposto é que os parceiros evangélicos, ‘após um maduro exame em um colóquio com o pároco ou outra pessoa encarregada pelo pastor de almas, cheguem, em consciência, a consentir com a fé da Igreja Católica, pondo fim, assim, a ‘uma grave situação espiritual e queiram satisfazer desejo ardente de receber a eucaristia”(ANTONIO DALL’OSTO, 2018b)

O comunicado teve como base a prerrogativa do Código de Direito Canônico, que diz: “Se existir perigo de morte ou [...] urgir outra necessidade grave, os mi-nistros católicos administram licitamente os mesmos sacramentos também aos outros cristãos que não estão em plena comunhão com a Igreja católica, que não possam recorrer a um ministro da sua comunidade e o peçam espontaneamente, contanto que manifestem a fé católica acerca dos mesmos sacramentos e estejam devidamente dispostos”.(CIC 844 § 4)

É justamente sobre a “necessidade grave” que fundamenta o pedido da Conferência Episcopal Alemã. Dado que os cônjuges ficam divididos por conta da sua participação não plena na eucaristia, dos bispos afirmam ser uma dor profunda quando, em um casal misto, a não participação da Eucaristia de um dos membros é percebida como uma forma de exclusão. Assim, tanto a relação do casal como a relação com a Igreja ficam prejudicada.

O documento provisório enviado à Congregação para a Doutrina da Fé apre-senta diversas razões que levaram à maioria dos prelados alemães a proporem um diálogo de esclarecimento e questionam sobre a plausibilidade das suas pro-posições. Iniciam destacando que o espírito do ecumenismo é o que os encoraja nos caminhos rumo à unidade e ainda no primeiro capítulo apresentam a con-sequência de aproximar os casais interconfessionais: o fortalecimento no apoio pastoral da Igreja. Posteriormente, apoiam-se nos diversos encorajamentos do Papa Francisco em relação ao ecumenismo e reforçam que o pedido expresso no documento é efeito de estarem levando a sério suas responsabilidades enquanto prelados. O segundo capítulo é dedicado à reflexão sobre o amor de Cristo, que se torna estimulante para essa caminhada de unidade. No terceiro, se encon-tram uma série de posturas de Jesus em sua atividade pública. Apontam para a necessidade de se fortalecer a família através da vida sacramental vivida de forma plena no matrimônio, além de destacarem e justificarem a forma de ver a família como “igreja doméstica”, expressando novamente a importância da ex-periência sacramental em plenitude. O quarto capítulo destaca especificamente, no sacramento da eucaristia, a mútua fé na presença de Jesus Cristo. Ressaltam que estamos todos conectados a Jesus Cristo, mutuamente enquanto igreja e com o mundo todo de diferentes formas. Finalmente, no último capítulo, de cunho espiritual/celebrativo, o documento aponta para muitas razões que unem os cris-tãos e que devem ser motivo de gratidão a Deus.(CONFERÊNCIA EPISCOPAL ALEMÃ, 2018, p. 3-4)

O capítulo quarto é de nosso particular interesse, pois expressa a fé no Jesus eucarístico. O documento parte do pressuposto de que quem se aproxima da mesa eucarística deve partilhar da fé católica na Eucaristia. É dado que a compreensão de fé católica e luterana divergem entre si nesta matéria, porém, sob perspectiva ecumênica, tem-se trabalhado para que o destaque na teologia eucarística se dê direção às semelhanças, ao invés das diferenças. Três dimensões da eucaristia, diz o documento, são de particular importância para a Igreja Católica: o vínculo com Jesus Cristo, o vínculo com a Igreja e a conexão com o mundo inteiro. Esses três elementos formam uma unidade inseparável. É a partir dessas três supo-sições que os prelados alemães fazem o pedido ao vaticano.(CONFERÊNCIA EPISCOPAL ALEMÃ, 2018, p. 22-29)

O cerne das diretrizes, que obteve três quartos de votação favorável por parte dos bispos, pode ser destacado na seguinte afirmação: “Uma vez que a admissão genérica da parte não católica em um casamento interconfessional à participação plena à celebração eucarística católica não é possível, se requer uma decisão pessoal tomada em consciência que as pessoas devem alcançar após madura reflexão e em colóquio com o pároco ou pessoa outra encarregada do cuidado pastoral”.(CONFERÊNCIA EPISCOPAL ALEMÃ, 2018, p. 17)

O segundo pilar do documento é este: “Uma vez que receber a comunhão nunca é um evento simplesmente individual, mas sempre toca a comunidade eclesial, a decisão pessoal exige um forte envolvimento [uma forte integração] na vida da Igreja”. Por isso, o caminho para um possível recebimento da comu-nhão passa pelo diálogo pastoral, no qual será possível encontrar uma “boa solu-ção para cada caso individualmente”.(CONFERÊNCIA EPISCOPAL ALEMÃ, 2018, p. 17)

As diretrizes tomam como ponto de partida a dificuldade do discernimen-to sobre a questão. Citam o Papa Francisco em seu discurso na ocasião da co-memoração da Reforma em Lund: “Muitos membros das nossas comunidades desejam receber a Eucaristia em uma única mesa, como concreta expressão da plena unidade” (Declaração Conjunta, Lund, 31 de outubro de 2016). Recordam ainda que mais de 40% dos casamentos religiosos celebrados na Alemanha são interconfessionais.

Porém, ainda existe a exceção no recebimento da comunhão por parte do parceiro não católico. O Código de Direito Canônico abra a possibilidade quando se fala de uma “situação de emergência”. Dessa forma, os bispos alemães descrevem a situação da emergência nos seguintes termos: “É uma grande pena quando a fé, que levou um homem e uma mulher a doarem-se um ao outro no sa-cramento do matrimônio e recebê-lo um ao outro, leva ao desejo de receber a co-munhão juntos sem que, no entanto, se abra caminho para que se possa responder a esse desejo com a bênção da Igreja” (CONFERÊNCIA EPISCOPAL ALEMÃ, 2018, p. 16)Em seu raciocínio, os bispos referem-se à percepção da divisão por parte dos cônjuges: “É uma dor profunda quando, em um casal interconfessional, a não-participação na Eucaristia do marido ou da esposa protestantes é percebida como uma exclusão. Desta forma, a relação entre o casal e a Igreja também é prejudicada” (p. 18).

Interessante apontar para o critério de discernimento sobre a questão apre-sentado pelo teólogo Walter Kasper. Ele faz uma reflexão a partir dessa demanda da comunhão ao cônjuge protestante. Recorda que todo o cristão, mediante o ba-tismo, é incorporado à Santa Igreja de Cristo, o que já une cristãos e evangélicos. Porém, para os casais de confissão diferente, há um vínculo maior, por estarem unidos através do sacramento do matrimônio. Com seus filhos, formam uma igreja doméstica. Vivendo de forma coerente com sua fé, desejam com ardor po-der participarem juntos e plenamente da eucaristia. “A eucaristia é um sacramen-to de fé”, diz o teólogo, e isto estão em comum acordo os católicos e luteranos. “Um cristão evangélico, por isso, deverá se perguntar se pode compartilhar na fé com aquilo que os católicos fazem na fé na celebração eucarística”. (ANTONIO DALL’OSTO, 2018c)

Mais ainda, toca numa questão delicada, que amplia o critério de discer-nimento sobre o acesso à eucaristia inclusive para católicos. Diz ele: “a esse respeito, a barra, para os cristãos evangélicos, não deve ser posta mais acima do que a de um católico normal, suficientemente instruído na fé. Ninguém esperará que ele saiba explicar como a doutrina católica da transubstanciação difere da consubstanciação luterana. Ambos, recebendo a eucaristia, devem dizer com convicção: ‘Este é o corpo de Cristo’ e ‘Amém. Sim, nisto eu creio’”. Kasper assinala que um luterano que professa Cristo não tem dificuldade em crer em sua presença na eucaristia. Crê que nos dons do pão e do vinho está presente verdadeiramente o corpo e o sangue do Senhor. O teólogo ainda ressalva que para poder receber a eucaristia, não existe um julgamento geral, mas que tanto para católicos como para evangélicos, isto sempre depende do caso individual.(ANTONIO DALL’OSTO, 2018c)

A análise de Kasper se contextualiza numa postura favorável à intercomu-nhão, já que tensionada pelo sacramento do matrimônio e, portanto, a formação da igreja doméstica. Pastoralmente, dar uma resposta a essas situações agrava a importância do debate teológico em relação ao tema eucarístico.

A resposta da Congregação para a Doutrina da Fé ao presidente da Conferência Episcopal da Alemanha essencialmente se restringiu a dizer que a esta questão os bispos são convidados a esperar uma normativa que fosse comum à toda a Igreja, pois o documento não estaria maduro para a publicação, por conterem uma série de problemas de notável relevância. Em síntese, três pontos foram levantados para o discernimento: a) A questão da admissão à comunhão dos cristãos evangélicos nos casamentos interconfessionais é uma questão que afeta a fé da Igreja e tem uma relevância para a Igreja universal; b) Esta questão tem efeitos sobre as relações ecumênicas com as outras Igrejas e com outras co-munidades eclesiais que não devem ser subestimadas; c) O tema refere-se ao di-reito da Igreja, especialmente a interpretação do cânon 844 do Código de Direito Canônico. Considerando que em alguns setores da Igreja existem questões em aberto a esse respeito, os competentes dicastérios da Santa Sé já foram encarre-gados de produzir uma declaração tempestiva de tais questões ao nível da Igreja universal. Em especial, parece oportuno deixar ao bispo diocesano o juízo sobre a existência de uma “grave e iminente necessidade”.(ANTONIO DALL’OSTO, 2018a)

A postura mais recente da Santa Sé a respeito do tema veio em dezem-bro de 2020, com o Documento do Pontífício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, intitulado “O Bispo e a Unidade dos Cristãos: Vademecum Ecumênico”. O documento toma o “Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo” (DE), de 1993, como base para a redação e rea-firma muitas prerrogativas apresentadas na ocasião. Ao se referir à partilha da vida sacramental, o documento não traz novidades doutrinais, mas reafirma a postura tradicional da Igreja: “[...] a questão da administração e recepção dos sacramentos e especialmente da Eucaristia, nas celebrações litúrgicas uns dos outros permanece um campo de tensão significativa nas nossas relações ecumê-nicas. [...] Ao tratar o tema de ‘Partilhar a vida sacramental com os cristãos de outras Igrejas e Comunidades eclesiais’, o Diretório Ecumênico inspira-se em dois princípios de passe apontados na Unitatis Redintegratio 8, em que coexiste numa certa tensão, mas que se devem sempre considerar em conjunto estar sem-pre unidos. O primeiro princípio é que a celebração dos sacramentos numa co-munidade conduz ao ‘testemunho da unidade da Igreja’, e o segundo indica que o sacramento é uma ‘partilha dos meios da graça’ (UR 8). [...] Tendo em conta o primeiro princípio do Diretório declara que ‘A comunhão eucarística está insepa-ravelmente ligada à plena comunhão eclesial e à sua expressão visível’ (DE 129) e, portanto, em geral, a participação nos sacramentos da Eucaristia, reconciliação e unção é limitada àqueles que estão em plena comunhão. No entanto, aplicando o    segundo princípio, o Diretório afirma ainda que ‘a título excepcional, e sob certas condições, o acesso a estes sacramentos pode ser permitido, ou mesmo recomendado, aos cristãos de outras igrejas e comunidades eclesiais’ (DE 129).[...] O mesmo cânone (CIC 844) afirma que, ou em perigo de morte, ou se o bispo diocesano considerar que há uma ‘grave necessidade’, os ministros cató-licos podem administrar sacramentos a outros cristãos ‘que não estão em plena comunhão com a Igreja católica... contanto que manifestem a fé católica acerca dos mesmos sacramentos e estejam devidamente dispostos’ (CIC 844 §4; CCEO 671 §3)”. (PONTIFÍCIO CONSELHO PARA A PROMOÇÃO DA UNIDADE DOS CRISTÃOS, 2021).

Como se lê, a resposta reafirma o conteúdo já posto na tradição da Igreja, sem atender as reivindicações da Conferência Episcopal Alemã. O contexto complexo, embora favorável de abertura ao acesso à comunhão eucarística, faz com que se torne sempre mais exigente uma nova teologia eucarística, aprofun-dando a compreensão católica deste sacramento, respondendo a apelos culturais situados tanto no âmbito da pós-modernidade, quanto especificamente ao apelo ecumênico.

Desta forma, analisaremos, com Zeno Carra, autor do livro Hoc Facite, um dos temas mais relevantes no tocante à teologia eucarística: a transubstanciação. Carra oferece um novo modelo de compreensão da presença real de Cristo na eu-caristia. Esta análise auxiliará na compreensão do modelo tradicional da teologia eucarística e na hermenêutica do dogma tridentino que trata da presença real de Cristo na Eucaristia. Inserindo-se na caminhada do diálogo luterano – católico--romano, a retomada do conceito abordado contribuirá para uma aproximação da compreensão eucarística das duas denominações cristãs e firmará mais bases teóricas com consequências pastorais no acesso à Eucaristia.

3. Transubstanciação e presença real

Um número cada vez maior de teólogos vem se debruçando sobre o tema da Presença Real de Jesus Cristo na Eucaristia. Desde o movimento de reforma litúrgica pré-conciliar se busca uma participação mais plena da assembleia nas celebrações. Pode-se observar o desenvolvimento conjunto de toda a iniciação à vida cristã, que caminha com a liturgia, para conferir uma pastoral menos sa-cramentalista e mais fiél ao discipulado. Mutatis mutandis, o mesmo movimento se observa na liturgia. O acento na densidade simbólica do sacramento trouxe reduções na experiência da Presença de Cristo em outros locais/momentos cele-brativos.

A afirmação da transubstanciação ocorre de maneira mais explícita no Concílio de Trento, no seu capítulo quarto. A presença real de Cristo aparece no concílio seguindo três níveis. O primeiro, é a expressão mais tradicional da fé, que se dá na instituição da Última Ceia e ao dom que o Senhor então fez do pão e do vinho, dizendo que eram seu corpo e seu sangue, ele reporta a presença real de Cristo. É um nível expressamente bíblico e se reporta expressamente ao dom feito por Jesus. A presença se inscreve justamente no movimento desse dom or-denado à comunhão.(SESBOÜÉ et al., 2003, p. 144-145)passa às confissões de fé e, mais amplamente, ao desenvolvimento dos dogmas trinitário e cristológico, antes e depois do Concílio de Nicéia (ano 325

O segundo nível de afirmação acontece decorrente do primeiro. Ao torna-rem-se corpo e sangue de Cristo as matérias do pão e do vinho, há uma mutação/conversão das oferendas do primeiro estado para o segundo. Dessa forma, há uma objetividade na mudança realizada nas espécies eucarísticas. O concílio re-toma, então, a antiga argumentação de que, a partir das palavras da instituição, o pão e o vinho se tornavam objeto de alguma forma de “mutação” (metabo-lé, metapoièsis, metastoikkeiósis), afetando os elementos em si mesmos. Essa compreensão foi desenvolvida a partir do vocabulário medieval de substância.(SESBOÜÉ et al., 2003, p. 145)passa às confissões de fé e, mais amplamente, ao desenvolvimento dos dogmas trinitário e cristológico, antes e depois do Concílio de Nicéia (ano 325).

É no terceiro nível de afirmação que o termo transubstanciação aparece. Ele é bem distinto dos dois primeiros pois fala menos da realidade do mistério, e visa explicá-lo em termos de linguagem. Há alguns séculos a terminologia havia sido utilizada e o concílio se apropria dela. Importante destacar que Trento evita o emprego do termo como “um bloqueio na afirmação da presença real”. Uma análise detalhada das atas conciliares deixa isso muito claro. “Os dois primeiros níveis de afirmação não suscitaram nenhuma discussão, tão conscientes estavam os Padres de estarem exprimindo a fé tradicional da Igreja. A “canonização” do termo técnico transubstanciação, ao contrário, foi objeto de repetidas discussões quase até o último dia, porque alguns sustentavam que esse termo relativamente recente não gozava da unanimidade das escolas escolásticas. Ele foi, finalmente, mantido como o termo que melhor resumia, no contexto cultural e nas contro-vérsias da época, a doutrina da presença real, e que podia servir de ‘sinal de reunião’ e de ‘guardião da fé’ em tempos particularmente agitados. Segundo uma justa expressão de E. Schillebecckx, ‘o termo transubstanciação tornou-se, para o Concílio de Trento, a bandeira da ortodoxia’. Mas, tanto as atas do concílio, como a redação final da doutrina atestam que Trento não quis impô-lo como Nicéia quis impor o consubstancial. Deve-se, em todo o caso, reconhecer o li-mite tanto eclesial como cultural desse termo. (SESBOÜÉ et al., 2003, p. 146) passa às confissões de fé e, mais amplamente, ao desenvolvimento dos dogmas trinitário e cristológico, antes e depois do Concílio de Nicéia (ano 325)

É por isso que o tema da transubstanciação ainda persiste nos livros de teo-logia. O primeiro cenário que se percebe é o da discussão se a transubstanciação é dogma de fé, ou apenas uma explicação do dogma. J. Auer, Giuseppe Colombo e Andrea Grillo, por exemplo, fazem a distinção entre “objeto da fé” e “justifi-cação teórica de tal objeto”. Colombo dirá que a transubstanciação não deve ser necessariamente compreendida como dogma, mas mais especificamente como uma explicação do dogma. O dogma é a presença real de Cristo da Eucaristia.

A definição dogmática tridentina é a referencial para o debate da questão. Ela deixa clara a nomenclatura a ser utilizada para denominar a mudança subs-tancial das espécies. Devemos recordar, portanto, a definição de Trento a respei-to: “Ora, porque Cristo, nosso redentor, disse que aquilo que oferecia sob a es-pécie do pão [cf. Mt 26, 26-29; Lc 22, 19s; 1 Co 11, 24-26] era verdadeiramente seu corpo, existiu sempre na Igreja de Deus a persuasão que este santo Concílio novamente declara: pela consagração do pão e do vinho realiza-se a mudança de toda a substância do pão na substância do corpo de Cristo, nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue. Essa mudança foi denominada, convenientemente e com propriedade, pela santa Igreja católica, transubstanciação.”(DH 1642)

De acordo com a interpretação de Andrea Grillo, fica claro que o enunciado final aponta para a transubstanciação como uma explicação (conveniente), mas não se refere a uma necessidade. 

Zeno Carra, em seu livro Hoc Facite, traz uma análise muito lúcida sobre o tema. Em seu livro Hoc Facite, enuncia um problema medieval (de São Tomás) e moderno (Concílio de Trento) que elabora um modelo de explicação e de fruição da presença Eucarística, que isola o “ente” do rito. Essa abordagem, segundo ele, traz graves consequências para a concepção de Cristo. Até o séc. XX esse modelo se manteve praticamente inalterado, mas a partir dos movimentos de reforma litúrgica, se iniciaram diversas “operações sobre o modelo”, que é ainda uma questio disputata. 

O autor quer mostrar que o conceito de transubstanciação leva a uma com-preensão de presença de Cristo abstrata, difícil de ser reconhecida. Para uma experiência mais profunda da Presença Real de Cristo, Carra propõe a descons-trução do modelo clássico. No centro dessa revisão está a “forma do sacramento”, que deve ser reconhecida como “processualmente ‘agida’”. Ou seja, Carra percebe o distanciamento entre o sacramento e o rito. Este permanece como útil apenas para realizar aquele, e não constituinte de lugar de Presença de Cristo. A redescoberta da “forma ritual” como essência da Eucaristia une o sacramento e seu rito.

Dessa forma, no centro da Eucaristia não estão as fórmulas da consagração, mas sim a ação toda que inicia na preparação dos dons, perpassa por toda a ação eucarística, pela fração do pão e chega à comunhão. 

Zeno Carra avalia o modelo tomasiano-tridentino de forma precisa e aponta suas dificuldades inerentes para uma experiência eucarística mais ampla e ver-dadeira. Esse modelo foi gerado a partir de discussões medievais e modernas, preparando uma ratio sacramenti“que pode ser sintetizada em um sistema de relações, composto por ‘pontos de referência’ e por ‘laços formais’ entre eles, que são definidos como ‘eixos’”. (ANDREA GRILLO, 2018a)

Esses eixos desenham de uma forma geral a experiência eucarística. Abaixo serão apresentados resumidamente, segundo Andrea Grillo, as conexões entre os diversos pontos de referência, que são: o fundamento cristológico, o evento celebrativo, ou rito do sacramento, a Igreja que celebra o sacramento e o homem crente que está no fato sacramental.

A rocha-firme do fato eucarístico é o ente. Ele que governa o rito. No con-ceito de transubstanciação, o rito é elemento secundário na dimensão ontológica da Eucaristia. Jesus entrega, sob a forma de ceia, quatro articulações rituais: accepit, gratiamegit / benedixit, fregit, dedit. Essas articulações se subordinam à segunda delas. As outras três perdem relevância ontológica. Por exemplo, a comunhão se torna apenas consequência da consagração, já que o fato Eucaristia já estaria cumprido.

Dessa forma, a garantia da presença de Cristo na Eucaristia se daria na pas-sagem de substância a substância. Sendo assim, os eventos histórico-salvíficos de Cristo perderiam relevância ao dado objetivo da presença. Se a entificação é a que garante a presença do Senhor, Ele permanece de alguma forma “interno” aos elementos consagrados. No que toca à ritualidade, as categorias dos Padres da Igreja de “figura”, “imagem” e “similitude” se diluem e ficam imperceptíveis. Isso se torna mais evidente na “teologia do sacrifício”. Há uma multiplicação destes. O rito se torna secundário, servindo apenas como suporte para um núcleo de entificação. 

O acesso do homem à Eucaristia também sofre prejuízos nessa forma de conceber a presença. Uma relação mais racional em detrimento da sensível se torna uma consequência negativa. No que tange ao rito, há um afastamento de participação ativa e envolvente, sendo que o homem não se insere na ritualida-de, mas esta é posta “diante” dele. Como consequência, “o benefício da missa, baseado em uma lógica ôntica não sensível, pode prescindir até da presença dos beneficiários”(ANDREA GRILLO, 2018a).

Zeno Carra recorda que na época patrística, a celebração da Eucaristia ali-mentava conscientemente a assembleia de que esse era o lugar em que Cristo se fazia presente em sua Igreja, ou seja, local onde a ecclesia era gerada, edificada e compaginada. A presença Cristo-Corpo (enquanto Igreja) tem sua raiz na centra-lização do mistério e do rito, do fato Eucaristia. Quando se assume uma centra-lidade “presencial-ôntica” do fato eucarístico, em detrimento da “ritual-ativa”, a Igreja se torna extrínseca à Eucaristia. Essa consequência da leitura de Carra e demais críticos da teoria da transubstanciação é bastante grave, já que leva de alguma forma à “exclusão” da Igreja, por estar conectada de forma secundária à celebração eucarística. 

Carra tem clareza de que estamos distantes de um novo modelo elabora-do sistematicamente. Existem muitos argumentos para desestruturar o modelo tradicional herdado da tradição tomista-tridentina, mas o caminho a uma nova teologia eucarística é ainda longo. Com nosso autor, vamos acompanhar a iden-tificação de modelos que ele traz em seu livro Hoc Facite.

O Movimento Litúrgico e a Reforma Litúrgica foram marcos no séc. XX para um novo olhar celebrativo sobre a Igreja. Elas trazem a descoberta do valor da “ação” do ato de culto. Dois importantes articuladores são M. Festugière e R. Guardini. Consideram que na liturgia o fator tempo é superior ao fator espaço. Ou seja, o problema da entificação privilegia o fator espaço, enquanto uma ação ritual é um processo formal que se desenrola no tempo.(ZENO CARRA, 2018, p. 122-132)

Para Carra, no entanto, o ponto fundamental não chega a ser tocado pelos autores citados. Para ele, é a essência da celebração o que deve ser elucidada. Além disso, esclarece que a questão da cisão entre abordagem litúrgica e a re-flexão sistemática continua sendo uma questão aberta até hoje, ainda a ser sin-tetizada.

A desestruturação do modelo clássico para a compreensão da presença real vem sobretudo da Reforma Litúrgica, seja como projetada pela Sacrossantum Concilium, seja como realizada pelo novo Ordo Missae.(ANDREA GRILLO, 2018c).

No caso da Sacrossantum Concilium, Zeno observa uma falha dos padres conciliares na compreensão da incidência da “prática litúrgica” sobre a “substân-cia dogmática”. Mas apesar disso, ainda aponta três níveis de revisão do modelo clássico de presença eucarística.

O primeiro, quando fala da natureza “histórico-salvífica” da liturgia (SC 1-13) ao ressaltar que a Eucaristia é tanto sacramento quanto sacrifício. É pre-sença do sacrifício pascal de Cristo. Em seu centro, ela é presença de um ato e em virtude desse ato, é presença do agente. No modelo clássico, diversamente, a Eucaristia era presença ôntica (sacramento), da qual dependia uma ação salvífica (sacrifício).(ZENO CARRA, 2018, 196)

O segundo nível de revisão aponta para a SC 7, onde o documento trata da grande modalidade da ação de Cristo na liturgia. Explicita os lugares dessa presen-ça: no sacrifício da missa, tanto na pessoa do ministro, como nas espécies eucarís-ticas. Presente pela sua virtude nos sacramentos. Presente na sua Palavra, pois é ele quem fala quando na Igreja se leem as Sagradas Escrituras. Presente quando a Igreja ora e salmodia, pois “onde se acharem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou no meio deles” (Mt 18,20). Através dela, portanto, é possível ter acesso de diferentes formas à presença de Cristo.(ANDREA GRILLO, 2018c)

O terceiro, está na introdução da noção conciliar de actuosa participatio, vistas na SacrossantumConcilium11, 14 e 47-48. A exortação pede uma participação dos ativa, no sentido de terem a reta intenção, adaptarem a mente às palavras, e cooperarem com a graça divina para não a receber em vão. Convida a participarem consciente, ativa e frutuosamente da ação litúrgica. Continua res-saltando que a liturgia é a primeira e necessária fonte, da qual os fiéis podem haurir o espírito genuinamente cristão. Por isso, os fiéis não devem assistir a este mistério da fé como estranhos ou expectadores mudos, mas participem na ação sagrada, consciente, piedosa e ativamente. Portanto, é um conceito que abrange a ação litúrgica numa descentralização sacramental, para uma experiência eclesial de encontro com o Cristo ressuscitado.(ZENO CARRA, 2018, p. 201)

Em síntese, pode-se dizer que o documento sobre a liturgia, segundo Carra, amplia o espaço de operacionalidade sobre o modelo. “Se a inferência é coes-sencial ao dado essencial, isso deve ser concebido de outra forma que um em--si substancial posto diante dos fiéis. Ele deve ser novamente compreendido de acordo com categorias que admitam a ação de quem tem acesso como intrínseca ao dado ao qual ele infere. A noção tomista de substância, dados os resultados prático-litúrgicos que ela permitiu quanto à posição dos fiéis, não é adequada”.(ZENO CARRA, 2018, p. 203)

Além do texto da Constituição conciliar de liturgia, Carra se debruça sobre o Novos Ordo Missae, que atua sobre o modelo clássico de compreensão da presença eucarística. É introduzida uma nova descrição da “forma missae”, além de elabo-rar uma nova “fórmula de consagração”. Na Instrução Geral do Missal Romano (IGMR), é apresentada a forma da Eucaristia em quatro ações de Cristo e da Igreja. De Cristo: tomou; deu graças; partiu e deu. Da Igreja: apresenta os dons; faz a ora-ção eucarística; fraciona o pão e distribui a comunhão/comunga. Assim, o coração do evento eucarístico não está na consagração com as fórmulas eucarísticas e a consequente conversão substancial, porém, o coração é o acontecimento de uma ação, o dar-se diacrônico de uma forma coerente e estruturada que une em si as pessoas, palavras, objeto, tempo e espaço. (ANDREA GRILLO, 2018)

A partir dessas projeções de desestruturação do modelo clássico, Zeno Carra apresenta tentativas pós conciliares de reformulação da “transubstanciação”. O autor divide em dois momentos a pesquisa teológica mais relevante: o fenomenológico-religioso e o ontológico-relacional.

No nível fenomenológico-religioso, que se insere no debate ecumênico, re-elabora a tradição dogmática deslocando a “presença” do plano ontológico ao plano relacional, dessa forma recuperando o fundamento pascal da Eucaristia. Ele cita Ratzinger, que traduz a transubstanciação em termos escatológicos e criaturais como “perda de autonomia”. 

Na perspectiva ontológico-relacional, há uma concentração na superação de uma “ontologia metafísica” mediante uma “ontologia relacional”, que repensa a relação entre sujeito e objeto. Nas palavras de Andrea Grillo, “ela elabora so-bretudo duas categorias – as de ‘dom’ e de ‘sinal’ – mediante as quais tenta tra-duzir o modelo clássico em forma nova. No entanto, essa linha também não está isenta de riscos. Em particular, na versão oferecida por K. Rahner, Carra vê os riscos [...], cujo resultado parece paradoxal: embora querendo superar o modelo escolástico-tridentino, essas tentativas correm o risco de confirmar o dualismo e a relativização da dimensão real-histórica, privilegiando ainda um acesso pura-mente ‘noético’ à presença.”(ANDREA GRILLO, 2018)

Em 1965, o magistério da Igreja intervém sobre o tema da presença real com a encíclica de Paulo VI, Mysterium Fidei, sobre o Culto da Sagrada Eucaristia. Se destaca a importância do tema, relembrando que a Sagrada Liturgia ocupa o primeiro lugar na vida da Igreja, e o Mistério Eucarístico se encontra no cora-ção e centro desta. Ainda na introdução do documento, uma intenção de fundo e horizonte de leitura é posta: “Da restauração da Sagrada Liturgia, esperamos firmemente que hão de brotar frutos copiosos de piedade eucarística, para que a Igreja santa, elevando este sinal de salvação e piedade, cada dia mais se aproxi-me da unidade perfeita e convide para a unidade da fé e caridade todos quantos se gloriam do nome de cristãos, atraindo-os suavemente sob o impulso da graça divina”.(Mysterium Fidei, 6) Se percebe a intenção ecumênica citada no docu-mento, quando a Eucaristia é vista como sacramento destinado à unidade.

Na encíclica, porém, o Papa afirma que existem alguns motivos de grave so-licitude pastoral e de ansiedade sobre questões que tocam à questão eucarística. Diz explicitamente que não é lícito discutir sobre o mistério da transubstanciação “sem mencionar a admirável conversão de toda a substância do pão no corpo e de toda a substância do vinho no sangue de Cristo[...]. Nem é lícito, por fim, propor e generalizar a opinião que afirma não estar presente Nosso Senhor Jesus Cristo nas hóstias consagradas que sobram, depois da celebração do Sacrifício da Missa” (Mysterium Fidei, 11). Além disso, Paulo VI afirma de forma contunden-te que “não se pode tolerar quem pretenda expungir, a seu talante, as fórmulas usadas pelo Concilio Tridentino ao propor a fé no Mistério Eucarístico. Essas fórmulas, como as outras que a Igreja usa para enunciar os dogmas da fé, expri-mem conceitos que não estão ligados a uma forma de cultura, a determinada fase do progresso científico, a uma ou outra escola teológica, mas apresentam aquilo que o espírito humano, na sua experiência universal e necessária, atinge da rea-lidade, exprimindo-o em termos apropriados e sempre os mesmos [...]. São, por-tanto, fórmulas inteligíveis em todos os tempos e lugares” (Mysterium Fidei, 24). 

Mais adiante em sua encíclica, Paulo VI trata em específico do tema da transubstanciação. Recorda que este constitui o “maior dos milagres” e que é necessário escutar com docilidade e atenção a voz da Igreja docente e orante. “Ensina-nos que neste Sacramento Cristo se torna presente pela conversão de toda a substância do pão no seu Corpo e de toda a substância do vinho do seu Sangue; conversão admirável e sem paralelo, que a Igreja Católica chama, com razão e propriedade, ‘transubstanciação’. Depois da transubstanciação as espé-cies do pão e do vinho tomam nova significação e nova finalidade, deixando de pertencer a um pão usual e a uma bebida usual, para se tornarem sinal de coisa sagrada e sinal de alimento espiritual; mas só adquirem nova significação e nova finalidade por conterem nova ‘realidade’, a que chamamos com razão ‘ontológi-ca’. Com efeito, sob as ditas espécies já não há o que havia anteriormente, mas outra coisa completamente diversa: isto não só porque assim julga a fé da Igreja, mas porque é uma realidade objetiva, pois, convertida a substância ou natureza do pão e do vinho, no Corpo e no Sangue de Cristo, nada fica do pão e do vinho, além das espécies; debaixo destas, está Cristo completo, presente em sua ‘rea-lidade’ física, mesmo corporalmente, se bem que não do mesmo modo como os corpos se encontram presentes localmente” (Mysterium Fidei, 48).

Para explicitar esta verdade de fé, o papa recorre aos Padres da Igreja, como São Cirilo de Jerusalém, São João Crisóstomo, Santo Ambrósio. Recorda os Concílios Ecumênicos de Latrão, de Constança, de Florença e de Trento, sobre o mistério da conversão eucarística. Lembra ainda de Pio VI, opondo-se aos erros do Sínodo de Pistóia, recomendando aos párocos que ao ensinar sobre a Eucaristia, não deixassem de falar da transubstanciação. Da mesma forma, as-sinala que Pio XII recordou os limites que não devem ultrapassar aqueles que aprofundam o mistério da transubstanciação. (Mysterium Fidei, 55-56)

Os contrapontos de Zeno Carra à resposta magisterial e a nova proposta de modelo

A crítica que Carra dirige ao documento magisterial Mysterium Fidei é ex-pressa a certo efeito de bloqueio da pesquisa teológica em torno do tema da presença real, pois a encíclica, segundo ele, assume apenas o modelo clássico como único critério de discernimento. Não é levado em conta as tentativas de demonstrar novos modelos para dizer e viver a fé na presença real de Cristo na eucaristia. (ZENO CARRA, 2018, p. 184)

O autor ressalta que é preciso considerar a relação entre história e dogma de forma menos rígida. Diz que a verdade não está em um fluxo “noético” de ideias atemporais subterrâneo à história, porém, na própria experiência da história dos fiéis. Dessa forma, a encíclica, ao repropor a transubstanciação como modelo, também repropõe coerentemente o modelo de acesso do qual ela é parte e veí-culo. O dogma não pode ser descartado: não porque ele nos oferece proposicio-nalmentea verdade eterna, mas como permanece para semprepara atestar a luta histórica em que ele defendeu simultaneamente a prática de acreditar. O dogma ainda é válido hoje: não naquelepodemos tirar dele ideias eternas e sempre no-vas, mas em queatesta as comparações já passadas das quais tirar liçõeshoje não repetir palavras que feririam sua féda maneira como aqueles que então proscre-viam o faziam.(ZENO CARRA, 2018, p. 184)

Zeno Carra apresenta uma nova proposta de modelo de acesso à presença real de Cristo na eucaristia. Elas dizem respeito, acima de tudo, à mudança de modelo (em nível teológico-fundamental) e, depois, também, a uma nova visão dos “nós” fundamentais da doutrina eucarística. Será exposta abaixo a análise do teólogo italiano Andrea Grillo sobre o último capítulo da obra Hoc Facite.

Quanto ao modelo, inserido em âmbito de teologia fundamental, “a pas-sagem do modelo tomista-tridentino ao do séc. XX implica em três passagens muito fecundas: a) a análise da mudança de modelo, com os seus “nós” e os eixos que os unem (Cristo, ser humano, Igreja, rito e objetos envolvidos no rito), permite uma avaliação “sincrônica” e “diacrônica” muito frutuosa, tanto em ter-mos de desenvolvimento da doutrina, quanto em termos de relação entre dogma e heresia; b) vemos ser contestada, assim, uma imagem, bastante usual, que in-terpreta o desenvolvimento da doutrina nestes termos: “A verdade que move a história se encontra no conteúdo noético escondido sob as formulações verbais dos discursos teológicos” (p. 222). Em vez disso, é preciso reconhecer que “o todo real, nas suas várias funções (palavra, pensamento, prática), é o lugar de inserção da verdade de Deus a nós (portanto, não uma única parte dela, isto é, o pensamento abstrato)” (p. 224); c) daí deriva uma compreensão mais adequada dos dogmas, que “não são o recipiente de um pensamento verdadeiro e absolu-to, a fonte da verdade noética dentro da história. Eles são o esforço de resposta operado pela vida crente da Igreja aos movimentos de deformação histórica das formas de fé” (p. 226).(ANDREA GRILLO, 2018c)

Essas conclusões trazem muitas consequências sobre o modo como se con-cebe a relação com a verdade. Segundo Carra, “o verdadeiro não é posto como a inferência intelectual adequada ao abjeto, mas como a colocação harmônica do sujeito em sua relação com o real. Trata-se da superação do objetivismo clás-sico, que guiou o ideal de conhecimento no segundo milênio da ela cristã e da assunção das instâncias atuais de recuperação do sujeito. Instâncias assumidas criticamente: se a contemporaneidade insiste no sujeito [...] degenerando assim em subjetivismo ou relativismo, a nossa posição epistemológica insiste na rela-ção entre sujeito e objeto, entre realidade em sentido amplo e o homem que a habita, evitando a absorção do verdadeiro num sujeito isolado” (ZENO CARRA, 2018, p. 230).

Quanto à doutrina eucarística, inserida na teologia dogmático-sacramental, o caminho percorrido por Carra demonstrou a necessidade de um novo modelo eucarístico por dois motivos. O primeiro se trada do modelo elaborado entre a Idade Média e a Idade Moderna aponta para desequilíbrios. “O modelo elaborado sistematicamente por Tomás, confirmado posteriormente por Trento, assumi-do na práxis eclesial por mais de meio milênio, tem em si alguns desequilíbrios. A recessão jamais pacificada deste modelo na vida da igreja dá o testemunho dis-so: o modelo é posto em contestação nos debates acesos (as disputas eucarísticas dos séculos IX a XI) e suportaram e geraram outros (reforma protestante) que ti-veram como êxito a fratura da unidade da igreja. Desequilíbrios reconduzidos ao fato de se ter operado uma sistematização teórico-prática que relega ao segundo plano elementos centrais da tradição quanto ao fato eucarístico. Desequilíbrios nascidos do fato de se ter concentrado em alguns problemas postos como cen-trais na mudança epocal do mundo antigo ao medievo, e de se ter deixado à pró-pria tutela do princípio de autoridade aqueles componentes que permaneceram fora da sistematização.”(ZENO CARRA, 2018, p. 232). O segundo motivo se deve ao deslocamento do modelo clássico a um “mundo novo” como o do sé-culo XX exige uma nova e profunda calibragem. “A importação de um modelo elaborado em uma época da historia e uma outra época, distante da primeira não apenas cronologicamente, mas pelas vindouras mutações culturais.” (ZENO CARRA, 2018, p. 232). Desta forma, surgem os “delineamentos” de um novo modelo, que são expostos de acordo com a sequência: Cristo, sacramento, onto-logia.(ANDREA GRILLO, 2018b)

Quanto ao “presentificado”, Carra aponta que está presente na eucaristia não o corpo histórico que ressuscitou, mas sim o crucificado ressuscitado. Desta forma, a Páscoa não se reduz a um acidente da presença real. Além disso, está aí presente a promessa do corpo humano como cumprimento da sua natureza rela-cional. A presença corpórea e a presença pessoal são na verdade “corpo pascal. Na Sua corporeidade, como plena relacionalidade, seu lugar histórico não se ex-pressa como espaço estático do ente, mas no processo dinâmico de uma estrutura de conexões relacionais. O cumprimento do em-si de Cristo na morte-ressurrei-ção é antecipado na forma ritual da ceia, que é constituída pela sequência: tomou, abençoou/deu graças, partiu, deu. Essa forma é “forma crucis e forma Christi”. Finalmente, conclui que inticar o lugar da presença sacramental em uma forma relacional diacrônica, em relação a um ente espacialmente considerado, absolu-tamente não é diminuir ou enfraquecer a presença real, mas sim fundamentá-la na condição gloriosa e cumprida do seu Presentificado” (ANDREA GRILLO, 2018d)

Quanto ao sacramento (signum), “não tem a sua realização naquilo que acontece com um ente espacialmente considerado em sua inseidade, em torno do qual se desenharia secundária e consequentemente uma forma ritual. O fato do sacramento está justamente na forma atual agida, dentro da qual os entes (estamos na história e, portanto, podemos considera-los assim ainda) pão e vinho também são inevitavelmente colocados. [...] Assim, a forma do sacramento não é a ceia propriamente dita, mas aquele processo em quatro ações que conecta [...] aquele que preside, pão e vinho, discípulos”(ZENO CARRA, 2018, p. 241-242). Isso significa “indicar na ação litúrgica, que, para a eucaristia, tem-se na ação de tal forma, o nível essencial do sacramento. Não o seu marco cerimonial. É todo o processo ritual que é reconhecido como essencial. Isso implica, em nível dogmá-tico, a decisiva superação da distinção clássica entre sacramento e uso. O autor conclui que “o modelo clássico se fundamenta no pensamento espacializante ôntico grego e, por isso, não hesita em encerrar o fato eucarístico na relação de pregação lógico-performativa entre o pronome hoc, a referência ao pão em si e o predicado corpus meum, tudo através da cópulaest (e o mesmo para o vinho). Mas um olhar fenomenológico nos mostra que essa é uma abstração filosófica que faz uma certa violência ao texto. Os pronomes demonstrativos (hic-hoc) referem-se a um pão e a um vinho agidos, não a um pão e vinho em si” (p. 245). Finalmente, aponta que “o modelo da transubstanciação impede que a ratio sa-cramenti detenha em si a tensão escatológica: quando transubstanciados, pão e vinho consagrados absolutamente não podem ser a antecipação histórica da irrupção progressiva do eskaton: eles não são mais eles mesmos e, portanto, o que ocorre com eles não tem nada a ver com o destino final da criação, em que tudo será cumprido em plenitude e não transubstanciado! O modelo que estamos esboçando, por sua vez, permite a reivindicação escatológica: a pre-sença do Ressuscitado emerge na história na conexão formal-relacional entre os elementos. Estes, portanto, não perdem a si mesmos, mas se cumprem na sua relacionalidade com todo o resto, precisamente por serem assumidos na posição da forma sacramental” (p. 247).

Sobre a ontologia (res), “ainda é preciso se perguntar, porém, se o advér-bio substantialiter, que caracterizou a tradição eucarística dos últimos 500 anos, pode ser reduzido a essa interpretação negativa – diríamos não ocasionalista da eucaristia – e privado de ‘conteúdo positivo’. Para responder a essa objeção e elaborar uma ‘ontologia eucarística’, é necessário que Carra prossiga em diver-sos planos. (ANDREA GRILLO, 2018d). Primeiramente, Carra expõe que “a pergunta [...] deve ser posta dentro do modelo que a reflexão teológica fornece. O que acontece com este pão e este vinho liturgicamente agidos?” (p. 249).Mas, se o acesso ao Cristo ressuscitado é dado “em uma forma relacional dinâmica, em vez de em uma inseidadeôntica substancial, então os pontos de conexão da forma, os elementos nela envolvidos, sobre os quais ela estende o seu conjun-to processual, orgânico e coeso de vetores conectivos, são todos intrínsecos à própria forma. A forma se cumpre na manducação sacramental, porque ela é sua parte estrutural. A manducação é essencial ao sacramento e, portanto, à pre-sença” (p. 251). “A Igreja também, na sua relação com a eucaristia, é, em pleno direito, corpus Christi: porque ela é parte intrínseca da forma sacramental da Sua presentificação. A comunhão dos fiéis do único pão tomado, eucaristizado, partido e dado é partícipe da forma presentificante. E, portanto, o elemento fiéis--Igreja, que tal vetor da forma conecta, faz parte da única presença corpórea do Cristo pascal” (p. 251-252).Daí também deriva, por fim, uma afiada releitura da SC 7 sobre a presença de Cristo: “Portanto, não vários modos justapostos (e não mais teorizáveis) da presença real de Cristo (modo eucarístico, modo eclesial, modo daquele que preside), mas simdiversos polos intrínsecos à única forma orgânica de presentificação real, corpórea e não ocasional (portanto, “substan-cial”) do próprio Cristo crucificado ressuscitado” (p. 252). (ANDREA GRILLO, 2018d)

Conclusão

O modelo apresentado por Zeno Carra se insere no quadro das novas teolo-gias eucarísticas que surgem no período pós-conciliar. Ao criticar o conceito de transubstanciação, aponta para limites que ele traz à experiência eucarística dos católicos, mas também ao diálogo ecumênico, na questão do acesso à eucaris-tia, e em nosso caso específico, ao do cônjuge protestante. Quando da resposta do prefeito para a Congregação para a Doutrina e Fé, Luiz Ladaria, ao Cardeal Marx, então presidente da Conferência Episcopal Alemã, sobre o documento in-titulado Caminhar com Cristo (Handreichung), aponta para três questões delica-das a serem discernidas. A primeira dela é quea questão da admissão à comunhão dos cristãos evangélicos nos casamentos interconfessionais é uma questão que afeta a fé da Igreja e tem uma relevância para a Igreja universal. Considerando as pesquisas sobre a fé na presença real de Cristo na eucaristia, tanto da parte luterana quanto católica, revisitar a aprofundar este tema é fundamental para o discernimento a respeito da intercomunhão eucarística, iniciando pelas famílias constituídas por matrimônios mistos. A proposta de Carra de um novo modelo é meritória de aprofundamentos, já que amplia as possibilidades de discernimento sobre a possibilidade de intercomunhão para o cônjuge protestante, além de fa-vorecer de forma ampla a aproximação ecumênica.


Referências

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